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A problemática do sofrimento: percepçao do adolescente com cancer

The problem of suffering: perceptions by adolescents with cancer

Resumos

Os adolescentes com câncer vivenciam situações de sofrimento decorrentes do diagnóstico, terapêutica, alteração no cotidiano e na dinâmica familiar. O objetivo deste estudo é identificar as principais causas de sofrimento vivenciadas por um grupo de adolescentes com câncer, a partir de uma entrevista com os próprios pacientes. Participaram do estudo 12 adolescentes internados na Clínica Pediátrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, no período de 13 de novembro a 16 de dezembro de 1997. Utilizamos a abordagem qualitativa para a análise dos dados. As principais causas de sofrimento descritas foram: hospitalização, restrição nas atividades cotidianas, terapêutica agressiva, alteração da auto-imagem e medo da morte. Os adolescentes não falaram apenas de sofrimento, também apresentaram sugestões para minimizá-lo, como por exemplo: utilização de catéter venoso central, liberação de horário de visitas, diminuição do número de internações, comunicação eficiente e bom relacionamento com a equipe de saúde.

Enfermagem oncológica; Neoplasias; Hospitalização; Adolescente hospitalizado


Adolescents with cancer undergo suffering resulting from diagnosis, therapy and changes in their routine and family life. The objective of this study was to identify the chief causes of their suffering, identified in interviews with those patients themselves. The study population were 12 adolescents admitted to the Paediatric Clinic of the Ribeirão Preto Medical School Clinical Hospital, University of São Paulo, from the 13th. November, 1997 to 16th. December, 1997. Data were analysed by means of qualitative approach. The chief causes of suffering reported by the studied adolescents were: hospitalization, restrictions in routine activities, aggressive therapy, modification of self-image and fear of dying. The adolescents not only talked about their suffering but also offered some suggestions to lessen it, as for instance, use of central venous catheter, liberation of visiting time, reducing number of hospitalization events, efficient communication and good rapport with the attending team.

Oncology nursing; Neoplasms; Hospitalization; Adolescents hospitalized


ARTIGO ORIGINAL

A problemática do sofrimento: percepçao do adolescente com cancer* * Trabalho desenvolvido durante o Curso de Especialização em Enfermagem Pediátrica e Neonatológica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

The problem of suffering: perceptions by adolescents with cancer

Maria José MenossiI; Regina Aparecida Garcia de LimaII

IEnfermeira da Clínica Pediátrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e aluna do Curso de Especialização em Enfermagem Pediátrica e Neonatológica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo

IIOrientadora e Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. - E-mail: limare@glete.eerp.usp.br

RESUSMO

Os adolescentes com câncer vivenciam situações de sofrimento decorrentes do diagnóstico, terapêutica, alteração no cotidiano e na dinâmica familiar. O objetivo deste estudo é identificar as principais causas de sofrimento vivenciadas por um grupo de adolescentes com câncer, a partir de uma entrevista com os próprios pacientes. Participaram do estudo 12 adolescentes internados na Clínica Pediátrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, no período de 13 de novembro a 16 de dezembro de 1997. Utilizamos a abordagem qualitativa para a análise dos dados. As principais causas de sofrimento descritas foram: hospitalização, restrição nas atividades cotidianas, terapêutica agressiva, alteração da auto-imagem e medo da morte. Os adolescentes não falaram apenas de sofrimento, também apresentaram sugestões para minimizá-lo, como por exemplo: utilização de catéter venoso central, liberação de horário de visitas, diminuição do número de internações, comunicação eficiente e bom relacionamento com a equipe de saúde.

Palavras-chave: Enfermagem oncológica. Neoplasias. Hospitalização. Adolescente hospitalizado.

ABSTRACT

Adolescents with cancer undergo suffering resulting from diagnosis, therapy and changes in their routine and family life. The objective of this study was to identify the chief causes of their suffering, identified in interviews with those patients themselves. The study population were 12 adolescents admitted to the Paediatric Clinic of the Ribeirão Preto Medical School Clinical Hospital, University of São Paulo, from the 13th. November, 1997 to 16th. December, 1997. Data were analysed by means of qualitative approach. The chief causes of suffering reported by the studied adolescents were: hospitalization, restrictions in routine activities, aggressive therapy, modification of self-image and fear of dying. The adolescents not only talked about their suffering but also offered some suggestions to lessen it, as for instance, use of central venous catheter, liberation of visiting time, reducing number of hospitalization events, efficient communication and good rapport with the attending team.

