Acessibilidade / Reportar erro

Instrumentos de avaliação de necessidades em saúde aplicáveis na estratégia de Saúde da Família

Instrumentos de evaluación de necesidades en salud utilizados en la estrategia de Salud de la Familia

Resumos

Este estudo, descritivo e exploratório, teve como objetivo geral conhecer os instrumentos utilizados para o reconhecimento das necessidades de saúde da população no âmbito da Estratégia de Saúde da Família. Abrangeu dois Distritos do Município de São Paulo. A base teórico-metodológica consistiu da Teoria de Intervenção Práxica de Enfermagem em Saúde Coletiva. Os dados foram coletados junto a unidades de saúde e equipes de saúde da família. Os resultados mostraram a inexistência de instrumentos específicos para o reconhecimento das necessidades em saúde da população. Discutem-se três contradições presentes no fenômeno estudado: a polaridade estrutural na conceituação de necessidade contida no SUS; o princípio da integralidade postulado pelo SUS e a possibilidade operacional das unidades de saúde e a antinomia teoria-prática no processo de trabalho das equipes da ESF. Conclui-se que é imperativo superar as contradições para redirecionar as políticas e as práticas rumo ao enfrentamento das necessidades em saúde.

Necessidades e demandas de serviços de saúde; Saúde pública; Saúde da família; Enfermagem em saúde comunitária


Estudio, descriptivo y exploratorio, cuyo objetivo general fue conocer los instrumentos utilizados para el reconocimiento de las necesidades de salud de la población en el ámbito de la ESF. Comprendió dos Distritos del Municipio de Sao Paulo. La base teórico-metodológica fue la Teoría de Intervención Práctica de Enfermería en Salud Colectiva. La recolección fue junto a las unidades y equipos de salud de la familia. Es evidente la inexistencia de instrumentos específicos para el reconocimiento de las necesidades en salud. Fueron discutidas tres contradicciones: la polaridad estructural al conceptuar las necesidades contenidas en el SUS; el principio de la integralidad postulado por el SUS, la posibilidad operacional de las unidades de salud y la antinomia teoría-práctica en el proceso de trabajo de los equipos de la ESF. Se concluye ser prioritario superar las contradicciones para redireccionar las políticas y las prácticas rumbo al enfrentamiento de las necesidades en salud.

Necesidades y demandas de servicios de salud; Salud publica; Salud de la familia; Enfermería en salud comunitaria


The main objective of this exploratory and descriptive study was to acknowledge the instruments used to assess health needs of the population in the Family Health Strategy. Two districts of Sao Paulo Municipality, Brazil, were taken as the scenario. The theoretical and methodological basis was the Theory of Praxical Intervention in Collective Health. Data were collected in Heath Care Units, with Family Health teams' members. The results showed the inexistence of specific instruments to assess health needs. The discussion addresses the three contractions identified: the structural polarity in the conceptualization of health needs in the Brazilian Unified Health Care System, the principle of integrality postulated by this System and the possibility of its implementation by the health care teams, and also the theory-practice antinomy in their labor process. The conclusion is that these contradictions must be overcome in order to redirect policies and practices towards health needs assessment.

Health services needs and demand; Public health; Family health; Community health nursing


ARTIGO ORIGINAL

Instrumentos de avaliação de necessidades em saúde aplicáveis na estratégia de Saúde da Família* * Extraído do Projeto "Limites e Possibilidades dos Sistemas de Saúde Locais no Reconhecimento e enfrentamento das necessidades de Saúde da População: o PSF no Município de São Paulo", 2008.

Instrumentos de evaluación de necesidades en salud utilizados en la estrategia de Salud de la Familia

Emiko Yoshikawa EgryI; Maria Amélia de Campos OliveiraII; Suely Itsuko CiosakIII; Sayuri Tanaka MaedaIV; Dora Mariela Salcedo BarrrientosV; Rosa Maria Godoy Serpa da FonsecaVI; Maria Marta Nolasco ChavesVII; Paula HinoVIII

IEnfermeira. Professora Titular do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. Pesquisadora CNPq 1A. emiyegry@usp.br

IIEnfermeira. Professora Associada do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. macampos@usp.br

IIIEnfermeira. Professora Associada do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. siciosak@usp.br

