Acessibilidade / Reportar erro

Representações de uma equipe de saúde acerca de planejamento familiar e esterilização feminina

Social representation of a healthcare team on family planning and female sterilization

Representaciones de un equipo de salud sobre planificación familiar y esterilización femenina

Resumos

Nesta investigação qualitativa, o objetivo foi captar as representações dos agentes de uma equipe de saúde sobre o planejamento familiar e a laqueadura tubária, bem como sobre os efeitos práticos delas sobre o trabalho da equipe. Utilizamos a dialética marxista e as representações sociais como referenciais. Os dados foram obtidos por meio de entrevistas e observações de algumas atividades dos agentes da equipe de saúde e foram submetidos à análise de discurso. O planejamento familiar e a laqueadura tubária foram considerados um direito das mulheres, entretanto, o exercício desse direito está prejudicado em face das limitações de acesso aos métodos contraceptivos de modo geral.

Esterilização tubária; Equipe de assistência ao paciente; Serviços de planejamento familiar


The objective in this qualitative study was to obtain the discourse of the members of a healthcare team on family planning and female sterilization, and those practical effects on the work of the team. Marxist dialectic and social representations were used as references. Data were obtained by interviews and observations of certain activities of the members of the healthcare team and were subjected to analysis of the discourse. Family planning and female sterilization were considered to be rights, which pertained to the women, although the exercise of those rights is hindered by the limitations of access to contraceptive methods in general.

Tube sterilization; Patient care team; Family planning service


El objetivo de esta investigación cualitativa fue captar las representaciones de los agentes de un equipo de salud acerca de la planificación familiar y ligadura de las trompas así como sus efectos prácticos sobre el trabajo del equipo. Como referenciales utilizamos la dialéctica marxista y las representaciones sociales. Los datos fueron obtenidos por medio de entrevistas y observaciones de algunas actividades de los agentes del equipo de salud y fueron sometidos al análisis de discurso. La planificación familiar y la ligadura de las trompas fueron consideradas como un derecho de las mujeres. Sin embargo, el ejercicio de este derecho se ve perjudicado ante las limitaciones de acceso a los métodos anticonceptivos de modo general.

Esterilización tubaria; Grupo de atención al paciente; Servicios de planificación familiar


ARTIGOS DE PESQUISA

Representações de uma equipe de saúde acerca de planejamento familiar e esterilização feminina* * Extraido daTese "Análise do trabalho de uma equipe de saúde acerca da laqueadura tubária: estudo de caso de Belo Horizonte",Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), 2000.

Social representation of a healthcare team on family planning and female sterilization

Representaciones de un equipo de salud sobre planificación familiar y esterilización femenina

Clarice Marcolino

Professor Adjunto da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutor em Saúde Pública. clarice@enf.ufmg.br

Correspondência para Correspondência para: Clarice Marcolino Av. Bernardo Vasconcelos, 2350 - Ap. 703 - Ipiranga Belo Horizonte CEP - 31160-440 - MG

RESUMO

Nesta investigação qualitativa, o objetivo foi captar as representações dos agentes de uma equipe de saúde sobre o planejamento familiar e a laqueadura tubária, bem como sobre os efeitos práticos delas sobre o trabalho da equipe. Utilizamos a dialética marxista e as representações sociais como referenciais. Os dados foram obtidos por meio de entrevistas e observações de algumas atividades dos agentes da equipe de saúde e foram submetidos à análise de discurso. O planejamento familiar e a laqueadura tubária foram considerados um direito das mulheres, entretanto, o exercício desse direito está prejudicado em face das limitações de acesso aos métodos contraceptivos de modo geral.

Descritores: Esterilização tubária. Equipe de assistência ao paciente. Serviços de planejamento familiar.

ABSTRACT

The objective in this qualitative study was to obtain the discourse of the members of a healthcare team on family planning and female sterilization, and those practical effects on the work of the team. Marxist dialectic and social representations were used as references. Data were obtained by interviews and observations of certain activities of the members of the healthcare team and were subjected to analysis of the discourse. Family planning and female sterilization were considered to be rights, which pertained to the women, although the exercise of those rights is hindered by the limitations of access to contraceptive methods in general.

