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A dialética da vida cotidiana de doentes com insuficiência renal crônica: entre o inevitável e o casual

A dialectic of patients' daily life with cronic renal failure in hemodialysis: the unavoidable and the casual

La dialéctica de la vida cotidiana de pacientes con insuficiencia renal crónica en hemodiálisis: lo inevitable y lo casual

Resumos

Procurou-se compreender o cotidiano da vida de doentes com insuficiência renal crônica em hemodiálise sob a visão do referencial teórico-metodológico do materialismo histórico e dialético. As entrevistas realizadas com 18 doentes foram submetidas ao procedimento de análise de discurso, revelando temas da realidade social da vida cotidiana destes doentes. Estes temas foram, então, analisados frente às categorias: processo saúde-doença; possibilidade x realidade e necessidade x casualidade. Para estes doentes o tratamento hemodialítico é inevitável e o transplante é casual e, entre esta relação dialética está a enfermagem que precisa ampliar sua compreensão sobre a árdua, triste, difícil e monótona realidade e suas possibilidades de transformação.

Insuficiência renal crônica; Hemodiálise; Nefrologia


The objective of this study was to understand the social reality of patients' daily life with chronic renal failure in hemodialysis. To understand this phenomenon from the theoretical-methodological referential of the historic and dialectic materialism. The interviews were performed with 18 patients submitted to analysis of speech procedure revealing dialetics subjects. These subjects were analyzed regarding the categories: health-diasease process; possibility x reality and need x casualness. These patients, considered hemodialysis as a treatment unavoidable and the transplant casual, thus, between this dialetic relationship there is the nursing which needs to extend its comprehension on thr arduous, sad, dificult and monotonous reality and the possibilities o transformation.

Chronic renal failure; Hemodialysis; Nephrology


Se procuró comprender la vida cotidiana de pacientes con insuficiencia renal crónica en hemodiálisis desde la visión del materialismo histórico y dialéctico como referencial teórico - metodológico. Las entrevistas, realizadas a 18 pacientes, fueron sometidas al procedimiento de análisis de discurso revelando temas de la realidad social como parte de la vida cotidiana de estos pacientes. Estos temas fueron analizados frente a las categorías: proceso salud-enfermedad; posibilidad versus realidad y necesidad versus casualidad. Para estos pacientes el tratamiento hemodiálico es inevitable y el transplante es casual. Entre esta relación dialéctica se encuentra enfermería que precisa ampliar su comprensión de la ardua, triste, difícil y monótona realidad y sus posibilidades de transformación.

Insuficiencia renal crónica; Hemodiálisis; Nefrologia


A dialética da vida cotidiana de doentes com insuficiência renal crônica: entre o inevitável e o casual* * Parte da Dissertação de Mestrado intitulada "Por intermédio da vida cotidiana de doentes com insuficiência renal crônica em hemodiálise: entre o inevitável e o casual " apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem da USP(EEUSP) em 2001.

A dialectic of patients' daily life with cronic renal failure in hemodialysis: the unavoidable and the casual

La dialéctica de la vida cotidiana de pacientes con insuficiencia renal crónica en hemodiálisis: lo inevitable y lo casual

Leise Rodrigues Carrijo MachadoI; Marcia Regina CarII

IEnfermeira. Mestre em Enfermagem. Doutoranda- Saúde do Adulto - EEUSP / Docente do Curso de Enfermagem, Centro Universitário de Votuporanga-UNIFEV. leisercm@uol.com.br

IIEnfermeira. Doutora em Enfermagem da EEUSP. marcrcar@usp.br

RESUMO

Procurou-se compreender o cotidiano da vida de doentes com insuficiência renal crônica em hemodiálise sob a visão do referencial teórico-metodológico do materialismo histórico e dialético. As entrevistas realizadas com 18 doentes foram submetidas ao procedimento de análise de discurso, revelando temas da realidade social da vida cotidiana destes doentes. Estes temas foram, então, analisados frente às categorias: processo saúde-doença; possibilidade x realidade e necessidade x casualidade. Para estes doentes o tratamento hemodialítico é inevitável e o transplante é casual e, entre esta relação dialética está a enfermagem que precisa ampliar sua compreensão sobre a árdua, triste, difícil e monótona realidade e suas possibilidades de transformação.

