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Contribuições da Copa da Inclusão para a consolidação do campo psicossocial

Contribuciones de la Copa de la Inclusión para la consolidación del campo psicosocial

Resumos

Este é um estudo descritivo e analítico de caráter qualitativo, cujo objeto é a ação dos trabalhadores na Copa da Inclusão (seus processos de trabalho). Busca compreender se tal ação considera a vida real do usuário de serviços de saúde mental e, para tal, adotou como categorias teóricas os elementos constitutivos do processo de trabalho, tecnologias em saúde e os pressupostos do campo psicossocial. Os dados empíricos foram coletados por meio de entrevista semi-estruturada e analisados segundo a técnica de análise de enunciação. Os resultados apontam transformações na vida dos usuários, dos serviços e da sociedade coerentes com os pressupostos da Reforma Psiquiátrica brasileira. A Copa da Inclusão prova que atividades intersetoriais são trabalhos vivos em ato, utilizam instrumentos de intervenção potentíssimos no resgate e construção da cidadania das pessoas portadoras de transtornos mentais. As transformações (finalidades dos processos de trabalho) podem estar ocorrendo porque o projeto de intervenção não é mais centrado na doença.

Enfermagem psiquiátrica; Serviços de saúde mental; Desinstitucionalização; Equipe de assistência ao paciente


Este es un estudio descriptivo y analítico, de carácter cualitativo, cuyo objeto es la acción de los trabajadores en la Copa da Inclusión (sus procesos de trabajo). Busca comprender si tal acción considera la vida real del usuario de los servicios de salude mental y, para esto, adoptó como categorías teóricas los elementos constitutivos del proceso de trabajo, tecnologías en salud y los conceptos del campo psicosocial. Los datos empíricos fueron recolectados por medio de entrevistas semiestructuradas y analizados según la técnica de análisis de enunciado. Los resultados apuntan transformaciones en la vida de los usuarios de los servicios y de la sociedad, coherentes con los conceptos de la Reforma Psiquiátrica brasileña. La Copa de la Inclusión prueba que las actividades intersectoriales son trabajos vivos en acto, utiliza instrumentos de intervención muy potentes en el rescate y construcción de la ciudadanía de las personas portadoras de trastornos mentales. Las trasformaciones (finalidades de los procesos de trabajo) pueden estar ocurriendo porque el proyecto de intervención no está más centrado en la enfermedad.

Enfermería psiquiátrica; Servicios de salud mental; Desinstitucionalización; Grupo de atención ao paciente


This is a descriptive, analytical qualitative study, which looks at workers' action in the Inclusion Cup (their work processes). It aims to understand if that action considers mental health service users' real life and, to do this, it adopted the following theoretical categories: the elements constituting the work process, health technologies and the premises of the psychosocial field. The empirical data were collected by means of semi-structured interviews and analyzed according to the discourse analysis technique. Results point at changes in the users' lives, in services and in the society coherent with the premises of the Brazilian Psychiatric Reform. The Inclusion Cup proves that intersectorial activities are living work in their action, use intervention instruments that are very strong in terms of rescuing and building the citizenship of people with mental disorders. The changes (purposes of the work processes) may be occurring because the intervention project is no longer centered on the disease.

Psychiatric nursing; Mental health services; Deinstitutionalization; Patient care team


ARTIGO ORIGINAL

Contribuições da Copa da Inclusão para a consolidação do campo psicossocial* * Extraído da dissertação " Contribuições da Copa da Inclusão para a consolidação do campo psicossocial" , Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, 2007.

Contribuciones de la Copa de la Inclusión para la consolidación del campo psicosocial

José Luiz CassandriI; Ana Luisa Aranha e SilvaII

IMestre em Enfermagem Psiquiátrica, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. zecassandri@yahoo.com.br

IIProfessora Doutora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. anaranha@usp.br

Correspondência Correspondência: Ana Luisa Aranha e Silva Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 - Cerqueira César CEP 05403-000 - São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

Este é um estudo descritivo e analítico de caráter qualitativo, cujo objeto é a ação dos trabalhadores na Copa da Inclusão (seus processos de trabalho). Busca compreender se tal ação considera a vida real do usuário de serviços de saúde mental e, para tal, adotou como categorias teóricas os elementos constitutivos do processo de trabalho, tecnologias em saúde e os pressupostos do campo psicossocial. Os dados empíricos foram coletados por meio de entrevista semi-estruturada e analisados segundo a técnica de análise de enunciação. Os resultados apontam transformações na vida dos usuários, dos serviços e da sociedade coerentes com os pressupostos da Reforma Psiquiátrica brasileira. A Copa da Inclusão prova que atividades intersetoriais são trabalhos vivos em ato, utilizam instrumentos de intervenção potentíssimos no resgate e construção da cidadania das pessoas portadoras de transtornos mentais. As transformações (finalidades dos processos de trabalho) podem estar ocorrendo porque o projeto de intervenção não é mais centrado na doença.

Descritores: Enfermagem psiquiátrica. Serviços de saúde mental. Desinstitucionalização. Equipe de assistência ao paciente.