Descriptors: Tube sterilization. Patient care team. Family planning service.

RESUMEN

El objetivo de esta investigación cualitativa fue captar las representaciones de los agentes de un equipo de salud acerca de la planificación familiar y ligadura de las trompas así como sus efectos prácticos sobre el trabajo del equipo. Como referenciales utilizamos la dialéctica marxista y las representaciones sociales. Los datos fueron obtenidos por medio de entrevistas y observaciones de algunas actividades de los agentes del equipo de salud y fueron sometidos al análisis de discurso. La planificación familiar y la ligadura de las trompas fueron consideradas como un derecho de las mujeres. Sin embargo, el ejercicio de este derecho se ve perjudicado ante las limitaciones de acceso a los métodos anticonceptivos de modo general.

Descriptores: Esterilización tubaria. Grupo de atención al paciente. Servicios de planificación familiar.

INTRODUÇÃO

A redemocratização ocorrida no Brasil na década de 80 representou um marco importante no que tange às reivindicações e conquistas das mulheres quanto ao direito à saúde reprodutiva. O Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), lançado em 1983 e regulamentado em 1986, resultou do esforço de profissionais da saúde, do movimento de mulheres e dos técnicos do próprio Ministério da Saúde, no sentido de preconizar ações que ampliavam significativamente o atendimento à saúde da mulher(1).

O PAISM incluiu o planejamento familiar entre suas ações, tornando-se um direito legal do cidadão com a aprovação da Constituição Federal de 1988 que, em seu artigo 226, §7º, afirma:

Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas(2).

A inclusão do planejamento familiar na assistência à saúde da mulher foi um ganho importante no contexto dos direitos reprodutivos, tal como preconizado pela Conferência Internacional de População e Desenvolvimento ocorrida no Cairo em 1994, cujo documento o Brasil subscreve(3).

Sabemos que o PAISM teve uma implantação muito lenta e ainda não se pode considerar que esteja totalmente implantado, principalmente no que diz respeito às questões relacionadas à saúde reprodutiva, em especial ao planejamento familiar/reprodutivo, muito embora a Constituição de 1988 reconheça o planejamento familiar como direito do cidadão(4). Como conseqüência desse reconhecimento, deve o Estado promover o acesso à informação e aos meios para o exercício desse direito. Sendo assim, devem estar disponíveis para os casais métodos anticoncepcionais que não prejudiquem a saúde deles, que sejam apropriados ao seu momento de vida e à fase do ciclo reprodutivo da mulher (adolescência, vida adulta, climatério).

Embora o governo tenha se pronunciado favoravelmente ao planejamento familiar, observamos na prática que a acessibilidade aos métodos contraceptivos não é concreta. O sistema público de saúde não os oferece em quantidade e qualidade para que os casais que optam por tais métodos.

Antes de 1986, nenhum dado sobre a prevalência de métodos contraceptivos utilizados pelas mulheres brasileiras encontrava-se disponível no Brasil. Em 1986, a Sociedade Civil Bem - Estar Familiar (BEMFAM), por intermédio da Pesquisa Nacional sobre Saúde Materno-Infantil e Planejamento Familiar, apresenta estatísticas sobre os métodos anticoncepcionais mais usados pelas mulheres brasileiras na década de 80(5).

Em 1996, a BEMFAM realizou outro trabalho semelhante, por intermédio da Pesquisa Nacional Sobre Demografia e Saúde (PNDS)(6).

Os dados das pesquisas realizadas pela BEMFAM em 1986 e 1996 mostram que os dois métodos mais utilizados por mulheres brasileiras unidas entre 15- 49 anos são a esterilização e a pílula anticoncepcional oral. Em 1986, a prevalência da esterilização era de 27,2% e da pílula 25%. Em 1996 a esterilização aumentou para 40,1% e a pílula caiu para 20,7%. A idade mediana em que a mulher se esterilizava, em 1986, era 31,4 anos; em 1996, 28,9 anos, o que significa um decréscimo de 2,5 anos entre 1986 e 1996.

