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Delineando as propriedades que conferem ao cuidar em enfermagem seu estatuto singular: o quadro e o fato

Delineating the proprieties that check when nursing taking care itis singular statute: the picture and the fact

Resumos

O ensaio reconsidera o processo de institucionalização do cuidar evidenciando a ordem própria desse fato mobilizado por essa interdição. Evidencia os efeitos desse processo na conformação do pacto identificatório profissional instituição, o arcabouço estrutural que lhe dá sustentação, identificando suas propriedades, assim como as possibilidades de criar um dispositivo de trabalho apto a promover o reencontro com a tarefa primária resignificada.

Cuidados de enfermagem; Prática profissional; Enfermagem


The rehearsal reconsiders the institutionalizid process of taking care, evidencing the own order of that fact mobilized by that interdiction. It evidences the effects of that process in the conformation of the professional identificatory pact institution, the framework that gives it sustainement, identifying its properties, as well as the possibilities of creating a device of capable work to promote a new find with the task primary new significance.

Nursing care; Professional practice; Nursing


ARTIGOS ORIGINAIS

Delineando as propriedades que conferem ao cuidar em enfermagem seu estatuto singular: o quadro e o fato* * Aula proferida para obtenção do cargo de Professor Titular junto ao Departamento de Emfermagem Médico Cirúrgica da EEUSP.

Delineating the proprieties that check when nursing taking care itis singular statute: the picture and the fact

Cilene Aparecida Costardi Ide

Professora Titular do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da EEUSP e-mail: cacide@usp.br

RESUMO

O ensaio reconsidera o processo de institucionalização do cuidar evidenciando a ordem própria desse fato mobilizado por essa interdição. Evidencia os efeitos desse processo na conformação do pacto identificatório profissional instituição, o arcabouço estrutural que lhe dá sustentação, identificando suas propriedades, assim como as possibilidades de criar um dispositivo de trabalho apto a promover o reencontro com a tarefa primária resignificada.

Unitermos: Cuidados de enfermagem. Prática profissional. Enfermagem.

ABSTRACT

The rehearsal reconsiders the institutionalizid process of taking care, evidencing the own order of that fact mobilized by that interdiction. It evidences the effects of that process in the conformation of the professional identificatory pact institution, the framework that gives it sustainement, identifying its properties, as well as the possibilities of creating a device of capable work to promote a new find with the task primary new significance.

Uniterms: Nursing care. Professional practice. Nursing.

1. INTRODUÇÃO

A prática do cuidar tem história e faz história. É também categoria teórica, real e imaginária, que vem refletindo representações, ligações e ideais que formam a parte indestrutível da vida. Apesar de sua existência regulamentada e subjugada, o cuidar existe acima dos regimes políticos, das distinções culturais, dos traços raciais, enfim, dos mecanismos socialmente constituídos para determinar esquemas de exclusão. Nessa experiência, inscrita na ordem da sobrevivência da espécie, entrelaçam-se intenções, auto-correções, hábitos de pensamento e de ação muitas vezes frágeis em suas premissas e que, no entanto, apenas nesse curso, vêm sendo capazes de representar, sob as condições de existência dadas, uma prática em evolução.

Assim sendo, reconhecer essa trajetória, buscando as propriedades que lhe conferem estatuto de prática profissional, exige clareza no reencontro das marcas distintivas da sua própria identidade.

Nesse sentido, estaremos nos distanciando dos modelos pregressos que tinham na dimensão do sagrado a sua origem, a sua racionalidade específica, o seu limite de ação. Nesse processo de resgate teremos o rito de institucionalização como ponto de transição para um cuidar profissional, enquanto violência fundadora que, se apropriando de demandas apriorísticas daqueles que cuidavam, afastando-os da carência essencial, da lógica da consciência e do livre arbítrio, vincula-os a dispositivos, a crenças e a práticas socialmente instituídas, conformando processos de sujeição extremamente complexos, com trocas simbólicas refinadas, aptas a recalcar os desvios, os custos e as manifestações de verdade de uma existência estruturada, que vem se ocultando, inclusive, da análise desestabilizadora3.

A essência desse movimento - que tem no modelo Nightingale a sua marca distintiva - será reapresentada a partir de peculiaridades que vêm acompanhando sua existência, numa escala de espaço e de tempo pouco permeável à reestruturações, fundamentando as propriedades que ressaltam os contornos e as formas dessa prática apreendidas em momentos apresentados a seguir.

