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Constituição cidadã e representações sociais: uma reflexão sobre modelos de assistência à saúde

Constitución ciudadana y representaciones sociales: una reflexión sobre modelos de atención de la salud

Resumos

Este artigo apresenta uma reflexão sobre o significado dos termos cidadania e saúde, abordando a Teoria das Representações Sociais como estratégia para implementação e avaliação dos modelos de assistência a saúde no Brasil. Na primeira parte, traçamos um breve histórico sobre a concepção de cidadania; na segunda, tratamos dos princípios de liberdade e igualdade pautados no pensamento de Kant; na terceira, evidenciamos a saúde como um direito do cidadão e um dever do estado; por fim, destacamos a Teoria das Representações Sociais como estratégia para avaliar e implementar os serviços de saúde prestados ao cidadão pelos modelos assistenciais de saúde em vigor no Brasil.

Enfermagem; Direito a saúde; Política de saúde; Sistema Único de Saúde


Este artículo expone una reflexión sobre el significado del término ciudadanía, salud y la Teoría de las Representaciones Sociales como una estrategia para la implementación y evaluación de los modelos de atención a la salud en Brasil. En la primera parte, trazamos un breve resumen histórico sobre la concepción de ciudadanía; en la segunda parte, abordamos los principios de libertad e igualdad pautados en el pensamiento de Kant; en la tercera, dejamos evidenciado que la salud es un derecho del ciudadano y un deber del estado y, por fin, destacamos la Teoría de las Representaciones Sociales como una estrategia para evaluar e implementar los servicios de salud prestados al ciudadano por los modelos de atención a la salud vigentes en Brasil.

Enfermería; Derecho a la salud; Política de salud; Sistema Único de Salud


This article presents a reflection on the meaning of the terms citizenship and health, addressing the Theory of Social Representations as a strategy for implementing and evaluating health care models in Brazil. First, a brief history about the concept of citizenship is presented; then the article addresses the principles of freedom and equality according to Kant; the third section of the article shows that health is as a right of the citizen and a duty of the state. Finally, the Theory of Social Representations is emphasized as a strategy to evaluate and implement the health services provided to citizens by the current health care models in Brazil.

Nursing; Right to health; Health policy; Single Health System


ESTUDO TEÓRICO

Constituição cidadã e representações sociais: uma reflexão sobre modelos de assistência à saúde* * Extraído do trabalho de conclusão da disciplina "Filosofia da Ciência e da Saúde" do Curso de Doutorado do Convênio DINTER da Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade Federal do Paraná, 2007.

Constitución ciudadana y representaciones sociales: una reflexión sobre modelos de atención de la salud

Sílvio Éder Dias da SilvaI; Flávia Regina Souza RamosII; Cleusa Rios MartinsIII; Maria Itayra PadilhaIV; Esleane Vilela VasconcelosV

IMestre em Enfermagem pela Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutorando do Programa DINTER da Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade Federal do Paraná. Professor Assistente da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal do Pará. Membro do Grupo de Estudos de História do Conhecimento de Enfermagem e Saúde e do Grupo de Pesquisa: Educação, Políticas e Tecnologia em Enfermagem da Amazônia. Belém, PA, Brasil. silvioeder@ufpa.br

IIDoutora em Filosofia da Enfermagem. Professora Associada do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Pesquisadora do CNPq. Florianópolis, SC, Brasil. flavia@nfr.ufsc.br

IIIDoutora em Filosofia da Enfermagem. Professora Voluntaria do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, Brasil. martins@ccs.ufsc.br/martins@nfr.ufsc.br

IVDoutora em Enfermagem. Professora Associada do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, Brasil. Líder do Grupo de Estudos de História do Conhecimento de Enfermagem e Saúde. Pesquisadora do CNPq. Florianópolis, SC, Brasil. Itayra@ccs.ufsc.br

VEnfermeira Especialista em Enfermagem Cirúrgica e Centro de Terapia Intensiva. Enfermeira Assistente do Banco dos Olhos do Hospital Ophir Loyola e da Coordenação Estadual de Atenção Oncológica da Secretária de Estado de Saúde Pública do Pará. Belém, PA, Brasil. leanevas@hotmail.com

Correspondência Correspondência: Sílvio Éder Dias da Silva Trav. 25 de Setembro, 1965 - Apto. 901 Ed. Monterrey - Marco CEP 66093-005 - Belém, PA, Brasil

