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Relação entre a gravidade do trauma e padrões de analgesia utilizados em acidentados de transporte

Relación entre la gravedad del trauma y los estándares de analgesia utilizados en accidentados de tránsito

Resumos

Trata-se de um estudo inédito realizado no país, que identificou relações entre o padrão analgésico e a gravidade do trauma. Para tal, analisou-se uma população de 200 acidentados de transporte admitidos para tratamento na unidade de emergência de um hospital referência para o atendimento ao trauma no Município de São Paulo. A gravidade das lesões e do trauma foi caracterizada por índices de gravidade anatômicos. A partir da análise da terapia analgésica encontrada, construíram-se padrões de analgesia, tendo como base a escala analgésica da Organização Mundial de Saúde. Os resultados permitiram identificar associação estatística entre a gravidade do trauma e padrões distintos de analgesia. Espera-se que a divulgação desses achados possa servir de base para a criação de protocolos de analgesia em trauma e melhoria da qualidade da assistência, além de servir de estímulo para o desenvolvimento de estudos em uma área com tantas lacunas de conhecimento em nosso meio.

Ferimentos e lesões; Analgesia; Dor; Acidentes de trânsito


Se trata de un estudio inédito, realizado en el país, que identificó relaciones entre el estándar analgésico y la gravedad del trauma. Para esto, se analizó una población de 200 accidentados en el tránsito, admitidos para tratamiento en una Unidad de emergencia de un hospital de referencia para la atención de traumas, en el Municipio de San Pablo. La gravedad de las lesiones y del trauma fue caracterizada por índices de gravedad anatómicos. Del análisis de la terapia analgésica encontrada se construyeron estándares de analgesia, teniendo como base la escala analgésica de la Organización Mundial de Salud. Los resultados permitieron identificar una asociación estadística entre la gravedad del trauma y los distintos estándares de analgesia. Se espera que la divulgación de lo encontrado pueda servir de base para crear protocolos de analgesia en traumas, mejorar la calidad de la asistencia y servir de estímulo para el desarrollo de estudios en un área con tantas lagunas de conocimiento en nuestro medio.

Heridas y traumatismos; Analgesia; Dolor; Accidentes de tránsito


This is a first-time study in Brazil, which identified the relations between the analgesic standard and trauma severity. To do this, an analysis was performed in a population of 200 traffic accident victims admitted for treatment at the emergency unit of a referral hospital for trauma care in the city of São Paulo. Trauma and lesion severity were characterized by anatomic severity indexes. Based on the analysis of the analgesic therapy, analgesia standards were constructed, founded on the World Health Organization analgesic scale. The results permitted to identify the statistic association between trauma severity and distinct analgesia standards. The dissemination of these findings could serve as the basis to design analgesia protocols in trauma and improve care quality, besides encouraging the development of studies in an area with so many knowledge gaps.

Wounds and injuries; Analgesia; Pain; Accidents


ARTIGO ORIGINAL

Relação entre a gravidade do trauma e padrões de analgesia utilizados em acidentados de transporte

Relación entre la gravedad del trauma y los estándares de analgesia utilizados en accidentados de tránsito

Ana Maria CalilI; Cibele Andrucioli de Mattos PimentaII

IEnfermeira. Doutora em Enfermagem na Saúde do Adulto. Professora Colaboradora do Centro Universitário São Camilo na especialização de emergência. São Paulo, SP, Brasil. easallum.fnr@terra.com.br

IIEnfermeira. Professora Titular do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica da Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. parpac@usp.br

Correspondência Correspondência: Ana Maria Calil Alameda Fernão Cardim, 140 - Apto 61 - Jd. Paulista CEP 01403-020 - São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

Trata-se de um estudo inédito realizado no país, que identificou relações entre o padrão analgésico e a gravidade do trauma. Para tal, analisou-se uma população de 200 acidentados de transporte admitidos para tratamento na unidade de emergência de um hospital referência para o atendimento ao trauma no Município de São Paulo. A gravidade das lesões e do trauma foi caracterizada por índices de gravidade anatômicos. A partir da análise da terapia analgésica encontrada, construíram-se padrões de analgesia, tendo como base a escala analgésica da Organização Mundial de Saúde. Os resultados permitiram identificar associação estatística entre a gravidade do trauma e padrões distintos de analgesia. Espera-se que a divulgação desses achados possa servir de base para a criação de protocolos de analgesia em trauma e melhoria da qualidade da assistência, além de servir de estímulo para o desenvolvimento de estudos em uma área com tantas lacunas de conhecimento em nosso meio.

