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Pesquisar é preciso? Avaliar não...

EDITORIAL

Pesquisar é preciso? Avaliar não...(aa) Parafraseando: "Navigare necesse; vivere non est necesse" de Pompeu (general romano, 106-48 aC), Petrarcha (poeta italiano, 1304-1374) e "Navegar é preciso, viver não é preciso" de Fernando Pessoa (escritor e poeta português, 1888-1935).)

Emiko Yoshikawa Egry

Professora Titular do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Membro do Comitê de Assessoramento da Enfermagem do CNPq (dez. 2007 a nov. 2009). Editora Associada da Revista da Escola de Enfermagem da USP. São Paulo, SP, Brasil. emiyegry@usp.br

Ao entrar em 2009, fui presenteada por uma amiga com a magnífica obra de Ítalo Calvino(1) - Por que ler os clássicos - que, logo no início, nos leva à reflexão sobre a leitura e releitura. Às primeiras páginas, pode-se entender que os clássicos, são aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los(1). Os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos e por isso os brasileiros são importantes, são indispensáveis justamente para serem confrontados com os estrangeiros e os estrangeiros são indispensáveis para serem confrontados com os brasileiros(1) (no original, ao invés de brasileiros encontra-se italianos, dado o lugar de onde fala Calvino).

Mas o que tem a ver isto com nossas atividades de pesquisar e avaliar o pesquisado e o pesquisador? Muito, eu diria, tanto que mal cabe num só editorial.

As pesquisas na Enfermagem, como em outras áreas do conhecimento, servem para buscar as repostas ao porquê tal fenômeno sucede. Tem a curiosidade como forte aliada e o desejo de fazer melhor e para isso de compreender melhor o quê e como é o objeto fenomênico alvo da investigação. Os resultados podem ser novas maneiras de intervir no cuidado (em si ou na gerência dele) ou no processo saúde-doença, desde o diagnóstico, o planejamento, a gestão e a implementação e a avaliação. As pesquisas são portanto, precisas, no sentido de necessárias e a parte mais precisa nisto é a reflexão acerca do que é observado, achado ou conhecido. A reflexão é a releitura da realidade tal como novamente se apresenta. Analogamente ao que se referiu Calvino sobre as obras clássicas da literatura mundial, reler a realidade tal como se mostrava e se mostra, é uma experiência fabulosa para as pesquisadoras em idade madura, pois permite detalhar, apreciar os diversos níveis e os variados significados.

As pesquisas não são precisas, no sentido de exatas, pois tal como viver, sabe-se onde começa, mas pouco se sabe onde vai terminar... e para muitos pesquisadores, é aí que reside o encanto do pesquisar... a sua não-previsibilidade final. A Enfermagem, tratando-se de uma área no qual sua característica essencial é a Humanidades - pois trata-se da vida e da morte, da saúde e da doença, do sofrimento, das alegrias e das realizações, do cuidar e do ser cuidado, do trabalho e do processo de trabalho, do significado e das interpretações, do contexto, da conjuntura e da estrutura da sociedade - tem peculiares fenômenos para investigar e, ao contrário do que muitos admitem ou desejam, as formas de divulgação dos achados nem sempre cabem em modelos pré-estabelecidos contemporaneamente nas ciências ditas da saúde.

Avaliar não é preciso, no sentido de que não é exato. Isso se deve muito menos aos instrumentos utilizados pelos nossos organismos reguladores da produção científica no Brasil, do que à intencionalidade contida atrás das avaliações. Exatamente, a falta de clareza desta intencionalidade faz com que avaliação seja um processo penoso para avaliadores e avaliados: o quê queremos avaliar? Para quê queremos avaliar? Porquê queremos avaliar? A incoerência entre um suposto querer - para melhorar a produção e valorizar os produtos mais significativos, por exemplo - e os critérios de rankeamento utilizados, nos quais arbitrariamente são definidos percentuais, privilegiando claramente as áreas que tem um número muito maior de periódicos, em detrimento da nossa, por exemplo, desorienta o sentido geral da produção científica e cultural do País. Desorienta também a produção científica no País, quando os resultados das avaliações são utilizados para realizar os aportes de recursos financeiros e de número de bolsistas: aí também não há clareza e explicitação de critérios para ampliação quantitativa e qualitativa das bolsa de pesquisadores para as diversas áreas do conhecimento. A simples menção de critérios de distribuição para o aumento de bolsas produtividade ou para ampliação do quadro dos 1 A do CNPq (pesquisadores do mais alto nível do Conselho Nacional de Pesquisa) é considerado um tabu dentro dos processos avaliativos daquele organismo.