Palavras-chave: Insuficiência renal crônica. Hemodiálise. Nefrologia.

ABSTRACT

The objective of this study was to understand the social reality of patients' daily life with chronic renal failure in hemodialysis. To understand this phenomenon from the theoretical-methodological referential of the historic and dialectic materialism. The interviews were performed with 18 patients submitted to analysis of speech procedure revealing dialetics subjects. These subjects were analyzed regarding the categories: health-diasease process; possibility x reality and need x casualness. These patients, considered hemodialysis as a treatment unavoidable and the transplant casual, thus, between this dialetic relationship there is the nursing which needs to extend its comprehension on thr arduous, sad, dificult and monotonous reality and the possibilities o transformation.

Keywords: Chronic renal failure. Hemodialysis. Nephrology.

RESUMEN

Se procuró comprender la vida cotidiana de pacientes con insuficiencia renal crónica en hemodiálisis desde la visión del materialismo histórico y dialéctico como referencial teórico - metodológico. Las entrevistas, realizadas a 18 pacientes, fueron sometidas al procedimiento de análisis de discurso revelando temas de la realidad social como parte de la vida cotidiana de estos pacientes. Estos temas fueron analizados frente a las categorías: proceso salud-enfermedad; posibilidad versus realidad y necesidad versus casualidad. Para estos pacientes el tratamiento hemodiálico es inevitable y el transplante es casual. Entre esta relación dialéctica se encuentra enfermería que precisa ampliar su comprensión de la ardua, triste, difícil y monótona realidad y sus posibilidades de transformación.

Palabras-clave: Insuficiencia renal crónica. Hemodiálisis. Nefrologia.

INTRODUÇÃO

As primeiras hemodiálises foram realizadas, na década de 40, com a finalidade terapêutica para a Insuficiência Renal Aguda (IRA). Em 1962 e início de 1963 tanto a diálise peritoneal como a hemodiálise foram utilizadas como modalidades terapêuticas de intervenção para a Insuficiência Renal Crônica (IRC). (1)

Nas décadas de 60 e 70 do século passado a técnica da construção da fístula arteriovenosa, posteriormente a descoberta de imunossupressores e, recentemente a utilização da eritropoetina recombinante proporcionam sobrevida "longa" aos doentes. (2)

Em 1983 existiam no Brasil 6.663 doentes em tratamento dialítico sendo que destes 63,0% apresentavam mais de 55 anos de idade. Havia uma predominância de 1,26 doentes do sexo masculino em relação ao feminino. No ano de 1987, a população brasileira era estimada em 135,6 milhões tendo 78,2 pessoas em diálise em cada milhão de brasileiros. (3)

Estes dados se elevaram e em dezembro de 1999 existia 47.063 doentes em programa de diálise havendo uma prevalência de 287 doentes por milhão de habitantes. (4)

Estudos mostram que o doente submetido a transplante renal apresenta maior integração social e na força de trabalho. Justifica-se, assim, a necessidade avaliar a qualidade da vida dos doentes renais crônicos em hemodiálise uma vez que esta têm o objetivo de sensibilizar a política econômica para a alocação de recursos financeiros e no processo de decisão clínica. (5)

A condição crônica e o tratamento hemodialítico são fontes de estresse e representam desvantagem por ocasionar problemas: isolamento social, perda do emprego, dependência da Previdência Social, parcial impossibilidade de locomoção e passeios, diminuição da atividade física, necessidade de adaptação à perda da autonomia, alterações da imagem corporal e ainda, um sentimento ambíguo entre medo viver e de morrer. (6-12)

As reações do doente advêm do seu contexto social, cultural, das suas crenças e valores pessoais. Alguns estudos mostram que o apoio psicoterápico individual e grupal e o suporte informal (enfocado nas relações sociais, de trabalho e familiares) podem ser úteis e utilizados como estratégias de cooping. (3, 9-11)

O apoio social pode prevenir ou servir e ser utilizado como defesa emocional das conseqüências negativas durante o declínio da função física ao longo do processo de adoecer.

