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Revisão sistemática de teorias: uma ferramenta para avaliação e análise de trabalhos selecionados

Revisión sistemática de teorías: una herramienta para evaluación y análisis de trabajos seleccionados

Resumos

O objetivo deste estudo é relatar a experiência de construção e utilização de um instrumento de captação e análise dos referenciais teórico-metodológicos de estudos, em revisões sistemáticas da literatura. O que se pretende é que investigadores disponham de um instrumento adequado para avaliar os estudos que expõem seus fundamentos teóricos, e que os profissionais de saúde tenham acesso a explicações teóricas para os resultados de estudos e suas aplicações nas práticas em saúde. Desarticulação entre teoria e prática pode levar à falta de motivação no local de trabalho e a práticas de reprodução de procedimentos sem consciência dos conceitos subjacentes que embasam a interpretação de um fenômeno saúde-doença. Chama-se a atenção dos pesquisadores no sentido de realizar análises sobre os fundamentos teóricos dos fenômenos saúde-doença em estudo e propõe-se questões relacionadas aos critérios de inclusão, apreciação crítica e extração de dados a serem abordadas em instrumentos.

Revisão; Medidas, métodos e teorias; Avaliação de Programas e Instrumentos de Pesquisa; Estudos de validação


Este trabajo apunta a relatar la experiencia de construcción y utilización de un instrumento de captación y análisis de referenciales teórico-metodológicos de estudios, en revisiones sistemáticas de literatura. Se pretende que los investigadores dispongan de un instrumento adecuado para evaluar los estudios que exponen sus fundamentos teóricos y que los profesionales de salud tengan acceso a aplicaciones teóricas para los resultados de estudios y sus aplicaciones en prácticas de salud. La desarticulación entre teoría y práctica puede llevar a falta de motivación en el lugar de trabajo, para prácticas de reproducción de procedimientos sin conciencia del concepto subyacente que da base a la interpretación del fenómeno salud-enfermedad. Se llama la atención de los investigadores en sentido de realizar análisis de fundamentos teóricos del fenómeno salud-enfermedad en estudio y se proponen cuestiones relacionadas al criterio de inclusión, apreciación crítica y extracción de datos a ser abordados en instrumentos.

Revisión; Mediciones, métodos y teorías; Evaluación de Programas e Instrumentos de Investigación; Estúdios de validación


The objective of this study is to report on the experience of constructing and using an instrument to collect and analyze theoretical-methodological references of studies, in systematic literature reviews. The goal is for researchers to have available an instrument that is appropriate for evaluating the studies that present their theoretical foundations, and for health professionals to have access to the theoretical explanations for study results and their applications in the practice of health care. The dissociation of theory from practice may lead to a lack of motivation at the work site and practices of repeating procedures without any awareness of the underlying concepts that base the interpretation of a health-disease phenomenon. Therefore we call on researchers to conduct reviews on the theoretical foundations of certain health-disease phenomena and we propose questions related to the inclusion criteria, critical appreciation and data extraction to be addressed in instruments.

Review; Measurements, methods and theories; Evaluation of Research Programs and Tools; Validation studies


RELATO DE EXPERIÊNCIA

Revisão sistemática de teorias: uma ferramenta para avaliação e análise de trabalhos selecionados

Revisión sistemática de teorías: una herramienta para evaluación y análisis de trabajos seleccionados

Cassia Baldini SoaresI; Tatiana YonekuraII

IEnfermeira. Professora Associada do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. cassiaso@usp.br

IIEnfermeira. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. tatiana.yonekura@usp.br

Endereço para correspondência: Endereço para correspondência: Cássia Soares Baldini Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 - Cerqueira César CEP 05403-000 - São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

O objetivo deste estudo é relatar a experiência de construção e utilização de um instrumento de captação e análise dos referenciais teórico-metodológicos de estudos, em revisões sistemáticas da literatura. O que se pretende é que investigadores disponham de um instrumento adequado para avaliar os estudos que expõem seus fundamentos teóricos, e que os profissionais de saúde tenham acesso a explicações teóricas para os resultados de estudos e suas aplicações nas práticas em saúde. Desarticulação entre teoria e prática pode levar à falta de motivação no local de trabalho e a práticas de reprodução de procedimentos sem consciência dos conceitos subjacentes que embasam a interpretação de um fenômeno saúde-doença. Chama-se a atenção dos pesquisadores no sentido de realizar análises sobre os fundamentos teóricos dos fenômenos saúde-doença em estudo e propõe-se questões relacionadas aos critérios de inclusão, apreciação crítica e extração de dados a serem abordadas em instrumentos.