RESUMO

Este artigo apresenta uma reflexão sobre o significado dos termos cidadania e saúde, abordando a Teoria das Representações Sociais como estratégia para implementação e avaliação dos modelos de assistência a saúde no Brasil. Na primeira parte, traçamos um breve histórico sobre a concepção de cidadania; na segunda, tratamos dos princípios de liberdade e igualdade pautados no pensamento de Kant; na terceira, evidenciamos a saúde como um direito do cidadão e um dever do estado; por fim, destacamos a Teoria das Representações Sociais como estratégia para avaliar e implementar os serviços de saúde prestados ao cidadão pelos modelos assistenciais de saúde em vigor no Brasil.

Descritores: Enfermagem. Direito a saúde. Política de saúde. Sistema Único de Saúde.

RESUMEN

Este artículo expone una reflexión sobre el significado del término ciudadanía, salud y la Teoría de las Representaciones Sociales como una estrategia para la implementación y evaluación de los modelos de atención a la salud en Brasil. En la primera parte, trazamos un breve resumen histórico sobre la concepción de ciudadanía; en la segunda parte, abordamos los principios de libertad e igualdad pautados en el pensamiento de Kant; en la tercera, dejamos evidenciado que la salud es un derecho del ciudadano y un deber del estado y, por fin, destacamos la Teoría de las Representaciones Sociales como una estrategia para evaluar e implementar los servicios de salud prestados al ciudadano por los modelos de atención a la salud vigentes en Brasil.

Descriptores: Enfermería. Derecho a la salud. Política de salud. Sistema Único de Salud.

INTRODUÇÃO

Desvelando a concepção de cidadania - um breve diálogo

No ano de 1988 foi promulgada a constituição do Estado Democrático da República Federativa do Brasil, que foi batizada de Constituição cidadã(1). A partir daí, outro conceito veio à tona em nossa esfera social - cidadania. Esta reflexão tem como objetivo discutir o significado do termo cidadania e sua interligação com a Teoria das Representações Sociais, pelo fato de percebê-la como elemento essencial para entender as práticas dos grupos sociais aos quais é aplicada, e, assim, favorecer intervenções implementadas a partir dos seus conhecimentos consensuais.

No que se refere à cidadania, tem sua origem na Grécia, onde surgiu a primeira concepção de cidade, a polis grega. Esta primeira organização urbana era composta por indivíduos livres, com participação política na democracia vigente, sendo que a discussão dos seus direitos e deveres ocorria no coletivo. Este conceito foi esquecido no seu aspecto prático durante o regime feudal, pelo fato do predomínio dos feudos rurais, que eram regidos por um senhor, que detinha todos os direitos sobre as terras. Já com o surgimento do capitalismo, evidenciado pela ascensão da burguesia, retomou-se os princípios da cidadania, como forma de estruturar a convivência entre os homens nos novos núcleos urbanos emergentes. Já na revolução francesa surgiram as cartas constitucionais, que se opuseram às normas discriminatórias do regime feudal e da monarquia ditatorial. Este momento configura com a emergência do estado de direito, que institui direitos iguais a todos os homens, ainda que perante a lei(1).

Percebemos a necessidade de compreender a Constituição de um país como uma forma de estabelecer limite nos poderes dos governantes, além dos direitos e deveres a serem seguidos pelos cidadãos. Este documento preza uma governabilidade não violenta, tendo todos os homens como seres livres que devem seguir suas diretrizes legislativas, que preconizam a liberdade dos indivíduos.

A cidadania tem como princípio que todos os seres humanos são iguais perante a lei, sem discriminação de raça, credo ou cor, tendo autoridade sobre o seu corpo e sua vida, direito a um salário harmônico para agenciar a própria vida, além de ter direito à educação, à saúde, à habitação e ao lazer(1). Outro aspecto relevante da cidadania diz respeito à lei que todo cidadão tem de seguir, sendo esta gerida pelo Estado. Este pode ser compreendido como uma organização coercitiva de uma comunidade, possuindo três concepções: a organicista (o estado é independente do sujeito e anterior ao mesmo), o contractualista (vê o estado como criação do indivíduo) e o formalista (o Estado é uma formação jurídica). Enfatizamos que as duas primeiras alternaram-se na historia do pensamento social, estando a última vinculada ao período moderno(2).

