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Políticas de saúde mental do Brasil

EDITORIAL

Políticas de saúde mental do Brasil

Antonia Regina Ferreira Furegato

Professora Titular do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, SP. Brasil. furegato@eerp.usp.br

Na constituição brasileira de 1988, no título da ordem social, sessão saúde, artigo 196, está garantido a saúde como direito de todos e dever do Estado, bem como o acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

As políticas de saúde mental, nos últimos 20 anos, têm passado por importantes e significativas modificações, como resultado do movimento internacional iniciado nos anos 50 em países como Inglaterra, França, Estados Unidos e Itália, as quais foram influenciadas pelas propostas de medicina preventiva, social, e das noções de equipe interdisciplinar e de novos modelos de gerência em saúde.

No Brasil, somam-se a estes fatos a aprovação da lei nº 10.216, de abril de 2001, que, após 12 anos de tramitação, definiu as disposições sobre proteção e direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redirecionou o modelo assistencial em saúde mental. Tiveram influencia também a Declaração de Caracas de 2000, a reforma sanitária do país, e a III Conferência Nacional de Saúde Mental de dezembro de 2001, que forneceram os substratos para a política de saúde mental nos últimos anos.

Integradas ao SUS, as ações de saúde mental seguem, conforme o artigo 196 da Constituição de 1988, diretrizes de descentralização, atendimento integral, com prioridade às atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais, e com participação da comunidade.

Garantidos os principais eixos dos direitos e deveres na Constituição Federal, foi necessário criar leis, portarias e normatizações específicas e detalhadas sobre cada um dos serviços que passaram a compor a rede de atenção em saúde mental para internação, semi-internação, acompanhamento, urgências e emergências, ressocialização, promoção da saúde, da cidadania e inserção social. Foi preciso definir o papel e o alcance das ações de saúde mental no município, no estado e na federação. Além dos serviços, com suas respectivas estruturas físicas e recursos humanos, foi preciso criar condições para o reconhecimento, de fato, da condição de cidadãos para os doentes sem família e sem condições de serem reincorporados ao sistema social, devido aos longos períodos de reclusão.

Foi preciso abrir as portas dos hospitais gerais da rede básica de saúde, e dos demais espaços de atenção clínica, para acolher a doença mental, apesar da indignação de tantos profissionais da saúde que não estavam preparados para conviver com o doente e a doença mental.

Neste percurso de redirecionamento da política psiquiátrica, que tinha como única alternativa para os doentes o hospital (manicômio), os serviços terciários ocupavam a base da pirâmide da assistência. Houve uma inversão de valores, que colocou na base da pirâmide os serviços comunitários, redimensionando serviços secundários e terciários.

Este reposicionamento não só tem reflexos nas ações diretas dos profissionais da saúde, mas causa redimensionamento de custos.

Assim, os serviços terciários com internação em hospital psiquiátrico, internação psiquiátrica em hospital geral, semi-internações, serviços de emergência e, mais recentemente, os CAPs III, dão conta da crise, da remissão de sintomas com avaliação médica, psicológica, e cuidados de enfermagem, sendo rápido e ágil nesta tarefa clínica, culminando nos devidos encaminhamentos para os serviços comunitários e o retorno da pessoa para junto de seus familiares.

Os serviços de acompanhamento, ambulatórios, centros de atenção psicossocial (II, I), e núcleos de atenção em saúde mental oferecem a continuidade do tratamento em ambiente aberto, oferecendo terapias, cuidados e reabilitação psicossocial. São cuidados intermediários entre a internação e a rede básica de saúde, fortalecendo a autoestima do portador de transtorno mental, e seus laços familiares e comunitários.

O nível primário compõe-se dos serviços nas UBs, distritais, prontos-socorros e no PSF, assim como diversos programas para grupos vulneráveis como idosos, portadores de HIV e outros, não especializados em saúde mental, mas por onde circulam os portadores de transtorno mental.

A política de saúde define cada um desses serviços, com indicações bastante claras sobre seus objetivos, características estruturais e dinâmicas, alcance territorial, abrangência, equipes necessárias e competências, bem como o tempo de permanência esperado do portador de transtorno mental nos serviços.

O redimensionamento da rede de serviços traz uma série de benefícios e de consequências, das quais vale a pena destacar:

a) as consequências benéficas estão no nível ético e humano, diminuindo o estigma, promovendo a cidadania e a inserção social do portador de transtorno mental. Estimula-se o tratamento responsável, para diminuição das crises e dos momentos de descontrole, diminuindo as internações e reinternações. Aumento do interesse científico e tecnológico, com novas opções terapêuticas. Maior participação de todos os segmentos da sociedade.

b) por outro lado, estas transformações envolvem enorme custo para a família, que não está preparada para cuidar, necessitando de apoio e orientação. O portador de transtorno mental passa a frequentar todas as instâncias de vivência e convivência social, o que tem impulsionado a criação de sistemas de apoio social e econômico. Tem sido necessário rever a legislação e várias alternativas sociais para acolher a pessoa afetada pela doença mental. É necessária a reorientação do ensino formal dos profissionais da saúde e a oferta de atualizações para os profissionais que estão atuando na rede de serviços da saúde.

Neste processo, algumas práticas tendem a se firmarem (os CAPs) e outras serão extintas com o tempo (residências terapêuticas).

Apesar da definição política da assistência em saúde mental refletir certo consenso conceitual e teórico, na prática, sua aplicação ainda deixa a desejar. Por exemplo, a humanização, como política, está presente em todas as instâncias do SUS e, consequentemente, também na saúde mental. Entretanto, há muitas dificuldades na integração dos processos de trabalho e nas relações entre os diferentes profissionais que atuam na rede.

Isto gera desafios no que diz respeito à consolidação da rede, à construção dos projetos terapêuticos, à humanização e ao acolhimento, bem como promoção da vida comunitária, as ações intersetoriais e as questões referentes às equipes, tais como a interdisciplinaridade e a qualificação.

Enfim, é necessário aumentar o diálogo entre os saberes cientifico e político e as práticas por eles subsidiadas e orientadas.

Mais do que adotar esta ou outra política de saúde mental, o enfermeiro e demais profissionais precisam pensar o quanto tem sido possível acolher, escutar e identificar as necessidades das pessoas portadoras de transtorno mental, com ética e responsabilidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2009
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