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Acerca da interdisciplinaridade: aspectos epistemológicos e implicações para a enfermagem

La interdisciplinariedad: aspectos epistemológicos e implicaciones para la enfermería

About interdisciplinarity: epistemiological aspects and implications for nursing

Resumos

Trata-se da interdisciplinaridade como fenômeno e assunto emergente da ciência (re)partida em várias especialidades ou disciplinas do saber/conhecimento e da formação profissional, principalmente na área da saúde e da enfermagem. A abordagem é de natureza crítica e filosófica e o propósito principal visa a expor dificuldades e problemas com intuito de favorecer e ampliar a discussão. Conceitos gerais, mais correntes, são apresentados de permeio com idéias epistemológicas subjacentes às repercussões do trabalho em grupo e transcendentes à consciência para além da filosofia do sujeito. A autora advoga sua opinião e postura em face do tema com exemplos de sua prática acadêmica e experiências da Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ.

Comunicação interdisciplinar; Relações interprofissionais; Conhecimento; Enfermagem


Se trata de la interdisciplinariedad como fenómeno y asunto que emerge de la ciencia (re)partida en varias especialidades o disciplinas del saber/conocimiento y de la formación profesional, principalmente en el área de la salud y de la enfermería. El abordaje es de naturaleza crítica y filosófica cuyo propósito principal es exponer las dificultades y problemas con el intuito de favorecer y ampliar la discusión. Conceptos generales más corrientes, son presentados en medio de ideas epistemológicas subyacentes a las repercusiones del trabajo en grupo y transcendentes a la conciencia, para más allá de la filosofía del sujeto. La autora defiende su opinión y postura frente al tema con ejemplos de su práctica académica y experiencias en la Escuela de Enfermería Anna Nery/UFRJ.

Comunicación interdisciplinaria; Relaciones interprofesionales; Conocimiento; Enfermería


This study is about interdisciplinarity as a phenomenon and as an emerging subject in Science, which has been divided into many knowledge and professional formation specialties or disciplines, mainly in the health and nursing areas. The approach is of a critical and philosophical nature and the main intention is to point out difficulties and problems with the aim of encouraging and further advancing the discussion. General, more current concepts are presented along with epistemological ideas subjacent to the repercussions of teamwork and transcendent to the conscience beyond the subject's philosophy. The author defends her opinion and posture towards the theme using examples from her academic practice and experience at the Federal University of Rio de Janeiro's Anna Nery School of Nursing.

Interdisciplinary communication; Interprofessional relations; Knowledge; Nursing


ESTUDO TEÓRICO

Acerca da interdisciplinaridade: aspectos epistemológicos e implicações para a enfermagem* * Extraído do texto elaborado para Conferência no Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Enfermagem da Escola de Enfermagem da USP, 2006 (07/04/2006).

About interdisciplinarity: epistemiological aspects and implications for nursing

La interdisciplinariedad: aspectos epistemológicos e implicaciones para la enfermería

Vilma de Carvalho

Professora Doutora Livre-Docente. Professora Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora Titular de Enfermagem em Saúde Pública, Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Pesquisadora do CNPq. vilma@eean.ufrj.br

Correspondência Correspondência: Vilma de Carvalho Rua Barão de Acaraí, 38 - Ap. 601 CEP 22250-110 - Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

Trata-se da interdisciplinaridade como fenômeno e assunto emergente da ciência (re)partida em várias especialidades ou disciplinas do saber/conhecimento e da formação profissional, principalmente na área da saúde e da enfermagem. A abordagem é de natureza crítica e filosófica e o propósito principal visa a expor dificuldades e problemas com intuito de favorecer e ampliar a discussão. Conceitos gerais, mais correntes, são apresentados de permeio com idéias epistemológicas subjacentes às repercussões do trabalho em grupo e transcendentes à consciência para além da filosofia do sujeito. A autora advoga sua opinião e postura em face do tema com exemplos de sua prática acadêmica e experiências da Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ.

Descritores: Comunicação interdisciplinar. Relações interprofissionais. Conhecimento. Enfermagem.

ABSTRACT

This study is about interdisciplinarity as a phenomenon and as an emerging subject in Science, which has been divided into many knowledge and professional formation specialties or disciplines, mainly in the health and nursing areas. The approach is of a critical and philosophical nature and the main intention is to point out difficulties and problems with the aim of encouraging and further advancing the discussion. General, more current concepts are presented along with epistemological ideas subjacent to the repercussions of teamwork and transcendent to the conscience beyond the subject's philosophy. The author defends her opinion and posture towards the theme using examples from her academic practice and experience at the Federal University of Rio de Janeiro's Anna Nery School of Nursing.

Key words: Interdisciplinary communication. Interprofessional relations. Knowledge. Nursing.

RESUMEN

Se trata de la interdisciplinariedad como fenómeno y asunto que emerge de la ciencia (re)partida en varias especialidades o disciplinas del saber/conocimiento y de la formación profesional, principalmente en el área de la salud y de la enfermería. El abordaje es de naturaleza crítica y filosófica cuyo propósito principal es exponer las dificultades y problemas con el intuito de favorecer y ampliar la discusión. Conceptos generales más corrientes, son presentados en medio de ideas epistemológicas subyacentes a las repercusiones del trabajo en grupo y transcendentes a la conciencia, para más allá de la filosofía del sujeto. La autora defiende su opinión y postura frente al tema con ejemplos de su práctica académica y experiencias en la Escuela de Enfermería Anna Nery/UFRJ.

Descriptores: Comunicación interdisciplinaria. Relaciones interprofesionales. Conocimiento. Enfermería.