Descritores: Ferimentos e lesões. Analgesia. Dor. Acidentes de trânsito.

RESUMEN

Se trata de un estudio inédito, realizado en el país, que identificó relaciones entre el estándar analgésico y la gravedad del trauma. Para esto, se analizó una población de 200 accidentados en el tránsito, admitidos para tratamiento en una Unidad de emergencia de un hospital de referencia para la atención de traumas, en el Municipio de San Pablo. La gravedad de las lesiones y del trauma fue caracterizada por índices de gravedad anatómicos. Del análisis de la terapia analgésica encontrada se construyeron estándares de analgesia, teniendo como base la escala analgésica de la Organización Mundial de Salud. Los resultados permitieron identificar una asociación estadística entre la gravedad del trauma y los distintos estándares de analgesia. Se espera que la divulgación de lo encontrado pueda servir de base para crear protocolos de analgesia en traumas, mejorar la calidad de la asistencia y servir de estímulo para el desarrollo de estudios en un área con tantas lagunas de conocimiento en nuestro medio.

Descriptores: Heridas y traumatismos. Analgesia. Dolor. Accidentes de tránsito.

INTRODUÇÃO

A dor é freqüente objeto de procura no setor de emergência e grande parte dos atendimentos são decorrentes de causas externas (terceira causa de mortalidade no Brasil, desconsideradas as mal definidas) sendo os acidentes de transportes responsáveis por parte substancial de morbidade, mortalidade e incapacidades no país, além do considerável custo sócio-econômico. As mortes decorrentes desse evento foram estimadas em aproximadamente 32.000 no ano de 2005 em nosso país(1) .

Reconhece-se a dor como uma das principais conseqüências do trauma e as suas repercussões são identificadas como potencialmente prejudiciais para o organismo. Embora freqüente, pouca atenção tem sido concedida ao traumatizado no que se refere ao controle álgico. Essa situação de proporções pouco investigadas em nosso meio no setor de emergência é evidenciada por estudos oriundos de outros países(2-3).

A dor é uma experiência sensorial e emocional desagradável, associada a uma lesão tissular real ou potencial e descrita em termos de tal dano. A dor aguda surge como um alerta de que algo no organismo não está bem e no setor de emergência, esse tipo de dor é muito freqüente, pois está relacionada a afecções traumáticas, queimaduras, infecções e processos inflamatórios(4).

A persistência dos processos reacionais em função da permanência da dor aguda resulta na formação de círculos viciosos com progressivo aumento das disfunções orgânicas e dos efeitos prejudiciais ao paciente traumatizado como hipoventilação, aumento do trabalho cardíaco, diminuição da perfusão sangüínea periférica e contração muscular reflexa, agravam o estado de choque por deterioração do desempenho mecânico do ventrículo esquerdo por redução da oferta de oxigênio e por aumento da perda plasmática(4).

Melhorar a perfusão tissular, minimizar a lesão celular e as alterações fisiológicas relacionadas com a hipóxia, controlar o quadro hemorrágico, manter parâmetros vitais estáveis e a estabilidade da coluna cervical são os objetivos prioritários do atendimento ao traumatizado(5).

Parece claro, portanto, que a adequada avaliação, controle e alívio da dor, além do aspecto humanitário, deve constituir parte vital do atendimento ao acidentado, visando contribuir para a manutenção de funções fisiológicas básicas e evitar os efeitos colaterais nocivos advindos da permanência da dor anteriormente citados.

Entre as dores agudas, a dor no trauma é a menos investigada em nosso meio, afirmação essa documentada após extenso levantamento bibliográfico realizado nos últimos cinco anos (1999-2003). Diante das lacunas de conhecimento nessa área, optou-se por desenvolver um estudo com a seguinte questão norteadora: existiria relação entre a gravidade do trauma e o uso de padrões distintos de analgesia?

MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo, exploratório, com abordagem quantitativa. Para isto utilizou-se do meio documental (prontuários) de 200 pacientes internados para tratamento em uma unidade de urgência e emergência.

O estudo foi realizado em um hospital geral governamental, nível terciário, considerado referência no sistema de atendimento hierarquizado ao trauma do município de São Paulo.

