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A autonomia como necessidade estruturante para o enfrentamento da violência de gênero

La autonomía como necesidad estructuradora para el enfrentamiento de la violencia de género

Resumos

Objetiva-se apresentar categoria referente a necessidades relacionadas à autonomia, reconhecidas pelos profissionais da Estratégia Saúde da Família no que concerne à atenção à saúde de mulheres que vivenciam violência. Para a produção do material empírico foram feitas entrevistas com profissionais de saúde que compõem as equipes da ESF e com mulheres usuárias do serviço. Os significados conformam a necessidade de autonomia relacionada à mulher como sujeito na tomada de decisões. Entretanto, alguns significados revelaram o reducionismo que se traduz na desresponsabilização do serviço em relação ao problema. A autonomia financeira foi um aspecto convergente entre os discursos dos profissionais e das usuárias do serviço de saúde. Concluiu-se que para o enfrentamento da violência é fundamental a inclusão da perspectiva de gênero tanto nas políticas de saúde quanto nas práticas concretizadas no processo de trabalho, condição que abre possibilidades de respostas a necessidades práticas e estratégicas de gênero, contribuindo para a redução da iniqüidade entre homens e mulheres e a promoção da emancipação feminina.

Violência contra a mulher; Autonomia pessoal; Feminismo; Gênero e saúde


Se objetiva presentar categoría referente a necesidades relativas a la autonomía, reconocidas por profesionales de Estrategia Salud de la Familia, concernientes a atención de salud de mujeres víctimas de violencia. Para producir el material empírico se hicieron entrevistas con profesionales de salud que componen los equipos de ESF y con pacientes femeninos del servicio. Los significados conforman la necesidad de autonomía relacionada a la mujer como sujeto en la toma de decisiones. Mientras tanto, algunos significados revelaron reduccionismo traducido en desentendimiento del servicio frente al problema. La autonomía financiera fue un aspecto convergente entre los testimonios de profesionales y pacientes del servicio. Se concluyó en que para enfrentar la violencia es fundamental incluir la perspectiva de género en políticas sanitarias y prácticas concretas del proceso laboral, condición que posibilita respuestas a necesidades prácticas y estratégicas de género, reduciendo la inequidad entre hombres y mujeres y promoviendo la emancipación femenina.

Violencia contra la mujer; Autonomía personal; Feminismo; Género y salud


The objective if this article is to present a category regarding the needs related to autonomy, recognized by professionals working in the Family Health Strategy (FHS), in terms of the health care for women who experience violence. To produce the empirical material, interviews were performed with health care professionals that comprise the FHS teams and with women users of the service. The meanings confirm the need for autonomy related to women as subjects in making decisions. However, some meanings revealed the reductionism that is translated by the de-responsabilization of the service in relation to the problem. Financial autonomy was a converging aspect among the discourses between the health service professionals and users. In conclusion, in order to deal with violence, it is essential to include the gender perspective in the health policies as well as in the practices implemented in the working process. This condition would open windows of opportunity of answers to the practical and strategic needs of the gender, and, thus, contribute to reducing the inequity between men and women and promote female emancipation.

Violence against women; Personal autonomy; Feminism; Gender and health


ARTIGO ORIGINAL

A autonomia como necessidade estruturante para o enfrentamento da violência de gênero* * Extraído do Grupo de Pesquisa "Gênero, Saúde e Enfermagem", da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, 2011.

La autonomía como necesidad estructuradora para el enfrentamiento de la violencia de género

Rebeca Nunes GuedesI; Rosa Maria Godoy Serpa da FonsecaII

IEnfermeira. Doutoranda pelo Programa Interunidades da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil

IIProfessora Titular do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. Coordenadora do Grupo de Pesquisa "Gênero, Saúde e Enfermagem". Bolsista de Produtividade CNPq – Nível 1D. São Paulo, SP, Brasil. rmgsfon@usp.br

Correspondência Correspondência: Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca Escola de Enfermagem da USP Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 – Cerqueira Cesar CEP 05403-000 – São Paulo, SP, Brasil