UMA COLOCAÇÃO INTRODUTÓRIA

A emergência dos experts na crise de nosso tempo

Todos sabem que vivemos um tempo de incertezas em um planeta tumultuado por crises. A representação corrente condiz com as agendas das nações, das organizações internacionais, de tão apertadas quase sem espaço para discutir as questões mundiais nas circunstâncias que dizem respeito a todos os homens, associados a uma história comum. Em toda parte, as pessoas são bombardeadas com informações da ciência e novos resultados da tecnologia. As notícias ligam as pessoas aos protestos de resistência popular, às reivindicações de movimentos contra o terrorismo ou apelos de proteção aos direitos de uns ou de todos. E tudo culmina refletindo as imagens velozes de transformações políticas e sociais cuja tônica maior gira em torno da escala das variações econômicas nas bolsas de valores das grandes capitais.

Os governantes tornam-se viajantes febris, buscando horizontes utópicos do mundo globalizado, porém desarticulado, onde os experts - especialistas em ciência, tecnologia, economia, política social - colocam seu saber para os outros que não sabem. As assembléias mundiais acontecem em várias partes da terra, às vezes no mesmo país, e aí mesmo o expert assume a tarefa de extrair a ordem internacional das crises que não cessam de pô-la em perigo e, por vezes, consegue seu intento(1). Existem comitês de experts para assessorar os governantes ou líderes nessas conferências e, com maior ou menor êxito, ajudam a resolver problemas e acordos com novas regras de mercado para equilibrar as pendências políticas ou econômicas, entre os países. Mas apesar dos especialistas,

os verdadeiros problemas de nosso tempo permanecem em um oceano de não saber e de incompetência. E permanecem as incertezas em torno da paz e da guerra, da desigualdade de desenvolvimento econômico, técnico e cultural, entre as nações do mundo, e outras tantas questões colocadas como a exclusão social, a fome e o (des)respeito às liberdades(1).

Não se pode dizer, das últimas décadas do século XX aos nossos dias, que os líderes mundiais são indiferentes aos problemas que afligem as pessoas em toda parte. Os chefes das nações empreendem esforços para ajuizar as questões mundiais em torno do interesse geral, ou da maioria, e de sorte a equilibrar a conjuntura internacional.

[...] Assembléias mundiais foram criadas para fazer reinar a paz no respeito ao direito (ONU), ... para promover a educação e a cultura (UNESCO), ... para velar pela boa repartição dos recursos alimentícios (FAO), ... para controlar as condições impostas aos trabalhadores (OIT)(1).

E assim surgiu espaço para a contribuição disciplinar em questões complexas exigindo opiniões de diferentes experts. Mas, embora cresça o número desses especialistas de aconselhamento e assessoria aos governos e líderes mundiais, a cada dia, a humanidade sofre rupturas políticas e turbulências crescentes. As crises se refletem na vida individual e coletiva, nas políticas de trabalho, na educação em geral, e nos processos da formação profissional em todas as áreas. Desde 1960, o mundo é impulsionado, avassalado, por revoluções científicas/tecnológicas e pela emergência de uma multidão de especialistas que dominam a política e a prática profissional em qualquer área de saber.

[...] A medicina contemporânea tornou-se, por excelência, o reduto privilegiado dos especialistas, cuja competência se exerce sobre um território cada vez mais reduzido. O homem doente é cortado em pedaços; um clínico se encarrega de seu coração, outro de seus pulmões, outro de seus órgãos sexuais, etc. Cada um aplica sua terapêutica própria, sem pensar nas possíveis repercussões sobre os órgãos vizinhos, nem nas reações do moral sobre o físico(1).

Os críticos falam do risco de contradições da consciência, com tantas especialidades, podendo levar a uma patologia contemporânea do saber que, na ordem do pensamento, traduz a deficiência ontológica, - deficiência do real objetivado (em filosofia interessa ao estudo do ser enquanto ser). Uma deficiência do conhecer substantivo das coisas e seus significados, proporcional à precariedade do fundo de saber do sujeito comprometido em manejar procedimentos explicativos quanto aos cânones metodológicos nas ciências. Ou seja, sem o expert detalhando conceitos do campo de seu saber (que só ele compreende), não se propicia a clareza de muitos. Precisamos esperar, sobretudo, que o expert queira ser não apenas um especializado em seu setor de específico saber, mas também o sábio da totalidade da área que abrange sua competência.

Anteriormente, os sábios eram bem poucos. Agora, quanto mais especialidades, multiplicam-se os experts, e diversificando-se as disciplinas do conhecimento, mais elas perdem conexão com o real da totalidade humana. Corremos o risco de uma inércia intelectual (um obstáculo epistemológico no âmago do ato de conhecer)(2) e o perigo de submissão a teorias abstratas, por vezes desligadas de significados da vida humana e de seu valor, conduzindo o pensar face à totalidade do real ao reflexo de uma consciência esfacelada, quase impotente para uma idéia geral bem colocada, ou para formar a imagem mais aproximada do mundo atual.

Abordagem ao tema e propósito principal

Uma descrição do mundo, e percebe-se o maior desafio nos ramos da atividade acadêmica - a necessidade de conversão da atenção intelectual e científica. Precisamos de coerência entre o sujeito da nova consciência disciplinar e a realidade atual em que opera. E precisamos de uma nova pedagogia onde possa, também, tomar lugar a disciplina da não-especialidade ou da polivalência, pois já existem peritos polivalentes em várias disciplinas. Com mais freqüência, existem equipes multidisciplinares ou pluridisciplinares, nas quais

os especialistas, de formação diversificada, permanecem estranhos uns aos outros; falam linguagens diferentes que, longe de se comporem, de se harmonizarem entre si, se excluem, se negam reciprocamente(1).