PRIMEIRA PROPRIEDADE: A violência fundadora e a função instituída

Fundamentando essa apreciação, cabe considerar que a institucionalização das práticas de saúde insere o médico no cenário hospitalar conferindo-lhe o poder e o dever profissional de curar. Como sustentação para a sua atuação a Enfermagem também é institucionalizada, tendo como responsabilidade implícita à sua existência regulamentada a promoção de condições para o êxito da relação terapêutica médico-doente. Sua intervenção passa a ter como tarefa substitutiva ao cuidado direto, uma atuação em sintonia com o modelo fundador, assim caracterizada.

Não cabe aqui explorar o que há de verdade nas diferentes versões sobre os feitos de Nightingale. Cabe evidenciar o ponto de junção entre uma demanda e outra pela reinstauração do hospital, agora na perspectiva da cura, e a contigüidade do trabalho por ela desenvolvido, organizando o espaço, os hábitos e as ações, preparando o hospital enquanto cenário de privilegiado para o desenvolvimento da clínica. É nessa perspectiva que seu modelo se funda alicerçado num triplo controle:

• o primeiro âmbito desse controle relaciona - se ao ambiente físico, onde noções de territoriedade garantem e limitam doentes ao leito, reservando espaços peculiares a cada personagem. Nesse dimensionamento, todo o ritmo da ação passa a ser cadenciado, como que antecedendo a instauração posterior da linha de montagem taylorista. Emerge ainda toda uma concepção estética evidenciando a lógica do higienismo. Talvez mais por hábito que por ciência, seus preceitos determinam a iluminação, a aeração, a separação dos corpos, a limpeza dos seres e das coisas. Por concomitância, toda uma revolução cultural se institui. Contrapondo - se à transgressão e à desordem, preceitos e valores centrados em princípios de moralidade conformam uma rede de sentidos em sintonia com uma personalidade que tinha a rigidez do julgamento e da conduta como marca distintiva. Essa seria também a rede a selecionar, a agregar e a formar os futuros profissionais exemplares.

• o segundo âmbito de controle seria aquele a promover a sintonia, a servir de ponto de ligação entre o cenário os atores e ações, ou seja, a dimensão das relações. Nessa ótica, o padrão interativo é tecido visando contenção, tendo na disciplina, nos dispositivos hierárquicos e nos ritos de pertinência mecanismos aptos a identificar, a julgar e a punir os desvios de comportamento.

• complementando o esquema de sustentação do modelo, a terceira dimensão do controle se volta para a esfera da ação e é nela que ocorre uma ruptura definitiva que desvincula a enfermeira do cuidado direto. A partir de então o seu trabalho passa a ter por objetivo o controle do cenário e do desempenho dos subalternos - princípio de estratificação - a quem caberia definitivamente o cuidar delegado. Para Nightingale, ações assistenciais privilegiadas estariam centradas na esfera da avaliação e da deliberação, ações compatíveis com o seu perfil, porém uma experiência até hoje, pouco assimilável para a maioria dos enfermeiros. Aqui estaria localizada, portanto, a zona de interstício enquanto possibilidade de resgate da demanda essencial desses profissionais.

Assim, essa profissionalização forçada, que constroe para si um substituto para um cuidar requerido porém não reconhecido como merecido - e por isso preterido - tendo como mecanismo projetivo a tentativa onipotente de domínio do contexto enquanto recurso para justificar o custo da renúncia, preservando nuances de desejo, seria uma incitação convertida em poder de violência posta na origem e na estruturação do novo papel profissional ao modelo fundador.

A intensidade dessa privação traria como repercussão uma permissão que ao nível da consciência promoveria a cisão entre as produções de sentidos e a realidade da prática: um contrato de renúncia enquanto possibilidade de permanência apta a desregrara a harmonia do psiquismo, induzindo a uma tensão sustentada pela utilização de meta - defesas enquanto expressões reacionais compatíveis com o ser, com o conjunto: social e institucional.

Em síntese, nossa premissa identifica como prioridade essencial da Enfermagem a primeira e a mais ressonante, esse processo de desligamento entre o desejo e o objeto, a partir do qual a estrutura do ser profissional é abalada, promovendo um tanstorno e uma reconstrução na perspectiva da identificação.

Assim esse interdito à realização da tarefa primária, o cuidado direto, vincula a enfermeira ao controle do contexto de prática, agregando ambiente, ações e relações, mediando poderes pela inespecificidade induzida, porém não requerida.