RESUMEN

Este es un estudio descriptivo y analítico, de carácter cualitativo, cuyo objeto es la acción de los trabajadores en la Copa da Inclusión (sus procesos de trabajo). Busca comprender si tal acción considera la vida real del usuario de los servicios de salude mental y, para esto, adoptó como categorías teóricas los elementos constitutivos del proceso de trabajo, tecnologías en salud y los conceptos del campo psicosocial. Los datos empíricos fueron recolectados por medio de entrevistas semiestructuradas y analizados según la técnica de análisis de enunciado. Los resultados apuntan transformaciones en la vida de los usuarios de los servicios y de la sociedad, coherentes con los conceptos de la Reforma Psiquiátrica brasileña. La Copa de la Inclusión prueba que las actividades intersectoriales son trabajos vivos en acto, utiliza instrumentos de intervención muy potentes en el rescate y construcción de la ciudadanía de las personas portadoras de trastornos mentales. Las trasformaciones (finalidades de los procesos de trabajo) pueden estar ocurriendo porque el proyecto de intervención no está más centrado en la enfermedad.

Descriptores: Enfermería psiquiátrica. Servicios de salud mental. Desinstitucionalización. Grupo de atención ao paciente.

INTRODUÇÃO

Tecer a rede de atenção no campo psicossocial - um desafio para a Reforma Psiquiátrica brasileira

A Reforma Psiquiátrica brasileira inscreveu-se no âmbito da luta mais geral pela redemocratização nacional, compôs política e tecnicamente com o processo da Reforma Sanitária e da criação do Sistema Único de Saúde, o SUS(1).

No âmbito das políticas públicas, a Coordenação Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde instituiu as Portarias n.º 189 (MS) e 224 (MS) nos anos 1991 e 1992, respectivamente, estabelecendo novas diretrizes da Reforma Psiquiátrica: a) reorientação do modelo de atenção em saúde mental; b) incorporação de novos procedimentos à tabela do SUS e c) maior rigor com as regras para o funcionamento e fiscalização dos hospitais psiquiátricos(2).

Em 2001, após anos de tramitação no Congresso Nacional, foi aprovada a Lei n.º 10.216 que: a) discorre sobre os direitos da pessoa portadora de transtorno mental; b) preconiza o acesso a um tratamento humanizado, respeitoso e em ambiente terapêutico; c) o tratamento é direcionado para a manutenção ou reinserção da pessoa com transtornos mentais em seu ambiente familiar, comunitário e laborale d) garantia à proteção contra abuso e exploração com tratamento preponderante em serviços comunitários, priorizando a criação de recursos extra-hospitalares, indicando a internação hospitalar como último recurso assistencial(2).

Decorrente da instituição da Lei 10.216, houve a necessidade de atualização da Portaria 224 do Ministério da Saúde no ano de 2002, neste sentido, foi publicada a Portaria n.º 336 que classifica os centros de atenção psicossocial (CAPS) em CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPSi – infantil e CAPS ad – álcool e drogas, de acordo com a complexidade, abrangência e características do território, e define tais serviços como serviços ambulatoriais de atenção diária que funcionam a partir da lógica do território(2).

A publicação da Portaria 336 possibilitou o crescimento da rede substitutiva, principalmente dos serviços CAPS, além de conferir a estes, um lugar estratégico na reformulação da atenção em saúde mental, na organização da rede de cuidados e na coordenação local das políticas e programas de saúde mental(3).

No Brasil, a política de saúde vigente é norteada pelo SUS que, regendo um dado modelo assistencial, oferta um conjunto de programas com estreita articulação entre si, objetivando contemplar princípios da Reforma Sanitária, quais sejam: regionalização, hierarquização, acessibilidade, eqüidade, participação e integralidade das ações.

O modelo assistencial proposto pela Reforma Psiquiátrica está pautado nos princípios do SUS, cuja concepção de saúde é compreendida como um processo e não como ausência de doença, na perspectiva de produção de qualidade de vida, enfatizando ações integrais e promocionais de saúde. Este modelo convoca um projeto de intervenção individualizado e uma ação assistencial mais complexa, devendo-se ter cuidado para que as ações de violência e exclusão não façam parte desse cenário, perpetuando a lógica manicomial(4).

São características do novo modelo assistencial: a) atenção centrada no usuário, humano dependente, que reforça a qualidade e a humanização da assistência; b) o eixo central é a relação sujeito-sujeito, evidenciando uma prática cuidadora emancipatória; c) conceito ampliado de saúde e doença, onde a saúde é entendida como direito social; d) prática em defesa da vida individual e coletiva, que parte do ponto de vista do usuário; e) centra-se no uso de tecnologias leves (relacionais), enfatizando uma lógica de autonomia, compartilhamento e descentralização de saber e poder, rumo ao cuidado integral e humano; f) valoriza a complexidade do trabalho em equipe e está aberto a mudança, criatividade e sensibilidade, conduzindo à possível emergência de satisfação, de felicidade, de um trabalho prazeroso e, em conseqüência disso, geração de mais vida(5-6).

Neste contexto, os trabalhadores do campo psicossocial têm à sua frente o grande desafio de implantar e implementar o modelo de atenção preconizado, responsabilizando-se pela atenção em saúde mental no território definido, intermediando as mudanças sociais necessárias ao resgate dos direitos de cidadania e à inclusão de pessoas portadoras de transtornos mentais, ou seja, é esperado do trabalhador neste modelo assistencial, um complexo desempenho e domínio de vários campos de conhecimento: técnico, social, ético, jurídico e político(3).

