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Discussão de famílias na estratégia saúde da família: processo de trabalho em construção

Discusión de familias en la estrategia de salud familiar: proceso de trabajo en construcción

Resumos

Objetivou-se acompanhar o processo de trabalho de uma equipe de saúde da família em suas reuniões de discussão de casos de famílias. Estudo de abordagem qualitativa, apoiado no referencial teórico-metodológico da análise institucional, linha esquizoanalítica. Acompanhou-se 17 reuniões, com participação média de 7 a 8 dos 17 trabalhadores que foram sujeitos do estudo. A equipe realizou discussão sobre as famílias, classificando-as segundo critérios de risco, refletiu sobre o que foi realizado e buscou possibilidades de ação. Houve estranhamentos ao se depararem com diferenças e dificuldades de escuta entre seus membros, que gradativamente foram vencidas, possibilitando situações de cuidado compartilhadas. A equipe empreendeu esforços para analisar o modo como cuida das famílias e para conseguir integração. Concluímos que as reuniões favoreceram a produção de cuidados e a construção da grupalidade na medida que a equipe, no cuidar lida com a subjetividade produzidas no trabalho.

Acolhimento; Enfermagem em saúde pública; Atenção primária à saúde; Equipes de administração institucional; Saúde da família


Se objetivó acompañar el proceso de trabajo de un equipo de salud familiar en sus reuniones de discusión de casos de familias. Estudio cualitativo, apoyado en referencial teórico-metodológico de análisis institucional, línea esquizoanalítica. Se acompañaron 17 reuniones, con participación media de 7 a 8 de los 17 trabajadores sujeto del estudio. El equipo discutió sobre las familias, clasificándolas según criterios de riesgo, reflexionó sobre lo realizado y buscó posibilidades de acción. Hubo sorpresa al repararse en dificultades de escucha entre sus miembros, que gradualmente fueron vencidas, posibilitando situaciones de cuidado compartidas. El equipo emprendió esfuerzos para analizar el modo de cuidar a las familias y para conseguir integración. Concluimos en que las reuniones favorecieron la producción de cuidados y la construcción de grupalidad en la medida en que el equipo, al cuidar, se enfrenta con la subjetividad generada en el trabajo.

Acogimiento; Enfermería en salud pública; Atención primaria de salud; Equipos de administración institucional; Salud de la familia


The objective was to follow the working process of a family health team in their regular meetings held to discuss family cases. This study used a qualitative approach, founded on the theoretical and methodological framework institutional schizoanalytic analysis. Seventeen meetings were followed, which counted with the participation of an average of 7 to 8 of the 17 workers participating in the study. The team held discussions on the families, and classified them according to the risk criteria, reviewed what had been accomplished in the meting and searched for action alternatives. There were disagreements when participants faced differences and difficulties to be heard by their colleagues, which were gradually overcome, and made it possible for the members to share care situations they had in common. The team made an effort to analyze the how they take care of the families and to get them to integrate. It was concluded that the meetings favor the production of care and the construction of group work as the team, while delivering care, deals with the subjectivities produced in their practice.

User embracement; Public health nursing; Primary health care; Institutional management teams; Family health


ARTIGO ORIGINAL

Discussão de famílias na estratégia saúde da família: processo de trabalho em construção* * Extraído da tese "Encontros e desencontros entre trabalhadores e usuários na Saúde em transformação: um estudo cartográfico do acolhimento, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, 2003.

Discusión de familias en la estrategia de salud familiar: proceso de trabajo en construcción

Silvia MatumotoI; Silvana Martins MishimaII; Cinira Magali FortunaIII; Maria José Bistafa PereiraIV; Maria Cecília Puntel de AlmeidaV

IProfessora Doutora do Departamento Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, SP, Brasil. smatumoto@eerp.usp.br

IIProfessora Associada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, SP, Brasil. smishima@eerp.usp.br

IIIProfessora Doutora do Departamento Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, SP, Brasil. fortuna@eerp.usp.br

IVProfessora Associada da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, SP, Brasil. zezebis@eerp.usp.br

VProfessora Titular da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo "In memorian".

Correspondência Correspondência: Lorena Fagundes Ladeia Vitoria Regis Escola de Enfermagem Anna Nery Rua Afonso Cavalcanti, 275 - Cidade Nova CEP 20211-110 - Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

Objetivou-se acompanhar o processo de trabalho de uma equipe de saúde da família em suas reuniões de discussão de casos de famílias. Estudo de abordagem qualitativa, apoiado no referencial teórico-metodológico da análise institucional, linha esquizoanalítica. Acompanhou-se 17 reuniões, com participação média de 7 a 8 dos 17 trabalhadores que foram sujeitos do estudo. A equipe realizou discussão sobre as famílias, classificando-as segundo critérios de risco, refletiu sobre o que foi realizado e buscou possibilidades de ação. Houve estranhamentos ao se depararem com diferenças e dificuldades de escuta entre seus membros, que gradativamente foram vencidas, possibilitando situações de cuidado compartilhadas. A equipe empreendeu esforços para analisar o modo como cuida das famílias e para conseguir integração. Concluímos que as reuniões favoreceram a produção de cuidados e a construção da grupalidade na medida que a equipe, no cuidar lida com a subjetividade produzidas no trabalho.