A característica central dessa maneira de existência institucional vem se fundamentando em expectativas de função, em comportamentos estereotipados, em hábitos de pensamento e de ação à semelhança da matriz, gerando respostas adaptativas aptas a configurar a segunda propriedade do cuidar.

SEGUNDA PROPRIEDADE: A Peculiaridade do Custo Identificatório

Essa cultura de pertinência, apta a conformar performances, promoveria privações, desencadeando:

♦ a deterioração do espaço interno psiquíco7;

♦ um sofrimento psíquico ímpar decorrente do pacto de renúncia à satisfação;

♦ a utilização de mecanismos sociais de defesa contra a ansiedade inerente ao pacto identificatório9;

♦ o recalque de tudo o que no sincretismo instituição-sujeito permanece como sofrimento descabido, incluindo os jogos de conciência7;

♦ a utilização de mecanismos de mistificação coletivos que se inscrevem nas estruturas objetivas (códigos) e nas estruturas mentais institucionalmente validadas2;

♦ o investimento em trazer a parte irrepresentável da prática para a rede de sentidos. Assim, elaborações teóricas, projetos de sistematização da ação, dentre outras produções de sentido emergiriam enquanto expressões de racionalização a justificar e a manter os custos identificatórios, preservando a função dos ideais' sempre pretendidos, pouco viabilizados;

♦ um contorno de prática com dupla margem de sustentação: a biológica - que modula a experiência corporal e o limite físico do custo identificatório - e uma social, que atualiza a experiência institucional, ambas comportando o espaço das emergências desorganizadoras7;

♦ finalmente, como última regressão, a obsessão pela tarefa substitutiva centrada em jogos de controle - demanda institucional - e de onipotência, emblema metapsíquico das enfermeiras.

Evidentemente, essa ordem própria, mobilizada pelo fato institucional, se apoia em dispositivos que procedendo da legalidade, têm por finalidade manter coeso o sistema. Esse esquema de sustentação se funda em redes de sentidos que centralizam hábitos de pensamento, de ação e de formação, dentre outros dispositivos, fornecendo representações comuns e matrizes identificadoras que comporiam o arcabouço estrutural a moldar os acordos tácitos que vêm garantindo a continuidade do cuidar instituído. Seriam construções culturais, simbólicas e imaginárias com uma finalidade unificadora, apresentando-se "como conjuntos englobantes, visando imprimir a sua marca distintiva sobre o corpo, o pensamento e a psique de cada um dos seus membros"7.

Esses sistemas de pensamento e de ação determinariam a possibilidade de continuidade e de regulação, produzindo um discurso, expressando apreciações passíveis de apreensão e análise.

Como o nosso propósito aqui é considerar os componentes dessa base cultural, aptos a conferir ao cuidar sua dimensão essencial, utilizaremos, agora, como forma de sustentação teórica, esquemas representacionais construídos a partir da análise de conteúdo de depoimentos de enfermeiros vinculados a cursos de especialização e de mestrado na Área derivados de questões relativas à expectativas e à expressão teórico-operacional da prática do cuidar do adulto4. Depoimentos de estudantes de graduação delinearam as representações relativas à construção da identidade profissional5. Juntos, esses conteúdos sustentaram análises aptas a conferir ao cuidar sua terceira propriedade.

TERCEIRA PROPRIEDADE: A cisão razão/desejo e ação

Cabe esclarecer que os depoimentos foram coletados em momentos distintos com grupos distintos de enfermeiros vinculados a diferentes serviços tendo, contudo, uma similaridade de conteúdo própria de profissionais efetiva e afetivamente instituídos. A partir da análise, que privilegiou as dimensões do desejo, do pensamento e da ação identificamos três categorias comuns a três dimensões referidas e que agregou: a atitude, a abrangência da ação e o produto desta ação.