Entretanto, avaliar é preciso, no sentido de necessário, pois certamente a produção científica que utiliza muito dos recursos públicos no nosso Pais deve respostas à sociedade, tanto quanto a educação e a saúde. Uma das formas de responder à sociedade são as publicações científicas, que devem ser veiculadas na língua compreensível pelos profissionais da área, ou seja, português, para nós, e este deveria ser a primeira obrigação do pesquisador. Em seguida, ou mesmo simultaneamente, deve ser publicado nas línguas que os pesquisadores mundiais da área mais conhecem, não importando a nacionalidade do periódico, se brasileiro ou outro. Na Enfermagem, portanto, a segunda língua poderia ser o inglês, o espanhol, o francês entre outras. E tudo isto numa revista genuinamente brasileira, por que não? E todas as versões devem ser computadas para efeitos de avaliação da produtividade em pesquisa, pois quem já experimentou fazer sabe que a cada idioma uma cultura diferente deve ser instalada na divulgação científica.

Se avaliar é necessário, então a intencionalidade geral e explícita deve contar com estratégias e métodos que sejam ao mesmo tempo gerais e específicos, e cujos critérios devem retratar a conjuntura e a estrutura de cada área do conhecimento, com suas potencialidades e limitações a serem superadas.

Os critérios atuais do CNPq para avaliação dos pesquisadores e da CAPES para a avaliação dos programas de pós-graduação, mesmo com a bem-vinda revisão que nos convida o Presidente do CNPq neste exato mês, carecem de ampla revisão de sua intencionalidade, realizada de forma coletiva, com participação e reflexão dos pesquisadores, alem de ampla divulgação. É impossível realizar esta tarefa em semanas, impossível (e injusto) mesmo será aplicar os novos critério de forma retroativa. Em sendo assim, que valha a lei neste caso: retroagir somente naquilo que for beneficiar a Enfermagem (e cada uma das demais áreas) e os pesquisadores.

Entretanto, há sem dúvida o que mudar: uma das mais significativas mudanças é dar ao processo de investigação e aos resultados um caráter mais cumulativo. Assim, o cômputo da produção científica recente (dos últimos cinco anos, que tem sido adotado) não pode anular a produção anterior, pois graças a ela é que os pesquisadores e as próprias pesquisas ganham maturidade de re-leitura dos clássicos da Enfermagem: aquelas obras (livros, capítulos, editoriais, artigos) que são ímpares, e que sempre serão um convite à reflexão de todos os profissionais da Enfermagem. Ganham maturidade os pesquisadores conforme sua experiência na vida profissional, agregando motes reflexivos que podem alavancar os conhecimentos, a partir de leituras intertextuais e dos achados empíricos. O caráter cumulativo é sempre associado ao de múltipla participação, ou seja, de caráter coletivo. Daí então deve-se também valorizar a reflexão coletiva, aquele processo em que de fato os pesquisadores debruçam sobre os achados, voltam aos textos, realizam sínteses provisórias que serão debatidas por outros pesquisadores, até encontrar o veio mais fértil para antítese e síntese. Um processo que resulta fabuloso e cujo produto tem tudo para se tornar um clássico, mas que demanda tempo: tempo que não cabe nos atuais critérios adotados.

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  • 1. Calvino I. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras; 2007.
  • a
    ) Parafraseando: "Navigare necesse; vivere non est necesse" de Pompeu (general romano, 106-48 aC), Petrarcha (poeta italiano, 1304-1374) e "Navegar é preciso, viver não é preciso" de Fernando Pessoa (escritor e poeta português, 1888-1935).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Abr 2009
    • Data do Fascículo
      Mar 2009
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