DESCRITORES: Revisão; Medidas, métodos e teorias; Avaliação de Programas e Instrumentos de Pesquisa; Estudos de validação.

RESUMEN

Este trabajo apunta a relatar la experiencia de construcción y utilización de un instrumento de captación y análisis de referenciales teórico-metodológicos de estudios, en revisiones sistemáticas de literatura. Se pretende que los investigadores dispongan de un instrumento adecuado para evaluar los estudios que exponen sus fundamentos teóricos y que los profesionales de salud tengan acceso a aplicaciones teóricas para los resultados de estudios y sus aplicaciones en prácticas de salud. La desarticulación entre teoría y práctica puede llevar a falta de motivación en el lugar de trabajo, para prácticas de reproducción de procedimientos sin conciencia del concepto subyacente que da base a la interpretación del fenómeno salud-enfermedad. Se llama la atención de los investigadores en sentido de realizar análisis de fundamentos teóricos del fenómeno salud-enfermedad en estudio y se proponen cuestiones relacionadas al criterio de inclusión, apreciación crítica y extracción de datos a ser abordados en instrumentos.

DESCRIPTORES: Revisión; Mediciones, métodos y teorías; Evaluación de Programas e Instrumentos de Investigación; Estúdios de validación.

INTRODUÇÃO

Incomensurável profusão de pesquisas na área da saúde, especialmente provenientes dos países de capitalismo central, encontra fortes obstáculos para chegar aos trabalhadores de saúde de todo o planeta de maneira a ser imediatamente utilizada. O acesso à produção do conhecimento obedece aos mesmos padrões de desigualdade de acesso aos demais bens materiais e imateriais produzidos pela sociedade humana.

Esse reconhecimento, ainda que com matizes teórico-práticos diferentes, é generalizado. As autoridades internacionais responsáveis pelo progresso social mundial preocupam-se com essa questão, pois que ao final ela se relaciona com o desenvolvimento da humanidade propriamente dito(1).

Tome-se, apenas a título de exercício, a desigual distribuição de revistas indexadas na MEDLINE. Produzida pela U.S. National Library of Medicine, que constitui uma das principais bases de dados on-line internacionais acessíveis na América Latina e Caribe e disponível através do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde, também conhecido pelo seu nome original Biblioteca Regional de Medicina (BIREME) - um centro especializado da Organização Panamericana da Saúde/Organização Mundial da Saúde orientado à cooperação técnica em informação científica em saúde, de acordo com informações disponíveis on-line.

O fato é que as 4800 revistas indexadas na base MEDLINE são majoritariamente publicações de países do hemisfério norte e da Austrália, com 3200 delas publicadas em países de língua inglesa. Dessas, 90% são publicadas na América do Norte ou na Europa Ocidental (44% dessas revistas são dos EUA). As revistas de países considerados em desenvolvimento representam apenas 9% dos títulos indexados(2).

Nos últimos anos observa-se, no entanto, um aumento da produção científica em países fora do circuito Estados Unidos/Comunidade Européia/Japão, o que parece ensejar uma maior disponibilidade investigatória. Entretanto, não ocorre sem um preço, visto que se torna cada vez mais difícil se atualizar dada a profusão de textos e as condições de trabalho(3).

Embora uma parte considerável da produção científica acabe por ter a forma de uma mercadoria acadêmica(3), parte-se aqui do pressuposto de que parcela da chamada comunidade científica(4) tem promovido revisões de literatura com a intencionalidade de melhorar o acesso à produção científica.

Na área da saúde, elas estão se tornando cada vez mais frequentes, constituindo instrumento potente para reunir e analisar de maneira abrangente e metódica resultados de pesquisas advindas dos diversos continentes. A síntese dos melhores achados tem a finalidade de estabelecer recomendações, permitindo aos trabalhadores de saúde e à população, em geral, acesso circunstanciado a conhecimentos que podem ser rápida e solidamente aplicados e/ou demandados nos serviços de saúde.