Em levantamento prévio realizado na Divisão de Arquivo Medico (DAM) do referido hospital, constatou-se que a média anual de pacientes admitidos para tratamento nos anos de 2000 e 2001 em decorrência de acidentes de transporte estava em torno de 1.500 e, desses, aproximadamente 640 permaneciam internados. Após orientação estatística, propôs-se realizar análise de uma amostra dessa população com precisão desejada de 5%, prevalência esperada de 50% e risco de 1%, o que resultou em um número de 200 prontuários a serem analisados, representando quase um terço da população total de internados. A pesquisa foi realizada no primeiro semestre de 2002.

A seleção de eventos considerados como acidentes de transporte baseou-se nos critérios preconizados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), expressa na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas relacionados à Saúde (CID 10), sob os códigos alfa numéricos (V01 a V099)(6) .

Tendo em vista a análise proposta foram estabelecidos os seguintes critérios de inclusão dos sujeitos: serem vítimas de acidente de transporte provenientes diretamente da cena do evento, admitidas via pronto-socorro; não terem evoluído para óbito nas primeiras 24hs e terem idade acima de 16 anos, considerando uma padronização com outros estudos das pesquisadoras.

As fontes de amostras incluíram listas computadorizadas da companhia de processamento de dados do Estado de São Paulo (PRODESP), listas de pacientes internados em decorrência de acidentes de transportes fornecidas pela DAM e prontuários dos pacientes internados no pronto-socorro.

A partir da relação dos prontuários de interesse, a pesquisadora dividiu as amostras em 3 grandes grupos: a dos pacientes que sofreram acidentes automobilísticos, atropelamentos, acidentes de moto. Cada prontuário, dentro de cada grupo, recebeu um número específico, em ordem crescente. A partir do estabelecido por orientação estatística, foram sorteados 80 prontuários de pacientes vítimas de acidente de auto, 70 de atropelamento e 50 vítimas de moto, os quais constituíram a amostra de 200 prontuários.

A coleta de dados foi iniciada após a autorização da Comissão de Ética para Análise de Projeto de Pesquisa - CAP-Pesq. da Diretoria Clínica do hospital (Protocolo nº 074/02), seguindo-se as orientações exigidas pela DAM em relação ao controle de prontuários e local para análise dos mesmos. Todos os dados foram coletados pela pesquisadora.

Para cada paciente foi aberta uma ficha de coleta de dados e as informações pertinentes ao estudo foram registradas desde o momento da entrada do paciente no hospital até um período aproximado de 24 horas. O horário de registro na ficha de admissão foi considerado o ponto inicial e o horário dos medicamentos na ficha de admissão e/ou prontuário o marco final.

Para a organização dos padrões de analgesia visou-se à similaridade com a escada analgésica da Organização Mundial de Saúde (OMS)(7). O padrão I corresponde ao primeiro degrau da escada analgésica (analgésicos e antiinflamatórios), o padrão II ao segundo (opióides fracos) e terceiro degrau (opióides fortes) e o padrão III apresenta como acréscimo ao padrão II o uso do midazolan, que não está previsto nessa escada. Não podemos alterar o termo escada, pois é uma padronização clássica da OMS e utilizada em artigos referentes a dor e analgesia dessa forma, realmente descrito como uma escada com a subida e descida de degraus conforme a utilização medicamentosa. Não se constitui em uma escala.

Em relação ao padrão analgésico, após análise dos 200 prontuários, foram identificados 17 tipos distintos de prescrições analgésicas. Os 17 modelos de prescrição foram reagrupados em três padrões de analgesia, que serviram de base para as análises do estudo e possibilidades estatísticas. São eles: I. Analgésico simples e/ou antiinflamatório não hormonal (AINH); II. Analgésico simples + AINH + Opióide(s); III. Analgésico simples + Opióide(s) + Midazolan.

O grupo I corresponde ao primeiro degrau da Escada Analgésica da OMS(7) e o grupo II, ao segundo e terceiro degraus. Organizou-se o grupo III, pois considerou-se que o acréscimo de midazolan pareceu indicar um objetivo terapêutico diferente dos grupos I e II.

Nessa categorização não foram levadas em consideração o medicamento, a dose, o intervalo e a via de administração. Tal decisão deveu-se ao fato de terem sido encontradas tantas configurações que, se não organizadas de modo mais abrangente, tornaria impossível qualquer análise estatística. Denominou-se analgésico simples para a dipirona e paracetamol apenas para diferenciá-los dos demais fármacos e não por sua composição.