A esterilização é feita, na maioria dos casos (74%), por ocasião do parto, sendo que quatro em cada cinco são feitas durante a cesariana. É obtida, fundamentalmente, via setor público (71%), sendo que 49% em hospitais públicos e 22% em hospital conveniado com o Sistema Único de Saúde - SUS(5).

Há uma multiplicidade de fatores envolvendo a escolha da esterilização e os médicos têm uma posição importante na influência dessa decisão. A legislação brasileira exige que os serviços de saúde que realizam a esterilização ofereçam atendimento multiprofissional, informação e acesso a todos os métodos contraceptivos.

Os primeiros autores que escreveram sobre a questão da tomada de decisão na escolha da esterilização foram Clark et al (1979) e Clark & Swicegood (1982)(7), que agruparam os determinantes da esterilização feminina em:

a)razões para busca da esterilização (contraceptiva, coito e saúde);

b)fontes de informação acerca da esterilização (material de leitura, médicos, homens e mulheres);

c) pessoas que influenciam a decisão (médico, pessoal da saúde, família e amigos); e

d)a natureza da relação homem-mulher.

Em estudo anterior verificou-se que os profissionais da saúde têm papel importante sobre o processo de decisão da mulher pela esterilização feminina(8).

As representações dos profissionais da equipe de saúde sobre planejamento familiar e laqueadura tubária são elementos constitutivos importantes na operacionalização da tomada de decisão pela esterilização.

A elucidação das representações que os componentes da equipe constroem e utilizam para agir nas tomadas de decisões é indispensável para compreender as suas implicações sobre a prática da laqueadura tubária.

Neste estudo, o objetivo foi captar as representações dos agentes da equipe sobre o planejamento familiar e a laqueadura tubária, no seu processo de trabalho, e os efeitos práticos destas sobre o trabalho da equipe de saúde.

CENÁRIO DO ESTUDO

A instituição escolhida para realizar o trabalho foi uma entidade filantrópica não-governamental, sem fins lucrativos, que tem como missão prestar assistência integral à saúde da comunidade, principalmente na área materno-infantil, incluindo o planejamento familiar.

A organização da assistência à saúde da mulher tanto das unidades de saúde do Município de Belo Horizonte quanto da Instituição pesquisada está fundamentada na Constituição da República Federativa do Brasil , no Programa de Orientação e Assistência ao Planejamento Familiar e à Saúde Reprodutiva da Prefeitura de Belo Horizonte(9), no PAISM (1986) e nos dispositivos legais do Ministério da Saúde(10), que regulamentam a laqueadura tubária e a vasectomia.

METODOLOGIA

Partimos do trabalho da equipe envolvida com a cirurgia esterilizadora, no seu contexto de exercício cotidiano, e constatamos como os agentes a operacionalizam e quais as representações destes sobre o planejamento familiar.

Os dados empíricos foram obtidos por meio de entrevistas e de observações de algumas atividades dos agentes da equipe de saúde. Foram entrevistados os nove profissionais da equipe de saúde, assistente social, agente de saúde, enfermeiras, médicos e psicólogos. Os agentes entrevistados são trabalhadores de uma instituição filantrópica, sem fins lucrativos, localizada na periferia da cidade de Belo Horizonte.

Os discursos foram submetidos a análise, segundo a orientação da técnica proposta(11) e já adaptada(12). Tomamos como referência para a interpretação das categorias empíricas, conceitos relacionados ao processo de trabalho em saúde(13-16).

O resultado apresentado é parte da tese de doutorado da autora e aborda uma das categorias empíricas analisadas - concepções de uma equipe de saúde sobre planejamento familiar, contracepção e ligadura de trompas(17).

RESULTADOS

O planejamento familiar foi definido pelos entrevistados como acesso aos diferentes métodos contraceptivos. O acesso tanto aos métodos temporários quanto aos definitivos é um direito que a mulher tem. O planejamento familiar foi considerado importante para as pessoas organizarem e planejarem se querem ou não ter filhos.

Citamos algumas frases temáticas referentes a essa concepção.

O acesso aos métodos definitivos ou temporários é um direito da mulher.