IVEnfermeira. Professora Associada do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. sayuri@usp.br

VEnfermeira. Professora Doutora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo. dorabarrientos@usp.br

VIEnfermeira. Professora Titular do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. Pesquisadora CNPq 1D. rmgsfon@usp.br

VIIEnfermeira. Doutoranda do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Professora Associada da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, PR, Brasil. Bolsista CNPq. mnolasco@terra.com.br

VIIIEnfermeira. Doutoranda do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. paulahino@yahoo.com.br

Correspondência Correspondência: Emiko Yoshikawa Egry Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 - Cerqueira César CEP 05403-000 - São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

Este estudo, descritivo e exploratório, teve como objetivo geral conhecer os instrumentos utilizados para o reconhecimento das necessidades de saúde da população no âmbito da Estratégia de Saúde da Família. Abrangeu dois Distritos do Município de São Paulo. A base teórico-metodológica consistiu da Teoria de Intervenção Práxica de Enfermagem em Saúde Coletiva. Os dados foram coletados junto a unidades de saúde e equipes de saúde da família. Os resultados mostraram a inexistência de instrumentos específicos para o reconhecimento das necessidades em saúde da população. Discutem-se três contradições presentes no fenômeno estudado: a polaridade estrutural na conceituação de necessidade contida no SUS; o princípio da integralidade postulado pelo SUS e a possibilidade operacional das unidades de saúde e a antinomia teoria-prática no processo de trabalho das equipes da ESF. Conclui-se que é imperativo superar as contradições para redirecionar as políticas e as práticas rumo ao enfrentamento das necessidades em saúde.

Descritores: Necessidades e demandas de serviços de saúde. Saúde pública. Saúde da família. Enfermagem em saúde comunitária.

RESUMEN

Estudio, descriptivo y exploratorio, cuyo objetivo general fue conocer los instrumentos utilizados para el reconocimiento de las necesidades de salud de la población en el ámbito de la ESF. Comprendió dos Distritos del Municipio de Sao Paulo. La base teórico-metodológica fue la Teoría de Intervención Práctica de Enfermería en Salud Colectiva. La recolección fue junto a las unidades y equipos de salud de la familia. Es evidente la inexistencia de instrumentos específicos para el reconocimiento de las necesidades en salud. Fueron discutidas tres contradicciones: la polaridad estructural al conceptuar las necesidades contenidas en el SUS; el principio de la integralidad postulado por el SUS, la posibilidad operacional de las unidades de salud y la antinomia teoría-práctica en el proceso de trabajo de los equipos de la ESF. Se concluye ser prioritario superar las contradicciones para redireccionar las políticas y las prácticas rumbo al enfrentamiento de las necesidades en salud.

Descriptores: Necesidades y demandas de servicios de salud. Salud publica. Salud de la familia. Enfermería en salud comunitaria.

INTRODUÇÃO

As necessidades em saúde da população tem sido objeto de estudos, debates e políticas de saúde. Autores nacionais e estrangeiros têm produzido estudos que visam responder principalmente à questão do reconhecimento e resposta a essas necessidades. Antes, entretanto, é preciso situá-las campo teórico-filosófico, de modo a definir o marco conceitual que permitirá recortá-las e definir quais necessidades serão atendidas(1). Necessidades de saúde são definidas, recortadas e objetivadas e, portanto, reconhecidas, nos espaços de articulação entre os serviços de saúde e a população dos territórios onde tais serviços situam-se. É também privilegiadamente nesses espaços, integrados às demais instâncias da rede de atenção à saúde, que se buscam atender as necessidades em saúde. De fato, o pólo teórico da saúde coletiva é tensionado pela realidade em que se constrói a assistência à saúde(1).

O entendimento da organização e do funcionamento de sistemas e práticas locais, em termos das possibilidades de reconhecimento e enfrentamento de necessidades de saúde, é fundamental para a compreensão do modo como os processos de trabalho em saúde articulam-se à realidade de um dado território. Por essa razão, as diferentes realidades em que ocorre a atuação das equipes de saúde devem ser conhecidas, para assim compreender os contextos em que se verificam os processos de trabalho em saúde(2).