Para aferir a gravidade das lesões utilizou-se o índice Abbreviated Injury Scale (AIS) de base anatômica, apresentado sob a forma de um manual, no qual, centenas de lesões são listadas de acordo com o seu tipo, localização e gravidade, aceito mundialmente(8). A gravidade de cada lesão contida na AIS varia de gravidade mínima=1 a gravidade máxima=6; por definição as lesões de escore igual ou inferior a 3 são aquelas que isoladas não ameaçam à vida e as iguais ou maiores que 4 são consideradas graves, críticas e fatais.Esses escores foram definidos por médicos especialistas em traumatologia e inseridos no Manual AIS que contém centenas de descrições de lesões, divididas por regiões corpóreas(8).

Após o registro e pontuação de todas as lesões, foi realizado o cálculo da gravidade do trauma (NISS), que por definição é a soma dos quadrados dos três escores AIS mais altos, independentemente da região corpórea atingida.

Para análises futuras em relação à gravidade do trauma, foi estabelecida como linha de corte NISS = 16, determinando trauma grave e/ou importante, seguindo a orientação do manual e das pesquisas realizadas com esses índices(8).

Os dados foram lançados em base de dados para o processamento das análises descritivas e por inferências. Os resultados foram organizados em tabelas e as freqüências em números absolutos e relativos. Para as variáveis quantitativas, a análise foi realizada pela observação dos valores mínimos e máximos e do cálculo de médias, desvio-padrão e mediana.

Teste Qui-quadrado - utilizado para verificar a associação entre as variáveis estudadas e a homogeneidade entre as proporções. Teste Exato de Fisher - indicado para avaliar a associação entre as variáveis e comparação de proporções quando caselas de respostas apresentaram freqüências esperadas menor que cinco. Todos os testes foram realizados admitindo-se nível de significância de 5%.

RESULTADOS

Observa-se que o Grupo I representou quase a metade da utilização total de analgésicos administrados com 41% do total, 24 (12%) pacientes não receberam analgésicos. O opióide fentanila só foi encontrado no grupo III.

Os analgésicos encontrados nas prescrições médicas e que se apresentam nos padrões de analgesia propostos para análise foram os seguintes:

Visto que alguns pacientes receberam mais de uma medicação, o total foi de 356 analgésicos prescritos no período das primeiras 24 horas para 179 pacientes. A dipirona representou quase metade de toda a medicação antiálgica prescrita (49,4%). Entre os opióides, destacou-se a meperidina com 10,4%.

O Teste Qui-quadrado indicou haver associação estatística entre as duas variáveis. As menores faixas de gravidade do trauma e o padrão I (63,3%) e as maiores faixas de gravidade e o padrão III (41,0%). Em relação ao padrão II a distribuição foi eqüitativa.

Os resultados estatísticos apontaram para associação de significância entre o padrão analgésico e a gravidade do trauma, destacando-se a utilização do padrão I (62,4%) para os casos de menor gravidade e o padrão III (44,3%) para os casos de maior gravidade (p = 0,001).

Da mesma forma para a região corpórea mais freqüentemente atingida a análise estatística demonstrou haver associação de significância entre o padrão de analgesia e a gravidade do trauma NISS (p = 0,001).

DISCUSSÃO

Na análise dos 200 prontuários de pacientes que foram atendidos na unidade de urgência e emergência de um hospital público, foi possível identificar a existência de prescrição antiálgica em 179 pacientes, correspondendo a 89,5% da amostra total. Constatou-se que os analgésicos simples foram os medicamentos mais prescritos como tratamento antiálgico (Tabela 2).

A título de ilustração, no caso específico da dipirona, que em conjunto ou isoladamente foi o fármaco mais prescrito, a mesma apareceu 91 vezes na forma se necessário, em 60 casos como coadjuvante do tratamento e em 31 como o único analgésico contido na prescrição. Esses fatos são preocupantes, pois sugerem analgesia insuficiente para a gravidade e freqüência das lesões. O uso de analgésicos (dipirona ou paracetamol) isoladamente como único princípio ativo para o alívio da dor na unidade de emergência induz a um questionamento feito por estudiosos em dor (1994): seriam os médicos no setor de emergência muito econômicos com a analgesia(9)?

Alguns analgésicos são muito utilizados pela sua eficácia, tradição ou preço. A dipirona provavelmente é o analgésico mais utilizado nas últimas décadas, pois além da ação analgésica, possui ação antitérmica(10). A dipirona é uma medicação tradicional, muito utilizada, cujo efeito não é questionado, mas sua indicação isolada para dor moderada e intensa pós-trauma pode ser insuficiente(9).