A psicóloga considera que o planejamento familiar é importante para que as pessoas organizem e planejem se querem ou não ter filhos.

O planejamento familiar é definido como acesso aos diferentes métodos contraceptivos.

Para que as decisões reprodutivas sejam realmente livres, é necessário que existam certas condições que constituam a base dos direitos sexuais e reprodutivos. Serviços de saúde acessíveis, humanizados e bem equipados são uma dessas condições.

Os nossos entrevistados mencionaram que, por falta de acesso a serviços de saúde e por falta de conhecimento de alguns métodos contraceptivos, muitas mulheres têm um espaçamento pequeno entre os filhos. Isso tem levado mulheres de pouca idade a submeterem-se à laqueadura de trompas sem, no entanto, fazer uma reflexão sobre as suas consequências. Mencionou-se ainda que muitas mulheres já vêm para o serviço com a escolha pronta e que a atividade educativa não modifica essa escolha.

Citamos algumas frases temáticas que exemplificam esses aspectos:

A agente de saúde considera que a falta de conhecimento de métodos contraceptivos e o pouco espaçamento de tempo entre os filhos levam mulheres com pouca idade a fazer laqueadura de trompas sem, no entanto, fazer uma reflexão sobre as suas consequências.

A agente de saúde considera importante falar sobre contracepção durante o pré-natal porque muitas mulheres têm um espaçamento pequeno entre os filhos, por falta de conhecimento de alguns métodos e por não terem acesso a serviços de saúde.

Para o médico, homens e mulheres já vêem ao serviço com a escolha pronta sobre o método que irão usar e que a atividade educativa não modifica essa escolha, apenas esclarece as dúvidas e dá orientações, inclusive sobre riscos.

Enfatizou-se também que os métodos contraceptivos devem ser adequados para cada mulher e que conduta da equipe não é indicar um método, mas colocar as opções de acordo com as necessidades e preocupações da cliente.

O direito de acesso foi enfatizado na fala dos profissionais de saúde e isso constitui em mudança. Este é o primeiro passo para eliminar as gritantes desigualdades de acesso aos meios contraceptivos. Não adianta falar em liberdade de escolha se não há acesso aos serviços e aos métodos. As leis que garantem a liberdade de escolha são inúteis quando as mulheres não têm acesso aos serviços de saúde ou quando a qualidade é precária ou ainda quando faltam insumos e financiamento adequado para o sistema de saúde pública.

Os agentes da equipe de saúde incorporaram o discurso do Estado e do princípio de livre escolha, mas mencionaram também as condições restritivas que cerceiam a livre escolha, como "escolha pronta", falta de acesso e conhecimento dos métodos contraceptivos e falta de acesso a serviços de saúde. A clientela procura o serviço de saúde tendo já feito a escolha por métodos contraceptivos de alta tecnologia, como a "pílula" e a "laqueadura".

Os agentes da equipe de saúde apontam que, na prática, está ocorrendo maior acessibilidade aos métodos contraceptivos, embora de forma não satisfatória.

A agente de saúde considera fundamental sua participação na equipe, pois sua convivência e sua atuação na comunidade possibilitam uma melhor compreensão da realidade e das necessidades da clientela. Revelam-se, nessa situação, o respeito às mulheres e a necessidade de proporcionar meios para que cada vez mais elas sejam ouvidas e respeitadas e que seus anseios e experiências sejam levados a sério no âmbito dos serviços de saúde.

direitos sexuais e reprodutivos (ou quaisquer), compreendidos como "liberdades privadas" ou "escolhas", não têm sentido, especialmente para grupos sociais mais pobres e privados de direitos ¾ quando estão ausentes as condições que permitem seu exercício. Estas condições constituem os direitos sociais e envolvem uma política de bem estar social, segurança pessoal e liberdade política, elementos essenciais para a transformação democrática da sociedade e para a abolição de injustiças raciais, étnicas, de gênero ou classe(18).