RESUMO

Objetiva-se apresentar categoria referente a necessidades relacionadas à autonomia, reconhecidas pelos profissionais da Estratégia Saúde da Família no que concerne à atenção à saúde de mulheres que vivenciam violência. Para a produção do material empírico foram feitas entrevistas com profissionais de saúde que compõem as equipes da ESF e com mulheres usuárias do serviço. Os significados conformam a necessidade de autonomia relacionada à mulher como sujeito na tomada de decisões. Entretanto, alguns significados revelaram o reducionismo que se traduz na desresponsabilização do serviço em relação ao problema. A autonomia financeira foi um aspecto convergente entre os discursos dos profissionais e das usuárias do serviço de saúde. Concluiu-se que para o enfrentamento da violência é fundamental a inclusão da perspectiva de gênero tanto nas políticas de saúde quanto nas práticas concretizadas no processo de trabalho, condição que abre possibilidades de respostas a necessidades práticas e estratégicas de gênero, contribuindo para a redução da iniqüidade entre homens e mulheres e a promoção da emancipação feminina.

Descritores: Violência contra a mulher; Autonomia pessoal; Feminismo; Gênero e saúde

RESUMEN

Se objetiva presentar categoría referente a necesidades relativas a la autonomía, reconocidas por profesionales de Estrategia Salud de la Familia, concernientes a atención de salud de mujeres víctimas de violencia. Para producir el material empírico se hicieron entrevistas con profesionales de salud que componen los equipos de ESF y con pacientes femeninos del servicio. Los significados conforman la necesidad de autonomía relacionada a la mujer como sujeto en la toma de decisiones. Mientras tanto, algunos significados revelaron reduccionismo traducido en desentendimiento del servicio frente al problema. La autonomía financiera fue un aspecto convergente entre los testimonios de profesionales y pacientes del servicio. Se concluyó en que para enfrentar la violencia es fundamental incluir la perspectiva de género en políticas sanitarias y prácticas concretas del proceso laboral, condición que posibilita respuestas a necesidades prácticas y estratégicas de género, reduciendo la inequidad entre hombres y mujeres y promoviendo la emancipación femenina.

Descriptores: Violencia contra la mujer; Autonomía personal; Feminismo; Género y salud

INTRODUÇÃO

A violência contra a mulher pode ser explicada como um fenômeno que se constitui a partir da naturalização da desigualdade entre os sexos, que se assenta nas categorias hierárquicas, historicamente construídas, como um dos mecanismos ideológicos capaz de legitimar o status quo, entre os quais se encontram as classificações sociais e, aqui, a classificação baseada nas diferenças entre os sexos. Essa classificação permite a sujeição das mulheres nas relações de gênero, desqualificando-as como insuperavelmente inferiores, porque biologicamente diferentes.

Todavia, o palco da submissão feminina é também um campo de luta para o reconhecimento de seu estatuto de autora de sua história ao lado dos homens e não apenas de conformismo com a condição de sujeito sujeitado que tem o significado identificado com um objeto. Nessa perspectiva, a violência contra a mulher reproduz e perpassa um fenômeno que acontece na sociedade mais ampla que é a violência de classe, explicada como algo natural, racional e legal, a partir da ideia que invisibiliza o processo de constituição da violência, primeiro no âmbito do espaço público.

No âmbito do espaço privado, esse mecanismo ideológico traduz-se na violência doméstica, como uma de suas formas e, contra as mulheres, ele é subentendido como destino que só pode ser enfrentado no contra-discurso, na oposição ao determinismo que o enfoque de gênero e o âmbito da saúde permitem, ao visibilizar o resgate da produção de uma necessidade para as mulheres oprimidas: a necessidade de liberdade e autonomia como condição imprescindível para sua plena existência enquanto sujeitos de direitos.

A autonomia (palavra que vem do grego autós=por si próprio + nomos=norma, lei) etimologicamente significa o poder de dar a si a própria lei. Filosoficamente, conduz o pensamento à ideia de liberdade, da propriedade pela qual o ser humano pretende poder escolher as leis que regem sua conduta, ou seja, dá possibilidade e capacidade de livre decisão dos indivíduos e grupos sobre suas próprias ações na vida(1).