A lei pode ser compreendida como uma regra detentora de necessidade, esta última pode ser descrita de duas formas: primeiramente a impossibilidade ou improbabilidade de que um fato ocorra de outra forma; ou uma força coercitiva que garanta a realização da regra(2). Ou seja, a lei é algo que deve ser seguido por um cidadão, devendo evidenciar os seus direitos e deveres.

Os direitos de cidadão podem ser entendidos como uma técnica originada para favorecer a coexistência humana, sendo uma série de regras e normas que tem como objetivo determinar o comportamento dos homens entre si. Este direito possui uma evolução filosófica e jurídica, que foi entrecruzada, na sua validade, por quatro concepções: a primeira o considera positivo, quando, em conjunto, é reconhecido por várias sociedades; a segunda que o julga como um elemento fundado na moral, e, por tal motivo, uma forma diminuída ou imperfeita de moralidade; Já a terceira o reduz à força, ou seja, uma realidade histórica politicamente organizada e a quarta, que o considera como uma técnica social(2).

Os cidadãos possuem três modalidades de direitos: os civis que dizem respeito ao domínio do indivíduo sobre o seu corpo; os sociais que se referem ao atendimento das necessidades humanas básicas e o político, que é o direito do homem sobre sua vida(1). Há também reciprocidade entre os homens, em que os direitos de uns têm de condizer com os dos outros, pois somente assim a vida pode ser compreendida no seu sentido pleno - o da cidadania.

OBJETIVO

A partir desta contextualização, delimitamos como objetivo deste estudo uma reflexão sobre a Teoria das Representações Sociais enquanto estratégia para implementar e avaliar os modelos de assistência à saúde no Brasil.

OS PRINCÍPIOS DE LIBERDADE E IGUALDADE DA CIDADANIA: CONTRIBUIÇÕES DE IMMANUEL KANT

No momento iremos nos deter nos fundamentos de liberdade e igualdade que foram defendidos por Kant e destacamos a necessidade de um tópico que vislumbre as contribuições que este pensador acresceu ao tema aqui discutido. Os textos como o da Paz Perpétua e a Crítica da Razão Prática, possibilitaram a compreensão conceitual de cidadania para os dias atuais.

Kant nasceu em Königsberg, na Prússia oriental, em 22 de abril de 1724, pertencente a uma família pobre de crença protestante. Os seus estudos foram concentrados na filosofia, a partir da aquisição de sua livre-docência em 1755, e em 1795 com a publicação da sua obra Pela paz Perpétua. Nesta obra ele evidenciou que uma constituição republicana deveria ter como princípio a liberdade dos membros de uma sociedade, tendo a característica da dependência de todos enquanto súditos, mediados pela lei da igualdade, enquanto cidadãos(3).

Na Crítica da Razão Prática, Kant entende que a razão tem a função de ditar à vontade a lei moral. Este evidencia que essa lei não provém da experiência, mas é condição a priori da vontade e passa a reger e normatizar o viver do ser humano, estando além de sua vontade(4). O pensamento de Kant desenvolve os princípios de igualdade e liberdade, e consolida a questão do poder vinculado ao povo. O Estado fica intimamente associado aos atos do homem, que passa a ser compreendido como membro de uma sociedade civil, sendo denominado cidadão(5).

A liberdade definiu que o homem, como ser racional, é detentor de uma vontade que condiciona sua forma de agir, porém esta tem que ser submetida à lei moral. Um ser racional sempre agiria conforme sua razão, porém, como o homem faz parte do mundo sensível e inteligível, está, por tal motivo, submetido à lei prescritiva da razão. A razão contém a idéia da liberdade e esta contém a lei do mundo inteligível. Logo, todo ser racional tem que ser conhecedor das leis do mundo inteligível como imperativos, e as ações deles decorrentes como deveres(6).

A liberdade é compreendida por Kant como o alicerce para a moral e o direito. Este emerge do momento em que as várias liberdades individuais são harmonizadas no meio social. O direito consiste em um conjunto de condições nas quais vigora que o arbítrio de um indivíduo tem que se conciliar com o do outro, conforme preconizado por uma lei universal de liberdade(5). A liberdade se subdivide em interna (moral) e a externa (jurídica), sendo a primeira responsável pela gênese da obrigação moral e a outra pela obrigação jurídica, que é garantida por um sistema de coação.