Ademais, a formulação da política de saúde mental,

requer o desenvolvimento de ações integradas e intersetoriais nos campos da Educação, Cultura, Habitação, Assistência Social, Esporte, Trabalho e Lazer e a articulação de parcerias com a Universidade, o Ministério Publico e as Organizações Não-Governamentais (ONGs), visando a melhoria da qualidade de vida, a inclusão social e a construção da cidadania da população atendida. No desenvolvimento de trabalhos com a perspectiva da intersetorialidade, destaca-se, ainda, a necessidade de contemplar a singularidade de cada território(7).

Nessa perspectiva, torna-se imprescindível elucidar o conceito de território, pois não se trata apenas de uma determinada área geográfica e sim

um lugar, espaço próprio, onde a dor, angústia, o sofrimento profundo, a doença possam ter escuta e, se necessário tratamento. Esse espaço traz a vocação de um espaço-suporte que delimita a área de atuação de uma equipe, um serviço, um programa, cumprindo a missão de materializar uma acolhida, um vínculo, condições indispensáveis para qualquer cuidado(8).

Ao adotar o território como conceito orientador de uma prática, possibilita-se o desenvolvimento de novas estratégias de intervenção; os serviços de saúde devem integrar a rede social das comunidades em que se inserem, assumindo a responsabilidade pela atenção à saúde nesse espaço e incorporando, na sua prática, o saber das pessoas que o constituem. Isto porque somente uma organização em rede, e não apenas um serviço, pode atender à complexidade das demandas de inclusão de pessoas portadoras de transtornos mentais estigmatizadas pela sociedade.

Esta é a atribuição dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) que deverão assumir seu papel estratégico na articulação e na tessitura dessas redes, cumprindo suas funções do cuidado direto e na regulação da rede de serviços de saúde, trabalhando em conjunto com as equipes de Saúde da Família e Agentes Comunitários de Saúde, na promoção da vida comunitária e da autonomia dos usuários, articulando os recursos existentes em outras redes: sócio-sanitárias, jurídicas, cooperativas de trabalho, escolas, empresas, dentre outras(9).

Implica em incluir dimensões singulares e intersubjetivas que considerem esperanças e valores éticos para uma cultura de solidariedade entre usuários, familiares, profissionais, gestores do SUS, grupos de interesse, sociedades organizadas, ONGs, legislativo e judiciário comprometidos em organizar uma rede de cuidados que enfrente a complexidade da demanda.

A rede traz em si

um modelo de compartilhamento de recursos que contempla a continuidade e complementaridade necessárias. Mais que em qualquer outra área da saúde, para pensar uma estratégia resolutiva de cuidados que tenha de responder necessidades múltiplas, de ordem afetiva (amor, família, amizade, reciprocidade, etc.), material (renda, moradia, comida, trabalho, habilitação, cultura, lazer, esporte, etc.), clínica (psiquiátricas, psicológicas, psicossociais, sistêmicas, etc.), que requerem cada vez mais ações solidárias de governos, voluntariado, cidadãos comuns, e, particularmente, as famílias(8).

Em síntese,

a nova orientação do modelo assistencial vem impondo a implantação gradativa e crescente de uma rede de cuidados cuja organização exige uma complexa estrutura de serviço comunitário articulado a recursos territoriais, culturais, sociais(10).

Nesse sentido, para responder ao projeto terapêutico complexo, os instrumentos de intervenção devem adaptar-se à dinamicidade e flexibilidade das necessidades de saúde.

Isto posto, e considerando as diretrizes da Reforma Psiquiátrica que prescreve um modelo assistencial de base territorial e pressupõe a criação/articulação da rede de cuidados, depreende-se que novas formas de compreensão e percepção da loucura são necessárias, enfatizando o respeito à cidadania, à singularidade e à diversidade das pessoas. Constata-se, por isso, a coerente necessidade de produção de instrumentos intrincados e sofisticados, que respondam às necessidades de saúde cada vez mais sofisticadas da população(11), isto porque

a produção de projetos e de serviços de atenção em Saúde Mental no contexto e em consonância com as diretrizes da Reforma Psiquiátrica e do Sistema Único de Saúde – SUS – tem apresentado um conjunto de inovações e contradições em diferentes dimensões(2).

E é evidente que existe uma precariedade de recursos materiais, afetivos ou intelectuais.

Foi este cenário complexo e em construção da Reforma Psiquiátrica que possibilitou o surgimento da iniciativa inovadora na rede de atenção, agregando inicialmente apenas os Centros de Atenção Psicossocial, o evento cultural e esportivo Copa da Inclusão no Município de São Paulo.

A Copa da Inclusão(ª (a ) A história do Projeto Copa da Inclusão iniciou-se com o autor deste trabalho no decurso do ensino teórico-prático da Disciplina Enfermagem em Saúde Mental e Psiquiátrica da EEUSP, no segundo semestre de 2001, no Centro de Atenção Psicossocial II de Perdizes, continuou com a realização de um Projeto Trabalho com bolsa fornecida pela Coordenadoria de Assistência Social da USP - COSEAS. Vide o Cenário do Estudo. ) busca provocar acontecimentos na vida das pessoas portadoras de transtornos mentais, iluminando aspectos que devem ser discutidos e desenvolvidos pelos serviços, principalmente os que se referem à ampliação da rede social dos usuários. Tem como principal objetivo combater a inércia, muitas vezes provocada pela complexidade do objeto de trabalho, que não é mais a doença e sim, a vida das pessoas que portam dado sofrimento psíquico.