O questionamento acima parece oportuno, uma vez que são unânimes os relatos na literatura que apontam a utilização de opióides fortes (meperidina e morfina,) como o fármaco ideal e necessário para o tratamento de dor intensa, e fracos (codeína e tramadol) para a dor moderada. A dor moderada e a intensa aparecem como as mais comuns no setor de emergência, especialmente em decorrência de lesões como fraturas, contusões, entorses, amputação-traumática e laceração, o que sugere situações potencialmente muito dolorosas(2-3,9).

A escada analgésica da OMS propõe o uso de analgésicos antiinflamatórios não hormonais, de opióides fracos e fortes, nessa seqüência, para dores oncológicas de intensidade crescente. A esses analgésicos podem ser associados medicamentos adjuvantes (ansiolíticos, antidepressivos, anticonvulsivantes, entre outros), especialmente nos casos de dor crônica. A aspirina, a codeína e a morfina são os analgésicos padrões desta escada(7).

Diversos estudos comprovaram a eficácia do programa para o alívio da dor oncológica proposto pela OMS. Essa proposta ultrapassou a recomendação inicial para controle da dor no câncer e passou a ser diretriz para o controle da dor de modo geral(11-12).

Apesar da flexibilidade da organização dos padrões de analgesia no presente estudo, verificou-se que os opióides fracos (tramadol e codeína) e fortes (morfina e meperidina), em 100% dos casos, foram administrados por via intravenosa (IV) e todos os pacientes receberam no mínimo uma dose e no máximo três doses de medicação antiálgica. Em relação ao horário, a administração foi feita em horários pré-estabelecidos e sob regime de demanda, sem padronização de condutas entre as equipes.

Os opióides com ação analgésica mais potente possuem utilização no Brasil mais restrita por parte dos médicos no setor de emergência(13). Isso ocorre porque os opióides são geralmente relacionados a problemas neurológicos importantes, ao câncer, possuem efeitos colaterais indesejáveis e, principalmente na clínica geral, são raramente utilizados. Eles são os analgésicos mais potentes da medicina, propiciam alívio da dor, bem estar ao paciente e acredita-se que, num futuro próximo, serão de uso mais amplo pelos seus efeitos benéficos. Hoje a utilização de opióides é mais restrita aos médicos especialistas em dor, neurologistas e anestesiologistas(13-14). Devido a sua potência e eficácia são indicados para dor intensa e moderada, no tratamento de situações agudas, como o período pós-operatório(15).

A reduzida utilização dos opióides fortes no setor de emergência, mais especificamente morfina (3,4%) e meperidina (10,4%) (Tabela 2), pode estar relacionada ao estigma da dependência associado a essas drogas, fator que não encontra relação com o uso em dor aguda no setor de emergência, e também ao desconhecimento e receio na utilização desses medicamentos por parte dos profissionais de saúde(16).

Acreditou-se oportuna uma análise detalhada da gravidade das lesões e do trauma nos pacientes que receberam opióides fortes. Em relação à morfina, dois pacientes apresentaram NISS = 5 por lesões em face e superfície externa. Nos outros dez casos o NISS foi igual ou superior a 16 não ultrapassando 24 e registraram-se lesões em tórax, membros inferiores e abdômen. No caso específico da meperidina utilizada em 37 pacientes não foi encontrada uma padronização relacionada com a gravidade do trauma ou região corpórea atingida.

Observou-se que, para pacientes com similaridade de lesão e gravidade do trauma, em condição hemodinâmica estável, alguns não receberam analgesia ou foram medicados com analgésicos simples. Excluiu-se dessa análise pacientes com TCE.

Confirma-se a importância de uma discussão acerca do subtratamento e subavaliação da dor no trauma, assim como a necessidade de criação de protocolos de analgesia para o cenário da emergência e urgência mediante a prescrição analgésica baseada em crenças e valores pessoais de cada profissional(16).

Os achados desses estudos remetem a reflexão acerca das nossas próprias ações como profissionais e docentes na hora de optarmos por disciplinas e conteúdos que garantam, aos nossos alunos e futuros colegas, segurança na atuação e qualidade da assistência, ou será que existe algum cenário ou especialidade na qual a dor não esteja presente, desde o nascimento?