Não surpreende, pois, o insucesso das reuniões internacionais, nas assembléias regionais ou locais, e o fracasso de metas unificadoras para o equilíbrio do desenvolvimento político-social e cultural das nações. Em escala menor é o que acontece nas equipes de caráter científico, formalizadas nas instituições universitárias, para reunir especialistas de várias áreas em torno de uma meta comum. Há discussões e muita polêmica, mas a maioria dos planos extrapolam os propósitos e prazos.

Neste texto, todavia, não se fala de evidências nem de proposta de soluções. No meu caso, vale a visão crítica e a postura filosófica um tanto eclética. Em relação ao tema Acerca da Interdisciplinaridade: aspectos epistemológicos e implicações para a enfermagem, a crítica é sobretudo um instrumento valioso de apreciar e nomear as coisas que nos dizem respeito e serve para revelar a abordagem metodológica pautada em filosofia de reflexão e tangenciamento de idéias sobre situações da prática acadêmica e experiências de relações interpessoais próprias da vida profissional.

Mas, o propósito principal, aqui, não é o de resolver problemas, mas o de colocá-los, para ampliar a discussão sobre o assunto, contribuindo à clarificação de alguns conceitos e aspectos da prática a que estamos afeitos. Pela diversificação das disciplinas e multiplicação das especialidades, na área da enfermagem, não se pode mais escapar do trabalho em grupo e da urgência de compartilhar as atividades pedagógicas, assistenciais e de pesquisa. Uma boa saída pode ser encontrada na interdisciplinaridade(3) , ou como esta possa ser apresentada/justificada para além da filosofia do sujeito(4).

E no que importa ao envolvimento/compromisso com a enfermagem (ensino, pesquisa e extensão), depois de trocar idéias com alunos e colegas especialistas, desejosos de saber mais sobre este assunto, percebo que é chegada a hora de colocar o ponto de vista em pauta para ampliar a discussão e aprender, também, um pouco mais.

INTERDISCIPLINARIDADE DA NECESSIDADE DE UMA COMPREENSÃO

Conceitos gerais e aspectos epistemológicos

Para salvaguardar o sentido de verdade, a certeza que me prende ao trabalho científico (se é que tenho alguma) tem a ver com o sentido de uma verdade aproximada(2) - obtida não por juízos normativos ou designações de autoridade, mas por perguntas, questionamentos, e o esforço da razão construtiva de um objeto. No plano epistemológico, a verdade (aproximada) pode resultar do consenso, do acordo entre parceiros ou indivíduos numa comunidade face ao que consideram ponderável/justificável como real. Para uma compreensão da interdisciplinaridade, entenda-se que o intuito, aqui, não é o de abarcar todos os significados de verdade do assunto. O que sei não é muito, mas, no interesse da enfermagem, penso que precisamos dominar a justa compreensão e assumir os conceitos mais correntes do assunto.

Entendo que a interdisciplinaridade é uma atitude diferenciada de olhar as coisas e os modos de agir dos indivíduos/profissionais que se encontram em atividades conjuntas no mundo do trabalho acadêmico. Para alguns, a interdisciplinaridade é indispensável nos processos de construção tecnológica e produção científica. Na educação superior, quase nada se consegue sem a participação de vários indivíduos, em especial para formar pesquisadores, mestres, doutores. E é indispensável

uma atitude de profunda imersão no trabalho cotidiano, - em equipes de ensino, pesquisa e extensão -, onde a prática interdisciplinar alimenta-se de princípios como: humildade, coerência, coragem, espera, respeito e desapego(5).

Quanto ao valor do conhecimento, nas práticas acadêmicas, entendo que a interdisciplinaridade é parte indispensável ao fundo de saber dos sujeitos envolvidos nas atividades do trabalho e do pensar acadêmicos. Queira-se ou não, a interdisciplinaridade já se tornou indispensável por si mesma. Nas ciências da saúde, a complexidade das questões suscita a contribuição de muitos. Seja para resolver problemas comuns - o controle das infecções hospitalares, os protocolos de atendimentos comuns ou especiais, os parâmetros dos projetos educacionais, os requisitos da pesquisa científica. Ou seja para firmar acordos interinstitucionais com interesses diversos ou múltiplos objetivos - uma nova organização administrativa, a reestruturação de um setor abrangendo vários servios, um plano curricular unificado para atender a várias unidades.

Além de atitude e condutas pautadas em conceitos transcendentes ao intercâmbio de vários saberes, a exigência interdisciplinar impõe a cada especialista que transcenda sua própria especialidade e tome consciência de seus próprios limites para acolher a contribuição das outras disciplinas(1). A interdisciplinaridade conforma o espírito norteador de uma nova sistemática para ampliar a visão de conjunto, a convergência de idéias, e capaz de substituir a da dissociação tão presente nas ciências.

Em âmbito pragmático, [...]

a fórmula simples do somatório de individualidades, ou sujeitos pensantes (indivíduos), que não apreende a complexidade do problema/objeto em causa, não produz o milagre da unidade de trabalho e do pensamento de parceiros(4).

A necessidade imperiosa é a de que cada especialista deve integrar a interdisciplinaridade na própria participação interdisciplinar nos seus modos de agir e no estilo de trabalhar com os outros - quer sejam especialistas da mesma área ou de outras profissões. O trabalho multidisciplinar por si só não abarca, ordena e totaliza a realidade do mundo acadêmico nas instituições universitárias. A polêmica e o debate são necessários, porém não se deve esquecer os interesses de todos e os propósitos comuns.