Revisões da literatura de abrangência e tempo ilimitados são atualmente chamadas de revisões sistemáticas e não são exclusivas da área da saúde. Elas são capazes de reunir os melhores resultados de pesquisas disponíveis sobre um dado objeto. Usualmente, uma revisão sistemática tem como objetivo responder uma pergunta e para isso utiliza procedimentos metodológicos objetivos, claros e transparentes para encontrar, avaliar e sintetizar os resultados dessas pesquisas, sendo comum o estabelecimento de instrumentos pré-desenhados para dar conta de cada uma dessas etapas.

Formou-se dessa forma um conjunto expressivo de centros de pesquisa que se dedicam a impulsionar e monitorar o desenvolvimento de revisões sistemáticas da literatura. Entre os principais centros, pode-se citar: The Cochrane Collaboration, The Joanna Briggs Institute (JBI), The Campbell Collaboration, Centre for Reviews and Dissemination, EPPI Centre, NICE - National Institute for Health and Clinical Excellence, SCIE - Social Care Institute for Excellence, Critical Appraisal Skills Programme (CASP), entre tantos.

De forma alguma se está tomando aqui a revisão sistemática e a medicina e/ou clínica baseada em evidência - um dos seus usos mais estressados contemporaneamente - como prática merecedora de mérito per si. A saúde é um atributo da vida em sociedade e dificilmente se enquadra nas evidências, além do que as revisões sistemáticas, mesmo sendo feitas em centros de reconhecido rigor, podem falhar a depender da metodologia empregada(5).

Os instrumentos comumente indicados pelos centros dedicados a revisões e utilizados nas análises de revisões sistemáticas efetuadas por cientistas na área da saúde mostram-se adequados para capturar os resultados de projetos de pesquisa qualitativa ou quantitativa, a fim de submetê-los a meta-análises e/ou meta-sínteses. O objetivo geral dessa linha de trabalho é produzir guias para a ação dos serviços de saúde.

O termo meta-análise expressa a síntese analítica de pesquisas que utilizam métodos quantitativos de apreensão da realidade justamente porque seu propósito é combinar estatisticamente resultados de estudos sobre o fenômeno de interesse(6).

O termo meta-síntese refere-se à síntese analítica de resultados de pesquisa que utilizam métodos qualitativos de apreensão do objeto empírico e tem sua origem no campo da educação, que parece ter primeiramente utilizado técnicas de meta-etnografia para sintetizar conjuntos enormes de dados em relatórios educacionais. Foi seguido pelo campo da sociologia, que diversificou ainda mais as finalidades do processo de síntese, incluindo meta-teoria e meta-método, entre outros. Na área da saúde, é a Enfermagem que, bebendo dessa fonte primária, mais frequentemente utiliza a meta-síntese(7).

Destaque-se que as revisões integrativas, que têm sido chamadas a fazer parte do corpo de investigações da Enfermagem, constituem uma forma de revisão sistemática das tradicionais revisões narrativas. Assim, têm a qualidade de ser bastante compreensivas porque podem abranger estudos quantitativos e qualitativos, análise de teorias e métodos e ainda resultados de pesquisas empíricas e, dessa forma, possibilitar um resultado mais completo sobre o fenômeno de interesse. Sua finalidade é dar completude à temática de forma que interessa abranger tudo que já foi estudado sobre o assunto. Ao permitir dar conta de objetos mais complexos, com maior amplitude, obtém-se uma síntese que pode contribuir para a superação de problemas relativos ao cuidado em saúde(8).

É de conhecimento público, ao menos entre investigadores, que, muito antes e muito além dessa preocupação, existem historicamente outros interesses para conduzir uma revisão da literatura, sendo talvez o mais comum e mais antigo, em qualquer área da ciência, o de conhecer o estado da arte sobre o assunto. É o estado da arte sobre o fenômeno de interesse que molda a pergunta de pesquisa e, por sua vez, define com mais precisão o objeto a ser estudado(9). Constitui dessa forma etapa essencial de toda pesquisa, seja para conhecer os resultados de pesquisas anteriormente realizadas sobre o objeto em estudo, seja para conhecer os referenciais teóricos tomados quando o objeto é investigado a partir de uma ou de diversas abordagens(10). Da mesma forma, é a revisão que possibilita avançar na elaboração de teorias e ainda guiar decisões políticas e programáticas(11).

