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Sobre cuidados paliativos

EDITORIAL

Sobre cuidados paliativos

Magali Roseira Boemer

Professora Associada Aposentada do Departamento de Enfermagem Geral e Especializada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, SP, Brasil. boemerval@gmail.com

Muito tem sido escrito a respeito da humanização do cuidado e, particularmente, sobre humanização da assistência ao paciente à morte. Sob um primeiro olhar, pode parecer algo bastante pontual; entretanto, o cuidar humanizado de uma pessoa, em seu processo da finitude, estará intrinsecamente ligado ao cuidar dessa pessoa, desde sua entrada no atendimento primário. Assim, a forma mais (ou menos) humanizada de assistir a pessoa, cuidando dela em seu processo de terminalidade, interliga-se à forma como vem sendo o seu cuidar desde esse momento. Nesse sentido, poderemos ter, diante de nós, uma pessoa fora de possibilidades terapêuticas, mais fragilizada ou fortalecida, segundo o que ela tem recebido em termos de humanização.

Pacientes com doenças avançadas, muitas delas em fase terminal, constituem uma realidade em nossos hospitais, com sérias dificuldades para os administradores, profissionais de saúde, familiares, e para os próprios pacientes. Vários são os problemas e desafios, destacando-se, entre outros, a escassez de recursos humanos para lidar e responder às demandas do paciente e de sua família; a falta de uma rede nacional que articule ações de intervenções médicas prolongadas e persistentes em detrimento de uma abordagem que alivie o sofrimento do paciente; a inexistência de uma rede de suporte domiciliar; e o fato de que os cuidados ao final de uma vida não são prioridade para os gestores de políticas de saúde.

Os cuidados paliativos e o cuidado hospice propõem uma transformação, na forma de cuidar da pessoa com doença grave e terminal, deslocando o paradigma da cura para o cuidado.

Atualmente, essa forma de cuidado está presente em 116 países, sendo que nos Estados Unidos há maior oferta de hospices. Apesar das dificuldades que esse movimento enfrenta para sua inserção no Sistema de Saúde, é inegável que há um interesse disseminado pelo mundo.

Assim, os cuidados paliativos configuram-se como uma proposta de cuidado da pessoa em seu morrendo, que contemple pontos relevantes, pertinentes às diversas dimensões de sua existência. Englobam um amplo programa interdisciplinar de assistência aos pacientes com doenças avançadas, buscando aliviar seus sintomas mais estressantes, oferecendo-lhes um manto protetor (paliativo deriva do latim pallium: manto, coberta).

Nessa perspectiva, a assistência paliativa não deve ser considerada uma alternativa após a ineficácia do tratamento curativo, mas um conjunto de cuidados prestados ao paciente, desde o início de sua terapêutica, configurando assim uma abordagem especializada para ajudar a pessoa a viver melhor, favorecendo todo e qualquer tratamento que promova sua qualidade de vida até o momento de sua morte.

O Ministério da Saúde tem expressado sua preocupação com a necessidade crescente de cuidados paliativos e de controle da dor. Com base nos problemas de saúde em nosso país, publicou a Portaria GM/MS nº 19, de 03 de janeiro de 2002, na qual instituiu o Programa Nacional de Assistência à Dor e Cuidados Paliativos, possibilitando novos debates acerca da temática e da capacitação profissional, além de rever posturas pertinentes ao cuidado do paciente portador de doença crônico-degenerativa ou em fase final de vida e seus familiares. Em âmbito nacional, várias iniciativas tem surgido, e estudos alertam para a necessidade da implementação dos cuidados paliativos em todos os níveis de atenção à saúde.

No entanto, a lacuna na formação de profissionais de saúde, em relação ao tema, tem sido um obstáculo para o cuidado ao paciente que vivencia sua terminalidade.

No Brasil, surgem algumas iniciativas no sentido de implementar essa filosofia de cuidado; contudo, ainda há muito a fazer para consolidar essa abordagem terapêutica. O difícil acesso aos serviços de assistência, as falhas nas diretrizes das políticas de saúde, a deficiência na formação de profissionais e, principalmente, a falta de informação ao paciente, nos confrontam com a necessidade de controlar a dor, aliviar os sintomas, e promover uma melhor qualidade de vida para essas pessoas. Com o avanço tecnológico e a consequente detecção precoce de doenças, alguns profissionais direcionaram seu olhar para essa questão e, dessa forma, aprofundaram seus conhecimentos nessa abordagem, incorporando o conceito de cuidar e não apenas curar.

Em 1997 surge a Associação Brasileira de Cuidados Paliativos (ABCP), realizando diversos eventos internacionais. Decorrido um ano, a ABCP efetuou um levantamento dos serviços existentes para controle da dor e cuidados paliativos em todo o território nacional, tendo identificado trinta Instituições com essas características; 20 encontravam-se na região sudeste, seis na sul, uma no centro-oeste, uma na norte e duas na região nordeste.