Do ponto de vista marxiano, a concepção mais fecunda de necessidades pode ser encontrada na obra de Agnes Heller, que define necessidade como um

desejo consciente, aspiração, intenção dirigida a todo o momento para certo objeto e que motiva a ação como tal. O objeto em questão é um produto social, independentemente do fato de que se trate de mercadorias, de um modo de vida ou de outro homem(3).

A autora distingue dois tipos de necessidades: as naturais, relativas à conservação e à perpetuação da vida, e as necessárias, radicais ou propriamente humanas; ambas socialmente determinadas. As primeiras incluem as necessidades de alimentação, abrigo, sexual, de contato social e cooperação, relativas, portanto, à auto-conservação e à preservação da espécie, embora nem por isso possam ser consideradas naturais, porque produzidas em contextos sociais. O volume dessas necessidades naturais e maneira de satisfazê-las também são produtos históricos. Já as necessidades necessárias incluem a liberdade, a autonomia, a auto-realização, a auto-determinação, a atividade moral, a reflexão, entre outras. Nesse sentido, nem toda necessidade é carecimento, pois, em se tratando das necessidades necessárias, seu contínuo aperfeiçoamento nos humaniza progressivamente(3).

As necessidades em saúde, dentro da visão helleriana, foram abordadas por um autor(4) que considera que todo trabalho humano tem como finalidade a satisfação de necessidades. A intencionalidade presente nos processos de trabalho não é individual, mas social, de tal modo que o trabalho é orientado para as necessidades sociais que o justificam. Tal como as demais necessidades humanas, as necessidades de saúde são social e historicamente determinadas e situam-se entre natureza e cultura, ou seja, não dizem respeito somente à conservação da vida, mas à realização de um projeto em que o indivíduo, ponte entre o particular e o genérico, progressivamente se humaniza(5).

Uma concepção mais recente de necessidades em saúde no Sistema Único de Saúde (SUS) é aquela que as considera como estimativas de demanda de ações e serviços de saúde, determinadas por pressões e consensos sociais provisórios, pelo estágio atual do desenvolvimento tecnológico do setor, pelo nível das disponibilidades materiais para sua realização, legitimadas pela população usuária do sistema e pelos atores relevantes na sua definição e implementação. Pretende-se, assim, superar os enfoques utilitaristas marcados pelo viés subjetivo e individual, apontando para a criação de consensos normativos sobre os níveis adequados de oferta de bens e serviços a serem providos pela ação setorial, tanto no campo da atenção, como no campo da promoção à saúde, condição essencial para a elevação dos patamares de autonomia e ampliação das capacidades individuais e coletivas para a busca da saúde(6).

No núcleo do sentido das necessidades em saúde encontra-se a concepção de processo saúde-doença determinado historicamente pela forma de inserção social dos seres humanos na sociedade, ou seja, em última instância, pela forma como se relacionam com a natureza e com os demais seres humanos. Processos saúde-doença são a síntese do conjunto de determinações que acabam por resultar em vulnerabilidades ou potencialidades diferenciadas(7).

Por último, um conceito-chave para a discussão das necessidades em saúde e suas formas de reconhecimento é o de vulnerabilidade. O termo vulnerabilidade designa, em sua origem, grupos ou indivíduos fragilizados, jurídica ou politicamente, na promoção, proteção ou garantia dos seus direitos de cidadania, estando vinculado a situações de iniqüidade e desigualdade social, expressas por meio de potenciais de enfrentamento ou de adoecimento (fortalecimento e desgaste) relacionados a indivíduos, grupos e coletividades(8).

Nessa concepção, a vulnerabilidade não se restringe a suscetibilidades individuais, mas se refere ao plano coletivo, exigindo práticas de saúde caracterizadas pelo desenvolvimento de ações que envolvam uma resposta social, resultante da participação de diferentes sujeitos sociais na procura solidária de estratégias possíveis para responder às necessidades de saúde(9).

Nos processos de trabalho em saúde é imperativo o conhecimentos dos instrumentos que articulam e ao mesmo tempo intervém sobre os Objetos para a consecução das Finalidades. No trabalho da Estratégia de Saúde da Família (ESF), as unidades de saúde e as equipes recorrem a diferentes instrumentos, sem, contudo, saber se eles conseguem reconhecer as necessidades em saúde e se permitem enfrentá-las. Dentre as práticas de saúde coletiva vem sendo construídas no Brasil, a ESF tem se mostrado o marco mais fértil de implementação no nível do coletivo. Este estudo, parte de um projeto maior que teve como objetivo geral conhecer os instrumentos utilizados para o reconhecimento das necessidades de saúde da população e suas vulnerabilidades no âmbito da ESF.