A qualidade de vida é um conceito amplo e complexo, refere-se a aspectos subjetivos percebidos de diferentes modos contemplando as esferas de bem-estar físico, mental, desempenho no trabalho e participação social. Por isso, a definição de qualidade de vida depende da perspectiva que se deseja abordar, visto que é multidimensional. (14-17)

Estudos a respeito da utilização da eritropoetina recombinante tem demonstrado uma melhor qualidade de vida percebida pelos doentes em tratamento hemodialítico.(18)

Em relação à reabilitação para o trabalho um estudo revela que 68,0% dos doentes transplantados apresentam reabilitação normal; 39,0% dos em diálise crônica apresentam capacidade parcial para o trabalho e 29,0% são totalmente incapacitados ao trabalho justificando assim, a necessidade de investigação a respeito da qualidade de vida dos doentes em tratamento hemodialítico. (18-19)

OBJETO DE ESTUDO E OBJETIVOS

Este estudo nasceu ao perceber-se a dificuldade de alunos do curso de graduação em enfermagem lidarem com o doente renal crônico nos momentos em que algumas vezes, não conseguiam se comunicar adequadamente durante as sessões por acharem que estes estavam sonolentos, irritados, queriam ficar sozinhos ou, até mesmo, porque estavam muito debilitados. Quando se propunha reflexão sobre a hemodiálise, achavam que o tratamento era boa opção considerando a emergência clínica do doente; alguns questionavam a limitação do cotidiano imposta pelo tratamento; outros percebiam as dificuldades psicossociais pelas quais os doentes passavam durante o tratamento. Entretanto, algumas vezes havia frustração ao perceber que o aluno encantava-se com a tecnologia envolvida no tratamento e não conseguia refletir sobre a vida desses doentes.

A literatura mostra que o tratamento da IRC através da hemodiálise prolonga a vida do doente, alivia o sofrimento da síndrome urêmica e até previne incapacidades posteriores entretanto, qual ou quem sabe que vida é essa que está sendo prolongada?

Estudos norte-americanos demostram a importância de acompanhamento e suporte terapêutico ao doente, rede social de apoio (atividade ocupacional, reuniões de grupos com situações semelhantes, apoio monetário da Previdência Social). Contudo, a situação dos doentes no Brasil difere muito da norte-americana. As condições econômicas e sociais brasileiras não favorecem os doentes, visto que, em muitos casos, não podem mais trabalhar no decorrer do tratamento.

Buscando uma visão diferenciada sobre as relações entre a inserção social e a qualidade da vida cotidiana do doente renal crônico em hemodiálise o materialismo histórico e dialético, como filosofia e método, pôde ser um instrumento de investigação que permitiu indicar uma ação transformadora.

Este estudo adotou este referencial teórico em uma abordagem qualitativa, com a finalidade de alcançar os objetivos:

- compreender as relações dialéticas das representações da vida cotidiana de doentes renais crônicos, em hemodiálise; e,

- identificar possíveis conexões entre estas relações dialéticas da vida cotidiana de doentes renais crônicos, em hemodiálise, indicando possibilidades de transformação.

PERCURSO METODOLÓGICO

Utilizou-se o materialismo histórico e dialético como filosofia e método; as categorias de análise: processo saúde-doença (socialmente determinado) e as categorias da dialética necessidade/casualidade e realidade/possibilidade.

CENÁRIO DE ESTUDO

Contamos com a colaboração de doentes renais crônicos em hemodiálise da Unidade de Nefrologia de Fernandópolis (SP), que está situada a noroeste do estado, faz divisa territorial com os Estados do Mato Grosso do Sul e Minas Gerais; pertence à Diretoria Regional de Saúde XXII (extensão territorial de 25.496 km2 e população estimada para o ano de 2000 em 1.311.763 habitantes). Essa região conta com unidades de hemodiálise apenas nas cidades de Catanduva, São José do Rio Preto, Votuporanga e Fernandópolis.(20)

Foram realizadas entrevistas com 18 doentes, no período de agosto de 2000 a janeiro de 2001, após concordarem formalmente com a pesquisa por meio de documentação assinada; foi aplicado um instrumento de coleta de dados (anexo anexo ) para identificação e caracterização da inserção social dos doentes, os quais responderam a duas questões norteadoras:

- conte-me com o máximo de detalhes que o Sr.(a) puder, como é a sua vida (o seu dia-a-dia) precisando fazer hemodiálise;

- o que o Sr.(a) pensa e sente sobre esta sua situação de vida?