Quanto aos modos de agir e estilo de trabalhar possíveis a vários profissionais, reunidos em torno de uma meta ou propósito comum, há um requisito/conceito imperioso, qual seja todos os especialistas devem assumir a interdisciplinaridade como uma estratégia de conjunto contra o esfacelamento da consciência do sujeito ou como uma forma de recusa à dissociação. O que mais interessa é a busca do consenso de idéias (ou quem sabe?), a busca da palavra unidade, que sirva à reconciliação de cada sujeito consigo mesmo e com o mundo (o dos outros).

Seja assim ou não, precisa-se de atenção aos modos do agir e ao estilo de trabalhar dos profissionais, às vezes, não consistentes com métodos ajustados à transcendência das especialidades de uma área comum ou de interesses afins, e quando se manifestam incapazes de ver as possibilidades e os limites epistêmicos das disciplinas envolvidas. É difícil tratar de certas distinções, mas a interdisciplinaridade é uma nova feição do trabalho profissional/acadêmico no desenvolvimento das ciências e no avanço da construção do conhecimento. Precisa-se do apoio de uma nova conduta (a da interdisciplinaridade?) capaz de levar o processo educativo à unidade, e não de dominar territórios separados por disciplinas isoladas e sobretudo separadas por ideologias dividindo a formação profissional sem critérios unificadores e em detrimento do espírito interdisciplinar.

Há que se compreender, com urgência, que a interdisciplinaridade é uma nova estratégia no trabalho de classificação epistemológica em que se admite o esforço conjugado de várias disciplinas para alcançar os significados de um objeto de estudo. Como estratégia de equipe de trabalho favorece à articulação de parceiros ou associados e facilita o alcance de propósitos ou objetivos comuns.

Esses conceitos não esgotam tonalidades substantivas nem limites epistemológicos da interdisciplinaridade - ela pode nortear os ajustes formais na investigação em geral e em estratégias pedagógicas nas aproximações entre duas ou mais disciplinas. Ou pode ser utilizada como expediente emergencial na insuficiência de esforços acadêmicos entre parceiros assumidos em equipes de trabalho pedagógico/disciplinar, em grupos de interesse profissional/assistencial e em parcerias nos núcleos de pesquisa.

Alguns aspectos para reflexão crítica

A interdisciplinaridade surgiu como fenômeno na crise político-econômica das nações. Um fenômeno emergente da alma (do espírito?) da consciência no plano do saber que se desenvolveu e representa, atualmente, as formas do conhecer e da presença do homem nas ciências e no mundo. Na atuação em parceria, ou em grupo, veio para ajudar nos avanços da ciência. No conjunto de sujeitos, antes individualizados nas atividades acadêmicas, demonstrou-se pronta ao impulso de nova epistemologia, mediante visão abrangente - da complementaridade e da convergência. A ciência multiplicada, esfacelada em si mesma, pelas especializações das tecnologias e das profissões, ganhou outra feição com um novo modo de encarar o real, um novo estilo de fazer as coisas. E, assim, consegue-se agora propiciar à consciência uma nova competência mais de acordo com a imagem e a totalidade do real, abrangente não só da ciência em si, mas também do homem - às vezes sujeito e, ao mesmo tempo, objeto do saber/conhecimento.

Uma simples leitura nos conceitos gerais e aspectos epistemológicos e pode-se apreender as competências interdisciplinares consistentes com as atividades de ensinar, pesquisar e produzir conhecimento. As proposições, a seguir(1,3), servem de referência para balizar melhor uma reflexão crítica.

  • Ciência sem consciência não passa de ruína da alma. (Montaigne)

  • Ciência em migalhas é reflexo de uma consciência esmigalhada, incapaz de formar uma imagem de conjunto do mundo atual. (Gusdorf)

  • O número de especializações exageradas e a rapidez do desenvolvimento de cada uma culminam numa fragmentação crescente do horizonte epistemológico. (Japiassu)

Pode-se compreender os epistemólogos, quando advogam: a ciência é a consciência do mundo. A doença do mundo moderno corresponde a um fracasso, a uma demissão do saber(1). Histórica e cientificamente, no evolver do pensamento, o saber e a construção científica manifestam formas especiais da presença do homem no mundo. As verdades do saber e do conhecimento, divorciadas de toda referência à unidade humana, conduzem à alienação - são de perturbar a consciência de qualquer um que se preocupe com uma formação profissional humanística e a dignidade do homem(6).

A saída à desintegração do saber pode ser a interdisciplinaridade como recurso de nova forma de agir sobre o cientista ou especialista que só vê sua área de saber. Urge que ele torne-se consciente de sua humanidade - o sábio da especialização precisa ser, ao mesmo tempo, sujeito da totalidade ou conjunto do real do qual ele é parte. A relação interdisciplinar torna-se, então, uma exigência interna da ciência.

Mas, com os desafios que implica a interdisciplinaridade já se tornou, por si, um problema epistemológico de alta relevância. Não se trata de simples especulação. As especialidades multiplicadas no intuito de dominar a positividade perdem contato com a realidade humana, razão para atentar para o que diz o pensamento epistemológico.

Algumas disciplinas como a estatística e a demografia, a psicologia experimental, a economia matemática, a cibernética e outras características da mais recente modernidade, invertendo a marcha do pensamento objetivo, conjugam seus esforços tendo em vista a redução da existência humana a um estatuto de perfeita objetividade(1).