OBJETIVO

Este estudo teve como objetivo conhecer os instrumentos utilizados para o reconhecimento das necessidades de saúde da população no âmbito da ESF.

MÉTODO

Trata-se de um estudo exploratório desenvolvido no Município de São Paulo, mais propriamente nos Distritos Administrativos de Saúde de Butantã e de Capão Redondo. A escolha desses Distritos teve como critério a rede de parcerias do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo e do Curso de Enfermagem da Universidade Adventista de São Paulo - UNASP, tanto em suas atividades de graduação, como de pós-graduação.

A escolha das Unidades de Saúde e das equipes de saúde da família tomou como critério a diversidade dos perfis epidemiológicos das áreas de abrangência e de suas diferentes micro-áreas, buscando estudar as unidades e equipes que lidavam com os melhores perfis de saúde-doença, assim como com os piores. As equipes escolhidas foram convidadas a participar, o que foi aceito pela totalidade de seus componentes. A coleta de dados foi realizada no período de outubro de 2007 a novembro de 2008 em 13 Unidades de Saúde, envolvendo 42 equipes da ESF ou do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) do Capão Redondo e do Butantã, localizados respectivamente nas regiões sul e oeste do Município de São Paulo.

A base empírica dos dados consistiu de documentos e relatórios existentes nas Unidades de Saúde dos Distritos. Dados de fonte primária foram obtidos por meio de entrevistas. A pesquisa foi autorizada pelos Comitês de Ética em Pesquisa da EEUSP e da Secretaria de Saúde do Município (Processos nº 563/2006 e 86/2007).

A base teórica utilizada neste estudo foi a Teoria de Intervenção Práxica da Enfermagem em Saúde Coletiva – TIPESC. A TIPESC é uma teoria de enfermagem, assentada na visão de mundo materialista, histórica e dialética, portanto nascida no campo da saúde coletiva e no marco da determinação social dos processos de saúde-doença. A TIPESC busca realizar a intervenção da Enfermagem por meio de uma metodologia dinâmica e participativa. É uma sistematização dinâmica de captar e interpretar um fenômeno articulado aos processos de produção e reprodução social, referentes à saúde-doença de uma dada coletividade, no marco de sua conjuntura e estrutura, dentro de um contexto social, historicamente determinado; de intervir nessa realidade e prosseguir reinterpretando a realidade objetiva para novamente interpor instrumento de intervenção. Existem três dimensões da realidade objetiva a serem consideradas na operacionalização da TIPESC: a dimensão estrutural, a dimensão particular e a dimensão singular(10).

Para conhecer a forma como os serviços de saúde reconhecem e enfrentam as necessidades de saúde da população de seu território, foi utilizado um instrumento de captação da realidade objetiva que permitiu descrever a situacionalidade da instituição de saúde, nas três dimensões da realidade objetiva. Além disso, foi realizada uma captação da realidade de trabalho das equipes de saúde da família.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados mostram a diversidade das práticas de saúde no reconhecimento e enfrentamento das necessidades em saúde da população. Nenhuma unidade de saúde utiliza instrumentos apropriados para o reconhecimento das necessidades de saúde, em que pese que muitas equipes mencionam-nas quando indagadas acerca deles. Os entrevistados não relacionam diretamente os dados produzidos através das ações da unidade como informações relativas às necessidades em saúde.

Do ponto de vista institucional (dimensão particular), as informações provenientes de diferentes fontes que acessam, desde as bases mais gerais até as levantadas na atenção às famílias no domicílio ou nas consultas, não representam para os trabalhadores, possibilidades para o reconhecimento de necessidades, muito embora sejam realizadas ações previstas em protocolos ou programas de saúde.

Nas Unidades de Saúde de Capão Redondo, sob a gestão da UNASP, constata-se a existência de um painel dinâmico de informações sobre o território, que fica exposto à vista do público, tornando-se um excelente instrumento de gestão. Cada equipe de saúde da família, por sua vez, mantém um painel dinâmico com dados de sua micro-área, com possibilidade de análise rápida e constatação da melhoria ou piora de alguns indicadores, tais como número de gestantes sem atendimento pré-natal, aumento de casos de tuberculose, adolescentes grávidas, entre outros.