No informe Objetivos de Desarrollo del Milenio: una mirada desde América Latina y el Caribe, a autonomia foi definida como

o grau de liberdade que uma mulher tem para poder agir de acordo com a sua escolha e não com a de outros. Nesse sentido, existe uma estreita relação entre o ganho de autonomia das mulheres e os espaços de poder que possam instituir, tanto individual como coletivamente(2).

A autonomia, no contexto aqui discutido, é a capacidade e as condições concretas que permitem às mulheres tomar livremente as decisões que afetam as suas vidas e o poder de agir segundo tais decisões, sendo condição para a saúde.

Estudo realizado em um serviço que opera sob a Estratégia saúde da Família (ESF) em São Paulo (SP), cujo objetivo foi compreender como as necessidades de saúde de mulheres que vivenciam violência são reconhecidas pelos profissionais de saúde, vislumbrando limites e possibilidades avaliativas da ESF frente ao fenômeno, revelou o reconhecimento de necessidades que remetem ao fortalecimento e à autonomia(3).

OBJETIVOS

O presente artigo objetiva apresentar a categoria referente às necessidades supra citadas, de modo a compreender os significados relacionados à autonomia que se revelam nas entrelinhas dos discursos de profissionais de saúde e mulheres usuárias do serviço que vivenciam situações de violência de gênero.

MÉTODO

Tratou-se de um estudo exploratório, de abordagem qualitativa, que usou gênero, violência de gênero e necessidades em saúde como categorias de análise. Foi desenvolvido no Município de São Paulo, em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) localizada na periferia da Zona Sul da Cidade. Para a produção do material empírico foram feitas entrevistas em profundidade com 22 profissionais que compõem as equipes de saúde da família no serviço. As entrevistas foram gravadas e, após a transcrição, foi realizada a técnica de análise de conteúdo(4). Foram atendidos todos os requisitos éticos propostos pela resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde(5), que dispõe sobre as normas da pesquisa envolvendo seres humanos, com aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da EEUSP sob protocolo de número 822/2009/CEP/EEUSP.

RESULTADOS

Os significados trazidos nos relatos conformam a necessidade de autonomia cujo significado relaciona-se à mulher como sujeito na tomada de decisões no âmbito das práticas em saúde, assim como a necessidade de instrumentalização para lidar com os conflitos de maneira a se fortalecer para o manejo do modo de andar a vida.

Que ela possa manejar os conflitos da melhor forma, que os conflitos sejam material de mudança na vida dessa pessoa e não de paralisia , porque esses conflito tem paralisado a vida dela (...) manejar isso pra que isso possa se tornar um aprendizado e um desafio pra que ela continue dando conta da vida (E21).

Foi constatado o reconhecimento de necessidades que ampliam a concepção clássica da saúde pública e remetem a condições que potencializam o fortalecimento e a autonomia das mulheres como imprescindíveis para o enfrentamento da violência, a exemplo do afeto e da autoestima.

É a necessidade de autoestima e que ela conseguir cuidar da saúde (...) Fortalecer as emoções dessas mulheres, mostrar caminhos (E16).

Os dados remetem à autogestão pessoal, à motivação interna individual e à tomada de decisão como necessidades reconhecidas. Entretanto, na noção que aparece nas entrelinhas dos relatos, pode estar implícito o risco do reducionismo que se traduz na desresponsabilização do serviço em relação ao problema.

Ela precisa mesmo de uma ajuda, mas só que precisa primeiro partir dela (E1).

Nos depoimentos que se seguem as necessidades que remetem à educação também aparecem como necessidades fundamentais para a autonomia e o enfrentamento da opressão pelas mulheres.

Educação de como essas mulheres podem buscar isso de outra maneira e não achar que isso é uma coisa normal. Educação em relação aos serviços, ao que ela pode buscar, educação em relação à lei, aos direitos dela (E19).

A paciente precisa ser orientada de que ela não precisa ser submetida a N situações só por que ela precisa dele. Mas fazer com que ela tenha a crítica disso é muito difícil, é difícil demais! é a mesma coisa que fazer com que um dependente químico pare de usar drogas por que aquilo pode prejudicá-lo (E20).

A conquista da independência financeira e do trabalho no mundo público revelou-se, em alguns depoimentos, como necessidade das mulheres para sua transformação e libertação da opressão e violência. Este foi um aspecto convergente entre os discursos dos profissionais e das mulheres usuárias do serviço de saúde.