Keywords: Oncology nursing. Neoplasms. Hospitalization. Adolescents hospitalized.

INTRODUÇÃO

As crianças e adolescentes com câncer vivenciam situações de sofrimento durante o processo de hospitalização, ocasião em que se separam de seu meio social para submeterem-se a procedimentos diagnósticos e terapêuticos que, geralmente, consistem em medidas agressivas, dolorosas e invasivas. e familiar

Além da dor causada por esses procedimentos, a quimioterapia e a radioterapia trazem o agravante dos efeitos colaterais, responsáveis por frequëntes reinternações (nas complicações hemorrágicas e infecciosas, por exemplo) e por sofrimentos que, embora não tragam a dor física, geram danos afetivos e emocionais, como no caso da alopécia.

Para BONASSA (1992), a alopécia afeta profundamente a auto-imagem dos pacientes; segundo seus depoimentos, a alopécia pode ser considerada como o mais devastador efeito colateral do tratamento. GIRARD (s.d.) argumentou que para o adolescente1 1 Segundo as Normas de Atenção à Saúde Integral do Adolescente, consideram-se adolescentes, indivíduos na faixa etária de 10 a 19 anos (BRASIL, 1993). é difícil enfrentar este problema devido às alterações na sua auto-imagem.

Além disso, se o tratamento não produz resultados imediatos e a doença evolui para estágios mais graves, presenciamos outras formas de sofrimento: dor física causada pela própria doença; medo da morte e medidas terapêuticas dolorosas (como punções, drenagens, entubações).

Mesmo quando se chega ao fim do tratamento com sucesso ainda é necessário conviver com o medo da recidiva e com as limitações que sobrevêm de um tratamento oncológico como amputações e esterilidade (BONASSA, 1992; D' ANGIO et al., 1995). Portanto, quando falamos em sofrimento, não nos referimos somente à dor física, mas a todo contexto em que esses adolescentes passam a viver e aos problemas de ordem emocional, social, comportamental e existencial vivenciados por eles.

A dor, definida como uma experiência perceptual, sensorial e emocional desagradável, é subjetiva e consiste num sintoma ou sensação individual, expressa por respostas fisiológicas e comportamentos específicos, cuja interpretação relaciona-se a fatores culturais, emocionais e sensitivos que só podem ser compartilhados a partir do relato de quem a sente (GIRARD, s.d; Mc GRATH, 1990; PIMENTA, 1995; ROSSATO, 1997).

Com relação à dor no câncer, citamos alguns trabalhos que discutem a identificação das causas e os mecanismos de controle da dor: MURAD, 1991; GOUVEIA FILHO; GADELHA, 1992; MIASKOWSKI, s.d. Estes estudos abordaram a dor crônica no câncer, seja ela causada por tumor resultante de tratamentos específicos ou de origem psicogênica, enfatizando o tratamento farmacológico. Alguns autores (GIRARD, s.d; MIASKOWSKI, s.d) salientaram, também, a importância de esquemas não farmacológicos usados como terapêuticas, no sentido de melhorar o conforto do paciente, tais como: massagens, uso de compressas quentes ou frias e técnicas psicológicas (hipnose, musicoterapia, relaxamento, terapias ocupacionais e técnicas bio-energéticas).

ENSKAR et al. (1997) realizaram pesquisa com adolescentes com câncer em que o objetivo era identificar as situações de vida afetadas pela doença. Estes adolescentes, com diagnósticos específicos e tratamentos variados, apontaram problemas que vivenciaram após o diagnóstico da doença e que lhes causaram algum grau de sofrimento físico ou mental. Mencionaram 77 problemas relacionados à doença e ao tratamento (efeitos colaterais, isolamento, procedimentos médicos), à identificação (aparência, sentimentos e atitudes), ao relacionamento (com a família, amigos, escola), às atividades de lazer e à qualidade do cuidado médico e de enfermagem. Na percepção destes adolescentes, o principal problema encontrado relacionava-se à dependência de seus pais.