Para o segmento crânioencefálico, observou-se que os padrões I e III foram importantes especialmente o padrão III em casos de maior gravidade. Analisando-se o significado desses dados, formularam-se duas hipóteses: imaginou-se que o uso do padrão I ocorreu nas situações de lesões encefálicas de menor gravidade e o padrão III foi utilizado para as lesões de maior gravidade. Para sustentar essas hipóteses, retornou-se ao instrumento de coleta para verificar se havia concordância entre gravidade de lesão e padrão analgésico. Observou-se que, diferentemente das demais regiões corpóreas, a gravidade das lesões encefálicas teve distribuição eqüitativa entre AIS < 3 (50,8%) e AIS > 4 (49,2%). É importante pontuar que nos 200 pacientes do estudo foram identificadas 84 lesões de escore AIS > 4 e dessas 58 (49,2%) foram na região de cabeça/pescoço. Esse achado revela-se de extrema importância devido ao alto valor prognóstico determinado por lesões nesse segmento corpóreo.

O TCE, em vítimas de acidente de transporte, é a lesão isolada mais freqüentemente encontrada em casos graves e fatais(17).

Uma análise (detalhada) nos prontuários permitiu constatar que 64,4% das vítimas com lesão AIS > 4 receberam fármacos do grupo III. Em contrapartida, 61,8% daquelas com lesão AIS < 3 receberam fármacos do grupo I.

É importante destacar que todos os pacientes com lesão encefálica que receberam fármacos do padrão II tiveram associadas à lesão cerebral, lesão ou lesões nos segmentos corpóreos de tórax e/ou abdome/conteúdos pélvicos e/ou membros superiores, descritas como muito dolorosas.

Acredita-se que o uso da fentanila para vítimas com lesão AIS = 4 para região de cabeça deveu-se ao fato de ser esse analgésico narcótico (opióide) muito utilizado para analgesia de curta duração, adjuvante anestésico e no período pré intubação. Quanto à escolha do midazolan, crê-se que o mesmo tenha sido utilizado por ser um sedativo hipnótico, indutor do sono, muito utilizado para sedação pré-cirúrgica.

Pode-se afirmar, então, que basicamente dois tipos de condutas analgésicas foram adotadas para as vítimas com TCE: uma de caráter mais amplo e simples, ao se identificar a dipirona ou paracetamol como fármaco de primeira escolha para lesões de menor gravidade, e outra mais específica para pacientes com lesão encefálica mais grave e nesse caso a fentanila e o midazolan apareceram como medicamentos de escolha.

Em relação às lesões em face e superfície externa, identificou-se predominante analgesia com o padrão I, tanto em relação à gravidade como para a freqüência dessas lesões. O padrão II de analgesia apareceu com destaque para as regiões de tórax, abdômen e membros, ou seja, maior utilização de opióides fracos e fortes para o alívio da dor (Tabela 5).

Em relação à gravidade do trauma, observou-se relação de significância entre as menores faixas de gravidade (NISS < 15) e o padrão de analgesia I e as maiores faixas de gravidade (NISS > 16) e o padrão III.

Acredita-se, mediante a análise em relação a cada região corpórea, que essa relação de significância deveu-se, principalmente pela utilização dos fármacos do grupo I para as regiões de face e superfície externa, predominantemente atingidas com lesões AIS < 2, e as lesões de cabeça com utilização do padrão III de analgesia com lesões AIS = 4. As lesões AIS = 3 para membros, tórax e abdômen reforçam a importância álgica dessas lesões no contexto do trauma e a indicação do padrão II.

A associação entre menor gravidade do trauma e a utilização de analgésicos mais simples, e maior gravidade do trauma e uso de analgésicos mais potentes pode ser evidente, mas, paradoxalmente, não foi encontrado na literatura nacional, material que evidenciasse tal achado como observado no presente estudo; fato esse que indica a necessidade urgente de contínuas investigações na área de dor e analgesia no setor de emergência.

CONCLUSÃO

Em relação à gravidade do trauma (NISS) e o padrão de analgesia, observou-se associação estatística entre as duas variáveis, apontando a utilização de um padrão para gravidade do trauma (NISS) = 15 e outro padrão para os casos com NISS = 16, sobretudo pela gravidade do trauma cranioencefálico.

Espera-se que esse estudo possa servir de base para o desenvolvimento de protocolos de analgesia, discussão dessa temática nos cursos de padronização da assistência ao politraumatizado nos cenários intra e pré-hospitalar, na familiaridade com os opióides e maior apoio aos grupos de dor dentro das Instituições de saúde e de ensino.

Recebido: 27/09/2007

Aprovado: 21/05/2008

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  • Correspondência:

    Ana Maria Calil
    Alameda Fernão Cardim, 140 - Apto 61 - Jd. Paulista
    CEP 01403-020 - São Paulo, SP, Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Aceito
      21 Maio 2008
    • Recebido
      27 Set 2007
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