Assim os sentidos que emanam da representação do desejo evidenciam processos com uma coerência interna própria da incorporação das estruturas objetivas, evidenciadas:

♦ por uma atitude em consonância com um espaço psíquico indiferenciado que reflete a perda de si no cenário institucional'. "O padrão de competência volta-se ao "estar disponível" e ao "dar conta de tudo";

♦ a abrangência da ação vem representada pela assimilação da função substitutiva, sustentada pelo exercício de um controle que se pretende capaz de direcionar, sustentar, resolver, organizar, facilitar, representar e ser responsável pelas ações, pelas relações e pelas conseqüências do que é feito por todos os demais. A demanda primária ocuparia o espaço do interstício, viabilizando aproximações esporádicas com o cuidar que emerge qualificado na perspectiva da inespecíficidade, à margem das proposições teórico-operacionais que apregoam um trabalho diferenciado pela especificidade de ações de domínio do enfermeiro no âmbito do fazer da Enfermagem;

♦ como produto, a expressão do acordo tácito, próprio do sujeito instituído, no qual o ser e o papel conformam a mesma entidade, reconhecida na sua pertinência pessoal e profissional.

Lógicas de ordem distinta interferem nas representações da prática vinculadas a esquemas de pensamento. Neles, o investimento se volta à pretensão de uma atitude procedente de conhecimentos e de habilidades no cuidar com um padrão de especificidade decorrente da abrangência, inclusive, da dimensão das relações enquanto instrumento de acesso à esfera psicosócioespiritual do outro. O objeto cuidar tem a primazia da tarefa primária trazida à ordem de uma prática fundamentada, sistematizada, com capacidade de auto - dirigir-se, opondo-se, portanto, ao fazer taylorizado. A plenitude vem representada por um cuidar presente em todos os momentos do ciclo vital, nas diferentes manifestações do processo de adoecimento, interagindo nas diferentes dimensões do ser humano a partir de conteúdos, de instrumentos e de ações que sustentariam uma ordem própria e específica ao seu processo de trabalho.

Essa construção racional também expõe ausência de limites, uma tentativa de transcendência que fragiliza a validação de seus estatutos enquanto prática científica. Porém, sua maior limitação decorreria da necessidade de manter velado seus marcadores de vulnerabilidade, aqui delineados numa dupla perspectiva ou seja:

• uma noção de contradição entre o que é possível pensar a respeito do cuidar e um realidade inexpugnável à razão, que imobiliza a ação teorizada promovendo uma percepção de descompasso e uma sensação de despreparo para o embate necessário porém inadmissível frente a um contexto considerado determinístico e um ser representado como frágil. Assim, toda a responsabilidde pela dissociação teórico - operacional é projetada sobre a instituição promotora da ação forçada, passando a ter um valor hostil induzindo construções adaptativas na perspectiva da pertinência;

• o investimento ainda que relativo no desvendamento possível aponta esquemas de percepção que contém: uma noção de limite do ser frente à intensidade do papel que se opõe ao ideal. Assim convivendo com a sombra do objeto perdido investimento de continuidade incide na opacidade de uma prática conformada. A noção de vazios vem atrelada à inconsistência dos referenciais incapazes de sustentar investimentos de aprimoramento. A revelação do custo dessa experiência configura a manifestação de sofrimentos inscrito na polaridade de sensações (prazer-desprazer; motivação-distanciamento; sofrimento-felicidade), assim como de um desgaste imenso, denso, constante e contínuo. Sentindo na vida e no corpo o custo dessa prática os enfermeiros participantes da pesquisa não avançaram além dessas manifestações de externalidade, excluindo - se do processo, deixando de lado tentativas de aprofundamento teórico para além das aparências. A verdade da prática mesmo nesse campo de conceptualização permanece assim, mais recalcada do que ignorada.

No quadro da ação, dados expressos a partir de descrições de diferentes mestrandos que, trabalhando em instituições distintas, mapearam os respectivos processos de trabalho, evidenciam uma atitude profissional de pertinência, ainda que sofrida, configurando um processo identificatório estabelecido, onde o sujeito se inscreve no ser conjunto, expressando uma relação de sincretismo com a instituição que passa a precedê-los, determinando performances que sustentam a estrutura a partir de um "nós operante" expressão definitiva do processo de fusão instituição - papel - sujeito.

A ação passa a ter por finalidade evitar a angústia desse descentramento da subjetividade, justificando e mantendo uma automação marcada por ritos de demarcação (conferir coisas e pessoas, receber plantão), pela distribuição quase sempre do mesmo fazer para as mesmas pessoas - emblema da prática taylorizada, pela valorização das coisas (contar, solicitar, distribuir, controlar o uso de materiais e equipamentos) e dos registros (escalas, censos, requisições, relatórios).