Concluímos que a tomada de decisão por métodos contraceptivos como direitos individuais deve ser a partir do contexto dos direitos sociais e que a liberdade de escolha depende do acesso e do espectro de escolhas para que se possa tomar uma decisão consciente. Não podemos imaginar que as mulheres estejam separadas dos contextos sociais ou das condições que tornam essas decisões possíveis. É preciso ver que a tomada de decisão de uma mulher envolve fatores sociais, econômicos, culturais, pessoais, dentre outros.

Quanto às concepções sobre a laqueadura de trompas, observamos que os agentes da equipe de saúde emitiram sua opinião em nível técnico e em nível pessoal de forma conflituosa. Na prática, entretanto, acabam valorizando as regras técnicas.

Eles vêem a ligadura como um direito que a mulher tem, mesmo que ela não esteja de acordo com critérios utilizados pela instituição para a aprovação da laqueadura de trompas. Tecnicamente, a ligadura foi considerada um método seguro, simples, eficaz e eficiente, como técnica cirúrgica e como método contraceptivo.

As frases temáticas a seguir apontam essas concepções.

Tecnicamente, a laqueadura ou a vasectomia são métodos simples, seguros e eficientes. A vasectomia poderia ser recomendada em termos de saúde pública

A laqueadura é vista como um direito que a mulher tem, mesmo que ela não esteja dentro dos critérios da instituição.

A ligadura é um direito que a pessoa tem.

Segundo um de nossos entrevistados, as mulheres preferem a ligadura de trompas pelo fato de ser eficaz e não trazer os problemas que o DIU e a "pílula" trazem. Vejamos frases temáticas que apontam essa concepção por parte da mulher.

O médico acredita que a maioria das mulheres prefere a ligadura como o melhor método, por ser eficaz, seguro e não trazer os problemas que a pílula e o DIU trazem.

Segundo o médico, as mulheres não consideram o arrependimento da ligadura como uma complicação e não pensam também que é uma cirurgia, mas que é somente mais um tipo de método contraceptivo.

As questões pertinentes às complicações e efeitos colaterais decorrentes desse procedimento cirúrgico têm sido alvo de vários estudos e os resultados chegam a ser conflitantes.

Os estudos referem-na como síndrome pós-laqueadura, responsabilizando a cirurgia pelo aparecimento de distúrbios ginecológicos, tais como irregularidade menstrual, dor pélvica, displasia mamária e doença inflamatória pélvica, dentre outras(7,19).

Alguns pesquisadores têm demonstrado alteração do perfil hormonal, principalmente dos níveis médios de progesterona durante a fase lútea(18).

Para muitos pesquisadores, as modificações funcionais decorrem do comprometimento vascular e nervoso do mesosalpinge. Dessa forma, quanto maior a lesão tissular, maior será a resposta disfuncional ovariana. Por isso, valoriza-se a técnica a ser empregada com o fim de diminuir ou evitar futuros distúrbios.

Entrevista à Folha de S. Paulo adverte que pelo menos 80% das mulheres que fazem a ligadura de trompas vão apresentar, a curto ou médio prazo, alterações funcionais dos ovários(20). A ligadura altera a produção hormonal dos ovários, provocando distúrbios menstruais em quase todas as mulheres esterilizadas. A redução da produção de progesterona - que ocorre nas mulheres esterilizadas - leva ao aumento do estrogênio. Em conseqüência, o útero, cujas fibras musculares dependem do equilíbrio entre os hormônios, começa a se transformar num órgão miomatoso, aumentando de tamanho.

Como podemos observar, a laqueadura tubária pode trazer problemas. Freqüentemente ela é realizada com a finalidade de evitar os efeitos colaterais dos hormônios esteróides dos contraceptivos orais, entretanto muitas mulheres, subseqüentemente, requerem tratamento com tais hormônios para a correção dos problemas menstruais; em casos mais severos pode ocorrer a necessidade de histerectomia(19). Podem também ocorrer problemas psicológicos e sexuais. Algumas mulheres relatam que não conseguem atingir o orgasmo após a cirurgia. Fisicamente, não há qualquer tipo de relação, mas a mulher relaciona, inconscientemente, a sua feminilidade com a reprodução.