A abordagem paliativa é a única opção real para a maioria dos pacientes portadores de doenças crônico-degenerativas, sendo que tal assistência conta com apenas parte dos recursos financeiros disponíveis, uma vez que grande parcela da verba é destinada aos tratamentos curativos. Nesse sentido, torna-se necessário reconhecer que essa temática, muitas vezes negligenciada, é um problema de saúde pública. A criação de equipes matriciais para apoio e capacitação de profissionais de saúde, a garantia de disponibilização de medicamentos para controle de sinais e sintomas da doença, e a concepção de leis que protejam profissionais de saúde, pacientes e familiares, constituem-se em fatores de extrema importância para viabilizar cuidados paliativos.

Apesar de todos os obstáculos vivenciados para a implantação da assistência paliativa, hoje há um número relevante de estudos sobre essa temática. As inquietações surgem dos profissionais de saúde que prestam cuidado direto a essas pessoas e, assim, eventos, congressos científicos, e publicações, tem crescido numericamente. Em 2008 foram realizados seminários, congressos, palestras e simpósios, abordando temáticas como alívio da dor, humanização, uso de drogas opioides,, e a inserção mundial dos cuidados paliativos.

Segundo o Ministério da Saúde, para a realização dos cuidados paliativos, faz-se necessária equipe multiprofissional composta por, no mínimo, médicos, enfermeiros, nutricionistas, psicólogos, assistente social, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais, que atuem sob a perspectiva interdisciplinar. Devem ser reconhecidos e valorizados igualmente, trabalhando em sintonia, de forma a contemplar a autonomia do paciente e de sua família.

Nesse sentido, é preciso pensar na inserção da enfermagem nos cuidados paliativos sob a ótica da interdisciplinaridade, visto que o cuidado é inerente à profissão desde sua concepção moderna, proposta por Florence Nightingale. Assim, vemos que os enfermeiros podem, norteados por essa diretriz, ajudar a pessoa em seu morrendo, tendo, como fio condutor do cuidado, a preservação da dignidade dessa pessoa.

Nessa preservação, merecem especial atenção o controle e o manuseio da dor, a higiene do paciente, das suas roupas e do seu ambiente, a construção de vínculos, o compartilhamento das decisões com o paciente, o exercício da sua autonomia, a flexibilidade (concessões, brechas) versus rigidez, burocracia, a atenção aos seus pequenos-grandes desejos, as respostas honestas, e atenção aos limites dos profissionais e cuidadores.

Para os enfermeiros, emerge ainda a questão das técnicas, as quais podem receber outra significação. Não há dúvidas de que elas instrumentalizam o processo de trabalho da enfermagem, e se constituem em conteúdo fundamental no processo de formação dos enfermeiros. Entretanto, é preciso saber desenvolvê-las de forma que não levem ao cuidado do homem como um objeto fragmentado.

Não há como desvincular, durante a realização de um procedimento técnico, os aspectos afetivos e existenciais do homem a quem cuidamos; respeitando-se isso, a relação com a pessoa doente se fortalece.

Pela especificidade do seu cuidado, e da situação dos pacientes gravemente enfermos, frequentemente os enfermeiros se veem em situações difíceis, que envolvem conflitos entre o doente e a equipe médica. A estrutura burocrática das instituições geralmente confere ao médico o poder. Entretanto, apesar dos enfermeiros deterem um poder periférico, podem constituir uma plataforma de mediação privilegiada entre os doentes e o poder médico. Sua proximidade lhes confere este poder; lhes possibilita advogar junto ao doente, exercer uma certa subversão, incentivando-o a lutar pelo exercício de sua autonomia.

Este poder lhes possibilita ainda flexibilizar normas e rotinas, burlar alguns regulamentos que carecem de lógica, abrir brechas, tornando a instituição mais humanizada para o doente.

Muitas vezes, no cotidiano de trabalho, vemos esses doentes diante de momentos difíceis de decisão. Cabe lembrar que o processo de decisão não é linear. Ele se dá em círculos e, assim sendo, esses momentos são conflituosos, ambíguos e contraditórios, porque são humanos.

Se os profissionais se despojarem do velho e abolido conceito de que não devem envolver-se emocionalmente, conseguirão usar suas subjetividades para captar a do doente e, assim, poderão estabelecer intersubjetividades que facilitarão o cuidado de enfermagem e imprimirão, ainda que informalmente, as marcas essenciais da filosofia de cuidados paliativos.

Desta forma, como enfermeira, vejo a enfermagem, em sua essência, como ciência humana, pois é endereçada ao humano. Seja no planejamento, no gerenciamento da assistência ou no ato direto de cuidar, o humano estará sempre presente.

O doente espera do profissional que dele cuida um engajamento humano, o estabelecimento de um vínculo, uma disponibilidade pessoal para estar-com e, nesse sentido, investir na relação com o doente requer estabelecer estratégias que humanizem a assistência. Entretanto, elas ultrapassam a instância ôntica apenas quando singularizam o doente; caso contrário, transformam-se em mais técnicas e normas a serem seguidas.

O cuidar em enfermagem necessita fundamentar-se na seguinte questão - a que homem esse cuidado contempla? Aquele objeto de manifestação da ciência ou aquele que, enquanto ser-no-mundo, é sempre vir-a-ser, projeto inacabado?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2009
  • Data do Fascículo
    Set 2009
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