Mais tradicionalmente, cientistas conduzem o que se convencionou chamar de revisão narrativa da literatura. Embora haja críticas ao caráter subjetivo desse tipo de revisão, investigadores, por exemplo, da área de comportamento humano, chamam atenção para a importância das revisões narrativas: elas têm um caráter diferente da revisão sistemática e deve-se decidir por uma ou por outra a partir do julgamento sobre as potencialidades de cada uma para responder aos objetivos propostos pela pesquisa(11).

Em nossa experiência, revisões narrativas vêm permitindo avançar na teorização sobre diversas práticas em saúde, como é o caso das práticas de educação sobre drogas e redução de danos e das práticas educativas em saúde realizadas por enfermeiros, porém constituem um tipo de revisão que não se enquadra nos critérios de excelência definidos pelos centros de revisão. Assim, trata-se de tarefa importante trazer para o escopo das revisões sistemáticas, na forma de instrumentos práticos, a capacidade de discutir os aspectos teóricos que embasam as pesquisas, melhor apresentados pelas revisões narrativas.

Dessa forma, o objetivo deste estudo é relatar a experiência de construção e utilização de um instrumento de captação e análise dos referenciais teóricos e metodológicos de estudos, em revisões sistemáticas da literatura.

A finalidade deste estudo é que investigadores disponham de um instrumento adequado para recolher e avaliar os estudos que expõem seus fundamentos teóricos, em uma revisão sistemática e, finalmente, que os profissionais de saúde tenham acesso a explicações teóricas para os resultados de estudos, quando da elaboração de manuais, protocolos e outras formas de orientação nos serviços de saúde.

INCLUSÃO DE TEORIAS E MODELOS TEÓRICOS NAS REVISÕES SISTEMÁTICAS: FUNDAMENTOS TEÓRICOS

O debate epistemológico acerca da investigação científica tem dimensões que são de ordem ético-política e teórico-metodológica. No plano ético-político, pode-se afirmar haver uma certa perversão do papel da universidade como centro privilegiado de pesquisa. Esta cada vez mais deixa de ser um centro de crítica e criatividade com vistas ao bem-comum para instituir-se como instituição que atende a interesses particulares ou privados.

A universidade - e a pesquisa nela realizada - projetou-se para o atendimento das necessidades do mercado, deixando de estatuir-se como instituição social a serviço dos interesses do público que a financia, impulsionando uma condução personalista da pesquisa e da carreira acadêmica, dissociando-as progressivamente de um projeto humanizador que deveria articular a ciência ao projeto de transformação social(9).

De acordo com dicionário de filosofia, uma definição cientifica de teoria pode ser formulada da seguinte forma:

3º: Por oposição ao conhecimento vulgar: aquilo que constitui o objeto de uma concepção metódica, sistematicamente organizada e dependente, por consequência, na sua forma, de certas decisões ou convenções científicas que não pertencem ao senso comum(12).

Esse terceiro verbete pode ser complementado pelo quinto que expressa um sentido mais geral da teoria.

5º: Por oposição ao pormenor da ciência: ampla síntese que se propõe explicar um grande número de fatos considerada, a título de hipótese, verossímil pela maior parte dos cientistas de uma época: a teoria atômica; a teoria celular. Passou o tempo das doutrinas e dos sistemas pessoais e, pouco a pouco, eles são substituídos por teorias que representam o estado atual da ciência e dão a este ponto de vista o resultado dos esforços de todos(12).

E é meritosa também, para se compreender o sentido de teoria no âmbito do conhecimento científico, a nota que acompanha os verbetes:

A teoria é a hipótese verificada depois de ter sido submetida ao controle do raciocínio e da crítica experimental... Mas uma teoria, para permanecer boa, deve sempre modificar-se com os progressos da ciência e permanecer constantemente submetida à verificação e à crítica dos fatos novos que aparecem. Se considerássemos uma teoria como perfeita e deixássemos de a verificar pela experiência científica, ela tornar-se-ia uma doutrina(12).