Ressaltamos que o homem como ser racional é detentor de um livre arbítrio, podendo gerar atitudes morais e amorais que são determinadas por sua vontade. Por tal motivo, emprega a razão para delimitar o que é certo do que é errado, o bem do mal. Porém, quando esta forma de liberdade é suprimida, resta à liberdade jurídica estabelecer critérios que condenem ou aprovem uma determinada conduta. Ratificamos que a questão moral pode ser suprimida, pelo fato de ser interna ao indivíduo, já a questão jurídica, por ser externa, sempre resguarda a primeira(4).

O direito se define por uma consciência de obrigação de cada ser humano perante uma lei, apoiando-se numa coação exterior que lhe dá eficácia, mas que pode coexistir com a liberdade de cada indivíduo, segundo as leis universais que vigoram nos Estados de Direito(6).

Já no que se refere à igualdade, para Kant é percebida como uma característica de todo homem livre, pois é universal. Inaugura-se, assim, o conceito inclusivo de igualdade, onde cada ser humano tem um valor social, participando na construção de regras e normas que regularizam o seu existir. Kant também emprega o direito para fundamentá-la, pois ela estabelece a limitação à liberdade, sob a condição de que se limitem todos da mesma forma.

A cidadania para Kant pode ser exercida de duas formas: a passiva, na qual o indivíduo não participa da formulação dos seus direitos e deveres, preconizados pelo Estado. Já na ativa, o mesmo interage de forma a organizar o Estado, assim como formular leis às quais se submete, destacando que estas jamais podem ir contra os princípios de liberdade e igualdade do cidadão.

Neste tópico evidenciamos as contribuições de Inmanuel Kant para a gênese do termo cidadania, que estabelece os direitos e deveres do indivíduo e do Estado. No que se refere ao Brasil, evidenciamos que o direito à saúde do cidadão brasileiro encontra-se bastante comprometido pelos governantes de nosso país. A saúde tem que ser compreendida como um direito do cidadão e um dever do Estado.

SAÚDE - UM DIREITO DO CIDADÃO E UM DEVER DO ESTADO

A noção de saúde nunca foi consensual e nem permanente, podendo se afirmar que os primeiros registros remontam as eras anteriores a Cristo e orienta-se pela medicina de Hipócrates, para afirmar que a saúde constitui-se no equilíbrio entre os líquidos ou secreções existentes no corpo. Tal concepção influenciaria por vários séculos a prática médica, e só se observaria uma grande mudança na noção de saúde durante a Idade Média, quando a nosologia começaria a estruturar-se(7).

A partir daí, apareceu uma categoria de doença qualificada como adquirida no ambiente de trabalho, inaugurando-se, assim, a inclusão de um dado social, não orgânico, sobre a gênese de uma doença. Esse fenômeno, apesar de representar um grande avanço no domínio da saúde-doença, deixa entrever que o investimento realizado no campo da medicina centra-se sobre a doença, restando à saúde ser entendida como ausência de doença. Isso permitiu aos médicos conhecerem mais os sintomas e as suas origens do que os aspectos definidores da saúde, e ainda, gerou um conceito de saúde em função da doença.

Uma ruptura radical dessa estrutura só vai ocorrer, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) elabora um novo conceito de saúde, que rompe com as noções cujo perfil é basicamente organicista, acrescentando aspectos sociais e mentais. A saúde pode ser definida como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de distúrbios ou doença(8). Esta definição da OMS é criticada, por não conseguir transcender o crivo dos conhecimentos biologistas e por ser extremamente impregnado de subjetivismo, dificultando sua quantificação, uma vez que a visão quantitativa é, nesse paradigma, considerada prioritária para a abordagem da saúde.

As concepções sobre a saúde e a doença são limitadas pelo desenvolvimento teórico-conceitual da ciência e, especialmente, por condicionantes ideológicos que tornam determinadas opções conceituais mais fidedignas e mais potentes que outras. Ancoram-se em marcos teóricos e filosóficos distintos e expressam-se modelos de causalidade que, por sua vez, desdobram-se em formas de registro, mensuração, análise, interpretação e intervenção correspondentes. Retratam a diversidade conceitual e metodológica resultante das transformações dos marcos de inferência causal ao longo da história da constituição desses saberes - das crenças mágico-religiosas, passando pelo empirismo racional, até à ciência moderna(9).