Então é estar inserindo ela e estar mostrando que existem outros caminhos. O caso da dependência financeira, tentar com a assistente social outras atividades pra ela poder produzir, não ficar dependente do marido (E22).

Coragem pra arrumar um emprego porque eu trabalhando, eu tenho saúde, eu desempregada não tenho saúde (M1).

Foram revelados significados relacionados à responsabilização do usuário, não no sentido de corresponsabilidade, mas de culpabilização pela não adesão às intervenções propostas pelo serviço.

A doutora marca consulta com ela e ela não vem, o problema aí não é nem a ajuda, é mais dela ter uma atitude, que ela não tem (E1).

Ele tá morando lá. Se ela tivesse tomado providências, não estaria acontecendo (E1).

O depoimento a seguir revela, além da violência conjugal à qual a usuária entrevistada era submetida, a violência estrutural traduzida pela violência no âmbito da produção social, da qual muitas mulheres são alvo. Gestante, vivendo em São Paulo com o marido, a mais de três mil quilômetros de distância dos demais familiares, a entrevistada foi destituída do trabalho e, socialmente, pela sua condição atual, lhe vem sendo negado esse direito, aspecto que limita suas possibilidades de enfrentamento da violência a que vem sendo submetida pelo cônjuge, pai do filho que espera e atual e único provedor.

A única solução que eu teria agora, é a separação. Eu não posso me separar agora, porque eu trabalhava (...) Só que descobri que tava grávida e fui mandada embora. Agora, quem vai me dar um emprego grávida? Eu gostaria que o serviço me ajudasse. Mas como o serviço vai me ajudar? O serviço de saúde não vai me ajudar a me sustentar (M11).

DISCUSSÃO

Os discursos dos profissionais revelaram o reconhecimento de necessidades que remetem à autonomia, apontando para necessidades que ampliam a concepção clássica da saúde pública e remetem a condições que potencializem o fortalecimento e a autonomia das mulheres como imprescindíveis para o enfrentamento da violência. Os depoimentos remetem à autonomia mediante o fortalecimento pessoal e individual.

Entretanto,

na saúde como noutros campos, forja-se a quimera da libertação por autogestão pessoal e pela simples autoconfiança pessoal (...) Quem pode negar a força da autogestão e a importância da autoconfiança pessoa como instrumento de libertação e intervenção? Entretanto, elas só funcionam em sentido democrático quando empregadas como alimento da organização coletiva, e não como seu substituto(6).

Esse aspecto apontado sobre a motivação centrada apenas na pessoa revela o reducionismo do foco excessivamente individual a partir do qual os profissionais de saúde compreendem os significados que se relacionam à violência e às necessidades em saúde. Nas entrelinhas dos relatos pode estar implícito o risco do reducionismo que se traduz na desresponsabilização do serviço em relação ao problema. No campo da Saúde Coletiva, é fundamental a corresponsabilização do serviço de saúde, das mulheres e da sociedade como um todo para o enfrentamento de uma questão complexa que envolve, dialeticamente, desde aspectos subjetivos a aspectos da estrutura social como um todo.

As entrelinhas de alguns depoimentos reduzem a educação a um significado mais relacionado à informação. No contexto teórico da educação para a conscientização, a autonomia é um dos temas centrais, sendo condição sócio-histórica de um indivíduo ou coletividade que tenha se libertado, se emancipado das limitações que restringem ou anulam sua liberdade. A noção de autonomia opõe-se à noção de heteronomia, situação que um indivíduo ou grupo social encontra-se em situação de alienação, em que se é ser para o outro(7).

Situações de opressão, a exemplo da opressão de gênero, configuram situações de heteronomia em que as pessoas vivem alienadas segundo regras sociais impostas. Assim, uma educação voltada para a conscientização e para a libertação é potente para conduzir as pessoas a serem autônomas.