Descritores: Acolhimento; Enfermagem em saúde pública; Atenção primária à saúde; Equipes de administração institucional; Saúde da família.

RESUMEN

Se objetivó acompañar el proceso de trabajo de un equipo de salud familiar en sus reuniones de discusión de casos de familias. Estudio cualitativo, apoyado en referencial teórico-metodológico de análisis institucional, línea esquizoanalítica. Se acompañaron 17 reuniones, con participación media de 7 a 8 de los 17 trabajadores sujeto del estudio. El equipo discutió sobre las familias, clasificándolas según criterios de riesgo, reflexionó sobre lo realizado y buscó posibilidades de acción. Hubo sorpresa al repararse en dificultades de escucha entre sus miembros, que gradualmente fueron vencidas, posibilitando situaciones de cuidado compartidas. El equipo emprendió esfuerzos para analizar el modo de cuidar a las familias y para conseguir integración. Concluimos en que las reuniones favorecieron la producción de cuidados y la construcción de grupalidad en la medida en que el equipo, al cuidar, se enfrenta con la subjetividad generada en el trabajo.

Descriptores: Acogimiento; Enfermería en salud pública; Atención primaria de salud; Equipos de administración institucional; Salud de la familia.

INTRODUÇÃO

A Estratégia Saúde da Família (ESF) foi proposta como resposta à crise da saúde, para quebrar a lógica de prestação de serviços de saúde médico-centrada, biologicista com ênfase na produtividade. Preconiza a prática assistencial em equipe, centrada nas necessidades da população, promovendo processos de produção das ações de saúde através da participação social e do respeito aos saberes de todos os envolvidos por meio do vínculo e na responsabilização pelas ações de saúde coletivas e individuais(1).

A ESF constitui o foco principal da atenção básica como reorganizadora do sistema de saúde no Brasil. Como porta de entrada principal do usuário, atende pessoas em todas as fases do ciclo vital, com demandas e problemas variados, inespecíficos e nem sempre enquadráveis aos padrões e protocolos(2).

Desta forma, tanto a proposta da ESF como as características da atenção básica colocam as equipes em permanente situação de necessidade de transformação de seu processo de trabalho, sempre tendo por referência a concepção de saúde-doença que embasa a ESF(3).

No formato instituído, o processo de trabalho na atenção básica segue a dinâmica da organização hospitalar em relação ao modo conhecido dos trabalhadores se conduzirem e dos usuários se portarem, ou seja, a dinâmica das relações de poder, destacando-se a dependência dos usuários, a centralidade em procedimentos, o ato de cuidar mais episódico, entre outros(2-3).

No entanto, a complexidade da vida e as questões que as pessoas têm demandado aos serviços de saúde desafiam os trabalhadores, em quaisquer níveis que se encontrem (gestores, gerentes, trabalhadores da rede básica e outros) a buscar novos modos de lidar e de produzir saúde(4).

O espaço das reuniões de discussão de família, no processo de trabalho das equipes, representa potencialidade para criar projetos coletivos(5) de atenção à saúde e de constituição deste grupo de trabalhadores enquanto equipe, à medida que efetua sua tarefa de cuidar dos usuários(6). No entanto, é preciso estar atento para reconhecer a lógica que constitui o eixo da organização do processo de trabalho da equipe, ou seja, se trata da lógica da organização hospitalar ou se há nova lógica em construção prevista para atenção básica.

Desta forma, o presente trabalho, ainda que tenha sido realizado em 2002, mantém sua importância uma vez que o desafio da reorganização do processo de trabalho na ESF ainda persiste como problema(2). O artigo contribui com produção cientifica atual pelo referencial teórico-metodológico e pela explicitação de tensões do processo de trabalho na produção de cuidado junto às famílias acompanhadas. Trata-se de artigo original, não divulgado anteriormente, recorte de estudo maior sobre as relações trabalhador-usuário na perspectiva do acolhimento em uma equipe de saúde da família.

Utilizamos como referencial teórico-metodológico a esquizoanálise(7), uma das correntes da análise institucional(8), através do qual exploramos diferentes superfícies que compõem uma realidade, no nosso caso, o processo de trabalho de uma equipe de saúde da família em reuniões de discussão de casos das famílias acompanhadas.

A esquizoanálise se adequa a aplicação dirigida a grupos(9), para que estes empreendam auto-análise e auto-gestão. Auto-análise consiste no processo em que os coletivos podem enunciar e compreender seus problemas, necessidades, não-saberes no mesmo movimento em que produzem a auto-gestão, isto é, se organizam para produzir os dispositivos necessários para melhorar a sua vida a partir de própria e nova compreensão de sua realidade. Ao realizar tais análises, a equipe pode descobrir aspectos ocultos que se constituem nas relações de trabalho. Estas têm implicação direta com o modo como as instituições que compõe a sociedade conformam as normas e regras de funcionamento dessa mesma sociedade. Podemos citar alguns exemplos de instituições presentes no campo de atuação da ESF: a saúde, a família, o hospital, a medicina, as profissões, a igreja, entre outros. As instituições estão sempre em movimento, na oscilação entre manutenção e criação, conservação e dissolução. Os processos manutenção são denominados instituídos e os de transformação e criação resultam de forças que compõem os movimentos instituintes(7-8).