Com relação aos instrumentos utilizados para o reconhecimento de necessidades de saúde, 19 equipes de Capão Redondo afirmaram utilizar a visita domiciliária, 11 citaram o Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), cinco mencionaram a utilização de dados epidemiológicos e outras cinco, registro de atendimentos. Outros instrumentos citados foram carteira de saúde; consultas; cartão da família e controle do Papanicolau.

Chama a atenção o fato de o Agente Comunitário de Saúde (ACS) ter sido apontado por 17 equipes como o principal responsável pelo levantamento das necessidades de saúde, por meio da visita domiciliária e também pelo acompanhamento da carteira de saúde e cartão da família. Dos demais integrantes da equipe, a enfermeira é citada como responsável pelo reconhecimento de necessidades de saúde na visita domiciliária, na avaliação dos dados epidemiológicos ou no registro de atendimentos. Em apenas uma equipe, o médico foi apontado como responsável pelo levantamento das necessidades de saúde por meio de consultas.

No Butantã, diferentemente das equipes do Distrito do Capão Redondo, as necessidades de saúde são reconhecidas, principalmente, pelo SIAB, registro de atendimentos e, em menor número, na visita domiciliária. Outros instrumentos de reconhecimento das necessidades de saúde citados foram: carteira de saúde; consultas; cartão da família e SIS pré-natal. Nessas equipes, o ACS também é apontado como principal responsável pelo reconhecimento das necessidades de saúde, por meio de SIAB, registro de atendimentos, visita domiciliária e, inclusive, SIS pré-natal. A enfermeira é citada por um número menor de equipes como responsável pelo reconhecimento das necessidades de saúde, valendo-se de SIAB, registro de atendimentos, consultas e SIS pré-natal.

Destaca-se como principal resultado da pesquisa a inexistência de instrumentos específicos, utilizados pelas unidades e equipes entrevistadas, para o reconhecimento tanto das necessidades como das vulnerabilidades da população. Mesmo os aqueles citados pelas equipes, como banco de dados SIAB, dados epidemiológicos e formas de assistência (atendimentos, consultas, visita domiciliar), não permitem identificar como as necessidades e vulnerabilidades são reconhecidas, quais os parâmetros utilizados e, principalmente, como os dados levantados podem contribuir para a organização do processo de trabalho das equipes visando ao seu enfrentamento.

Chama a atenção, também, que o ACS seja identificado pelos profissionais das equipes como o principal responsável pelo reconhecimento das necessidades de saúde, constatando-se pouca ou nenhuma referência aos demais integrantes das equipes, exceção feita à enfermeira, apontada como responsável pela interpretação de alguns dos instrumentos citados (registro de atendimentos, consultas, SIAB ou dados epidemiológicos).

A análise dos dados revelou, portanto, a inexistência de um trabalho sistematizado para o reconhecimento de necessidades de saúde e vulnerabilidades da população no processo de trabalho das equipes. Mesmo quando existe a sistematização das informações acerca das questões de saúde do território, como ocorre com Capão Redondo, essa sistematização não é reconhecida como instrumento de avaliação de necessidades. Isto pode ser observado, por exemplo, na relação restrita ou na quase ausência de vínculo entre os programas e as ações propostas ou realizadas e os perfis de saúde-doença da população.

As contradições encontradas na interpretação da realidade objetiva são diversas e este artigo aborda as três mais destacadas. A primeira delas refere-se à contradição na dimensão estrutural, uma vez que o próprio marco estrutural do SUS contém diferentes concepções de necessidades em saúde, que desencadearão conflitos ou novas contradições na sua operacionalização. Concorda-se com autores(11), para os quais a Constituição Federal Brasileira, que institucionalizou o SUS, reconhece que saúde não se aprimora somente com a atenção à doença. Ao mencionar os determinantes do processo saúde-doença, entretanto, o faz na perspectiva multicausal, o que remete à causação e não à interpretação de que o modo como a sociedade se organiza para a produção da vida determina as maneiras como grupos sociais produzem e se reproduzem socialmente, diferenciando-os enormemente em termos de qualidade de vida e potencial de saúde, inclusive de acessibilidade aos serviços.