[Mas], para além da fragmentação em que se constituíram as diferentes especialidades, e através das aproximações necessárias, não devemos renunciar ao esforço de reencontrar a unidade do domínio humano. Se o estabelecimento de fronteiras ou de cortes entre as disciplinas parece indispensável às exigências da positividade, nem por isso temos o direito de negar a importância da criação de uma epistemologia da convergência nem que seja para evidenciar a mutualidade das significações entre os diversos departamentos em que se encontram isoladas as disciplinas científicas(3).

Ademais, é preciso entender que a interdisciplinaridade condiz, antes de tudo, com a formação da consciência crítica e da atitude de uma vontade política capaz de resolver o problema do diálogo entre várias disciplinas, no interesse da educação ou da construção científica. Nos termos de um expediente mediador, a interdisciplinaridade serve à trama das relações nas diferentes áreas profissionais, ou como estratégia para equilibrar o esforço da consciência de grupo na totalização de uma experiência em causa.

Principalmente, por isso,

uma nova epistemologia impõe-se pela própria necessidade dos cientistas de nossa época, que devem renunciar a se confinarem em suas especialidades, para procurarem, em comum, a restauração das significações humanas do conhecimento(1).

Trata-se de uma conversão, ao mesmo tempo, metodológica e epistemológica, da integração e da convergência dos enfoques de várias disciplinas sobre a mesma realidade.

IMPLICAÇÕES PARA A ENFERMAGEM - CIÊNCIA E ARTE

Ponto de partida

No Brasil, a Enfermagem - ciência e arte, além da falta de um estatuto epistemológico, ainda sofre dos efeitos de permanente crise de identidade. Isto, em que pese a suposta dependência teórica no campo das práticas científicas da área da saúde. Em particular, âmbito do plano pedagógico e assistencial, um aspecto condicional melhor entendido em relação a teorias e práticas que, após importadas, se tornaram majoritárias, ou hegemônicas, porque assumidas como medidas salvadoras de dificuldades profissionais acumuladas das experiências históricas do pensar e da ação. No plano da construção científica, observa-se a enfermagem com prejuízos indesejáveis pela falta de poder como área de conhecimento face às pressões das políticas de saúde ou pelas instâncias reguladoras dos órgãos de fomento e amparo à pesquisa.

A interdisciplinaridade já conta umas três décadas, na enfermagem. A valer a experiência pessoal, nos anos 70 até final de 1980, participamos de discussões - nacionais e internacionais - sobre os desafios da profissão no mundo e necessidade de centralizar esforços associativos e educacionais a partir de uma tríade conceitual sugestiva de favorecer o ensino, a pesquisa e a prática assistencial:

• Assistência Primária de Saúde - APS (Cuidados Básicos em Saúde).

• Melhores condições de trabalho e retribuição salarial.

• Interdisciplinaridade.

O assunto foi debatido em comitês especiais com relatórios específicos para apoiar as discussões em congressos internacionais e encontros regionais (CIE/ICN). A tríade foi entendida como diretrizes ou parâmetros para ajustes no perfil e competências profissionais, para conduzir programas curriculares e planos assistenciais, e até para resolver problemas face aos desafios da enfermagem rumo ao século XXI. Tenha-se em vista, também, as pressões sociais em torno das questões mundiais:

• Saúde para todos / Ano 2000.

• A luta contra a SIDA / AIDS.

• Os esforços na assistência à saúde da mulher e da criança.

• A necessidade de ampliar a extensão da cobertura de saúde em todas as nações.

• A imperiosa reivindicação para se dispor de quantitativos e qualitativos de pessoal de saúde.

A partir de muitas discussões, foram debatidas outras questões como: - dilemas e considerações éticas do exercício da enfermagem(7); condições de trabalho e proteção dos interesses do pessoal de enfermagem(8); conflitos e estratégias de cooperação profissional(9); ações coletivas e papel das enfermeiras frente à planificação da saúde e aos avanços do ensino, da legislação profissional, da pesquisa na enfermagem, e reivindicações políticas e sociais(10). Os aspectos significativos da situação àquela época, abrangiam:

• Prática assistencial avassalada pela expropriação da saúde.

• Papel profissional ainda sem autonomia e submetido à visão paramédica.

• Trabalho de enfermagem sob regras hegemônicas e princípios da economia de lucratividade e rentabilidade nos sistemas de saúde.

• Problemas com o pessoal da equipe de enfermagem sem reconhecimento de trabalho, estabilidade ou vínculo empregatício.

Muita coisa aconteceu, e todos sabemos das lutas da enfermagem para superar os desafios na área da saúde e na sociedade mesma, mormente quanto à APS e às questões do trabalho na enfermagem. Esperava-se como que um milagre da tríade conceitual e das recomendações resultantes. Desejava-se de fato um novo profissional para empreender a busca da unidade no pensar e no agir em prol de um êxito compatível com os princípios da realidade social.

Mas quanto à interdisciplinaridade, muitas dificuldades persistem. Pode-se perceber que a pseudo divisão da enfermagem em várias especialidades profissionais (pseudo porque na ação setorizada) tem suscitado, de um lado, problemas na interioridade da área que não resiste à idéia do saber unificado de uma profissão que congrega profissionais generalistas e outros especializados. E do lado de sua exterioridade, a enfermagem ainda não conseguiu um termo de equilíbrio em suas relações com as demais ciências da saúde (em especial com a medicina - a exemplo da recente questão suscitada em torno do ato médico)(11).