A comunidade científica, e de certa forma toda a sociedade em geral, reconhece que o suporte probatório de teorias utilizadas em investigações científicas é influenciado por valores de natureza não-epistêmica. Vem do campo da filosofia a preocupação sobre como esses valores podem alterar os tipos de dados que os cientistas coletam em uma determinada área de conhecimento, transformando por vezes resultados aparentemente irrelevantes em provas cruciais. Como consequência, valores não-epistêmicos associados à descoberta científica podem influenciar a nossa avaliação acerca das teorias, o que coloca para os cientistas a tarefa de refletir sobre como lidar com esses valores. Grandes financiamentos de investigação provêm de organizações privadas que têm interesse nos resultados de pesquisas. As empresas farmacêuticas, por exemplo, em 2002, designaram para pesquisa mais do que todo o orçamento do National Institute of Health de US$ 24 bilhões naquele ano. Assim, são necessários esforços crescentes para refletir sobre os aspectos éticos e as ramificações epistêmicas advindas dos financiamentos, cada vez mais privatizados, da investigação científica(13).

Como se pode observar, a dimensão ético-política se inter-relaciona de maneira irrefutável com a teórico-metodológica e uma depende organicamente da outra. Assim, o pesquisador deve, a partir do seu compromisso ético-político com a construção do conhecimento, procurar estruturar sua pesquisa com todo o rigor teórico-metodológico que a ciência vem historicamente instituindo. Isso requer conhecer profundamente as teorias que compõem o núcleo duro de sua área de estudo, relacionando-o com as categorias, os conceitos e as noções particulares ao objeto que está sendo explicado no estudo(9).

Revisão sistemática sobre a extensão com que teorias são utilizadas no desenho de manuais de orientação de práticas clínicas e na definição de estratégias de implementação de intervenções, mostrou que é necessário que os trabalhos explicitem melhor o uso da teoria que fundamenta as práticas de intervenção que estão sendo implementadas e que os pesquisadores desenvolvam com mais clareza a lógica de como a teoria proposta opera no estudo em questão. Textos sobre estudos baseados em teorias deveriam explicitar as teorias com clareza, inclusive com citações da literatura original que traz a teoria em uso. Além disso, deve haver clareza sobre porque e como uma teoria é adequada para explicar a prática em implementação, justificando a intervenção proposta(14).

Pesquisa em Enfermagem procurou identificar as teorias, quadros teóricos e modelos conceituais empregados em estudos sobre cessação do tabagismo. Os autores enfatizam a importância da explicitação teórica para revelar como e porque as coisas funcionam e porque uma variável pode estar relacionada com outra. Estressa-se que resultados de pesquisa que estão claramente baseados em teoria podem produzir superações não possíveis quando os achados estão desconectados de teorias formalizadas pela ciência. Os autores indicam que pesquisas subsequentes sobre esse objeto deveriam ser melhor articuladas com as teorias. Trata-se de condição fundamental para a implementação de políticas nessa área, pois os formuladores de políticas necessitam acessar sínteses consistentes para conseguir que práticas de saúde sejam implementadas. As teorias articuladas aos resultados tendem a falar em nome de resultados coerentes sobre um fenômeno que está sendo estudado e que, dessa forma, podem ser bem compreendidos e interpretados pelos gestores das políticas de saúde(15).

Revisão sobre o uso de teorias em uma importante revista de saúde pública latino-americana mostrou que referências a teorias são infrequentes nas publicações, com uma minoria de trabalhos mencionando uma teoria ou modelo teórico que serviu de base para explicar o fenômeno que estava sendo investigado(16).

IMPLICAÇÕES PARA AS PRÁTICAS EM SAÚDE

Muito se tem observado sobre a crescente desarticulação entre teoria e prática que perpassa a formação de trabalhadores em saúde e os serviços de saúde propriamente ditos. Estudos por nós conduzidos mostram que, ao menos no que se refere à formação de enfermeiros, essa desarticulação está presente no ensino de educação em saúde(17) e no de saúde coletiva(18), em que predominam, a exemplo do que acontece em outras áreas, o ensino de estratégias e procedimentos em detrimento da explicitação teórica, que embutida, por vezes, desaparece.