A educação pressupõe indivíduos livres em condições de escolher seus comportamentos e ações(8). Na taxonomia de necessidades em saúde(9), a autonomia constitui um dos quatro conjuntos de necessidades que a compõem e diz respeito à necessidade dos indivíduos terem crescentes graus de autonomia no seu modo de levar a vida. A reconceitualização dessa necessidade é que a educação em saúde, assim como a informação, constitui apenas parte do processo de construção da autonomia dos sujeitos. A autonomia implicaria na possibilidade de reconstrução, pelos indivíduos, dos sentidos de sua vida, o que teria peso significativo nos seus modos de viver. Isso inclui a luta pela satisfação de suas necessidades da forma mais ampla possível.

Uma análise aprofundada da autonomia é central para a compreensão da violência de gênero e das necessidades das mulheres que a vivenciam. Primeiro, a violência é definida como privação, negação da liberdade, o que interdita a autonomia das mulheres enquanto indivíduos sujeitos de sua existência. É uma relação de força caracterizada em um pólo pela dominação e, no outro, pela coisificação.

A violência perfeita é aquela que obtém a interiorização da vontade e da ação alheias pela vontade e pela ação da parte dominada, de modo a fazer com que a perda da autonomia não seja reconhecida, mas submersa numa heteronomia que não se percebe como tal(10).

O patriarcado pressupõe a tutela masculina sobre o universo das mulheres, pressuposto incompatível com a idéia de liberdade e de igualdade entre os seres humanos. Essa é a maior contradição, uma contradição interna que interdita o enfoque dialético nas relações de gênero, porque a subordinação de um dos pares da relação conjugal legitimada no contrato sexual imprime assimetria e enfoque paternalista à relação, pois as mulheres estão sujeitas a consentimentos e não podem determinar sua liberdade nem sua autonomia de ser humano igual na diferença entre os sexos, sem desencadear mecanismos de repressão por violência física e/ou psicológica.

Apesar de o trabalho ter sido significativamente mencionado pelas mulheres quando questionadas sobre suas necessidades em saúde, é importante ressaltar que a autogestão financeira possibilita às mulheres maiores condições objetivas de superação das desigualdades de gênero, porém não as liberta totalmente dessas amarras. Essa superação requer a construção de novas relações sociais, o que implica na desconstrução do que está posto hegemonicamente como relação de gênero, em nossa sociedade.

A conquista de maior autonomia pressupõe a libertação das mulheres das amarras determinadas pelo gênero que incluem a violência de gênero, a sobrecarga pela exclusividade nas responsabilidades reprodutivas e de cuidado, ficando excluídas das atividades produtivas e, conseqüentemente, dependentes financeiramente. A autonomia também pressupõe exercer os direitos reprodutivos e adotar todas as medidas necessárias para as mulheres participem em igualdade de condições na tomada de decisões. Em cada um dos aspectos assinalados existem desigualdades e práticas discriminatórias em que o Estado deve responder com políticas consistentes de promoção da autonomia física, econômica e política das mulheres.

A desigualdade social é concreta na realidade de sujeitos excluídos do trabalho e quando somada à desigualdade de gênero que permeia a relação conjugal de violência compromete exacerbadamente a reprodução social pela intercessão de iniqüidades produzidas por duas categorias: classe e gênero, ambas numa alquimização que produz entraves para a autonomia, saúde e existência das mulheres, a exemplo do depoimento antes mencionado.

A capacidade dos sujeitos de fazer suas escolhas tem como pressuposto fundamental a garantia da autonomia e da igualdade, necessidades que não poderiam prescindir de uma transformação da estrutura social vigente. No entanto, o resgate da autonomia possível é uma necessidade premente, fundamental para a saúde e coloca em discussão tanto o modo como se medicaliza e institucionaliza a vida dos indivíduos, quanto a desconsideração dessa dimensão pelos serviços. É impossível falar em autonomia absoluta, visto que não dá para negar as forças determinantes difíceis de controlar e que os espaços de liberdade são quase privilégios. No entanto, é importante o resgate da necessidade de se restaurar uma certa autonomia humana, uma vez que a doença e os processos destrutivos relacionados são determinados também pela alienação(11).

