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Publique e seja criticado

EDITORIAL

Publique e seja criticado

Jane Robinson, FRCN, MA, PhD

Emeritus Professor

Em setembro de 2005, visitei o Brasil pela terceira vez. Minha segunda visita havia sido em 2000. A recepção foi calorosa como sempre, e fiquei muito impressionada com o que vi. O ambiente da cidade está melhorando. A canalização e o paisagismo das margens dos dois rios que cortam São Paulo, fazem uma grande diferença na primeira impressão que se tem da cidade. Quando as árvores plantadas crescerem, as áreas que margeiam os rios ficarão lindas e a vida silvestre voltará. Também se nota uma pequena redução no volume de tráfego, exceto na hora do rush! Explicaram-me que isso se deve ao rodízio. Soube que ele não é popular entre aqueles que têm de cruzar a cidade para trabalhar, mas a mudança é notável e pude percebê-la antes mesmo de receber essa explicação.

Tais melhorias no ambiente urbano são parte de aspectos ambientais mais abrangentes da saúde pública. Igualmente admirável é o trabalho que vi sendo realizado por enfermeiras de saúde pública nas equipes do Programa de Saúde da Família. Para destacar algumas, gostaria de mencionar as iniciativas para reduzir infecções por HIV/AIDS; a busca ativa de casos de tuberculose nos bairros mais pobres; o monitoramento de casos de hanseníase e doenças sexualmente transmissíveis e os Programas de Saúde Materna e Infantil, que estão tentando diminuir a mortalidade nesse grupo. E, ao mesmo tempo, o desenvolvimento e a manutenção de sistemas de informação em enfermagem para acompanhar a prevalência de doenças, monitorar as cargas de trabalho e o trabalho em equipe.

Esse é o dia-a-dia do trabalho de saúde pública, defendido pela Organização Mundial da Saúde em inúmeras publicações desde a Conferência de Alma Ata de 1978. O trabalho não é dramático e muitas vezes é preciso alguém de fora para apreciar quanta coisa está sendo feita na base da vida comunitária. Às vezes, como alguns alunos de pós-graduação me contaram, o trabalho pode ser desanimador quando a pobreza e os problemas das pessoas parecem insolúveis e esmagadores. Essas são ocasiões em que devemos nos orgulhar das pequenas conquistas e ter prazer com elas, porque, como as árvores às margens dos rios de São Paulo, uma geração pode passar até que as melhorias na saúde cresçam e floresçam.

Por que, então, se têm tanto a ensinar ao resto do mundo sobre o trabalho que realizam, muitas enfermeiras brasileiras sonham em vir para o Primeiro Mundo? Claro, viajar é uma experiência maravilhosa de aprendizagem. Tive o privilégio de visitar muitos países e nunca diria que enfermeiras não devem viajar. Mas, freqüentemente, as enfermeiras com quem conversei pareciam achar que havia lições a aprender sobre algo que desconheciam. Algumas vezes, as enfermeiras brasileiras parecem sofrer de um sentido coletivo de sub-realização. Venham mesmo para o Primeiro Mundo, mas venham para nos contar sobre trabalho que vocês realizam e as conquistas que vocês alcançaram.

A barreira da língua é uma das muitas dificuldades que as enfermeiras brasileiras enfrentam e que as impede de publicar relatos de suas práticas em periódicos estrangeiros. O fato de que as administrações universitárias as encorajam a publicar em apenas 32 principais periódicos qualificados, que integram o ranking mundial do fator de impacto, não facilita as coisas. Trinta e dois periódicos no mundo inteiro é um número ridiculamente pequeno para uma profissão como a Enfermagem. Para quem não fala inglês, atingir essa meta é extremamente difícil, senão impossível. Isso contribui para a sensação de fracasso pessoal e coletivo.

Sinto-me extremamente frustrada com essa situação, porque o Primeiro Mundo tem muito a aprender com vocês! Por exemplo, a enfermagem de saúde pública brasileira baseia-se na abordagem do território adotada por equipes de enfermagem comunitária inglesa (parteiras, visitadoras de saúde e enfermeiras distritais), experiência que teve lugar na Grã-Bretanha em 1973, na primeira de muitas reorganizações do Serviço Nacional de Saúde. Por motivos políticos, agora tais equipes limitam-se a trabalhar com a casuística dos médicos generalistas, o que reduziu o volume de cuidados preventivos à saúde realizados por enfermeiras, em favor da prevenção secundária e terciária.

A comunidade britânica de enfermeiras já não se identifica com as necessidades de saúde de indivíduos de grupos populacionais em áreas geográficas específicas. Ao invés disso, trabalha com os pacientes registrados por médicos generalistas, o que pode levar à exclusão dos mais pobres, como os sem-teto, os imigrantes e os usuários de drogas. Uma conseqüência disso é que é virtualmente impossível identificar o denominador populacional em áreas geográficas relativamente pequenas, tornando muito difícil desenvolver pesquisas epidemiológicas locais rigorosas. As enfermeiras brasileiras da área de saúde pública surpreenderam-se quando lhes contei que essa é a forma com que a comunidade de enfermeiras da Grã-Bretanha praticam a profissão.

Sou a editora do International Nursing Review (INR), periódico do Conselho Internacional de Enfermeiros. A INR não possui fator de impacto. Quando menciono isso, muitas enfermeiras perdem o interesse em publicar na revista. Ao invés disso, continuam a centrar esforços para publicar seus trabalhos nos 32 periódicos com fator de impacto, de maior status e prestígio. Mas o que isso significa para a saúde do país? Como os relatos do trabalho cotidiano, dedicado e cuidadoso, das enfermeiras brasileiras, alcançarão os de suas colegas em numerosos países em desenvolvimento que também acreditam no provimento de cuidados de saúde primários acessíveis e de baixo custo?

Sou uma visitadora de saúde (o equivalente britânico da enfermeira de saúde pública) e inevitavelmente me identifico com essa especialidade. No entanto, não excluo o restante da enfermagem das minhas observações. Um trabalho igualmente competente vem sendo desenvolvido em muitas instituições de saúde brasileiras e merece ser mais conhecido no Primeiro Mundo, onde existem muitos periódicos, tanto especializados como mais gerais, cujos editores estariam interessados em publicar relatos das práticas de cuidados de enfermagem realizadas no Brasil.

A virtual invisibilidade da enfermagem brasileira fora do Brasil é lamentável. Não é boa para as enfermeiras e é pior ainda para o cuidado à saúde. Uma comunidade global de enfermeiras dedicada a melhorar os indicadores de saúde e os padrões de provimento de cuidados deveria usar todos os meios para se comunicar livremente. Se permitirmos que prevaleça essa estratégia de publicação seletiva, centrada em apenas alguns periódicos, ao invés de outras formas de publicação que favoreçam a disseminação das boas práticas, a saúde das pessoas é a que mais sofrerá.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Fev 2008
  • Data do Fascículo
    Mar 2006
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