DUPAS (1997) mencionou que os estudos realizados com a própria criança sobre a experiência de ser portadora de câncer são escassos. Considerou que, para o preenchimento desta lacuna é necessário, sobretudo, olhar a criança como pessoa que tem percepções e capacidade para expressá-las. Além disso, para que o profissional estabeleça uma relação efetiva de auxílio junto à essa criança, ele necessita de conhecimentos sobre as perspectivas dessa criança, com relação à visão de seu próprio mundo. GIRARD (s.d) citou, também, a necessidade do profissional conhecer as variações das características do indivíduo, de acordo com as etapas de seu desenvolvimento, para conseguir compreender os sentimentos desses indivíduos.

Após anos de convivência com a criança e adolescente portadores de câncer, pudemos perceber que nem sempre o que era problema para nós, enfermeiras, era também problema para eles; e, nem sempre, o que era muito doloroso para os pais, era também doloroso para os filhos, pois estes vivenciavam o sofrimento de forma distinta. Assim, compartilhamos com a opinião de DUPAS (1997) de que ninguém melhor do que a própria criança ou adolescente com câncer para nos fornecer indicativos sobre a situação por eles vivenciada, o que lhes causam dores e sofrimentos e o grau que estes se apresentam. Somente à partir daí que devemos repensar o cuidado de enfermagem e refletirmos a respeito de como podemos intervir para que realmente se estabeleça uma relação de ajuda.

Esta questão, portanto, constitui a proposta deste estudo: identificar as principais causas de sofrimento vivenciadas pelo adolescente com câncer a partir de seus relatos.

CAMINHO METODOLÓGICO

Para participarem deste estudo, selecionamos 12 adolescentes', com idade entre 10 e 17 anos, com diagnóstico de câncer, sendo oito do sexo masculino e quatro do sexo feminino, internados na Clínica Pediátrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP), no período de 13 de novembro a 16 de dezembro de 1997.

O projeto de pesquisa em questão foi submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa do HCFMRP - USP, Processo nº 4872/97, sendo aprovado.

Utilizamos para coleta de dados, neste estudo, entrevistas individuais e semi-estruturadas, que foram realizadas pelo próprio pesquisador, com o consentimento dos pacientes, de seus pais ou acompanhantes, através da assinatura do termo de consentimento, após serem informados sobre o objetivo do mesmo. Desenvolvemos as entrevistas através de um roteiro, contendo dados sobre identificação do adolescente e as seguintes questões orientadoras do tema a ser explorado:

1. Desde que ficou doente, o que tem lhe trazido mais sofrimento?

2. Que fase da doença lhe causou maior sofrimento? Por quê?

3. O que pode ser feito para minimizar o seu sofrimento?

Formulávamos uma questão e esperávamos que o adolescente finalizasse sua fala para passarmos à questão seguinte.

Fizemos os registros simultaneamente à entrevista e, em situações em que isso era impossível, completávamos o registro logo após o encerramento. Cada entrevista foi identificada a partir de uma numeração crescente, tendo a primeira recebido a codificação de El e, assim, sucessivamente, até E12.

As entrevistas duraram de 10 a 70 minutos, atingindo uma média de 20 minutos. As mães ou acompanhantes estavam presentes durante a entrevista, mas não se manifestavam. Apenas três entrevistados não contaram com a presença do acompanhante no momento da entrevista.

Utilizamos o critério de saturação (POLIT; HUNGLER, 1995) para determinar o final da coleta de dados.

A leitura exaustiva do conjunto das entrevistas levou-nos a identificar cinco temas de análise: hospitalização; restrição às atividades cotidianas; terapêutica agressiva; alteração da auto-imagem e medo da morte, os quais foram discutidos à luz da literatura consultada e do objetivo deste estudo.

SOBRE OS DADOS

Inicialmente caracterizamos os participantes do estudo: oito do sexo masculino com idade entre 10 e 15 anos e quatro do sexo feminino, com idade entre 12 e 17 anos. A escolaridade variou da série do 1º grau a 1ª série do 2º grau. Os diagnósticos foram variados: quatro eram portadores de leucemia, três de tumores ósseos, quatro de tumores do sistema nervoso central e um de linfoma não Hodking. O tempo de tratamento estendeu-se de 2 meses até 8 anos e 2 meses, e o número de internações foi de 3 a 27. Com exceção de um paciente, todos tinham acompanhante em tempo integral, sendo nove acompanhados pela mãe, um pela avó e um outro pelo pai. No momento da coleta de dados, onze pacientes tinham como terapêutica a quimioterapia e um a radioterapia. Quatro dos pacientes entrevistados apresentaram recidiva e outra mudança de diagnóstico quanto ao tipo de câncer.