Atualmente, em conseqüência da visão multifacetada da saúde, observamos uma série de conhecimentos, nem sempre consensuais, originários de várias disciplinas, os quais alteraram a nomenclatura relativa à saúde, fazendo com que a saúde-doença seja entendida como processo dialético(10). Assim houve uma evolução na compreensão da saúde e da doença cuja mudança permitiu oficializar o fim da dicotomia aparente da terminologia clássica - saúde e doença. Tal mudança promove o seu entendimento como um processo único, no qual estão reunidas e irremediavelmente enlaçadas a saúde, a doença, a vida e a morte, e que passa a ser reconhecida como um processo saúde-doença.

A saúde possui um grande valor social, pois estar saudável significa estar apto para o trabalho, enquanto a doença, como na atualidade, passa a ser compreendida como um fator que compromete a produção capitalista presente na sociedade, gerando incapacidade para o trabalho. Esta deve ser abrangida de uma forma mais ampla, não unicamente como uma aptidão ao trabalho, mas sim como algo fundamental para o viver humano. É um direito que propicia ao cidadão gozar o seu viver com os seus pares, dando lhe tranqüilidade na vida.

Quando nos reportamos ao conceito de saúde no Brasil, este é legislado como um dever do Estado, que se concretiza com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), que consiste em um sistema gestor da saúde, que teve seus princípios implementados pela Constituição de 1988. O SUS passou a implantar a assistência a saúde de forma igualitária e universal.

Este ideal encontra veracidade na Constituição brasileira de 1988, que traz, de forma inédita, uma seção específica para a saúde, vinculando-a como um direito do cidadão e um dever do Estado. A partir deste momento se transfere a noção de seguro social, predominante nos anos 20, pela de seguridade, que passa a compreender um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social(11). O cidadão passa a ter acesso pleno aos serviços de saúde, independentemente da sua renda, estabelecendo, assim, um novo padrão de cidadania.

Apesar das várias criticas que existem sobre o SUS, corroboramos que este sistema prossegue com a busca da construção de um serviço de assistência universal à saúde na periferia do capitalismo, num país populoso, marcado pela desigualdade social(12). Esta realidade evidencia um caso, talvez único no mundo, onde se busca a saúde como uma das várias facetas da cidadania - a saúde de forma igualitária e universal para o cidadão.

O SUS traz de forma inovadora uma tática de obtenção de um serviço de saúde para a população brasileira. Este sistema já pode ser compreendido como igualitário, já que oferece serviços de alta complexidade, como os transplantes de órgãos para o cidadão, independentemente de sua posição social, raça e crença. Porém, percebemos que a sua operacionalização precisa valorizar o conhecimento consensual dos grupos sociais que intenciona atender, ou seja, implementar programas a partir do conhecimento da população que se pretende cuidar. Para tanto, faz-se necessário conhecer o saber ingênuo ou popular que a comunidade tem do contexto saúde-doença sobre o qual se pretende intervir; para tanto, deve-se empregar a teoria das representações sociais (TRS) a fim de desvelá-lo.

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS, SAÚDE E CIDADANIA - UM PENSAR PAUTADO NO CONHECIMENTO CONSENSUAL

A teoria das representações sociais (TRS) teve seu início na França, na década de 50, quando o pesquisador Serge Moscovici buscou entender como a psicanálise, uma ciência nova, era compreendida pela sociedade dessa época. A partir desse estudo, ele conseguiu compreender como um objeto científico torna-se senso comum. Este fato foi levado ao público em sua obra A psicanálise, sua imagem e seu público, que lhe concedeu o titulo de pai das representações sociais(13).

Podemos identificar na TRS a existência de dois saberes descritos - o reificado e o consensual. Eles possuem o mesmo valor, apesar de que no meio cientifico o primeiro é identificado como autêntico. Mas o saber consensual propícia ao indivíduo e ao seu grupo que se posicionem frente a uma nova situação, que o elemento do grupo insere no seu cognitivo e imprime conhecimento pessoal e compartilhando-a com o seu grupo de pertença(13). Este ponto de vista nos mostra que as representações sociais têm a função de interpretar a realidade que nos cerca, orientando nossas atitudes, e as do grupo ao qual pertencemos. Evidenciamos que uma representação social está presente no imaginário, tendo como reflexo os comportamentos de um referido grupo em relação a um objeto psicossocial.