Ressalta-se a unilateralidade presente em concepções que enfatizam demasiadamente a prática em detrimento da teoria (19):

A prática humana, na qual se inclui a produção do conhecimento, encerra sempre a relação entre o singular particular e o universal, sendo um fenômeno histórico, posto que as propriedades humanas subjetivas e objetivas que a comportam resultam de amplas e complexas relações do homem com a natureza. Ao transformar a natureza, o homem se transforma, desenvolvendo habilidades, criando necessidades, tornando complexa sobremaneira sua atividade vital, isto é, constituindo-se como ser práxico. É na unidade articuladora entre a ideia e a ação ou entre a teoria e a prática que se efetiva a historicidade humana, concretizada no movimento de constituição da realidade social(19).

Prosseguem os autores ratificando que, para dar sentido às práxis, para possibilitar práxis criativas e não apenas reiterativas, é necessário a articulação entre teoria e prática.

Utilizando como imagem o mergulho necessário na prática, acreditamos que um indivíduo imerso na realidade imediata, sem apoio de conceitos que sintetizam a experiência histórica do ser humano, corre o risco de se afogar numa imensidão de informações caóticas ou, no melhor dos casos, realizar avanços lentos e insignificantes à custa de muito se debater, como aquele que não foi ensinado a nadar e é atirado na água(19).

Desarticulação entre teoria e prática pode levar à falta de motivação no local de trabalho, à reprodução de procedimentos sem consciência dos conceitos subjacentes que embasam a interpretação de um fenômeno saúde-doença e a consequente frustração de não promover superações nas práticas, estas só possíveis pela articulação ideia-ação e ação-ideia.

O processo de produção em saúde é parte do setor de prestação de serviços, setor terciário da produção capitalista. Como os demais processos de produção, vale-se de formas de organização do trabalho do tipo fordista/taylorista e mesmo, mais contemporaneamente, toyotista, que reiteram a desarticulação teoria-prática e a crescente instauração de práxis reiterativas. Estudo recente com enfermeiros que trabalham na atenção básica em saúde, já aderida ao modelo saúde da família, mostra que o modelo assistencial tem como eixo orientador do trabalho o planejamento por resultados, que volta-se à racionalização e não à reflexão sobre o processo de trabalho, o que tem provocado imenso desgaste nos trabalhadores, que produzem incessante reprodução de atividades, sem que se instaurem espaços para promover superações de problemas e avanços nos processos de trabalho(20).

Tal constatação, entre outras já clássicas, provenientes da análise da irremediável divisão de trabalho no processo de produção em saúde(21), hegemônica também no setor público(22), leva a enorme insatisfação no trabalho em saúde da enfermagem. Assim, defende-se aqui que é possível superar essa alienação por meio da formação e aperfeiçoamento dos sujeitos para que dominem objeto, finalidade e instrumentos do trabalho e para que organizem o trabalho de forma a compartilhar os saberes necessários a uma práxis criadora.

Para Gramsci, não se pode preparar indivíduos para as atividades modernas cada vez mais complexas - com as quais a ciência se encontra tão intimamente entrelaçada - sem ter como base uma cultura geral formativa teórico-prática e política. Essa preparação pode formar profissionais capazes de alcançar a compreensão a respeito de sua inserção e de seu trabalho na sociedade, capazes de trabalhar com conhecimentos técnicos, de incorporar as questões sociais e assumirem condutas éticas que possam atender às necessidades específicas da realidade social na qual atuarão(22).

Isso não é possível sem a articulação teoria-prática!

INSTRUMENTOS PROPOSTOS

Em função da proposição acima discutida, que chama atenção dos pesquisadores no sentido de conduzir análises sobre os fundamentos teóricos dos fenômenos saúde-doença em estudo, propõe-se que sejam realizadas revisões que coloquem em evidência as teorias utilizadas nas investigações, mostrando sua articulação com a metodologia e os aspectos operacionais. Certamente essa avaliação proporcionará o feedback necessário para que valores concernentes à necessária articulação teoria-prática concretizem novas formas de produção e/ou divulgação do conhecimento, com explicitação clara de conteúdos teóricos e sua adequação à exposição do objeto em estudo.