E daí as sérias implicações ressaltam-se na questão da autonomia que, ao invés de entendida como liberdade de pensar e ser, reflete-se nos modos de fazer escolhas e de agir frente ao que é específico ou particular, em área de conhecimento e de atuação profissional. Nas mais das vezes, atos e operações de enfermagem são entendidos como interferências em outras áreas. No âmbito do ensino superior, as disputas por fronteiras técnicas, pedagógicas e epistêmicas anulam, quase por completo, o esforço interdisciplinar. Parecem fruto de imagens abstratas os protestos contra a hierarquia de poder, com reflexos para a partilha do saber em uma área comum, mais ampla, com impacto nos procedimentos pedagógicos fragmentários, e nas reivindicações contra a Universidade compartimentada e dividida contra si mesma.

Entendo que os profissionais de enfermagem encontram-se com dificuldades de integração ou de interação nas esferas do trabalho acadêmico sobretudo nas instituições universitárias - comissões de ensino, comitês de ética, grupos de pesquisa e equipes assistenciais da área da saúde; existem outras semelhantes ou assemelhadas nas instituições de saúde da realidade extra-muros em que operam. Razão para se repensar a questão da autonomia face à urgência da interdisciplinaridade. Entretanto, precisa-se de atenção quanto a um certo conformismo diante de tudo que é endereçado de cima para baixo, sem atender às fortes repercussões na pesquisa e na produção científica, o que não se desculpa, desde que considerados os requisitos de qualidade acadêmica.

Em conversas com colegas e alunos, sempre me encontro com questionamentos resumidos em duas perguntas:

Qual é a estratégia utilizada para se alcançar resultados no esforço interdisciplinar?

Que metodologia é adequada à interdisciplinaridade e ao esforço conjunto de um grupo de especialistas ou pesquisadores ?

Em realidade, não se conta com receita milagrosa, porém a condição básica condiz com uma regra bem elementar - aprender na experiência. Os associados a um projeto interdisciplinar precisam ter consciência, primeiramente, do significado da ciência e da interdisciplinaridade, e talvez possam compreender, então, o sentido de sua contribuição e de sua competência. Em âmbito interdisciplinar, espera-se a contribuição de cada sujeito no modo peculiar de seu saber e competência em relação aos objetivos comuns do projeto visado. Ou seja, todos os sujeitos, conjuntamente, precisam buscar os resultados comuns no interesse da questão maior em causa.

Ponto de chegada

Não basta implantar um novo projeto de pesquisa, uma nova prática pedagógica mediante a interdisciplinaridade. Não se pode minimizar os resultados de qualquer programa relevante para o ensino, a pesquisa e a extensão. E, no caso da enfermagem, nem pensar em desfavorecer o significado ético relativo à unidade humana, posto que em todos os ramos tudo gira em torno de princípios fundamentais à realidade do homem.

Convém ter consciência de que qualquer método de trabalho pedagógico ou científico admite um corte (ou divisão) no conteúdo específico ou no objeto de estudo - objeto material em causa - o que acarreta uma redução da realidade mesma, fato que determina para todos os sujeitos o comprometimento:

• Nos requisitos científicos e éticos adaptados a uma realidade reduzida, mesmo quando com apoio de um esquema ideal proposto.

• Nos esquemas de representação para expressar o sentido da ação (processos de ensinar e aprender), o significado das operações de investigar capaz de traduzir os objetivos da pesquisa e os resultados pretendidos.

• Nos procedimentos explicativos de intenção subjetiva (linguagem teórica ou análise classificatória) capaz de (re)encontrar os dados empíricos e assim, explicá-los.

Outras implicações são flagrantes nos planos pedagógicos e políticos da área acadêmica, em vários cenários universitários, onde a interdisciplinaridade está em voga e é advogada/justificada como recurso mobilizador das relações entre pares engajados em programas de ensino, projetos de pesquisa, acordos de extensão. Fortes conseqüências são observadas nas pesquisas e na produção científica, porque requisitos de qualidade acadêmica. Os encontros entre parceiros em plano de interdisciplinaridade são vitais, às vezes cruciais, servem para dar impulso às linhas de pesquisa em andamento, aos programas interdepartamentais de aplicação curricular em nível de graduação, aos projetos abran-gentes dos acordos interinstitucionais ou internacionais.

Na experiência da EEAN/UFRJ, temos exemplos para ilustrar a questão da interdisciplinaridade que, embora mais utilizada conceitualmente, ainda subsiste mesmo se precarizada, em plano de trabalho acadêmico. Entenda-se, assim, porque não há, a rigor ou de fato, uma forma de interdisciplinaridade sob controle.

O primeiro exemplo é do Currículo de Novas Metodologias, uma proposta de inovações pedagógicas e metodológicas em nível de graduação implantada em agosto de 1978(12). Naqueles anos da experiência inovadora, deu resultado o compartilhamento de conceitos aderentes à interdisciplinaridade calcada na idéia de integração - da teoria à prática, do estudo ao trabalho e entre os conteúdos das disciplinas. Ela de fato serviu para modelar as novas relações entre os docentes dos vários Departamentos para compor as novas equipes para a pedagogia do ensino integrado, e tivemos ocasião ímpar de vivenciar extremos desafios e muitas satisfações. Todos cresceram com a nova experiência curricular de formar profissionais diferenciados e, concretamente, para introduzir a pesquisa e a construção científica na graduação. Creio que é do conhecimento público outros resultados quanto ao novo perfil dos egressos - com espírito empreendedor de mudanças, postura política de mais autonomia, capacidade investigativa e consciência crítica.