Um objeto é psicossocial quando faz parte do cognitivo do indivíduo e este compartilha com o seu grupo de pertença. Por tal motivo a saúde, tal como a doença, é um objeto legítimo para o emprego da TRS, pois está presente no cotidiano dos diversos grupos que compõem a sociedade.

A representação social de um determinado grupo social se manifesta por meio do seu comportamento frente a um objeto psicossocial, ou seja, uma forma de saber prático. Cabe mencionar que uma representação difere de uma opinião, pois esta se manifesta unicamente no relato de um indivíduo, estando ausente nas suas atitudes, nas suas práticas. Conhecer a prática de grupos sociais sobre um determinado objeto psicossocial, como a saúde, é relevante para sabermos o comportamento adotado pelos referidos grupos frente ao objeto pesquisado.

Quando falamos sobre a saúde do cidadão, automaticamente, nos remetemos ao Sistema Único de Saúde (SUS), que se apresenta como uma política que deve permitir tanto o acesso universal a cuidados básicos de saúde quanto aos mais complexos. Esse adota como objetivos: proporcionar assistência à população a partir do modelo de promoção da saúde, que implica ações para acabar ou controlar as causas das doenças; proteger a saúde da população, por meio do emprego de ações específicas com vistas a manter seu estado de saúde; e desenvolver ações de recuperação da saúde, de forma a evitar mortes e seqüelas em pessoas já acometidas por processos mórbidos(14).

Para atingirmos de forma plena os objetivos descritos acima, enfatizamos o emprego das representações sociais como um constructo teórico que favorece o conhecimento do fenômeno que acomete uma população específica. Destacamos que no Brasil vigoram vários modelos de assistência à saúde, porém todos foram e são elaborados de forma verticalizada em relação ao indivíduo, o que propicia a sua inadequação, pois foram implantadas sem respeitar as especificidades da população que busca atender. Para que um programa possa realmente atender as necessidades de saúde de uma comunidade, torna-se relevante conhecê-la, ou seja, primeiramente deve-se estudar esta comunidade, saber seus hábitos e costumes para, a seguir, estruturar-se um referido serviço.

Reforçamos que a saúde tem sido muito pesquisada pelos estudos que empregam a TRS, demonstrando que este caráter prático é relevante para a compreensão dos diversos contextos que envolvem os modelos assistenciais a saúde no Brasil. Esclarecemos que a implantação de programas que têm como meta a prevenção e promoção da saúde de uma determinada comunidade deve levar em conta o saber prático deste grupo populacional para o qual foi implementado o serviço de saúde, além de respeitar suas crenças e tabus culturais, e por tal motivo o referido serviço pode ser caracterizado mais adequado para assistir a saúde do cidadão.

Para exemplificar essa realidade mencionamos o alcoolismo, em relação ao qual o Ministério da Saúde tem despendido esforços para amenizar esse problema de saúde pública. No entanto, destacamos que um órgão não governamental tem lidado com a problemática do álcool há mais tempo e com um índice de recuperação muito maior que outras instituições governamentais no mundo - os Alcoólicos Anônimos (A. A.). Pautado nesta reflexão, foi realizado um estudo para analisar as representações sociais de alcoolistas que freqüentam as reuniões do A. A. que constatou que, ao começarem a freqüentar as reuniões do A. A. os alcoolistas passaram a representar o álcool como um agente causador da sua doença e não mais como um prazer social. Esta representação social favoreceu a formação de um novo estereótipo, o de alcoolista abstêmio, em substituição ao de bêbado, que, por sua vez, foi relevante para mudança de atitude - a de se manter afastado das bebidas alcoólicas(15). Esta realidade evidencia a relevância de se implantar um programa de prevenção ao alcoolismo que priorize o conhecimento consensual da população afetada, os alcoolistas; pois assim o mesmo será mais eficiente e eficaz.

A saúde é vista como um direito do cidadão e para existir um sérico de saúde faz-se necessário que o mesmo permita a participação da população, pois assim teremos uma interação solidária essencial para atingir sua meta social: o bem estar da população. O Estado tem que deixar de ser representado como uma instância determinante do poder que está fora do alcance das pessoas(16). Para tal se faz necessária a emancipação da saúde como um direto do cidadão, necessitando, assim, que o Estado ouça as solicitações dos mesmos quanto à elaboração e oferta de um determinado serviço de saúde pois somente assim realmente teremos um Estado democrático.