Embora as considerações sobre a esterilização tenham sido positivas, alguns membros da equipe se posicionaram desfavoravelmente, por causa de sua radicalidade, e acham que não se deveria utilizar um método definitivo, em virtude da permissividade e mobilidade nas relações conjugais de nossa sociedade. Essa observação vem modificando a opinião de um dos membros da equipe sobre a ligadura ao longo de sua experiência de vida e trabalho.

Citamos algumas frases temáticas que nos mostram esse posicionamento.

O médico não é favorável e não aceita os métodos definitivos como a vasectomia e a laqueadura de trompas pelo seu caráter de radicalidade. O aspecto definitivo não agrada a esse médico em nenhuma área da vida.

Não se deveria fazer método definitivo por coisa da permissividade e da mobilidade nas relações pessoais de nossa sociedade.

A enfermeira mudou sua opinião sobre a laqueadura ao longo dos anos de vivência como profissional e como mulher.

Na experiência da enfermeira, está ocorrendo uma mudança na vida das mulheres (tem aumentado o número de novos relacionamentos e isto cria a necessidade de ter mais filhos) por esta razão é que se deve ter cuidado na decisão sobre a ligadura.

A fala dos agentes da equipe multiprofissional permitiu-nos concluir que, de um lado, a concepção de laqueadura é um método eficiente, eficaz e seguro, tendo como referência a clínica, onde o ser humano, indivíduo biológico, é desvinculado da sua vida de relação. Por outro lado, as concepções desfavoráveis estão relacionadas às determinações sociais das condições de vida e saúde das pessoas. As frases temáticas a seguir mostram-nos essa perspectiva.

O psicólogo considera a gravidez, o pós-parto imediato e o relacionamento do casal fatores emocionais que devem ser fortemente considerados na aceitação do pedido de ligadura de trompas.

Na experiência de trabalho do psicólogo, a relação ligadura de trompas, reprodução e sexualidade deve ser vista com cuidado, por causa dos efeitos psicológicos negativos que essa cirurgia pode causar sobre a sexualidade da mulher e no relacionamento do casal.

A psicóloga considera que se deve ficar atento para a relação entre a ligadura e a vida sexual.

Embora haja a tendência em considerar os aportes do campo das ciências sociais e da psicologia, não há de fato conflito com as regras técnicas utilizadas pela instituição, que são soberanas por ocasião da tomada de decisão sobre a aprovação da cirurgia esterilizadora. O critério técnico assume soberania e independência diante do saber prático da vida das pessoas. Certa tecnocracia que - estruturada sob uma base técnica e científica - orienta e valoriza a tomada de decisão dos profissionais, os quais têm dificuldades em valorizar os elementos sobre a vida da mulher, que eles sabem, escutam e até consideram, mas não fazem valer.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O modelo hegemônico de assistência individual, o modelo clínico, traduz, por um lado, a forma positiva de como a laqueadura é concebida, sendo fortemente enfatizado pelos agentes da equipe de saúde. Por outro, os distúrbios funcionais e psíquicos que a laqueadura pode causar em nenhum momento foram mencionados pelos entrevistados. Perguntamos, por que e aproveitamos para argüir o caráter ideológico de não serem discutidos prováveis efeitos adversos da laqueadura de trompas sobre o corpo e a mente da mulher. A esterilização é um ato médico, realizado num hospital, sendo mais valorizada que as outras formas de anticoncepção, como os métodos naturais ou de barreira, os quais têm poucos efeitos adversos, mas são tidos como de pouca eficiência. O modelo tecnocrático de controle da reprodução, centrado no saber técnico científico, gera uma demanda por intervenção e a sensação de controle.

Embora os agentes da equipe considerem o planejamento familiar e o acesso à ligadura tubária um direito, o exercício desse direito de fato está prejudicado, pois o acesso aos meios para regulação da fecundidade não vêm concretamente ocorrendo. Apesar de apontarem para mudanças, estas ainda são quantitativamente insuficientes para provocar um salto de qualidade na diversidade do uso de métodos contraceptivos no contexto da atual regulação do planejamento familiar.