Constata-se, entretanto, que essa nova ordem pode trazer distorções e, paradoxalmente, acarretar uma outra forma de institucionalização, caracterizada pela dependência do usuário em relação à instituição, assim como a grande limitação de sua rede familiar e social, que permanece reduzida às relações intra-institucionais, pois quando essas pessoas não estão na instituição, o acesso a outras atividades é extremamente precário, reduzindo-lhes as possibilidades de trocas, de poder contratual e de autonomia.

Refletir sobre as experiências relacionadas à Copa da Inclusão significa refletir em torno dessas contradições, ou seja, a Copa da Inclusão contribui para a produção de novas tecnologias em saúde, para a construção de ações intersetoriais e da rede de atenção? Por fim, a Copa da Inclusão está contribuindo para a consolidação do campo psicossocial?

Tomar como objeto de estudo a ação dos trabalhadores de saúde mental na Copa da Inclusão, o sentido do seu saber e do seu fazer, compreender se tal ação (analisando os elementos constitutivos dos processos de trabalho) leva em consideração a complexidade do objeto de intervenção, ou seja, a vida do usuário, tem a finalidade de contribuir para a efetivação e consolidação da Reforma Psiquiátrica brasileira e do campo psicossocial.

OBJETIVOS DA PESQUISA

Para alcançar tal finalidade, são objetivos do estudo: caracterizar o perfil profissional do trabalhador responsável pela organização da Copa da Inclusão no serviço ao qual está vinculado; compreender os processos de trabalho do trabalhador/organizador da Copa da Inclusão e analisar se estes processos de trabalho produzem transformações no cotidiano do serviço.

MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo e analítico, de caráter qualitativo.

O cenário do estudo: a Copa da Inclusão

A Copa da Inclusão ocorre anualmente desde 2002, a partir de um jogo de futsal seguido por uma confraternização no Centro de Práticas Esportivas da USP (CEPE-USP) contra o time da Associação Atlética Acadêmica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (AAAEE-USP). Nesse período, alguns dos estagiários da graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) também realizaram um jogo de futsal nas dependências de sua Universidade motivados pela demanda dos usuários. Essas iniciativas operaram com a lógica do manejo de tecnologias relacionais, proporcionando aos usuários momentos de trocas, de afetividade, construção de subjetividade, sociabilidade, relacionamento com a comunidade – alguns membros da comunidade participaram do jogo e foram convidados a participar da confraternização, contribuindo para uma mudança, no estigma da loucura – e o conhecimento de recursos do território.

A implementação do projeto encontrou dificuldades, dentre elas, a mais latente foi o local para a prática do desporto – um recurso do território – que se resolveu com uma parceria com estagiários de Psicologia da PUC e com a própria PUC-SP, que disponibilizou sua quadra de Futsal todas as sextas-feiras, local próximo ao CAPS Perdizes.

A partir desse momento firmou-se uma parceria entre o CAPS Perdizes, EEUSP e PUC-SP, para a construção do projeto que viria se chamar Copa da Inclusão, uma mostra cultural e esportiva sem fins lucrativos, com todos os envolvidos trabalhando voluntariamente; um espaço de integração, troca de saberes, socialização e confraternização que reuniu e reúne diversos serviços relacionados à saúde mental e alguns parceiros (públicos e privados). Desde 2004 é organizada pela Ong da Inclusão(b (b ) Logo da Organização não governamental criada a partir do projeto Copa da Inclusão e que atualmente organiza o evento, representa a inclusão, através de uma porta que se abre - uma mudança de paradigma proposto pela Reforma Psiquiátrica brasileira - ao portador de transtorno mental no mundo, sociedade, resgate da cidadania. ). O campeonato de futsal é a atividade central, mas existem Oficinas e espaços destinados à participação de todos.

Os organizadores do evento são psiquiatras, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, auxiliares e técnicos de enfermagem, educadores físicos, estagiários, trabalhadores de nível médio. Práticas sociais que estão criando competências para lidar com a loucura nos novos dispositivos, projetos interventivos, estratégias e serviços de saúde mental.

Em 2006, a quinta edição reuniu mais de duas mil pessoas, dentre elas quatrocentos usuários jogadores, além de usuários torcedores, familiares, trabalhadores técnicos e não técnicos de mais de quarenta serviços, uma associação de usuários e familiares, além de pessoas da comunidade, no SESC Itaquera. Recebe apoio do Conselho Regional de Psicologia - SP, da Federação Paulista de Futebol de Salão e do SESC Itaquera.

Os sujeitos do estudo

Os critérios norteadores para a eleição dos sujeitos do estudo foram: regularidade da participação dos serviços na Copa da Inclusão, conforme informado pela diretoria da ONG da Inclusão e quantidade maior de serviços tipo CAPS devido sua maior representatividade na Copa da Inclusão. Foram eleitos seis trabalhadores responsáveis pela organização da Copa da Inclusão dos seguintes serviços: CAPS II de Pirituba, do Largo 13, de Itaquera e o de Perdizes, pertencendo respectivamente às regiões Norte, Sul, Leste e Centro-Oeste do município de São Paulo, o CAPSad de Ermelindo Matarazzo e o CECCO Freguesia do Ó.