A função de continuidade convive com momentos de transgressão na perspectiva da criação nos quais enfermeiras reencontrariam um cuidar incidental priorizado a partir de esquemas valorativos pessoais, a partir da sua complexidade (inerente à condição do doente ou do procedimento); das solicitações (do médico, do doente, da família); dos momentos (internação, transferência, alta) ou de ações inerentes a protocolos, incluindo a sistematização da assistência ( SAE ) reconhecida não como método ordenador da prática e sim como função apta a promover um status, assegurando uma identidade profissional e institucional.

Entretanto, o limite dessa relação automação defensiva-criação transgressora, apto a sustentar o contrato de renúncia decorre das reuniões que realizariam a função capital de uniformizar condutas e diluir responsabilidades enquanto esquemas moduladores em nome das quais, decisões conjuntas seriam tomadas a partir do relato de experiências. Esse reforço serviria para manter "os acordos tácitos sobre os quais repousam a continuidade das instituições e a matriz do sentido..., justificando e mantendo os custos identificatórios7".

Tomados em conjunto, esses esquemas evidenciaram uma contradição que oculta para os próprios profissionais a verdade exibida pela análise, evidenciando uma sinergia entre desejo e ação que juntas se autonomizam dos projetos de racionalidade. Assim, "o que na relação com a instituição permaneceu como sofrimento, continua sendo impensado devido ao recalque, à recusa e à reprovação7".

Continuando nesse investimento analítico e trazendo o sistema formador como coadjuvante desse processo de moldagem vale agora caracterizar representações de estudantes de graduação acerca da identidade profissional5.

Preliminarmente cabe esclarecer que o projeto aqui apresentado acompanhou o desenvolvimento de sistemas de conceitos de um mesmo grupo de estudantes no decorrer do curso de graduação da EEUSP na vigência do novo currículo, sendo que os dados agora apresentados configuram a etapa final desse processo de construção6.

Assim estudantes com um bagagem pregressa similar tinham ainda em comum, no início do curso a demanda pela profissão contida nos princípios de abnegação e de prontidão para um cuidar de todos.

Com essa expectativa, vivenciaram quatro anos de graduação estabelecendo pontes peculiares com o sistema de referências que, no decorrer do processo de formação, apresentou-se polarizado, tendo como na escola ou no campo de prática balizas diferenciadas para as próprias apreciações, representações, necessidades e possibilidades de aprendizado. Houve ainda um movimento à margem desses dois sistemas de referência decorrente, provavelmente, da discrepância entre eles e os esquemas pessoais inviabilizando a assimilação dos conteúdos apresentados e das práticas experimentadas no decorrer da graduação. Essa seria a representação de uma trajetória que, apesar de manifestações externas de adesão, manteve - se impermeável à quaisquer dos códigos.

Dentre os que aderiram, como síntese dessa trajetória de profissionalização, identificamos um desenvolvimento peculiar de esquemas conceptuais formalizados mediante estruturas que evoluíram, tendo o formador ou sistema utilizador de recursos humanos como referência, promovendo uma perspectiva distinta de atuação profissional. Tendo a graduação como baliza, a especificidade emerge como desafio a ser enfrentado no sentido de dar consistência teórico - operacional a um dos modelos assistenciais - o clínico, o epidemiológico e o que valoriza a interação interpessoal. Seletivamente, o modelo administrativo emerge como alternativa a ser firmada tendo o controle as coisas e de pessoas como objetivo. Delimitado o futuro desafio cabe acrescentar como atributos dessa opção discente, a expressão de uma crítica sustentada acerca das condições objetivas de prática, assim como a referência de uma sensação de instrumentalização frente a um contexto representado com transcendente. No contraponto, sob o prisma do sistema utilizador, a assimilação da inespecificidade percebida na atuação do enfermeiro, assim como a acomodação à pulverização das atividades em detrimento de uma identidade profissional própria passam a ser os requisitos de pertinência e de adesão às demandas do campo. Essa tendência se viabiliza, tanto pela contenção da crítica quanto pela valorização dessa "polivalência" como estatuto de supremacia sobre as demais atuações profissionais, justificando esse projeto de adequação como requisito de inserção no conjunto profissional.