Os trabalhadores e a população estão acostumados ao modo tradicionalmente instituído da lógica hospitalar com a atenção médica individual, tecnológica. É preciso construir uma cultura da atenção familiar, de atenção à saúde, de atenção cuidadora de emancipação e cidadania. Esta mudança pode operar-se na medida em que a equipe trabalha, reformulando gradativamente as expectativas e os conceitos de saúde, doença e atenção em saúde da família. Trabalha-se para que a população compreenda que pode demandar à equipe questões que vão além do adoecimento biológico, ou seja, demandas da produção social do processo saúde/doença como violência, drogas, desemprego, desigualdade, carências sociais. A produção desta demanda se faz pelo vínculo estabelecido nas relações cotidianas entre os usuários e a equipe. Destacamos que quando a equipe se depara com a demanda que ela ofertou, sente falta de instrumentos em sua caixa de ferramentas para enfrentar tais problemas.

A inserção do agente comunitário na equipe é uma mudança concreta. Este deve ser morador da área, conhecer o modo de viver das pessoas, sua história, seus sofrimentos e a forma de expressá-los, elementos que fazem parte de seu saber e instrumental de trabalho.

Quando chega, o agente comunitário desencadeia na equipe processos de estranhamento, de desterritorialização dos trabalhadores, que não sabem como lidar com o novo integrante da equipe e com as informações que ele traz. Essa desterritorialização - estado no qual não se pode mais voltar àquele imediatamente anterior, pois já se é outro, algo se sucedeu, procedeu-se o novo(10), tem grande potência para abrir fissuras, para invenção de novas formas de agir, a partir do vivido, ou seja, do modo de vida, das dores e sofrimentos, com o compartilhamento entre trabalhadores e usuários de decisões, alegrias e frustrações. Esta é a potência que acarreta a introdução do agente comunitário. Põe em funcionamento uma "máquina" que não vê tempo nem lugar normatizados ou qualquer outro impedimento, e cria no encontro, único e irrepetível, uma ação, um ato singular cuja diferença se dá pelo sentido que tem e faz para os envolvidos.

Mas, essa força instituinte pode ser capturada. O agente comunitário também está sujeito à lógica hospitalar e às necessidades dos trabalhadores em detrimento das necessidades da população. Orienta-se, por exemplo, pelas regras e normas, especialidades, número de vagas e horários, área de abrangência. O agente comunitário também pode ser capturado nas relações em equipe. Pesa o poder-saber dos técnicos sobre o poder-saber dos usuários-população. Numa luta desigual, o povo se cala, o usuário se submete, o agente comunitário se adapta (para garantir o emprego, talvez)(11). Pesa igualmente a impotência dos trabalhadores quando não sabem o que fazer com problemas nunca antes enfrentados no âmbito de sua especialidade e que agora atravessam seu dia-a-dia, mesmo que não queiram, com a presença e a voz do agente comunitário. Não encontram ferramentas para enfrentá-los, então os repelem. Assim, se produz a não escuta dos usuários e dos agentes comunitários, e, se não há escuta, não há porque falar, não há troca nem diálogo, não há possibilidade de construir a integração da equipe para produção das ações de saúde(12).

A esquizoanálise(7) se propõe a explorar o mapa das linhas e superfícies predominantes que constituem a realidade em produção, ou seja, reconhecer tanto as instituições presentes quanto o modo de funcionamento do grupo em estudo; as potências e as resistências para produção de novas formas de cuidar das famílias. O mapa é construído na experiência de análise com a própria equipe de trabalhadores de saúde da família, descobrindo os sentidos e não-sentidos que empreendem no processo de trabalho, produzindo conhecimentos acerca da realidade vivida. A esse processo, a esquizoanálise denomina cartografia, que se constitui seu método de pesquisa(13).

Precisamos pensar a mudança na saúde e efetivá-la a partir da criação de agenciamentos para produção de ações que satisfaçam usuários e trabalhadores, realização de desejos e outras demandas subjetivas. Os agenciamentos são coletivos e põem em jogo, em nós e fora de nós, multiplicidades, afetos, acontecimentos. As reuniões de discussão de casos pela equipe de saúde da família representam importante momento para integração e articulação das ações de cuidado e enfrentamento da complexidade dos problemas e necessidades de saúde dos indivíduos, famílias e comunidade(14).

O funcionamento das sociedades modernas atuais nos submete a um sistema político global, unificado e estruturado através de linhas de segmentaridade. Somos segmentarizados por linhas que definem estratos do nosso viver. Há três tipos de linhas que nos compõe, emaranhadas umas nas outras - lineares, circulares e de fuga(10). As duas primeiras fixam códigos, territórios e formas de deslocamentos, por exemplo, a linear como oposição certo-errado, e a circular partindo de um ponto central, como o trabalho do médico, faz orbitar os círculos das demais categorias. As linhas de fuga emergem no e do cotidiano, quase imperceptíveis, surgem no ato de produção do trabalho em saúde, emaranhadas às outras linhas, abrindo espaço para a quebra das rotinas estabelecidas, possibilitando criar novas formas de cuidar.