Os instrumento, método de coleta e análise dos dados empíricos

O estudo obedeceu aos aspectos éticos da Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, sendo aprovado pelos Comitês de Ética da EEUSP (Processo nº 546/2006) e da Secretaria Municipal da Saúde (Parecer nº 174/06).

Optou-se pela entrevista semi-estruturada para a coleta de dados por considerar-se que essa entrevista não induz a respostas pré-fixadas, possibilitando liberdade e espontaneidade necessárias para o enriquecimento da investigação e ao mesmo tempo mantém o foco no tema específico a ser investigado(12). Para atingir os significados manifestos e latentes no material qualitativo têm sido desenvolvidas várias técnicas e, entre elas, a Análise da Enunciação é uma das formas que melhor se conforma à investigação qualitativa do material sobre saúde(12), sendo um dos principais motivos que pesaram para a escolha desse procedimento no presente estudo.

As bases conceituais

Para atingir a finalidade e os objetivos deste estudo, as categorias teóricas norteadoras da análise do significado da ação de saúde (os processos de trabalho nos seus elementos constitutivos), do saber e do fazer, dos sujeitos desta pesquisa foram:

a. Os processos de trabalho e as tecnologias em saúde

O trabalho é a atividade pela qual o ser humano domina as forças naturais, humaniza a natureza. É a atividade pela qual cria-se a si mesmo. É um processo de transformação que ocorre porque os seres humanos têm necessidades que precisam ser satisfeitas. Realiza-se com o consumo da força de trabalho e pela intermediação dos instrumentos que o agente insere entre ele próprio e o objeto, para dirigir sua atividade a uma dada finalidade(13).

No caso da saúde o processo de trabalho acontece porque alguém ou um grupo social – o objeto de intervenção a ser transformado pelo trabalho humano intencional – procura um serviço com uma dada necessidade a ser satisfeita e, assim, a finalidade do processo de trabalho é desenvolver estratégias para responder a essa tal necessidade(11).

Os instrumentos de trabalho em saúde, e, particularmente na saúde mental, adquirem uma qualidade superior, porque o objeto de trabalho (um ser humano constitutivamente fragilizado por um sofrimento psíquico, sua vida em relação) também é mais complexo(11). Isto porque, para além dos instrumentos e conhecimento técnico, lugar de tecnologias mais estruturadas, há um outro, o das relações, que se tem verificado como fundamental para a produção do cuidado.

Parte-se do pressuposto que o trabalho em saúde é sempre relacional, porque depende de trabalho vivo em ato, isto é, o trabalho no momento em que este está se produzindo(14).

Este estudo toma como referência os conceitos de tecnologias presentes no trabalho em saúde que classifica em: a) tecnologias duras: são os equipamentos, as máquinas e que encerram em si um trabalho morto, fruto de outros momentos de produção, conformam em si saberes e fazeres estruturados e materializados, já acabados e prontos; b) tecnologias leve-duras: saberes agrupados que direcionam o trabalho, são as normas, os protocolos, o conhecimento produzido em áreas específicas do saber, como a clínica, a epidemiologia, o saber administrativo e outros; caracterizam-se por conter trabalho capturado, porém com possibilidade de expressar trabalho vivo; e c) tecnologias leves: são as tecnologias produzidas no trabalho vivo em ato, condensam em si as relações de interação e subjetividade, possibilitando produzir acolhimento, vínculo, responsabilização e autonomia(14).

Nesta perspectiva, a mudança do modelo assistencial pressupõe impactar o núcleo do cuidado, compondo uma hegemonia do trabalho vivo sobre o trabalho morto, quando então se caracteriza uma transição tecnológica que significa a produção da saúde, com base nas tecnologias leves, relacionais, e a produção do cuidado de forma integralizada, operando em linhas de cuidado por toda a extensão dos serviços de saúde, centrado nas necessidades dos usuários(15).

A tecnologia complexa empregada no campo psicossocial é a

relação entre sujeitos com histórias singulares, irreproduzíveis e intransferíveis, ou seja, o campo da saúde mental é um campo fértil para a produção e desenvolvimento de tecnologias leves(10).

b. Os pressupostos do campo psicossocial

O campo psicossocial tem como pressupostos

o planejamento do modelo assistencial coletivizado, produzido no espaço multiprofissional com qualidade interdisciplinar, a superação da rigidez da especificidade profissional, e flexibilidade para produzir o produto de saúde mental compatível com a necessidade do consumidor do produto de saúde mental(10).

No campo psicossocial os instrumentos de intervenção devem adaptar-se à dinamicidade e flexibilidade das necessidades de saúde da população; a organização do trabalho deve ser o principal instrumento de produção de ações de saúde; e os agentes podem experimentar novas tecnologias, testá-las e produzi-las, dispensá-las ou recuperá-las(11). O serviço deve ser o lugar de exercício da práxis, onde o saber origina-se da realidade concreta e a ela transforma, e, transformando a própria realidade, necessitará novamente transformar-se, em constante relação dialética com a realidade.