A seguir, descrevemos as principais causas de sofrimento apresentadas pelos adolescentes:

Hospitalização

Os dados revelam que a hospitalização tem trazido sofrimento aos adolescentes e este relaciona-se à saudade que sentem de casa e de seus familiares.

"Ficar internado ... dá saudade de casa, do meu pai, dos irmãos, da família inteira. Eu já estou com saudade da minha irmãzinha" (E.2).

NOVAKOVIC et al. (1996), investigando as experiências vivenciadas por crianças e adolescentes com câncer, verificaram que a falta de convivência familiar foi descrita pelos mesmos como uma das experiências negativas diante da doença.

Segundo WHALEY; WONG (1989), em cada fase de seu desenvolvimento a criança apresenta diferentes reações a esta separação: o estresse, imposto por ocasião da hospitalização ou pela doença, pode aumentar sua necessidade de segurança e de orientação dos pais, principalmente àqueles em idade escolar precoce. Já o escolar tardio e o adolescente podem sentir mais a separação de seu grupo habitual, uma vez que, nessa fase, lutam por autonomia, independência e auto-afirmação, e sentem grande necessidade de estarem ligados a um grupo com o qual se identificam.

Esta problemática para os adolescentes com câncer apresenta ainda outras nuances, embora sintam necessidade de auto-afirmação, ao adoecerem, submetem-se a um tratamento agressivo que impõe muitas limitações e, principalmente, traz alterações para sua auto-imagem; por isso, afastam-se dos amigos e buscam apoio na família. A relevância desse suporte familiar encontra-se demonstrada pela seguinte fala:

"O que me ajudou muito quando eu estava internado durante muito tempo foi a liberação de visitas que me animavam muito e também a companhia de meus pais, da família" (E. 1).

ENSKAR et al. (1997) também verificaram que o maior suporte para o enfrentamento de situações de vida afetadas pelo câncer vem da família, especialmente das mães.

Atualmente, a importância da presença materna, junto à criança e ao adolescente hospitalizados, vem sendo muito discutida e, considerando-se os benefícios obtidos com a manutenção deste vínculo durante a hospitalização, a Secretaria do Estado de São Paulo, na Resolução SS -165 de 12/10/88, dispõe sobre a implantação e desenvolvimento do Programa "Mãe Participante", através do qual toda criança e adolescente internados têm o direito de permanecer junto a seus genitores ou familiares (SAO PAULO, 1989).

Este direito também tem respaldo na Lei nº 8069, que regulamenta o Estatuto da Criança e do Adolescente e dispõe, no Artigo 12 que: "(...) os estabelecimentos de saúde devam proporcionar condições para a permanência, em tempo integral, de um dos pais ou responsável, nos casos de internação de crianças e adolescentes" (BRASIL, 1991, p.16).

Além de sentirem a separação das pessoas da família, também sentem falta dos objetos pessoais, como manifestado abaixo:

"Eu queria trazer meu video-game para cá, por que não pode?" (E.5).

Não basta que a clínica tenha opção para recreação, eles reinvindicam o direito de trazer o "seu mundo" para dentro do hospital, para estarem mais próximos dele. Trazerem objetos pessoais como roupas e brinquedos faz com que mantenham, dentro de determinados limites, a identidade e a singularidade, características importantes nesta fase de desenvolvimento.

O sofrimento que envolve a hospitalização também está relacionado, na fala de alguns pacientes, às internações não planejadas devido a intercorrências inesperadas. Alguns queixam-se dos longos períodos de internações:

"O mais duro foi quando mudou o diagnóstico e precisou mudar o tratamento, eu precisei ficar internado mais tempo" (E. 4).

Estas internações geralmente são decorrentes de complicações não esperadas, como as infecções, as alterações no diagnóstico e os casos de recidiva da doença que tornam o tratamento mais longo.

TIBA (1986), referindo-se à vulnerabilidade do adolescente ao sofrimento afetivo, ressaltou que a durabilidade dos eventos, avaliada em termos cronológicos, não é a que tem maior importância para o adolescente, pois esta vulnerabilidade manifesta-se não somente através do tempo, mas também pela intensidade do sofrimento.