ANÁLISE DO DADOS

Foi utilizado um procedimento de análise de discurso, adaptado através da construção de frases temáticas, para que partindo da linguagem e de sua organização, se pudesse chegar aos processos de viver que condicionam o cotidiano dos doentes com IRC em hemodiálise. (21-22)

O conjunto das frases temáticas depreendido dos discursos individuais foi reordenado, conforme os temas identificados: concepções sobre o processo saúde-doença; o tratamento por meio da hemodiálise e suas conseqüências; o papel da equipe de saúde no tratamento hemodialítico; e, perspectivas de vida dos doentes. Estes temas foram então discutidos frente às categorias analíticas anteriormente citadas.

IDENTIFICAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO SOCIAL DOS SUJEITOS DO ESTUDO

A caracterização da inserção social do grupo de doentes pesquisados foi baseada nos estudos da Fundação SEADE(23) sobre condições de vida - pobreza e riqueza - da população paulistana.

Dos 18 sujeitos entrevistados, nove moravam nos Estados do Mato Grosso do Sul e Minas Gerais; a maioria encontrava-se em idade produtiva; apresentava um nível de instrução muito baixo e condições de moradia média e péssima; a mudança na ocupação era devido à doença; recebem aposentadoria por invalidez; não recebem nenhum outro benefício e não têm registro formal de trabalho na família. Desse modo, evidenciam características de carência, uma vez que encontram-se na faixa de até 1,8 salários mínimos por mês. Apesar disso, a maioria contribui atualmente com mais de 50% na renda familiar. (23-24)

Este grupo de doentes apresenta exclusão social, estando mais exposto ao risco de indigência uma vez que dez dos doentes apresentam uma renda per capita de até meio salário mínimo.

Atualmente o conceito de saúde é complexo visto que abarca aspectos relacionados às condições adequadas de vida biológica, condições econômicas, as relações dos homens por meio do trabalho, aspectos sociais e culturais.

A hemodiálise é uma terapêutica de grande complexidade tecnológica sendo necessária a disponibilização de vários recursos como humanos específicos, financeiros, tratamento de água seguindo portarias estabelecidas pelo Ministério da Saúde, materiais descartáveis e entre outros, equipamentos de emergência.

A complexidade dessa terapêutica pode ser evidenciada também por meio do seu alto custo visto que em maio de 2001 uma sessão custava em torno de 31,19 reais, representando um gasto mensal de 1.122,96 reais por pessoa. No mesmo período foram empregados 13.092.577,58 reais no Estado de São Paulo e 51.145.213,20 reais no Brasil. (25)

A quantidade de recursos gastos como tratamento hemodialítico em relação ao piso salarial mínimo, expressão de acesso a alguns aspectos que viabilizam a saúde, é contraditória à possibilidade de assegurar a saúde do cidadão brasileiro como direito constitucional fundamental.

A DIALÉTICA DA VIDA COTIDIANA DE DOENTES COM INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA EM HEMODIÁLISE

A respeito das concepções dos doentes sobre saúde-doença, foi possível identificar o quanto a visão unicausal de doença - modelo biologicista- aceito e enraizado em nossa cultura de que a doença tem uma única causa e é isolada de todo o contexto de vida das pessoas (meio natural e social), e isto não apenas reflete mas também evidencia a ideologia dominante.

O prurido é associado ao fato da hemodiálise "mexer com o sangue" e o ressecamento de pele à restrição de alimentos gordurosos .

Observou-se o aparecimento da concepção comum de saúde-doença como algo apreendido no decorrer da existência humana, neste caso, a doença se manifesta por soberania Divina.

Ter a doença é um merecimento Divino, porém "a gente sente de sê doente assim".

A doença é algo pré-determinado na vida que deve ser aceita sem desespero e "deve-se lutar com ela até o fim".

Algumas frases temáticas demostram o aspecto do relacionamento da equipe de saúde ao atender o doente de maneira humanizada, como por exemplo:

O sofrimento de fazer hemodiálise é amenizado pelo carinho e "paciência" do pessoal médico.

Considerando o primeiro princípio do SUS (universalidade de acesso aos serviços de saúde), este chega a ser utópico, visto que este sistema de saúde ainda não está totalmente implementado e depende das complexas articulações políticas municipais. Assim observa-se a dificuldade do doente chegar à Unidade de Nefrologia:Fazer hemodiálise traz sofrimento e risco de vida nas estradas "eles corre demais nas estrada... tá o maió pirigo... motorista num tem responsabilidade"(sic).