Dessa forma, responder às necessidades de saúde deveria significar implementar ações que incidissem nos determinantes, e não apenas na doença, que é o resultado de processos de desgaste, expressos no corpo biopsíquico individual(11).

Ao discutir a correspondência entre as necessidades de saúde e o arcabouço jurídico-político e institucional criado para atendê-las, propõe-se a utilização de um conceito normativo de necessidade que possa ser operacionalizado de modo a exprimir a dialética do individual e do social (12).

A segunda contradição refere-se aos pólos situados nas dimensões estrutural e particular: a integralidade postulada pelo SUS e a possibilidade operacional das unidades de saúde. Concorda-se com um autor quando se refere aos mecanismos de financiamento da Programação Pactuada Integrada. Estabelecida na NOAS-SUS 1/2001, ao definir os princípios da integralidade das ações e da equidade na alocação de recursos nas três esferas de governo, a Portaria afirma: adota-se um parâmetro exclusivamente baseado nas ações assistenciais, ou seja, a patologia clínica ambulatorial, em razão do peso deste gasto(12).

Considera-se que a operacionalização da integralidade por meio de programas específicos, baseados no atendimento a doenças, tal como foi possível verificar nos cenários estudados, constitui uma contradição dialética(12).

Ao recorrerem ao registro de atendimento, SIAB e ao recorte biologicista com que focalizam o processo saúde-doença das famílias, ou melhor, dos indivíduos dentro das famílias, a dinâmica familiar sequer aparece como necessidade ou vulnerabilidade. Assim procedendo, retroalimentam a contradição, que se perpetua na sua circularidade. Os trabalhadores em saúde não vislumbram possibilidades de superação, tamanha é a demanda para resolver as questões relativas às patologias. A superação da contradição remete às mudanças instrumentais para o reconhecimento e enfrentamento das necessidades interpretadas na perspectiva da determinação social da saúde-doença e no entendimento do processo de trabalho em saúde como uma resposta à necessidade que o gerou. A superação encontra-se na emancipação crítica dos processos de trabalho, de modo a quebrar a circularidade existente.

A última contradição aqui tratada localiza-se na dimensão singular e refere-se às contradições internas do trabalho das equipes de saúde da família, na antinomia que se estabelece entre as concepções teóricas e as práticas em saúde. É quase unânime atribuir aos ACSs a responsabilidade pelo reconhecimento das necessidades em saúde que serão enfrentados pela equipe. Ao serem questionados, os ACSs não sabem dizer o que é necessidade em saúde, tal como os demais membros da equipe que, embora tenha diferentes concepções de necessidades, não relutam em apontar o ACS como importante no seu reconhecimento. Confirmam assim os achados de um estudo de revisão bibliográfica que encontrou uma freqüência maior de trabalhos que reduziam o objeto do cuidado às necessidades exclusivamente biológicas(13).

No que diz respeito às concepções acerca do processo saúde-doença, as equipes não revelam uma interpretação de consenso, necessária ao trabalho coletivo. Ao contrário do referido por um estudo(14), para essas equipes, atender necessidades de saúde não significa tomar como objeto do processo de trabalho as necessidades dos indivíduos das diferentes classes sociais, que habitam um determinado território e encaminhar a política pública de saúde na direção do direito universal.

É imperativo reconhecer os recursos das famílias e como esses mudam ao longo do tempo, conformando um potencial de fortalecimento frente ao adoecimento, para que possam ser ofertadas diferentes formas de enfrentamento a suas necessidades em saúde(15). Ao atribuir à enfermeira a interpretação de certos dados referidos às necessidades, as equipes da ESF colocam nas mãos deste profissional o potencial para superar as contradições teórico-práticas relativas às necessidade em saúde e assim operar a transformação crítica e emancipatória dos processos de trabalho na ESF, de modo a permitir que os processos de trabalho em saúde, instaurados a partir do SUS, respondam a necessidades e não somente a uma dada parcela de carecimentos.