Na saúde, a segmentaridade(7,10) instituída nos aprisiona ao já conhecido, às atribuições e funções, núcleos de competência e responsabilidade de cada profissão definidas regulamentadas por conselhos profissionais; sem observar os movimentos das linhas fuga que passam no meio dessas linhas de delimitação de fazeres, que tensionam as relações de trabalho(4) na produção do cuidado.

Conhecer o modo como as equipes vem se produzindo como coletivo e construindo o processo de trabalho na ESF nos mobilizou ao estudo a partir do referencial da esquizoanálise que nos aponta também brechas com potencialidade para ruptura e busca de um novo na saúde.

OBJETIVO

O objetivo deste artigo foi acompanhar o processo de trabalho de uma equipe de saúde da família em suas reuniões de discussão de casos de famílias.

MÉTODO

Realizamos um estudo de abordagem qualitativa, por meio de estudo de caso apoiado no referencial teórico metodológico da análise institucional, linha esquizoanalítica(7-8), trabalhando com uma equipe de saúde da família que vivenciou processo de auto-análise e auto-gestão com foco em seu processo de trabalho.

A esquizoanálise propõe que os registros sejam feitos em uma espécie de diário de bordo de uma viagem, singular, única e irrepetível, uma cartografia, em que o mais importante é a novidade, a diferença e a singularidade. Cartografar é compor a partir de relatos objetivos e subjetivos, uma espécie de mapa em que se registram os sentidos e as perdas de sentidos percebidos pelos sujeitos do estudo e pelo pesquisador a partir do vivido(7).

O processo de pesquisa e coleta de dados se deu através da participação do pesquisador nas de reuniões de discussão de casos de famílias da equipe, no período de janeiro a dezembro de 2002. Durante as reuniões, os membros da equipe apresentavam os casos das famílias para discussão e o pesquisador participava principalmente através de indagações com a intenção de favorecer a auto-análise da equipe no processo de cuidar daquela família; as perguntas buscavam explicitar o foco de preocupação da equipe, o modo como se relacionavam durante o trabalho de cuidar. Acompanhamos 17 reuniões de discussão de casos de família. A média de participantes nas reuniões foi de 7 a 8, de um conjunto de 17 trabalhadores que trabalhavam na unidade no período da pesquisa, sendo a equipe de saúde da família constituída por 5 agentes comunitárias de saúde, 1 enfermeira, 1 médico generalista, 1 técnica de enfermagem, e outros trabalhadores da unidade: 1 enfermeira, 1 ginecologista, 2 pediatras, 3 técnicos de enfermagem e 1 gerente (médica). As reuniões foram gravadas e posteriormente transcritas.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Saúde Escola da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP, protocolo nº 0027-CEP-CSE-FMRP-USP. Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, observando a Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Optamos por apresentar os resultados e as discussões entrelaçados para manter a coerência com a opção teórico-metodológica adotada nesse estudo. Também a forma de narrar os resultados por meio de cenas se fez pela opção política da narratividade(13).

As reuniões de discussões de caso eram uma das primeiras atividades da equipe. Essas reuniões estavam instituídas na unidade com o objetivo de a equipe discutir as famílias e classificá-las segundo um critério de risco(15) por cores (verde, amarelo e vermelho) do menor para o maior risco, de forma que pudessem sistematizar a atenção às famílias.

Cena 1 - Colorindo rapidamente as famílias.

O primeiro contato com essa atividade nos causou certo mal-estar. Início da manhã, rostos sonolentos, corpos vagarosamente vão tomando os lugares da sala, aos poucos. Os que chegam mais tarde entram trazendo cadeiras. Alguns se sentam quase sempre na mesma posição na sala, outros em lugares mais ou menos fixos. Aguardam em silêncio, com olhares perdidos. Outras vezes discutem em sub-grupos algum caso ou questões administrativas enquanto aguardam. Até que alguém propõe: Podemos começar?

Parece-nos mais tarefa obrigatória de classificar as famílias segundo o risco de adoecer. Mas, qual seria o entendimento acerca do objetivo da atividade para cada membro da equipe? A equipe reproduz o fazer técnico da lógica hospitalar, a produção de procedimentos. O usuário está incluído como um elemento do processo, mais objeto que gente, igual a qualquer outro, sem singularidades, e não como ator, sujeito co-produtor da ação de saúde possível no encontro.

Há sempre alguém que apresenta o caso, há poucas complementações por outros trabalhadores e as perguntas são em geral para esclarecimento de questões pontuais, de caráter mais individual: o que ela faz? Ela cuida da casa, vai no Programa de Integração Comunitária? Há uma certa hierarquia refletidana ordem em que as perguntas são feitas: os médicos, as enfermeiras e os demais. Pedidos de esclarecimento de termos técnicos são prontamente respondidos, tecnicamente: O que é bolsa de colostomia? As intervenções mais predominantes são as voltadas para a produção de procedimentos, empurradas pela força do modelo médico-assistencial hegemônico: ACS2 - Vou visitar, ver se ela fez os exames, se ela vai fazer a cirurgia.