RESULTADOS E DISCUSSÃO DOS DADOS EMPÍRICOS

Os processos de trabalho relacionados à Copa da Inclusão

a. Da força de trabalho na Copa da Inclusão

Quanto à formação profissional, observa-se diversidade de áreas acadêmicas: uma enfermeira, dois psicólogos, uma assistente social, uma fisioterapeuta e um estagiário de educação física. Com relação à Pós-Graduação, dois trabalhadores possuem especialização em saúde mental e um em saúde pública, os demais, 50% deles, não possuem especialização ou outro curso pós-graduado.

Os trabalhadores estão envolvidos com atividades de capacitação profissional relacionadas direta ou indiretamente com a saúde mental: psicanálise, grupos na instituição, adolescentes, dependência química, inclusão escolar, lazer e recreação. O que demonstra, em latência, um arsenal teórico diversificado para trabalhar em equipe multiprofissional com características interdisciplinares. Cinco trabalhadores (83%) estão engajados nos movimentos sociais, participando de seminários, encontros, congressos relacionados diretamente com o campo psicossocial e um dos trabalhadores não participou de nenhum evento nos últimos três anos.

b. Das finalidades dos processos de trabalho na Copa da Inclusão

A finalidade constatada nos dados empíricos diz respeito à ampliação da rede social, com ênfase na participação ativa dos usuários no processo de resgate de sua autonomia, o que pode produzir cidadania.

As finalidades do processo de trabalho em questão estão coerentes com os pressupostos do campo psicossocial e da Reforma Psiquiátrica brasileira, pois quando relacionadas ao interior do serviço estão centradas nas necessidades dos usuários e sua subjetividade e quando relacionadas ao território, produzem ações intersetorias para o desenvolvimento de atividades que buscam ampliar a rede social e o poder contratual dos usuários participantes, a partir do seu empoderamento.

c. Dos objetos de trabalho na Copa da Inclusão

A delimitação do objeto de trabalho ocorre somente quando o agente do processo de trabalho, através de um projeto prévio a ser operacionalizado, intenta uma transformação, uma finalidade a ser alcançada. O agente, para operacionalizar seu projeto de transformação do objeto, precisa identificar algumas características do objeto passíveis de serem transformadas(13).

Os organizadores da Copa da Inclusão definem como objeto de trabalho o usuário e a comunidade e consideram o usuário participante ativo na construção do seu projeto de vida, como pressupõe o paradigma psicossocial. Neste cenário é valorizado o saber técnico (profissional), mas também, o saber leigo (usuário), aqui considerado como pessoa, com opiniões, desejos, etc.

Este tipo de relação entre trabalhadores e usuários, que compartilha responsabilidades e êxitos é um dos pressupostos do trabalho no campo psicossocial e poderia ser reproduzida fortemente nos serviços para avaliar a qualidade da atenção ofertada, da perspectiva do usuário. Estas informações podem beneficiar a organização dos serviços de saúde, os trabalhadores e usuários.

A Copa da Inclusão que opera majoritariamente com tal concepção de objeto ampliado (o usuário e sua vida em relação) possibilita um caminho de superação do modelo conceitual tradicional psiquiátrico que elege como objeto de intervenção a doença mental. Encontraram-se dados escassos de concepção de objeto de trabalho impregnada pelos conceitos do campo psiquiátrico.

d. Dos instrumentos de intervenção na Copa da Inclusão

A mudança de concepção de objeto de intervenção convoca novos instrumentos – estratégias de intervenção, projetos terapêuticos e outros objetivos e finalidades terapêuticas. Esse novo objeto, ao mesmo tempo em que requer outros instrumentos é também redesenhado/conformado pelos novos instrumentos, numa dialética concreta que se apresenta no cotidiano de trabalho dos profissionais do campo psicossocial. Os dados empíricos revelaram três categorias de instrumentos de intervenção que incidem sobre os objetos:

• Os instrumentos de trabalho pessoais: saberes específicos

Os instrumentos são os mediadores que o trabalhador coloca entre si e o objeto de trabalho, o saber constitui parte indissociável das transformações que se operam no modelo assistencial(16).

Os dados apontam como um instrumento de trabalho, o saber específico da psicologia, da fisioterapia e da educação física. O saber técnico estruturado é acrescido de um outro saber, a disponibilidade relacional, não tão simples, transformando um trabalho inespecífico em um trabalho diferenciado. Dois trabalhadores negaram a utilização de qualquer saber estruturado na sua prática relacionada à Copa da Inclusão.

Considerando que os saberes do campo psicossocial (construídos criticamente) constituem-se também por um saber estruturado, que possui uma finalidade (a construção da cidadania dos usuários dos serviços de saúde mental), ao negar a importância dos saberes estruturados na relação com o novo objeto de trabalho, corre-se o risco de realizar um trabalho alienado, não condizente com os pressupostos da Reforma Psiquiátrica brasileira.