CONCLUSÃO

A TIPESC permitiu conhecer as formas de reconhecimento das necessidades em saúde no âmbito da ESF e a explicitação das contradições existentes. Um dos caminhos de superação das contradições mencionadas acima pode ser dado pela maior presença do Estado, responsável pela garantia de oferta de serviços que por sua vez possibilitem o acesso ao consumo de bens produzidos nos serviços públicos. É sempre possível criar e implementar instrumentos de reconhecimento de necessidades em saúde que possibilitem a intervenção sob a perspectiva da determinação social do processo saúde-doença. Ainda mais importante é que as contradições verificadas neste estudo sejam apropriadas pelos trabalhadores de saúde, para o encaminhamento de superações de natureza crítica e emancipatória, por meio da re-apropriação do processo de trabalho em que atuam, num processo de desalienação.

Recebido: 15/09/2009

Aprovado: 03/11/2009

Financiamento

Parcialmente financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP

  • 1. Egry EY. Apresentação. In: Egry EY, organizadora. As necessidades em saúde na perspectiva da atenção básica: guia para pesquisadores. São Paulo: Dedone; 2008. p. 9-10.
  • 2. Oliveira MAC, Egry EY. Marcos teóricos e conceituais de necessidades. In: Egry EY, organizadora. As necessidades em saúde na perspectiva da atenção básica: guia para pesquisadores. São Paulo: Dedone; 2008. p. 31-8.
  • 3. Heller A . Teoría de las necessidades em Marx. Barcelona: Península; 1986.
  • 4. Mendes-Gonçalves RB. Práticas de saúde: processos de trabalho e necessidades. São Paulo: CEFOR; 1992.
  • 5. Melo-Filho DA. Repensando os desafios de Ulisses e Fausto: a saúde, o indivíduo e a história. Cad Saúde Pública. 1995;11(1):5-33.
  • 6. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Departamento de Apoio à Descentralização. Diretrizes Operacionais dos Pactos pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão. Brasília, 2006.
  • 7. Nakamura E, Egry EY, Campos CS, Nichiata LYI, Chiesa AM, Takahashi RF. The potential of an instrument to identify social vulnerabilities and health needs: collective health knowledge and practices. Rev Latino Am Enferm. 2009;17 (2):253-8.
  • 8. Ayres JRCM, Paiva V, França Junior I, Gravato N, Lacerda R, Negra MD, et al. Vulnerability, human rights and comprehensive health care needs of Young people living with Hiv/Aids. Am J Public Health. 2006;96(6):1001-6.
  • 9. Sanches AIM, Bertolozzi MR. Pode o conceito de vulnerabilidade apoiar a construção do conhecimento em Saúde Coletiva? Ciênc Saúde Coletiva. 2007;12(2):319-24.
  • 10. Egry EY. Metodologias para captação da realidade objetiva. In: Egry EY, organizadora. As necessidades em saúde na perspectiva da atenção básica: guia para pesquisadores. São Paulo: Dedone; 2008. p.79-90.
  • 11. Campos CMS, Bataiero MO. Necessidades de saúde: uma análise da produção científica brasileira de 1990 a 2004. Interface Comum Saúde Educ. 2007;11(23):605-18.
  • 12. Stotz EN. Os desafios para o SUS e a educação popular: uma análise baseada na dialética da satisfação das necessidades. In: Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. Ver SUS Brasil: cadernos de textos. Brasília; 2004.
  • 13. Barros DG, Chiesa AM. Autonomia e necessidades de saúde na Sistematização da Assistência de Enfermagem no olhar da saúde coletiva. Rev Esc Enferm USP. 2007;41(n.esp):793-8.
  • 14. Campos CMS, Mishima S. Necessidades de saúde pela voz da sociedade civil e do Estado. Cad Saúde Pública. 2005;21(4):1260-8.
  • 15. Cowley S. Principles of British health visiting. Rev Esc Enferm USP. 2007;41(n.esp)756-61.
  • Correspondência:
    Emiko Yoshikawa Egry
    Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 - Cerqueira César
    CEP 05403-000 - São Paulo, SP, Brasil
  • *
    Extraído do Projeto "Limites e Possibilidades dos Sistemas de Saúde Locais no Reconhecimento e enfrentamento das necessidades de Saúde da População: o PSF no Município de São Paulo", 2008.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Abr 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Aceito
      03 Nov 2009
    • Recebido
      15 Set 2009
    Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: reeusp@usp.br