A IRC como doença crônico-degenerativa surge na vida de uma pessoa determinando uma nova realidade. Essa realidade guarda em sua essência outras infinitas possibilidades de transformação. As possibilidades apresentam-se formais, reais, concretas e abstratas se encontrarem condições propícias determinantes. Possibilidades que se apresentam no decorrer do adoecer, transformando o indivíduo em diversas realidades e impossibilitando-o de se acostumar ou organizar sua vida frente a cada possibilidade de uma nova realidade. (26)

Para os doentes a hemodiálise é "necessária". Assim, neste fenômeno, o necessário emerge como opressor, trazendo uma realidade difícil, árdua e repleta de restrições, mas necessária!

Fazer hemodiálise é condição obrigatória necessária à sobrevivência "se eu não fazer... eu faleço".

Para autores que tratam da dialética do cotidiano, a existência humana é assinalada por uma maneira de "viver a vida", pela cotidianidade. Esta tem seu próprio ritmo e é efetivada de maneira instintiva, irrefletida e inconsciente. Quando um dado fenômeno rompe a cotidianidade, esta passa a ser história e até mesmo a história tem a sua cotidianidade. (26 - 27)

Para alguns dos doentes, a realidade como necessidade ou casualidade pode ser observada no decorrer da tratamento como experiência difícil ou mesmo positiva.

Fazer hemodiálise não é fácil, "é muito difícil".

Durante a hemodiálise, o doente fica sentado (4 horas), dorme e conversa com os amigos.

A realidade sofrida do doente é permeada de conseqüências relativas ao tratamento.

Após a hemodiálise, o doente sente indisposição que o impede de realizar qualquer atividade física.

Após a hemodiálise, o doente sente fraqueza extrema "nós já sai morto".

Na vigência de uma realidade de alterações físicas dolorosas, existe a possibilidade dessas não se apresentarem, se estiverem condicionadas a fatores determinantes.

No dia que faz hemodiálise incha e sente-se mal (cefaléia e tontura), mas se tiver o remédio "certo", não sente nada.

Para a dialética materialista, a realidade é concebida por uma essência dotada de capacidade de transformação. Assim, esta realidade pode ser algo pior que a realidade experienciada e neste caso, a melhor possibilidade é o próprio tratamento.

À medida que as alterações físicas (acúmulo de líquido, fraqueza, cefaléia, cansaço e mal estar estomacal) se agravam a doente quer submeter-se a hemodiálise o mais rápido possível.

Para alguns doentes, a possibilidade de transformação da cruel realidade é a adaptação ao tratamento.

No início do tratamento, a doente "passava muito mal". Atualmente, sente-se bem. Está adaptada.

Quando a possibilidade encontra condições propícias (que pode ser o próprio tratamento), transforma-se em uma realidade melhor que a da doença em si.

A hemodiálise proporciona melhora das condições físicas ("inchava, desmaiava" )e emocionais ("tô até mais aliviada").

Embora o tratamento tenha surgido na vida do doente e transformado o seu cotidiano, ele em si traz diversas realidades reveladas por alterações físicas, sociais e até de simples prazeres como o de se alimentar com a comida que gosta ou beber água à vontade, conforme a sede o exige.

Fazer hemodiálise provoca alterações físicas (emagrecimento, prurido, fraqueza, dor em membros inferiores, ressecamento da pele) e restrição alimentar.

Para Marx a essência humana é dotada de alguns componentes: o trabalho, a socialidade, a universalidade, consciência e liberdade. Quando alguns destes componentes são quebrados, violenta-se a essência da própria humanidade. Isto pôde ser evidenciado nas frases dos doentes. (28)

O doente fica sentido com a situação de não poder trabalhar, depender financeiramente da esposa e de outras pessoas e ficar sem atividade, levando-o ao choro.

A vida do doente e hemodiálise "não tem uma vida normal" por não poder "trabalhar".

No ir-e-vir da realidade da vida cotidiana destes doentes, o dia seguinte emerge como uma pausa de alívio nas alterações físicas e pequenas atividades laboriosas podem até ser realizadas. Aos doentes do sexo feminino as atividades domésticas oferecem oportunidade de ocupação do tempo e a percepção da capacidade individual como ser humano produtivo, entretanto, aos do sexo masculino, o dia seguinte é percebido apenas pela melhora das condições físicas, mas não exercem atividade ou esforço físico que possam considerar como "trabalho".