Corroboramos que a participação do cidadão (ou controle social) é um dos princípios dos SUS e este sugere a garantia constitucional de que a população, por meio dos conselhos de saúde, deverá participar do processo de elaboração das políticas de saúde, assim como o controle de sua execução, em todas as esferas do poder(14). Porém, quando nos reportamos ao exercício deste direito, percebemos que, de certa forma, o mesmo não é cumprido, pois um ponto muito marcante nos programas assistenciais à saúde do País é o predomínio do conhecimento reificado de forma absoluta. Destacamos a necessidade de se valorizar o universo consensual da população que se pretende atender, e da inter-relação entre saber erudito e senso comum, propiciando um modelo assistencial à saúde muito mais significativo, pois passa a valorizar-se a quem de deve cuidar - o cidadão.

CONCLUSÃO

Neste texto buscamos clarear a formação da cidadania, desde suas origens gregas até sua emancipação com a ascensão da burguesia. Posteriormente, tecemos alguns comentários elucidativos sobre os fundamentos de liberdade e igualdade segundo Kant. Neste tópico foi abordada à relevância dos escritos filosóficos deste pensador para formação dos princípios de cidadão e cidadania. Já no que se refere à saúde, a evidenciamos como uma responsabilidade do Estado, conforme preconizado pela Constituição de 1988, e um direito do cidadão. Posteriormente, fizemos uma breve explanação sobre o SUS como forma de tornar o acesso à saúde igualitária e universal, além de evidenciar que este sistema é uma tentativa de se contrapor à grande mercantilização da saúde no mundo.

A TRS é uma estratégia de se implementar modelos assistenciais que valorizem as comunidades para as quais foram criadas, pois será centrada em seu cotidiano. Porém, esta realidade somente será possível por meio da valorização do conhecimento consensual da população afetada, pois o senso comum favorece estruturar formas interventivas, mais eficientes e eficazes por serem horizontalizadas, e, assim, respeitarem a carga cultural do grupo social pesquisado.

Cabe destacar que a TRS, devido ao seu caráter prático e elucidativo, pode ser compreendida como uma forma de tornar este serviço de saúde mais próximo, no que se refere à valorização do conhecimento consensual, das comunidades às quais são indicadas. Não se pode falar em cidadania, quando ocorre a imposição de modelos de saúde criados por uma pequena parcela de técnicos, para atender uma demanda populacional tão diversificada. Tem-se que respeitar as especificidades culturais dos grupos sociais que compõem nosso País, pois somente assim poderemos dizer que atingimos nossa meta - uma saúde cidadã.

Concluímos que por meio deste estudo conseguimos aprofundar os aspectos da cidadania, saúde e aplicabilidade da TRS para criação e/ou adequação do serviço de saúde para uma determinada população ao qual se aplica. Podemos contribuir para os aspectos que valorizam o conhecimento popular presente no cotidiano pelo qual pretendemos interceder. Ressaltamos que se faz necessário ampliar os pontos de vista sobre o eixo cidadania, saúde e a TRS, para que possa haver novas perspectivas para a elaboração de serviços de saúde ao cidadão.

Cabe, também, mencionarmos que este ensaio não tem a pretensão de dar uma proposta para resolução de um problema tão grave de saúde pública no Brasil, que é a falta de saúde e respeito para com o cidadão. Porém, sim, uma forma de perceber que uma das estruturas responsáveis pela implantação de cidadania plena, centra-se no direito do brasileiro de ter acesso aos serviços de saúde.

Recebido: 09/03/2009

Aprovado: 18/11/2009

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  • Correspondência:
    Sílvio Éder Dias da Silva
    Trav. 25 de Setembro, 1965 - Apto. 901
    Ed. Monterrey - Marco
    CEP 66093-005 - Belém, PA, Brasil
  • *
    Extraído do trabalho de conclusão da disciplina "Filosofia da Ciência e da Saúde" do Curso de Doutorado do Convênio DINTER da Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade Federal do Paraná, 2007.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Recebido
      09 Mar 2009
    • Aceito
      18 Nov 2009
    Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
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