Outros instrumentos de trabalho foram apontados pelos dados empíricos: a) saber trabalhar em equipe multiprofissional com características interdisciplinares (as práticas se relacionam, são recíprocas, interagem, há uma identificação comum de objeto); b) tendência à horizontalização das relações de poder entre saberes e enriquecimento mútuo(17); c) apropriação e responsabilização pelo processo de trabalho (o trabalhador sente-se identificado com o projeto de intervenção e se reconhece nele como ator catalisador de transformações); d) conhecimento das políticas de saúde mental (é imprescindível no campo psicossocial, é a partir desse conhecimento que ocorre a apropriação do trabalho – objeto, finalidade e instrumentos – e esse não ocorrerá de forma alienada) e; e) circulação pelos recursos territoriais (no contexto social dos usuários, o que possibilita a ampliação de sua rede social).

Considerando os dados apresentados, os instrumentos pessoais são coerentes com o modelo de atenção psicossocial e a força de trabalho utiliza, em seu processo de trabalho, predominantemente tecnologias leve-duras dominadas pelas tecnologias leves, ou seja, trabalho vivo que é produzido em ato, no encontro do usuário com o trabalhador, o que possibilita a criação de novos saberes e novas práticas em saúde mental e contribuem para a consolidação do campo psicossocial.

• Os instrumentos de trabalho institucionais

Os dados apontam predominantemente a utilização de Grupos e Reuniões, caracterizados como espaços de reflexão e escuta, que são imprescindíveis para a construção de respostas às necessidades dos usuários. Neste universo pesquisado é possível afirmar que a Copa da Inclusão provoca a construção/invenção de espaços coletivos que são ao mesmo tempo instrumentos e finalidade dos processos de trabalho coerentes com os pressupostos do campo psicossocial.

• Os instrumentos de trabalho intersetoriais

A Portaria 336/GM preconiza, dentre outras, a realização de atividades comunitárias, ou seja, atividades desenvolvidas em conjunto com associações de bairro, e outras instituições da comunidade, que tenham como objetivos: trocas sociais, integração do serviço e dos usuários com a família, com a comunidade e com a sociedade em geral(2).

As Oficinas de Futebol são realizadas nos Centros de Convivência e Cooperativas – CECCO, nos Clubes da Cidade, no Parque Ecológico do Tietê, na Chácara Matarazzo, na PUC-SP e em uma quadra particular. Locais tomados como instrumento de intervenção intersetorial, inserem-se claramente no território, promovem a inserção dos usuários em espaços públicos.

Outros instrumentos intersetoriais foram apontados pelos dados empíricos: a) reuniões preparatórias da Copa da Inclusão realizadas no CRP-SP (fórum de decisão onde os usuários, familiares, trabalhadores e diretoria da Ong da Inclusão possuem voz ativa na construção do projeto de intervenção coletivo); b) participação dos familiares na organização da Copa da Inclusão (como protagonista das estratégias de ocupação do território, o familiar rompe com o lugar que ocupava no imaginário de trabalhadores no modelo psiquiátrico, aquele que produz a doença de seus familiares ou de vítima indefesa de um castigo) e; c) atividades relacionadas indiretamente com a Copa da Inclusão (reconhecimento e apropriação do território, ampliação da rede social e um aumento do poder contratual dos usuários).

A Copa da Inclusão é um projeto inovador e pretensioso que mobiliza e questiona a organização interna dos serviços, os saberes, as relações de poder entre trabalhadores/trabalhadores, trabalhadores/usuários e usuários/usuários. Para que os serviços possam participar dela, necessitam realizar uma intensa busca de recursos no território que não se restringe aos locais onde realizarem as oficinas, mas firmar parcerias públicas e privadas.

Torna-se necessário retomar a unidade indissociável de teoria e prática no processo de trabalho, ou seja, da práxis, que possibilita a produção de uma ação de saúde transformadora, pois, neste universo pesquisado, observa-se que existe coerência entre a eleição do objeto de trabalho, dos saberes que os trabalhadores lançam mão e dos instrumentos institucionais e intersetoriais empregados.

e. Dificuldades e facilidades para concretizar o processo de trabalho na Copa da Inclusão

As dificuldades para concretizar o processo de trabalho na Copa da Inclusão relacionam-se principalmente com a falta de recursos materiais e financeiros, a falta de transporte, com a distância do evento, a falta de apoio da Subprefeitura, o contexto de exclusão social dos usuários e a precariedade de investimentos no campo das políticas públicas de saúde no município de São Paulo.

Para a consolidação do campo psicossocial, que amplia a concepção de objeto de intervenção, adota novas finalidades em seus processos de trabalho e utiliza um vasto arsenal de instrumentos de intervenção, não basta a criação de novos equipamentos, antes de tudo, é necessário um investimento público real para o setor, através de uma política pública de saúde mental, alinhada ao Sistema Único de Saúde, cenário que é extremamente frágil na cidade de São Paulo.

No contexto de privação de recursos públicos, os serviços, atendendo às demandas apresentadas pelos usuários, articulam-se mais intensamente com o território visando à consolidação de parcerias (públicas e privadas) para suprir essa carência.

O que há de positivo na falta de uma política pública para o setor e conseqüente consolidação do modelo de atenção psicossocial, são as transformações no cotidiano do trabalho forjadas pela articulação e resistência dos trabalhadores, usuários e familiares, o que corrobora a história de luta da Reforma Psiquiátrica brasileira.