Em síntese, essas representações expressariam a interação do aluno com uma diversidade de ideários induzindo distintos perfis de adesão, numa gama de possibilidades que oscilaria, incluindo a não identificação a quaisquer das perspectivas identificadas, perpetuando a reiteração de demandas, de princípios e de expectativas de intervenção no contexto profissional vinculadas ao senso comum. Nesse sentido, a Graduação, em si sua força inativada pela diversidade de mensagens. No contraponto, haveria possibilidades de adesões parciais, decorrentes de uma maior sintonia entre a bagagem ao capital cultural desse aluno e os esquemas moduladores específicos ( graduação e campo ). Existiria aqui, tanto a vantagem de uma adesão por identidade, por paixão e, portanto, por envolvimento afetivo como também, desvantagem da transposição do modelo teórico pretendido a realidades e contextos de ordens distintas, quase nunca compatíveis com a dimensão do desejo. Outra possibilidade e talvez a forma mais esperada de adesão ao ideário da Graduação, seria a expectativa desse estudante, dependente da própria capacidade de auto elaboração, superar a diversidade de códigos e de mensagens, processando, ele próprio, um padrão peculiar de atuação. Assim sendo, esse reprocessamento da conformação profissional transcenderia aos limites induzidos pelos sistemas formador e utilizador de recursos humanos pela potencialização de uma bagagem pessoal peculiar a cada discente, incluindo a sua capacidade de lidar com as próprias demandas e por decorrência com os próprios processos de reparação6.

Esses dados evidenciaram, ainda a dupla vinculação desse modelo, apto a assegurar as bases de identificação do sujeito com o conjunto social a partir da sua primeira institucionalização, ou seja, da inserção do estudante à graduação. Sistema apto a mobilizar investimentos e representações que contribuiriam para a regulação das interações entre fatores internos e externos ao aluno, viabilizando diferentes modalidades de reparação enquanto expressões do desejo e da capacidade desse sujeito em recriar um objeto bom, exterior e interior, antes destruído"s. Assim, a configuração projetiva que cada estudante deu à identidade profissional expressaria a conciliação de uma demanda afetiva pregressa mediada pelas forças motivacionais do ensino superior com suas diferentes manifestações do desejo, do pensamento e da ação que conformam a construção do projeto de cuidar.

Assim, a história e a vida do cuidar instituído comporiam uma rede de significados, sustentada por níveis de realidade e lógicas de ordem distinta, tendo, como propriedade peculiar dessa prática o seu caráter colusivo.

QUARTA PROPRIEDADE: A prática colusiva do cuidar enquanto manifestação emblemática.

O meta quadro que emerge dessas reaproximações conferem ao cuidar um estatuto de prática instituída, que investe na busca de um sentido para o pacto de renúncia transformado em símbolo enquanto gesto definitivo construindo esquemas moduladores aptos a abafar as tensões decorrentes da identificação. Essa busca de sentido baliza as produções do pensamento, da ação e da formação de novos sujeitos na tentativa de imprimir sua marca constitutiva, sinal incontestável da pertinência. Como expressão, emerge uma prática colusiva conivente, de dupla natureza, combinando a pretensão institucional de controle absoluto que incide sobre o investimento de sobrevivência pessoal a partir da onipotência que ressuscita do cuidar sobrecarregado de desvios. Assim, a imagem interna desse cuidar teria sido tão superinvestida que acabaria sendo, projetada para fora e para além do domínio da ação, passando a ser reencontrada em situações esporádicas, sempre como possibilidades e não mais como direito como competência. Porém, esse investimento defensivo protege mas não atende à insatisfação decorrente desse descentramento, induzindo focos de irradiação com força desestabilizadora, na dependência da intensidade da desordem interna assim como das repercussões das transformações nos códigos que servem como referência para a sua existência.

Assim, ao final desse ensaio, depois de ter me permitido viver, ouvir e falar sobre essa experiência singular de ser enfermeira, tentarei identificar as possibilidades de ruptura desse arcabouço ousando, inclusive, propor novas formas de vinculação10 a partir da expressão do esquema a seguir.

Essa figura contém duas possibilidades de continuidade. Uma pautada na perpetuação do ser contido no papel convivendo com uma prática representada como um invólucro que confina suas demandas, redireciona suas defesas, tornando-as mais primitivas, e determina sua ação culminando na identificação plena enquanto expressão emblemática. No contraponto, a possibilidade de investimentos intencionais em tornar permeável esse invólucro permitindo um afluxo de energia na perspectiva do reencontro com o ser, com o cuidar reinvestido de importância vital, enquanto motivação de conduta e reativação da identidade. Como condição predisponente à transição emerge o espaço da sensibilidade para o despertar de experiência primordiais para o reconhecimento do direito e do dever de uma existência auto centrada a expressar uma identidade profissional.