No dia seguinte à hemodiálise, a doente cuida de sua casa e faz seu serviço"doméstico normal".

No dia seguinte à hemodiálise, o doente sente melhora de suas condições físicas.

Em geral, no dia seguinte à hemodiálise a doente desenvolve normalmente tarefas domésticas, exceto, quando apresenta alguma alteração (dor).

Toda realidade guarda em sua essência infinitas possibilidades que podem ou não vir-a-ser. Cada uma delas quando encontra condições necessárias à sua concretização, logo se torna a nova realidade. Assim, é possível perceber como, por meio de pequenos aspectos do cotidiano, diferentes realidades emergem, conforme o cotidiano é rompido pela história individual de cada um dos doentes.

Sentir-se disposto é para o doente poder andar.

A doente "passa bem" em casa, às vezes, sente-se indisposta (fraqueza).

O doente não consegue deixar de ingerir água.

Para alguns doentes, a possibilidade de transplante é inviabilizada por vários aspectos. Assim, a realidade manifesta-se como necessária; a única possibilidade de vida é o próprio tratamento hemodialítico.

Não existe possibilidade de realizar o transplante em razão de outros problemas de saúde.

A perspectiva de transplante renal é impedida pela idade avançada do doente.

Na perspectiva dialética materialista, a realidade da vida cotidiana destes doentes em hemodiálise, é inevitavelmente necessária! Desse modo, a vida futura ou o planejamento desta é apenas uma casualidade que pode ou não vir-a-ser.

O tratamento hemodialítico é encarado positivamente, porque a doente sabe que "não vai sarar mesmo".

A vida do doente só tem futuro, enquanto suportar fazer hemodiálise e este é entregue à intervenção Divina.

Apesar da expectativa de um transplante, a doente suporta a hemodiálise até que a intervenção Divina lhe conceda "sossego" (a morte).

Quando era jovem não pensou em doença ou morte, não pensou que ficaria doente; atualmente, é diferente ("...A gente pensa na morte é... direto né?).

SÍNTESE

A realidade da vida cotidiana dos doentes com IRC em hemodiálise é permeada de alterações físicas que impõem limitações ao cotidiano e exige adaptações.

Foi possível perceber que a realidade do grupo de doentes "carentes" é determinada socialmente, devendo-se considerar as políticas econômica e de saúde instituídas no país que favorecem o adoecimento do indivíduo e não oferecem a assistência integral necessária ao tratamento e a seu processo de viver doente.

Desse modo, o cotidiano rompe a realidade de vida destes doentes em uma relação dialética entre o tratamento inevitável e casualidade do transplante.

Em nossa sociedade capitalista, as relações sociais estabelecem-se por meio da diferenciação de classes, da desigualdade na distribuição e atribuição de riqueza, portanto, estas contradições alimentam a concepção dominante de saúde-doença.

Na concepção marxista, o ser humano se diferencia das outras espécies pela sua habilidade em projetar e planejar o futuro e imaginar o produto de seu trabalho antes mesmo que ele exista, o que é feito pela sua capacidade de pensar assim. (29)

Quando o ser humano é limitado ou impossibilitado de realizar esse planejamento, experimenta a brutalização de sua essência humana, a desumanização.

Assim, o ser humano brutalizado torna-se desprovido de qualquer reação às agressões que sofre, bem como se submete ao fenômeno dominador.

Para estes doentes, o tratamento associado aos determinantes sociais mina as possibilidades de desenvolvimento do indivíduo como ser integral e este embrutecimento humano impede-o de refletir sua realidade estimulando a automatização de sua cotidianidade.

De maneira geral, os doentes não questionam a sua doença nem tão pouco percebem o motivo de seu adoecimento. Não existe o raciocínio de que em razão das baixas condições de compra, podem não ter se alimentado adequadamente, não ter comprado medicamento específico à sua condição clínica e que a maneira insalubre de trabalhar predisporia a doença. O baixo nível de instrução corrobora para uma atitude passiva diante da sociedade e dos profissionais de saúde que ditam cientificamente a "melhor maneira de viver doente" propiciando a preservação da ideologia dominante que não permite ao indivíduo conhecer o que é seu por direito; assim, o tratamento recebido é considerado um presente; é gratuito por isso não é questionado. Afinal o governo já "faz muito" em bancar o tratamento.