Dessa forma, e tomando como ponto de partida os instrumentos de revisão sistemática disponibilizados pelo JBI, propõe-se a utilização dos seguintes instrumentos, por nós adaptados, com a finalidade de incorporar a captação e análise das teorias que fundamentam as pesquisas. Os instrumentos aqui propostos referem-se: à avaliação inicial dos critérios de inclusão que visa selecionar estudos no âmbito da revisão e que descreveram a teoria ou modelo teórico (Figura 1), à apreciação crítica para avaliar o estudo e verificar critérios metodológicos (Figura 2) e à extração de dados que visa descrever as características do estudo para facilitar a análise dos dados (Figura 3).




A partir do instrumento de avaliação inicial (Figura 1), que verifica se o estudo está ou não dentro dos critérios de inclusão, se averigua se uma teoria ou modelo teórico foi descrito no estudo. Em nossa experiência até aqui, procuramos nos certificar de que minimamente a investigação remeta às referências teóricas utilizadas. Já o instrumento que analisa criticamente os estudos selecionados (Figura 2) tem nos ajudado a apreciar os componentes (categorias, conceitos e noções) das teorias utilizadas para fundamentar os estudos, bem como analisar o quanto a teoria em questão é avaliada criticamente em relação a possíveis resultados empíricos dos estudos. Dessa forma, verifica-se as potencialidades e limitações das teorias para explicar os resultados encontrados. O instrumento de extração dos dados (Figura 3) procura retirar do texto os elementos comprobatórios da análise por nós realizada sobre os componentes teóricos dos estudos sob revisão.

CONCLUSÃO

Uma ferramenta de trabalho não deve ser tão fundamental a ponto de facilitar processos de engessamento em que a intencionalidade do trabalho criativo desapareça em nome de resultados mais produtivos, alcançados a partir da organização do trabalho como linha de produção em série, como parece por vezes acontecer com o trabalho acadêmico - expressões como alta produtividade e/ou consumo de artigos testemunham essa tendência. O trabalho acadêmico, assim como qualquer outra práxis social, não deve e não pode admitir tal grau de alienação, uma vez que isso significaria fazer do trabalhador-cientista um mero reprodutor de procedimentos investigativos e/ou textos publicáveis.

O investigador é um trabalhador ativo, politicamente localizado em relação ao objeto de estudo, capaz de escolhas com relação ao quadro teórico e aos procedimentos metodológicos que melhor expõem esse objeto.

No entanto, o acesso a tecnologias disponíveis na sociedade, utilizadas no devido lugar, ou seja, como meio para se atingir finalidades previamente intencionalizadas pelo trabalhador, constitui elemento importante na construção do conhecimento.

Dessa forma, acredita-se que, numa revisão sistemática, instrumentos possam facilitar a identificação, análise, descrição e sistematização de dados e numa certa medida indicar uma tendência do que está sendo valorizado pela comunidade científica. Se os instrumentos disponíveis incorporam a dimensão epistemológica do trabalho acadêmico com propriedade, pesquisadores se veem mais atendidos no seu trabalho de construção do conhecimento.

Nossa experiência com a utilização dos instrumentos aqui propostos vem mostrando diversas potencialidades: ao verificar, analisar e extrair os elementos teóricos dos estudos, pode-se apresentar de maneira clara e sistemática aos pesquisadores e trabalhadores de saúde em geral os avanços e limitações de investigações e práticas em saúde que se valem das teorias revisadas. Esse processo favorece a formação plena tanto de graduandos quanto de pós-graduandos.

Dessa forma, considera-se necessário que os cientistas demandem cada vez mais das instituições que realizam ou cadastram revisões sistemáticas, a inclusão de revisões teóricas ou de revisões que se preocupem com a dimensão teórica dos trabalhos empíricos, sejam eles de natureza qualitativa, quantitativa ou ambas.

Dificilmente se tem encontrado instrumentos disponíveis para esse tipo de revisão, mais preparados para dar conta de desenhos de pesquisa empírica. Aqui se propõe dar seguimento e aperfeiçoamento a uma tendência de abertura nesse sentido, já sentida no JBI, que acolhe também estudos de opinião e disponibiliza instrumentos para tanto.

Recebido: 23/06/2010

Aprovado: 11/04/2011

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  • Endereço para correspondência:

    Cássia Soares Baldini
    Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 - Cerqueira César
    CEP 05403-000 - São Paulo, SP, Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Recebido
      23 Jun 2010
    • Aceito
      11 Abr 2011
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