Impressiona também a rapidez com que vão passando os casos! Não sabemos se por serem conhecidos pela equipe; mas com certeza, não por todos. Mais parece uma velocidade vertiginosa para não se pensar muito, e menos para sentir, uma velocidade tecnológica para obter domínio e poder, que leva a uma morte lenta, corpos despotencializados, sem identidade, excluídos do processo.

Alguém sugere a cor, que desbota rapidamente, não tem brilho. Ninguém faz comentários, a palavra fica solta no ar, e já se vai passando para outro caso. A expressão Família número... parece ser uma marcação do ritmo da reunião. Monótono. E os afetos passam pelo corpo:

ACS2 - Ai que sono!

Silêncio

ACS2 - Deixa eu ver o que tem de bom! Família número... (Reunião - 05/02/02).

Colorir parece mais brincadeira de criança. Um certo devir-criança da equipe que poderia trazer vida e energia para esta tarefa, que de tão maçante, precisa ser terminada rapidamente.

A apresentação dos casos se faz em meio a um intenso movimento de entradas e saídas da sala. Alguns trabalhadores parecem estar ali de passagem, entram para pegar carimbos, impressos, medicamentos, aparelhos e saem para atender telefonemas ou chamados de outros trabalhadores para outras atividades, com grande variação dos presentes na reunião e na participação da discussão dos casos para a busca de alternativas de cuidar.

Todo esse movimento dispersa a atenção sobre o caso, o responsável pela apresentação se esforça em manter-se concentrado. Mal-estar, sensação de desprestígio, de não ser considerado, dificultam o desenvolvimento da pertença do trabalhador na equipe e da pertinência do que está sendo falado em relação ao que o grupo entende como sua tarefa ali naquele momento.

A cena revela os fenômenos envolvidos na relação equipe-família, trabalhador-usuários, representa a atenção da equipe para com a família em discussão, mostrando o lugar reservado para o usuário, ou talvez, a falta desse lugar ou de condições, de disposição para dar atenção, em função da própria complexidade de alguns casos, geradores de muita ansiedade.

A forma de a equipe trabalhar - em meio a tantas entradas e saídas, afetos e desafetos, dificulta o exercício do trabalho em equipe, não favorece sua estruturação enquanto equipe, pois isso se dá na medida em que opera(6).

Alguns dos trabalhadores são mais constantes nas reuniões: as agentes comunitárias e a médica/gerente da unidade. Esta desempenha um papel essencial: é a principal ouvinte a quem se relata os casos, apesar do aparente caos e desinteresse geral. Cuidadosa e atenta, se esforça na escuta, anota, pergunta, demonstra interesse, insiste, com grande empenho em produzir uma espécie de liga no entre, abrir fissuras naquele modo tradicional, das disciplinas, hierarquias e regras.

As reuniões de discussão de caso representam o momento de reflexão sobre o que foi realizado e poderia ser o modo de multiplicar outras possibilidades de ação, descoberta de interesses e desejos, potências e impotências, predominantemente encobertos pelo fazer técnico.

O que se tem à mão para este trabalho são prontuários de famílias, fichas de cadastramento, de acompanhamento e monitoramento quanto ao risco, relatórios das visitas, prontuários individuais, e principalmente as intensidades de sentimentos e outras ressonâncias geradas pelas demandas que os usuários apresentaram para os trabalhadores, em especial, às agentes comunitárias de saúde. Ressonâncias decorrentes do contato direto com o modo de viver das pessoas, nas casas, na rua, com as dores, a fome, os conflitos familiares, a morte, a prole numerosa, a sujeira, a limpeza, a comida cheirosa, um convite para um café, ser recebido pela fresta do portão... Ressonâncias decorrentes da identificação com as famílias, e outras tantas possíveis quando se está na rua, batendo de porta em porta, trabalhando na saúde da família.

No momento das discussões revive-se intensamente os afetos. Processos conscientes e inconscientes. Não há como fugir deles apesar do grande esforço em fazê-los despercebidos.

ACS2: Dona Y tem 24 anos e é analfabeta! [...] Insisto, imagina! ela tem a minha idade. Ela não parece ter 24 anos de forma alguma! [...] exame ginecológico, tem que fazer, é importante.

Enf2 - Ela nunca passou em consulta? (Reunião - 05/02/02).

O estranhamento e a indignação da agente comunitária frente à situação da usuária ser analfabeta não ecoaram nos presentes a ponto de mobilizá-los para a discussão e busca de formas de intervenção individual ou coletiva, caso a mesma problemática fosse identificada em outras famílias. A desterritorialização expressa: Insisto, imagina! ela tem a minha idade; se perde, ou melhor, se re-territorizaliza no campo conhecido e seguro das questões técnico-científicas instituídas: fazer exame ginecológico certamente é importante também, mas não só isso.