Recebido: 03/06/2003

Aprovado: 15/10/2003

  • (1) Ministério da Saúde. Assistência integral à saúde da mulher: bases de ação programática. Brasília; 1984.
  • (2) Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal; 1988.
  • (3) Proceedings of 5th International Conference on Population and Development; 1994 Sept 5-13; Cairo. [s.l.]: United Nations Publications; 1995.
  • (4) Costa AM. Desenvolvimento e implantação do PAISM no Brasil. In: Griffin K, Costa SH, organizadores. Questões de saúde reprodutiva. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1999. p. 319-36.
  • (5) Sociedade Civil Bem-Estar Familiar no Brasil (BENFAM). Pesquisa Nacional sobre Saúde Materno-Infantil e Planejamento Familiar. Rio de Janeiro; 1988.
  • (6) Sociedade Civil Bem-Estar Familiar no Brasil (BENFAM). Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde. Rio de Janeiro; 1997.
  • (7) Molina da Costa A. The determinants of tubal ligation in Recife, Northeast of Brazil. [PhD Thesis]. Leeds: School of Medicine at University of Leeds; 1995.
  • (8) Marcolino C, Schor N. Trajetória da mulher em direção à esterilização cirúrgica feminina: um estudo fenomenológico. Rev Bras Cresc Desenv Hum 1995; 5(1/2):82-95.
  • (9) Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. Lei Municipal n. 6754, de 21 de novembro 1994. Dispõe sobre o Programa de Orientação e Assistência ao Planejamento Familiar e a Saúde Reprodutiva. [online] Belo Horizonte; [s.d.]. Disponível em: www.pbh.gov.br/siga/procuradoria/pgmlegis.htm (15 set. 2003)
  • (10) Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Portaria n. 144 de 20 de novembro de 1997. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, 27 nov. 1997. Seção 1, p. 27825.
  • (11) Fiorin JL, Savioli FP. Para entender o texto. São Paulo: Ática; 1997.
  • (12) Car MR, Bertolozzi MR. O processo da análise de discurso. In: Chianca TCM e Antunes MJM, organizadoras. A Classificação Internacional das Práticas de Enfermagem em Saúde Coletiva- CIPESC. Brasília: ABEn; 1999. p. 348-55. (Série Didática: Enfermagem no SUS).
  • (13) Nogueira RP. O trabalho em serviços de saúde. In: Desenvolvimento gerencial de Unidades Básicas do Sistema Único de Saúde. Brasília: OPAS/OMS; 1997. p. 182-6.
  • (14) Almeida MCC, Rocha SM, organizadores. O trabalho de enfermagem. São Paulo: Cortez; 1997. p. 61-112.
  • (15) Mendes-Gonçalves RB. Tecnologia e organização social das práticas de saúde. São Paulo: Hucitec; 1994.
  • (16) Mendes-Gonçalves RB. Práticas de saúde e tecnologia: contribuição para a reflexão teórica. Brasília: OPAS; 1988.
  • (17) Marcolino C. Análise do trabalho de uma equipe de saúde acerca da laqueadura tubária: estudo de caso de Belo Horizonte. [tese] São Paulo (SP): Faculdade de Saúde Pública da USP; 2000.
  • (18) Correa S. Petchesky R. Direitos sexuais e reprodutivos: uma perspectiva feminista. Physis: Rev Saúde Coletiva 1996; 6(2): 147-77.
  • (19) Fagundes ML. Esterilização tubária: uma solução ou um problema? Femina 1993; 21(7):655-6.
  • (20) Basbum C. Método provoca danos físicos e psíquicos. Folha de São Paulo 1992 dez 13; Caderno A:6.
  • Correspondência para:
    Clarice Marcolino
    Av. Bernardo Vasconcelos, 2350 - Ap. 703 - Ipiranga
    Belo Horizonte CEP - 31160-440 - MG
  • *
    Extraido daTese "Análise do trabalho de uma equipe de saúde acerca da laqueadura tubária: estudo de caso de Belo Horizonte",Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP), 2000.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Nov 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2004

    Histórico

    • Recebido
      03 Jun 2003
    • Aceito
      15 Out 2003
    Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: reeusp@usp.br