Nesses períodos de hospitalização, os jovens permanecem por um tempo prolongado longe de seu ambiente familiar, de seus objetos pessoais, de suas roupas e de seus amigos para habitarem num local que se lhes apresenta hostil, estranho, agressivo e onde vivenciam situações em que o desconforto e a dor física tornam-se muito intensos, seja pela própria doença ou pelos procedimentos a que são submetidos. Porém, quando falam do sofrimento, não se detêm apenas aos aspectos negativos, conseguem vislumbrar as possibilidades de amenizá-lo e, com isso, fornecem-nos indicativos do que pode ser feito.

"A primeira vez que eu coloquei o dreno foi de repente, porque eu estava com falta de ar, aí foi muito ruim; da segunda vez eu já sabia como era, daí é melhor. Acho que a gente precisa saber de tudo e eu sempre soube de tudo, desde o início e isso é importante" (E. 1).

Este relato confirma as observações feitas por VALLE (1997), que a criança com câncer sente necessidade de saber o que está acontecendo consigo mesma. Portanto, ela deve receber informações sobre seu diagnóstico e terapêutica, no momento propício, de acordo com a idade e nível de compreensão.

Os adolescentes consideraram que, dentre os fatores negativos, a alimentação oferecida na clínica era um agravante na situação de hospitalização.

"A internação é ruim, comer essa comida que só o cheiro dá vontade de vomitar" (E.9).

Sabemos que a anorexia é um problema preocupante para o paciente com câncer, e esta pode estar relacionada a diversos fatores: alterações metabólicas e hormonais, alterações do paladar e olfato, presença de dor, aversão à comida, náuseas e vômitos decorrentes do próprio tratamento quimioterápico, além de fatores psicológicos como ansiedade, medo e depressão (BONASSA, 1992; BRASIL, 1995).

Nas falas que se seguem podemos visualizar sugestões para amenizar esta situação:

"Acho que a comida aqui tinha que melhorar" (E. 1).

"Às vezes assim de domingo, podia ter uma pizza ..." (E. 8).

A esse respeito, BONASSA (1992) recomendou algumas intervenções que podem melhorar a aceitação alimentar, como: adaptar cardápio oferecido às preferências das crianças e servir pequenas porções, esteticamente bem arranjadas e atraentes, livres de odores fortes. Intervir neste campo implica em articulação da enfermagem com o serviço de nutrição. Sem dúvida, qualificar o atendimento a esses pacientes exige o diálogo interdisciplinar.

O relacionamento com a equipe de saúde foi citado como um aspecto positivo por esses pacientes que vivenciavam esse momento difícil:

"Mas como tem o lado difícil, também tem o lado bom ... conhecer muita gente legal aqui ... tem a parte divertida ... vocês levantam o astral da gente" (E. 9).

Restrição às atividades cotidianas

Alteração das atividades cotidianas e a restrição de muitas delas demonstram outra dimensão do sofrimento vivido pelos pacientes entrevistados:

"Acho que a vontade de fazer algumas coisas que não posso, porque vai prejudicar o tratamento: sair, ir à piscina ..." (E. 4).

As limitações impostas pela doença transformam totalmente a rotina desses adolescentes. Eles se vêem obrigados a submeter-se a um tratamento extremamente agressivo, tendo que adaptarem-se às restrições tanto de atividades quanto de relacionamentos. A necessidade de avaliarmos essas restrições com o fim de não prejudicar o tratamento, não contribui para diminuição do sofrimento do paciente. Para os adolescentes, em especial, esta situação pode ser ainda mais dolorosa, já que vivenciam um momento peculiar em que valorizam a independência e, ao mesmo tempo, possuem necessidade de ampliar os seus relacionamentos para fora dos vínculos familiares.

A ruptura com a escola também se constitui problema para estes pacientes, causada pelo próprio tratamento, por ocasião das internações prolongadas. Essa ruptura ocorre também nas fases em que a neutropenia é intensa, conseqüente a ciclos quimioterápicos de altas dosagens. O próprio adolescente pode sentir a necessidade de deixar de ir à escola, por não suportar "sentir-se diferente" dos colegas, evitando exposição a situações de discriminação

É importante que um acompanhamento escolar formal seja mantido durante o processo de hospitalização, ou seja, um vínculo escola/hospital para que a vida escolar possa seguir seu curso, mesmo em situação de internação. A problemática do afastamento da escola, tanto da criança como do adolescente hospitalizados, também é discutida nos trabalhos de FARRELLEY (1994), DUPAS (1997) e BESSA (1997).