O direito à saúde e aos equipamentos de saúde não significa uma assistência gratuita como é preconizado ideologicamente. Com certeza o doente alguma vez em sua vida laboriosa já contribuiu para o pagamento do seu tratamento uma vez que o assalariado vende a força do seu trabalho.

A equipe de saúde tratando o doente "com carinho" atua como um amortecedor do grande impacto causado pelas políticas econômica, social e de saúde vigentes parcialmente implementadas pelo SUS.

Temos reproduzido a ideologia dominante e de maneira coerente à reprodução social estabelecida, por isso a enfermagem não se apercebe desse processo e assim, talvez, não sejamos capazes de exercer nossa cidadania durante as atividades profissionais.

Urge uma reflexão crítica e coerente da realidade estabelecida no sentido de se tomar consciência e para que exista a possibilidade de transformação da prática profissional de enfermagem. Nem sempre administramos o cuidar sob a perspectiva do ser humano que adoece confundindo o adoecer do corpo com o da humanidade do ser humano. A essência de nossa prática profissional é cuidar do ser humano que também adoece.

A possibilidade de transformação da realidade estabelecida dar-se-á por meio da conscientização da equipe de enfermagem e de saúde da importância de desempenhar o seu papel social.

Respostas prontas significariam a perpetuação do domínio de uma classe que detém apenas um "saber diferente" do saber de quem experiencia a doença. Ir além da assistência profissional técnica e restrita à unidade de hemodiálise seria o exercício da cidadania em compartilhar saberes.

Exercer cidadania, antes de qualquer coisa, é respeitar a liberdade daquele que adoece de poder ter a sua "humanidade" preservada e assistida apesar do corpo doente.

Ir além da prática profissional no exercício de cidadania é reconhecer que a sofisticação tecnológica é necessária, porém, insuficiente para lidar com o processo de adoecer. É reconhecer a inadequação dos recursos oferecidos pela política estabelecida. É estimular e criar recursos para que sociedade contribua para a integração desses doentes em atividades laboriosas adequadas às capacidades físicas mas que promovam a saúde da "humanidade" do homem doente, visto que o dia seguinte da hemodiálise poderia ser de produtividade física e mental.

Considerando que, para estes doentes o tratamento hemodialítico é necessariamente obrigatório, todos os investimentos, avanços tecnológicos, pesquisas e terapêuticas de apoio para uma melhoria da vida cotidiana e da assistência serão válidos.

Quando o indivíduo é despertado de sua cotidianidade e consegue enxergar a própria realidade, apesar da brutal realidade descoberta, este indivíduo pode ser despertado para suas potencialidades e modificar sua existência. Com certeza, não existe a possibilidade de se mudar o mundo, mas é possível que o homem transforme sua posição diante do mundo ao vivenciar o drama individual de cada um no mundo. (26)

É necessário uma reflexão e tomada de consciência da importância de uma transformação da prática profissional de enfermagem com liberdade e, acima de tudo, eticamente comprometida com o ser humano que adoece.

Recebido: 03/07/2002

Aprovado: 25/07/2003

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  • (25) Ministério da Saúde. Secretaria executiva. DATASUS. [online] Apresenta: Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS (SAI/SUS). Disponível em: http://www. datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sia/pabr.def (1 ago. 2001)
  • (26) Kosik K. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1986.
  • (27) Heller A. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.
  • (28) Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 5Ş ed. São Paulo: Hucitec; 1998.
  • (29) Marx K. O capital: crítica da economia política e o processo de produção do capital. São Paulo: Nova Cultural; 1985: Processo de trabalho e processo de valorização; v.1, cap.V, p.149-63.

anexo

  • *
    Parte da Dissertação de Mestrado intitulada
    "Por intermédio da vida cotidiana de doentes com insuficiência renal crônica em hemodiálise: entre o inevitável e o casual
    " apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem da USP(EEUSP) em 2001.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Dez 2008
    • Data do Fascículo
      Set 2003

    Histórico

    • Recebido
      03 Jul 2002
    • Aceito
      25 Jul 2003
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