As lutas pelo Hospital Escola São Francisco de Assis (HESFA), desativado pela UFRJ desde 1976, e recrudescidas em 1988, momento da (re) tomada histórica pelas Enfermeiras Anna Nery(13), servem para o segundo exemplo. A implantação de um modelo inovador de coordenação hospitalar gerencial/assistencial, pensado criativamente pelas docentes e calcado em visão de abrangência da realidade social como um todo, serviu na medida de novo espaço político para a EEAN. Sem dúvida, o novo modelo administrativo teve a tonalidade maior balizada nos esforços interdisciplinares e competências de várias profissões da saúde, na atenção centrada na unidade do homem total traduzido e representado em situações de clientes com demandas de cuidados básicos de saúde e, especialmente, de atenção de enfermagem. As lutas sucederam e continuam a par da interdisciplinaridade com valor maior e, sobretudo, pelo fato do hospital continuar sob direção de uma enfermeira docente da EEAN, o que ainda causa muito questionamento, dentro e fora da UFRJ.

O terceiro exemplo tem forte elo com os núcleos de pesquisa implantados nos Departamentos de Ensino, a partir de 1993. A pesquisa e a produção científica avançaram e alargaram a visão de ciência e de realidade, totalizando objetivos comuns de ensinar e aprender novas metodologias de investigação científica nos vários setores das disciplinas da formação profissional. Todas as repercussões falam em favor de avanços da área de conhecimento na enfermagem e em que pese o domínio da pesquisa, da produção científica e da construção do conhecimento no campo epistêmico em proveito da posição e da qualidade acadêmica - corpo docente e corpo discente. Não é possível, aqui, apresentar todos os ganhos individuais ou coletivos advindos com o desenvolvimento dos núcleos de pesquisa da EEAN. Foi imperiosa a pedagogia de aprender-a-aprender em âmbito de uma prática da pesquisa-pela-pesquisa. Hoje sabemos que, quando fragmenta-se (em demasia?) o trabalho pedagógico ou a atividade investigativa e, também, o objetivo norteador de um projeto acadêmico, a saída tem que se haver com a escolha entre duas direções contrárias - ou se adentra pelo caos da alienação em uma área específica do saber ou se atende à interdisciplinaridade como estratégia da partilha no domínio do saber, no conhecimento das disciplinas e nas relações entre as mesmas.

Não disponho de dados de evidência para explicitar essa experiência. Certamente existe alguma precariedade. Em realidade, participei da criação dos oito núcleos de pesquisa da EEAN, sou otimista, e sempre apostei nos avanços da Enfermagem - ciência e arte. Não fiz uma investigação de fato, porém à conta da ótica pessoal, (parece-me), as disciplinas de enfermagem ainda pesam muito como especialidades e menos como partes constituintes de um saber/conhecimento, como entendido em sua unidade singular. Alguns experts que lideram um setor disciplinar do ensino ou da pesquisa de enfermagem, ou o conhecimento da área específica, às vezes extrapolam o sentido primordial de área de conhecimento e, assim, o significado específico da profissão mesma. E, então, a enfermagem pode resultar esfacelada, em sua unicidade (caráter do que é único)(14), resultando através de divisões fragmentárias de um enorme canteiro de obras.

Em primeira e última instância, o pensamento epistemológico condiz com a melhor disposição para assumir a interdisciplinaridade em todas as lutas e esforços conjuntos para impulsionar a enfermagem rumo ao futuro.

Independentemente das motivações daqueles que defendem a interdisciplinaridade, o fato é que esta se apresenta, hoje, como uma oposição sistemática a um tipo tradicional de organização do saber o que constitui um convite a lutar contra a multiplicação desordenada das especialidades e das linguagens particulares nas ciências(3).

Mas, afinal, o grande desafio é da enfermagem brasileira. Dentre as dificuldades a serem superadas há, ainda, as questões de dois nós epistemológicos - um na internalidade da enfermagem em si e que pelas especializações resulta na fragmentação do saber substantivado em uma arte centrada na unidade dos cuidados de enfermagem prestados aos clientes; e o outro na externalidade da prática de cuidar, mais ressaltado nas relações críticas entre pares ou parceiros de um mesmo campo pragmático-assistencial na área da saúde. Os dois nós oferecem espaço aberto para questões, de fato, nas fronteiras do campo epistêmico de permeio com as relações interdisciplinares. No primeiro caso, as dificuldades são graves a vista do que se possa entender nos modos e estilo de investigar em área de conhecimento. No segundo caso, - externalidade da prática de cuidar -, pelas conseqüências sobre a produção científica e o sentido das linhas de pesquisa e prioridades de enfermagem. Nos dois casos, relevam-se as polêmicas em torno da autonomia da enfermeira para realizar pesquisas, o diagnóstico de situações de clientes necessitando de cuidados específicos, a prescrição de medidas de coordenação e controle da ação profissional.

Mas o que se pleiteia não é a posição radicalmente libertária de saber e fazer, ou como acontece no plano da política econômica em que os especialistas, com índices acurados, ora falam que subdesenvolvidos precisam aprender tecnologias simplificadas (ou apropriadas) às suas necessidades, ora dizem que precisam conhecer tecnologias avançadas se é que desejam eliminar de uma vez a pobreza e a miséria - como se tudo pudesse suceder em passo de milagre e todos se tornassem iguais, ricos e poderosos. Só que a verdade apenas mediante

a análise científica destrói a unidade considerada [no plano das ciências] como ilusória da vida pessoal; [...] bem longe de ser o sinal de um progresso do conhecimento, pode ser o sinal de um fracasso [na totalidade de uma área do saber]; [...] devemos considerar como alienada e alienante toda ciência que se contenta em dissociar e desintegrar seu objeto [em partes cada vez menores], [...] sem atentar que tal ciência não encontra na existência humana em sua plenitude concreta, seu ponto de partida e seu ponto de chegada(1).