As discussões são o tempo todo tomadas por temas complexos os mais variados, que se repetem em vários encontros, como violência, abandono, alcoolismo, planejamento familiar para famílias numerosas em condições de vida precárias, homossexualismo, casas abandonadas, medo da morte, e muitos outros. A equipe identifica problemas sem conseguir arquitetar alguma alternativa para abordá-los, deixando-os no ar. Paira um não-saber-fazer não dito e ficam no território de referência conhecido, o modo técnico-científico da medicina moderna.

Esse despreparo da equipe, na verdade, revela o despreparo da sociedade, dos órgãos formadores de profissionais, das autoridades sanitárias, enfim de todos nós. Abordagens isoladas e desarticuladas sobre esses temas complexos não provocam impacto.

Med1 - Como tem casa abandonada aqui!

ACS4 - Essa casa é de um médico [...]

ACS2 - Um terreno na [rua] LC [...] tá muito mato, tem muito bicho. O dentista mandou construir um muro do dinheiro dele.

ACS4 - aquela casa que tem placa de venda, tem lixo.

ACS1 - Tem uma na esquina que está até pior.

Med1 - Talvez fazer uma lista das casas abandonadas, casas invadida. (Reunião - 08/02/02).

O desafio da construção da intersetorialidade, interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade parece estar relacionado com a capacidade de superar segmentaridades da sociedade e as delimitações de poder-saber instituídas pelas disciplinas, de se permitir a incompletude, o não-saber e a necessidade do outro para agir.

No contexto de velocidade tecnológica, a equipe não dá conta de escutar, de abrir espaço para a dor de uma das agentes comunitárias frente à morte de um morador acompanhado por ela.

ACS1 - Deixa eu falar uma coisa, a TE4 (técnica de enfermagem) me chamou e falou que o senhor JD morreu (Lágrimas).

Med1 - Ele tinha algum problema?

ACS1 - Ele ia fazer uma cirurgia de próstata.

Med7 - Outro dia, uma paciente ia fazer uma cirurgia, [...] (ACS1 olha para o chão (Reunião - 08/02/02).

Dor e solidão. Desamparo, desânimo, desalento. Corpo caído, decaído. Olhar dirigido ao chão. A equipe não consegue se solidarizar com a dor da colega. Ou, se há implicação por parte dos trabalhadores, eles não se sentem à vontade para manifestarem-se. Predomínio da concepção do trabalho em saúde como um saber técnico que exclui emoções e sentimentos. Não se permite viver o momento, sequer planejar uma proposta de cuidado para a família, de acolher a dor da perda como alguém que se importa, pois, se foi um que estava sob nosso cuidado(16).

Rapidamente passam para outros assuntos. Mas, sem perceber vão lentamente se aproximando do tema da morte através da discussão dos outros casos, lembrando de experiências negativas e positivas, e indiretamente manifestam o próprio medo, num movimento de aproximações sucessivas e gradativas a este objeto de aprendizagem tão obscuro.

E quase ao final da reunião esboçam uma proposta de atenção aos acamados. Seria esta uma forma indireta de lidar com o tema da morte e do morrer? E, ao mesmo tempo, de abrir uma brecha para produção de cuidado, para os acamados (mais próximos da morte?). Seria também para a equipe, que se aproxima do tema do modo como pode.

Med7 - A gente poderia pegar esses casos mais complicados, de pacientes acamados (...)

Med1 - pra gente aprender [...]

Enf2 - A gente tem uma lista. Os pacientes que estão acamados são 21. [...] São 24.

ACS1 - Sendo que 11 são meus (Reunião - 08/02/02).

Esta agente, timidamente, recoloca sua dor ao anunciar que metade dos acamados a serem acompanhados moram em sua área de atuação. Dentre o emaranhado de questões apresentadas, discutidas ou não, consideradas ou não, ela permanece à espera de atenção e acolhimento.

Cena 2 - Um olhar um pouco mais atento. Expressando algumas dificuldades

Aqui a classificação das famílias é realizada, mas não como foco principal. Observa-se ênfase no nome dos componentes das famílias. Os motivos de escolha dos casos não são colocados explicitamente, mas há espaço para expressão de afetos e das dificuldades em lidar com os casos.

Parece haver uma relação entre a construção da grupalidade da equipe, a possibilidade de expressar suas necessidades, ansiedades e a capacidade de escuta, de ser continente e de cuidar uns dos outros. No entanto, a equipe não consegue ainda modificar muito o tipo de intervenção às situações criticas com os usuários.

ACS3 - [...] porque ontem, a hora que eu tava saindo pra visita, eu vi ela sentadinha ali, né? Aí eu olhei, achei ela com uma carinha de choro, eu falei: - quê que foi, R? Você tá triste, parece... Aí chorou, chorou, não parava mais de chorar. [...] eles estavam em reunião né? Estavam o dr. Med7, a dra. Med1 e a Enf1 né? E... [...] Falava que não tinha... nada valia a pena... que não... que queria acabar com a vida, né? Eu fiquei angustiada, eu falava: - ai meu Deus! Eu não sabia nem o que falar pra ela né? [...] Aí ela começou a contar toda a história né? [...] Então, diz que ele falava assim: - mamãe, compra um Danone pra mim né? e não tinha né? e ela choraaava, falava: - nossa! Ela falou: -ele não tem mais o que vestir, [...]