Terapêutica agressiva

Estes pacientes, freqüentemente, submetidos a terapêuticas agressivas, percebem-nas como parte de seu sofrimento:

"O que eu acho ruim quando eu fico internado para a quimio, é o estômago que fica doendo, enjoado" (E. 1).

"As injeções, a dor das picadas, da intra-tecal, punção de medula óssea ... e agora o médico falou que eu não posso comer fruta sem ser cozida, também eu tô achando ruim ..." (E. 3).

"Ruim é ter que ficar tomando remédio todo dia ... eu não gosto do Bactrim e também tomar injeção" (E. 11).

A punção de medula óssea e a intra-tecal são descritas pelos adolescentes como os procedimentos mais dolorosos. A necessidade de tomar remédios, a restrição a alguns tipos de alimentos, o mal-estar gástrico e os vômitos também são considerados situações desconfortáveis. Os adolescentes não somente falam sobre as situações dolorosas, decorrentes da terapêutica agressiva, mas também sugerem soluções que podem atenuar tal sofrimento, como por exemplo, a implantação do catéter venoso central, a utilização de anestésicos locais por ocasião da quimioterapia intra-tecal e a administração de medicações anti-eméticas.

As náuseas e vômitos, descritos por BONASSA (1992) como o mais freqüente, estressante e incômodo efeito colateral, também são assim referidos pela grande maioria dos pacientes que se submetem ao tratamento quimioterápico.

Estes sintomas podem determinar conseqüências metabólicas (perda de secreções estomacais e intestinais), psicossociais (incapacidade de executar tarefas habituais), comportamentais e fisiológicas (anorexia e depleção nutricional), que podem levar a infecções, caquexia e morte (GRANT, s.d). Portanto, a prevenção e o controle destes sintomas são de fundamental importância para melhorar a qualidade de vida do paciente e para o sucesso do tratamento.

O uso de medicações anti-eméticas é a intervenção mais comum para o controle das náuseas e vômitos. O avanço das pesquisas, nesta área, resultaram em abordagens farmacológicas bem sucedidas, como confirmam os pacientes por nós entrevistados. Neste sentido, GRANT (s.d) recomendou também a utilização de intervenções não- farmacológicas, como a distração, relaxamentos e condicionamento dirigidos aos pacientes em protocolos quimioterápicos altamente emetrogênicos, modalidades com utilização ainda restrita no Brasil.

Alteração da auto-imagem

A alteração da auto-imagem é mencionada pelos adolescentes como causa de sofrimento e fator marcante que pode discriminá-los.

"...tenho que usar máscara, chapéu, por causa da queda de cabelo. (...) Muitas pessoas já riram de mim e da F. porque a gente usa máscara, é careca, é diferente" (E. 9).

O uso de máscara e a perda do cabelo foram os mais verbalizados, quando nos referimos à alteração da auto-imagem.

De um modo geral, na adolescência ocorrem alterações físicas que geram mudanças na auto-imagem. Muitos adolescentes enfrentam dificuldades ao se depararem com o crescimento dos pêlos pubianos e axilares, com a mudança na voz ou o desenvolvimento dos seios. Esta dificuldade tende a se acentuar no adolescente com câncer, uma vez que os efeitos colaterais dos quimioterápicos (queda de cabelos) e a neutropenia (que exige o uso de máscara), acabam por torná-los mais diferentes ainda em relação às outras pessoas, o que gera sentimentos de angústia e podem levá-los ao isolamento.

Outros estudos como os de BESSA (1997), BONASSA (1992), NOVAKOVIC et al. (1996), ENSKAR (1997), VALLE (1997), também apresentaram estas dificuldades enfrentadas pelos adolescentes com câncer.

Os adolescentes revelam que percebem o preconceito nas atitudes das pessoas, o que os incomoda. Este preconceito demonstra que, de modo geral, as pessoas ainda sentem curiosidade com relação à doença ou se afastam daqueles que não se enquadram nos "padrões de normalidade", atitudes que podem acentuar os sentimentos de isolamento experimentados por estes adolescentes.