O alcance da interdisciplinaridade, na prática acadêmica, pautado nas repercussões do trabalho em grupo, em objetivos pedagógicos unificadores ou linhas de pesquisa, precisa incorporar as contribuições ou elementos integradores de várias disciplinas da área de conhecimento comum. Além de possibilitar a troca de informações e de críticas entre os parceiros, amplia a formação geral para aprender-a-aprender no interesse de todos. Em plano assistencial, favorece o engajamento dos pares ou parceiros, nas equipes de trabalho, nos grupos de pesquisa, assegurando a racionalidade da ação totalizada em serviços prestados à sociedade. E vale muito como requisito de atualização contínua ou educação permanente.

À conta do exposto, por fim, mas não por último, vale reiterar que o mais importante é saber que não basta a idéia de implantar um novo programa acadêmico, ou uma nova prática de ensinar e aprender mediante a interdisciplinaridade. Que não se pode minimizar os resultados esperados de um projeto qualquer que seja relevante para o ensino, a pesquisa e a extensão, mormente porque dizem respeito aos interesses de muitos. No caso da enfermagem, não se pode nem pensar em desfavorecer os significados éticos relativos à prática profissional e à unidade humana, posto que tudo gira em torno de princípios fundamentais que têm a ver com a realidade do homem, do mundo e de uma arte insigne - ela diz respeito ao pensar e ao fazer da responsabilidade social de enfermeiras(os) no Brasil e no mundo. Não obstante isso, cabe convir - sublinhando o pensamento epistemológico,

essa unidade não é atualmente dada; não existe ainda senão na esperança, na perspectiva de um olhar escatológico, fixo dobre esse ponto do horizonte em que as paralelas se encontram(1).

No mais, nossa opinião aqui exarada acerca da interdisciplinaridade, não precisa ser entendida como baseada em imperativos categóricos e nem em cânones da ciência. Nossa palavra é colocada como apreciação de natureza crítica e filosófica. Mas que fique assentada, registrada, como uma contribuição a um plano de discussão para uma questão em aberto e não como um ponto de vista colocado sobre princípios do dever ser.

Recebido: 10/04/2006

Aprovado: 17/05/2006

  • 1. Gusdorf G. Prefácio. In: Japiassu H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago; 1976. p. 8-26.
  • 2. Bachelard G. A formação do espírito científico. Trad. de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto; 1996.
  • 3. Japiassu H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago; 1976.
  • 4. Jantsch AP, Bianchetti L, organizadores. Interdisciplinaridade para além da filosofia do sujeito. Petrópolis: Vozes; 1995.
  • 5. Fazenda I, organizador. Dicionário em construção: interdisciplinaridade. São Paulo: Cortez; 2002.
  • 6. Pico Della Mirandola G. A dignidade do homem. Tradução e estudo introdutório de Luiz Feracine. São Paulo: GRD; 1988.
  • 7
    Consejo International de Enfermeras. Dilema de las enfermeras: consideraciones éticas del ejercicio de la enfermería. Ginebra: CIE; 1977. [Proyecto del Comitê-Presidenta Barbara L. Tate].
  • 8
    Consejo International de Enfermeras. Y comigo qué pasa? La protección de los intereses del personal de enfermería. Ginebra: CIE; 1981. [Proyecto del Comitê-Presidenta Sheila Quinn].
  • 9
    Consejo International de Enfermeras. Cooperación y conflicto - La protección de los intereses del personal de enfermería. Ginebra: CIE; 1983. [Proyecto del Comitê-Presidenta Sheila Quinn].
  • 10. Consejo International de Enfermeras. Por un triunfo comum: acción de grupo de enfermeras. Ginebra: CIE; 1983. [Proyecto del Comitê-Presidenta Helen K. Mussallem].
  • 11. Figueiredo NMA, Carvalho V, Queluci GC, Silva ROL. Do ato médico para o ato de enfermagem: princípios para uma prática autônoma de enfermagem. In: Semana da Enfermagem; 2004; Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ABEn-Seção RJ/EEAN/ UFRJ; 2004.
  • 12. Carvalho V, Castro IB, Paixão SS. Um projeto de mudança curricular no ensino de enfermagem em nível de graduação que favorece aos propósitos emergentes da prática profissional. In: Anais do 30º Congresso Brasileiro de Enfermagem; 1978 jul. 16-22; Brasília. Brasília: ABEn; 1978.
  • 13. Figueiredo NMA, Carvalho V, Santos IR. Na emergência das águas: as enfermeiras Anna Nery (re)tomam sua história: o caso do HESFA. Esc Anna Nery Rev Enferm. 1997;1(n. esp):43-51.
  • 14. Ferrater Mora J. Diccionario de filosofía. Buenos Ayres: Sudamerican; 1965. Tomo 2.
  • Correspondência:
    Vilma de Carvalho
    Rua Barão de Acaraí, 38 - Ap. 601
    CEP 22250-110 - Rio de Janeiro, RJ, Brasil
  • *
    Extraído do texto elaborado para Conferência no Programa de Pós-Graduação
    stricto sensu em Enfermagem da Escola de Enfermagem da USP, 2006 (07/04/2006).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Nov 2007
    • Data do Fascículo
      Set 2007

    Histórico

    • Aceito
      17 Maio 2006
    • Recebido
      24 Out 2006
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