SILÊNCIO (Reunião - 23/04/02).

Mais ao final da discussão do caso vemos o predomínio do modo de funcionamento da nossa sociedade que é de responsabilização/culpabilização individual pela própria situação, sem considerar o complexo processo de produção histórico-social. A resposta revela o possível naquele momento, proteger-se da dor, que a dor do outro lhe causa, da incapacidade de se solidarizar com essa dor e sofrimento do usuário, responsabilizando-o; proteger-se da impotência frente ao caso; proteger-se de seu próprio sofrimento causado pelo modo de funcionamento do estabelecimento e da rede assistencial(5); amparando-se na onipotência encarnada como trabalhador de saúde.

Parece que o espaço das discussões de caso está reservado para uma espécie de administração das relações entre os vários trabalhadores e seus núcleos de saber profissional(4), sem, no entanto, definir claramente quem seria o gerenciador desse cuidado, qual seria atribuição das agentes comunitárias. Paradoxalmente, este trabalhador com menor qualificação técnica, com menos poder na equipe, é quem é mais capaz de escutar e cuidar das questões com delicadeza e sutileza.

Assim, as agentes compartilham a experiência de serem cuidadoras, do modo como podem e, ao mesmo tempo, buscam sensibilizar os demais membros da equipe a se importarem com o caso, com a família, abrindo brechas para passar as potências cuidadoras da equipe, para cuidar dos casos, dar apoio às agentes e o cuidado de si como equipe.

Gradativamente, a equipe se implica. E, a partir de um caso, descobre uma fissura por onde pode passar uma linha de fuga, no território do planejamento familiar, esboçando um fazer transversal na ótica do ser mulher, do relacionamento conjugal:

Med1 - [...] É... na verdade isso é um acontecimento em relação às mulheres, né? Essa baixa auto-estima. E não é só na classe pobre não! A gente tem visto aí, meninas, que estudam, universitárias, que se envolvem em relacionamentos... [...] Relacionamentos totalmente patológicos, de submissão né? [...]

Integrante - E também isso não acontece só com menina nova não. Pessoa já com idade também. E aconteceu...

Med1 - Então, eu acho que essa coisa com a mulher precisa se resgatar. Ela não é apêndice de homem né? [...] eu acho que tem que conversar com essa moça né? E... assim, a gravidez também é um risco pra ela nessa situação [...] (Reunião - 23/04/02).

Mas, essa energia ali presente não atingiu um limiar com intensidade suficiente capaz de engendrar uma máquina desejante, de um corpo que vibra e encontra outro corpo em ressonância compatível, capaz de produzir um dispositivo. Um dispositivo que detone novas formas de ser mulher numa sociedade como a nossa, capaz de mobilizar mulheres e homens a romper com os modos instituídos e descobrir modos mais criativos do viver afetuoso, delicado, com suavidade, produzindo e reproduzindo-se.

E assim, há certa cegueira da equipe, certa dificuldade de aprofundar a implicação, talvez por que a maioria seja de mulheres. E nessas circunstâncias, frente a dores e dificuldades vividas tão intensamente próximas, como ser capaz de lidar com a necessidade do outro? Como produzir ações cuidadoras, se o contato com o caso, com a ansiedade dos outros trabalhadores, gera grande dificuldade de suportá-lo?

Enf2 - [...] tudo bem, mas se a gente entrar no nervo dela (a usuária) [...] se entrar no nervoso dela, aí que a corda [...]

ACS2 - nenhuma de nós faz isso!

Enf2 - Vocês chegam aqui como se [...] Nossa! A dor!

ACS2 - [...] Ela não está se alimentando [...] Aí era para ele ir lá ontem e ele falou que não podia sair para visita porque ia fazer supervisão do residente. Você não tava aqui ontem (Reunião - 08/02/02).

Há dificuldade de suportar o sofrimento decorrente do trabalho. Os trabalhadores não se atentam para os ruídos denunciadores do modo de trabalhar da equipe: um movimento de recusa da dor. Exemplos disso são: a ansiedade da enfermeira ao não suportar a depositação da agente, a insatisfação da agente porque o médico não fez a visita à paciente ontem e porque não pode contar com a enfermeira que estava fora da unidade. São ingredientes que compõem a rede de relações da equipe.

Cena 3 - A construção da grupalidade da equipe e o enfrentamento das dificuldades na produção do cuidado

A grupalidade vai sendo construída. A equipe vai enfrentando a dor de se ver imperfeita, dependentes uns dos outros. Empreende um esforço para conseguir realizar a tarefa de analisar-se, apesar dos movimentos de resistência. A equipe esforça-se em conseguir uma integração.