Em contrapartida, os dados da pesquisa apontam facilidades e, dentre elas, a que se destaca é a paixão que o brasileiro tem pelo futebol, que ocasiona: a) identificação dos envolvidos com o projeto; b) transformação da Oficina em uma tecnologia majoritariamente leve – um trabalho vivo construído em ato, no momento do encontro entre os jogadores e não jogadores, usuários e não usuários, pois, através do futebol ocorre o reconhecimento dos envolvidos como cidadãos, tolerância às diferenças e diminuição do estigma social da loucura e; c) desenvolvimento do trabalho em equipe com características interdisciplinares.

O reconhecimento, o fortalecimento do trabalho em equipe para o desenvolvimento das atividades relacionadas à Copa da Inclusão, possivelmente está relacionado à cultura do futebol em nosso país, impulsionando todos (usuários, familiares, trabalhadores e comunidade) a superarem as dificuldades encontradas na realização deste projeto ímpar no campo psicossocial e contribuir para que ocorram transformações nesse campo.

SÍNTESE

As contribuições da Copa da Inclusão para a consolidação do campo psicossocial

a. As transformações na vida dos usuários

Os resultados apontam importantes transformações na vida dos usuários coerentes com as finalidades dos processos de trabalho definidas a priori pelos trabalhadores: a) ampliação da rede social; b) desenvolvimento da autonomia; c) melhoria na qualidade de vida e d) resgate da cidadania dos usuários.

Os instrumentos utilizados (pessoais, institucionais e intersetoriais) estão adequados para atingir tais finalidades. Existe coerência na eleição do objeto de trabalho, considerado uma pessoa ativa na construção de sua cidadania. As transformações estão coerentes com o novo paradigma político, social, científico e assistencial proposto pela Reforma Psiquiátrica brasileira, no qual a cidadania é o instrumento central da abordagem terapêutica e, simultaneamente, a meta a ser atingida.

b. As transformações na vida do serviço

As transformações na vida dos serviços confirmam que na relação dialética entre os meios de trabalho (instrumentos) e os objetos de trabalho ambos são transformados: de um lado o objeto passa a apresentar demandas mais complexas, por outro lado o serviço é convocado a desenvolver instrumentos de intervenção mais sofisticados.

Tais transformações dizem respeito: a) à ampliação das ações do serviço no território; b) maior entrosamento entre os trabalhadores dos serviços possibilitando o trabalho em equipe com características interdisciplinares; c) organização e planejamento das ações de saúde relacionadas à Copa da Inclusão; d) mudança no papel (poder) do trabalhador na relação com os outros trabalhadores e com os usuários e e) incorporação de novos atores (familiares, colaboradores, patrocinadores, parceiros, apoiadores) com seus saberes no campo psicossocial.

c. As transformações na vida da sociedade

As transformações na vida da sociedade, relacionadas à cultura e imaginário coletivo sobre a loucura, apontam para uma maior participação de pessoas da comunidade (familiares, colaboradores, patrocinadores, parceiros, apoiadores) nas atividades relacionadas à Copa e a diminuição do estigma social da loucura, fruto das atividades preparatórias e da Copa da Inclusão.

A Copa da Inclusão prova que as atividades intersetoriais com participação da comunidade é um trabalho vivo em ato, porque utiliza instrumentos de intervenção potentíssimos no resgate e construção da cidadania das pessoas portadoras de transtornos mentais.

As transformações (finalidades dos processos de trabalho), neste caso, podem estar ocorrendo porque o projeto de intervenção não é mais centrado no paradigma da doença, ou seja, o objeto de trabalho destes serviços foi ampliado e complexificado e diz respeito à vida real das pessoas reais vivendo nos seus territórios reais.

O trabalhador necessário ao campo psicossocial – fértil para a produção de tecnologias leves – é aquele que tem consciência práxica do seu fazer, é aquele que produz e reproduz conhecimentos com a finalidade clara de transformar as realidades. A operacionalização coletiva deste grande instrumento, pleno de tecnologias relacionais, chamado Copa da Inclusão, é totalmente coerente com os pressupostos da Reforma Psiquiátrica brasileira e do campo psicossocial.

Recebido: 23/08/2007

Aprovado: 22/12/2008

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  • Correspondência:
    Ana Luisa Aranha e Silva
    Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 - Cerqueira César
    CEP 05403-000 - São Paulo, SP, Brasil
  • *
    Extraído da dissertação " Contribuições da Copa da Inclusão para a consolidação do campo psicossocial" , Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, 2007.
  • (a
    ) A história do Projeto Copa da Inclusão iniciou-se com o autor deste trabalho no decurso do ensino teórico-prático da Disciplina Enfermagem em Saúde Mental e Psiquiátrica da EEUSP, no segundo semestre de 2001, no Centro de Atenção Psicossocial II de Perdizes, continuou com a realização de um Projeto Trabalho com bolsa fornecida pela Coordenadoria de Assistência Social da USP - COSEAS. Vide o Cenário do Estudo.
  • (b
    ) Logo da Organização não governamental criada a partir do projeto Copa da Inclusão e que atualmente organiza o evento, representa a inclusão, através de uma porta que se abre - uma mudança de paradigma proposto pela Reforma Psiquiátrica brasileira - ao portador de transtorno mental no mundo, sociedade, resgate da cidadania.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Aceito
      22 Dez 2008
    • Recebido
      23 Ago 2007
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