Medo da morte

Alguns adolescentes manifestam o medo da morte, sentimento que emerge quase sempre de modo velado, dito por "meias palavras".

"Eu não sabia se eu iria viver ou ... né? (E. 9).

A ocorrência da doença, as internações freqüentes, o tratamento doloroso e o contato com a morte de outros pacientes despertam pensamentos e sentimentos que transformam a morte em possibilidade mais concreta, na vida desses pacientes. Entretanto, os adolescentes, de modo velado, deixam transparecer que a sua percepção a respeito da morte não é ainda compreendida como possibilidade da existência humana, mas concebida em relação a doenças apenas. Assim, sanada a doença, estará afastada a ocorrência da morte. Essa idéia pode ser apreendida no seguinte relato:

“ ...as chances eram muito pequenas, mas agora o tratamento está indo bem" (E.4).

Comentando Heidegger, BOEMER (1991, p.70) referiu que "a existência não é dada ao homem como um caminho bem arranjado ao fim do qual está a morte, como possibilidade, atravessa sua existência e a qualquer momento pode surpreendê-la; desde o seu nascimento o homem já é suficientemente velho para morrer".

Essa forma velada de se referirem à morte reforça a idéia de que ela é um tema interditado e temido na sociedade ocidental contemporânea. Esse temor é um comportamento que os aproxima do modo como os adultos interpretam a morte, e de acordo com PINTO (1996), os adultos temem o confronto com a morte mais do que as crianças, e assim podemos inferir que o contato entre os familiares e os profissionais de saúde reforça ainda mais o caráter de tema proibido.

Devemos salientar que, de certo modo, a temática morte foi pouco mencionada nas entrevistas e, quando isso ocorreu, foi feita de forma velada, possivelmente por estar relacionada aos pacientes que se encontravam em tratamento quimioterápico ou radioterápico e não àqueles com complicações como infecções e hemorragias, situações em que a ameaça da morte se torna iminente. Dos pacientes que se referiram à morte, dois encontravam-se em recidiva da doença e um apresentava quadro grave com poucas perspectivas de cura.

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Este estudo, tornou possível apreendermos que os adolescentes com câncer não só identificam as causas de seu sofrimento como, também, propõem sugestões que possam amenizá-lo, desde que lhes seja dada a oportunidade de serem ouvidos.

Ressaltamos a necessidade de percebermos cada adolescente como um ser único, singular e que, mesmo passando por uma situação de doença comum a outras pessoas, apresenta a sua maneira peculiar de vivenciá-la. Assim, as intervenções também devem ser individualizadas, fugindo de padronizações e protocolos rígidos. Devemos dar maior importância à percepção das próprias crianças e adolescentes, considerando suas sugestões para soluções dos seus problemas. Portanto, devemos procurar centrar nosso trabalho no doente e não na doença, utilizando outras possibilidades terapêuticas, além do tratamento medicamentoso.

Considerando a ênfase dada pelos adolescentes à percepção da hospitalização como fonte de sofrimento, consideramos fundamental que nós, da equipe de saúde, repensemos a própria forma de organizar o cuidado prestado a esses pacientes, buscando caminhos para atenuarmos este sofrimento, como a ampliação do atendimento ambulatorial e a criação de casas de apoio.

Os adolescentes mostraram também, através de suas falas, a capacidade de transcenderem ao sofrimento. Eles não se prenderam apenas aos aspectos negativos que envolvem a doença e as internações, mas buscaram alternativas para amenizar o sofrimento relacionado ao processo diagnóstico e terapêutico, ressaltando aspectos positivos como o bom relacionamento com a equipe de saúde.

O atendimento qualificado dos adolescentes com câncer necessita de atuação interdisciplinar, na qual os saberes dos diferentes profissionais devem ser articulados, não se perdendo de vista o paciente nas suas dimensões biológica, psicológica e social.

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  • *
    Trabalho desenvolvido durante o Curso de Especialização em Enfermagem Pediátrica e Neonatológica da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
  • 1
    Segundo as Normas de Atenção à Saúde Integral do Adolescente, consideram-se adolescentes, indivíduos na faixa etária de 10 a 19 anos (BRASIL, 1993).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jan 2009
    • Data do Fascículo
      Mar 2000
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