No esforço de se ver, a equipe encontra uma forma para enfrentar as dificuldades de interação entre os trabalhadores e escolhem para discussão casos de famílias que fazem atendimento médico em convênios ou em outros serviços. Gradativamente a equipe passa a trazer casos seguidos por ela própria, muitas vezes explicitando as diferenças, desencontros e competição.

Med2 - E aí aqui, marcaram comigo. Eu falei...E depois fica essa história, ah não é da Saúde da Família, [...]. Eu tô na minha sala, atendo com a maior boa vontade. Não tenho vínculo nenhum com a criança e... o pessoal que tava vendo vai perder o vínculo com essa criança, ...e eu fico assim perdida não sei o que fazer, porque eu peguei uma criança que eu não sigo e que era... Que tinha um retorno em cinco dias e não fez nenhuma busca ativa. Se a criança não veio... Isso fica por isso mesmo... (Reunião - 03/09/02).

Quando o trabalhador explicita seu limite em lidar com o caso, apesar da explosão dos sentimentos represados, medo, dor, insegurança, impotência, ocorre a possibilidade de criar uma ação de apoio mútuo para se fortalecer, para ajudar o usuário a suportar a sua dor.

Enf2 - E eu acho que a gente precisa olhar pra gente, pro serviço, e ver uma outra coisa também. Algumas pessoas têm facilidade pra umas coisas, outras têm facilidades pra outras, ninguém é obrigado a gostar de tudo a dar conta de todas as situações, e... tá preparado pra aquilo, entendeu? [...]

Med1 - E as pessoas se sentem muito bem sendo apoiadas, né? [...] Eu, lembrar de novo [...] diante dessa coisa, que a dificuldade que a Enf2 colocou né, eu também não sou super-homem mas, [...] Eu tenho essa disponibilidade de tá acompanhando, eu gosto de ir né? (Reunião - 01/10/02).

Aos poucos os trabalhadores encontram formas de cooperar entre si para lidar com as dificuldades encontradas no trabalho e assim produzir as ações de saúde.

No movimento de buscar formas de ajudar o usuário a lidar com seus problemas, as reuniões de discussão de casos também tratam do caso da equipe(17). Tratam de assuntos administrativos, aproveitando o momento para comunicações e informes gerais. Em alguns dos encontros a discussão centrou-se nas dificuldades entre os trabalhadores, possibilitando explicitar diferenças no modo como trabalham, cuidam de si, dos outros, dos materiais e equipamentos do serviço, como se ajudam e se permitem ser ajudados, explicitam dúvidas, dificuldades, ressentimentos, indignações, e muitos outros afetos produzidos nos encontros do dia-a-dia.

CONCLUSÃO

As discussões de casos de famílias nos abrem a possibilidade de perceber as paisagens escondidas e assim criar outras. Partindo da superfície da classificação das famílias, critérios de riscos técnicos, abrem-se possibilidades produzir cuidados pela produção de subjetividades.

O palco da apresentação dos casos se abre para a multiplicação de possibilidades de ação e de produção de cuidado, que podem emergir de linhas de fuga, em pequenas fissuras, fazendo passar fluxos, intensidades e desejos, porém, nem sempre cuidadores, nem sempre libertadores.

No processo de trabalho, o modo de funcionamento instituído da equipe pode levá-la ao controle contínuo das famílias, adentrando suas casas, realizando controle burocrático efetivado pelas agentes comunitárias, transformando assim a estratégia de mudança em forma de reprodução e manutenção do estabelecido.

As discussões de caso representam o ponto de partida para expressar e lidar com as ansiedades, medos, inseguranças, fantasias que a equipe enfrenta ao se deparar com o diferente. Representa também espaço para depositação e elaboração das ansiedades inerentes ao processo de trabalho na atenção básica, de modo que os próprios trabalhadores possam apoiar-se mutuamente, fazendo-se protagonistas das ações de saúde, capazes de aprender com a experiência, de se deixar amparar e ser cuidado e de amparar e cuidar.

Ressaltamos ser importante que as equipes discutam não somente casos mais difíceis ou insolúveis, mas apresentem também aqueles com os quais obteve sucesso e resultados positivos.

Aprender e ensinar é a labuta do dia-a-dia. Poderia a família participar da discussão do próprio caso? Aqui apontamos uma limitação deste estudo, a participação da família junto com a equipe na busca de modos de lidar com os problemas, limites e potencialidades, como forma de criar protagonismo, rompendo com o instituído. As discussões de caso das famílias com as famílias seria uma forma diferente e corajosa de agir na saúde da família.

Recebido: 18/06/2009

Aprovado: 29/07/2010

  • 1
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  • Correspondência:
    Lorena Fagundes Ladeia Vitoria Regis
    Escola de Enfermagem Anna Nery
    Rua Afonso Cavalcanti, 275 - Cidade Nova
    CEP 20211-110 - Rio de Janeiro, RJ, Brasil
  • *
    Extraído da tese "Encontros e desencontros entre trabalhadores e usuários na Saúde em transformação: um estudo cartográfico do acolhimento, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, 2003.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jun 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 2011

    Histórico

    • Aceito
      29 Jul 2010
    • Recebido
      18 Jun 2009
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