A desestabilização do sincretismo, a qualificação dos mecanismos de defesa, a reelaboração da relação ser papel, culminando na interação do cuidar, reaproximando as dimensões do desejo, do pensamento e da ação, pressupõe reconhecer o caráter dessa interdição, o sentido de culpa mobilizado, a mistificação dos jogos, o nível de sofrimento psíquico cada vez mais intolerável assim como, e, principalmente, a evolução das revoluções nos códigos de sustentação que já se fazem presentes.

Esse seria o espaço para fragilizar a barreira do consenso, investindo em dispositivos que, apesar de instituídos, reaproximariam a relação com a tarefa primária, resgatando o espaço interno, a possibilidade de reparação a dimensão do ser investido, agora, de identidade profissional, viabilizando um reencontro com o cuidar possível.

A disponibilidade para uma tarefa primária transformada conviveria ou seria a expressão, tanto de mobilizações afetivas como de investimentos de consciência que teriam na reavaliação das condições objetivas e subjetivas mecanismos para a reelaboração do projeto de ação. Nesse contexto o cuidar de todos não se aplica por um impositivo social, cabendo, portanto, redefinir possibilidades que teriam na Coordenação do Processo de Cuidar projeto de substituição compatível com o quadro vigente.

Nessa perspectiva, a possibilidade de reaproximação com a tarefa primária vincularia o enfermeiro à coordenação do processo de cuidar, sua competência especifica tendo como, abrangência de ação: a sistematização do cuidar enquanto principal instrumento norteador da prática; a mediação das relações interpessoais a partir de demandas reconhecidas por códigos de percepção e de avaliação interativos e uma interface com o processo de gestão vinculada a atividades de representação de necessidades, de expectativas, de possibilidades e do custo que o processo de trabalho imprime na equipes.

Essa transfiguração do cuidar pressupõe permeabilidade a novos instrumentos de conhecimento, a novas categorias de percepção, culminando na validação de novos sistemas de ação.

Transpondo para o cuidar um texto de Boff 1 cabe considerar que "importa recuperarmos atitudes de respeito. Isso se consegue se antes for resgatada a dimensão do feminino no homem e na mulher. Pelo feminino o ser humano se abre ao cuidado, se sensibiliza pela profundidade maravilhosa da vida e recupera sua capacidade de maravilhamento. O feminino ajuda a resgatar a dimensão do sagrado que impõe limites à manipulação, pois dá origem à veneração e ao respeito... cria a capacidade de religar todas as coisas a sua fonte criadora"1.

Finalizando e retomando PEDRO10 cabe repetir que "a posição assumida ou pressuposta neste ensaio marca o pano de fundo, o horizonte de compreensão, o marco teórico em que se dá a articulação lógica, na medida em que a pertinência se faz pelo objeto material perspectivado pelo objeto formal; e, a relevância está ligada a questões que pertencem ao campo teórico, mas que está em vista da práxis. Respondendo a pressões que o futuro faz ao presente recobramos a utopia da reparação quando do resgate do eu dentro do projeto de pensar, que superando o arcabouço cientificista, invista no reconhecimento incluindo os jogos de consciência; do projeto de sentir que, distanciando-se da negação, reclame resensibilização pelo redirecionamento do afeto; do projeto de existir que, mobilizando o recalque promova a re-significação do objeto, reencontrando-se com o cuidar investido de um novo sentido. Culminaria no projeto de ação que desvendando a automação, potencializando a coragem de ousar, reencontre o ritmo de origem, reconstruindo o seu espaço no seio da criação destacada da instituição, transformada em expressão de autonomia, de responsabilidade, de decisão, enfim, de competência, enquanto único gesto profissional compatível com os desafios da virada do século. Essa seria a expressão de superação de uma prova decisiva que nos induz agora à restauração da identidade profissional que conviva com o direito da incerteza e com o prazer de ser um eterno aprendiz.

  • 1. BOFF, L. Desafios ecológicos do fim do milênio. Folha de São Paulo, 12 de maio de 1996.
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  • 3. CHAVES, E.C.; IDE, C.A.C. A singularidade dos sujeitos na vivência dos papéis sociais desenvolvidos na hospitalização. Rev.Esc.Enf.USP, v. 29, n. 2, p. 173-9, 1995.
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    Aula proferida para obtenção do cargo de Professor Titular junto ao Departamento de Emfermagem Médico Cirúrgica da EEUSP.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Mar 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 1999
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