A conquista da autonomia, entendida como o controle sobre a sua própria vida e corpo e o direito a uma identidade independente e ao auto-respeito, é precedida de duas condições: uma delas é a consideração das necessidades e interesses de homens e mulheres pelas políticas e programas para atingir a equidade de gênero; a outra é apoiar estratégias que tenham como objetivo o fortalecimento e empoderamento feminino(12). Para enfrentar o desafio colocado para a conquista da equidade de gênero e autonomia das mulheres é preciso

re-olhar, com esmero e cuidado, a situação de milhares de mulheres que sofrem iniqüidades no cotidiano, indignar-se com isso e mover-se para as transformações, mais que na idealização inatingível da felicidade individual e coletiva, descontextualizada e a histórica, cidadãs-trabalhadoras devem ser atendidas de acordo com as necessidades do seu perfil de saúde-doença, compreendidas à luz da sua condição de gênero, situação de classe, perfil de geração e outros recortes analíticos(13).

CONCLUSÃO

Em relação à autonomia feminina para o enfrentamento da violência, é fundamental a inclusão da perspectiva de gênero tanto nas políticas de saúde quanto nas práticas concretizadas no processo de trabalho, condição que abre possibilidades de respostas a necessidades práticas e estratégicas de gênero, contribuindo para a redução da iniqüidade entre homens e mulheres e promoção da emancipação feminina.

O trabalho que qualifica a atenção à saúde das mulheres em situação de violência deve superar o modelo biomédico de atenção, limitado ao processo de reprodução biológica, que ainda caracteriza a maioria dos processos de trabalho das práticas em saúde da mulher, mantendo-se fiel à concepção positivista de ciência. A superação desse modelo implica rever a prática profissional, posto que, na perspectiva da emancipação da opressão das mulheres, o saber crítico sobre as necessidades em saúde como conseqüência da situação de opressão que a abordagem de gênero encerra constitui um de seus elementos, um dos instrumentos que deve orientar todo o trabalho das práticas profissionais nessa área.

Nesse sentido, a Saúde Coletiva, por sua interface com o social e sua base interdisciplinar, constitui o campo da área da saúde que mais se aplica ao problema da violência, cabendo a ela o desafio da construção de conhecimentos produtores de tecnologias para a prevenção e o enfrentamento da violência de gênero.

Assim, acredita-se que este estudo pode contribuir para elencar o conhecimento na área, relacionando o campo das necessidades em saúde à perspectiva de gênero, que não se encerra no conhecimento puramente acadêmico, mas se trata de uma perspectiva ética e política pela sua importância praxiológica, que pressupõe conhecer para transformar e compreende a saúde das mulheres a partir de uma perspectiva emancipadora.

Recebido: 29/10/2011

Aprovado: 11/11/2011

Agradecimento

Ao CNPq pelo financiamento desta pesquisa (Processo: 402519/2008-6).

  • 1. Lalande A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 3Ş ed. São Paulo: Martins Fontes; 1999.
  • 2
    Organización de las Naciones Unidas (ONU). Objetivos de desarrollo del milenio: una mirada desde América Latina y Caribe. Santiago de Chile; 2005.
  • 3. Guedes RN. Violência de gênero e necessidades em saúde: limites e possibilidades da Estratégia Saúde da Família [projeto de pesquisa]. São Paulo: Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo; 2010.
  • 4. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 1997.
  • 5
    Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 196, de 10 de outubro de 1996. Dispõe sobre diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos [Internet]. Brasília; 1996 [citado 2011 jun. 26]. Disponível em http://www.datasus.gov.br/conselho/resol96/RES19696.htm
  • 6. Breilh J. Epidemiologia crítica: ciência emancipadora e interculturalidade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2006.
  • 7. Freire P. Pedagogia do oprimido. 12Ş ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1983.
  • 8. Stotz EN. Enfoques sobre educação e saúde. In: Valla VV, Stotz EM, organizadores. Participação popular, educação e saúde, teoria e prática. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; 1993. p. 11-22.
  • 9. Cecílio LCO. As necessidades de saúde como conceito estruturante na luta pela integralidade e eqüidade na atenção à saúde. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ/ABRASCO; 2001. p.113-26.
  • 10. Chauí M. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Moderna; 2006.
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  • 12. Loforte A. Políticas e estratégias para a igualdade de género: constrangimentos e ambigüidades. Bol "Outras Vozes" [Internet]. 2004 [citado 2011 jan. 10];(8). Disponível em: http://www.wlsa.org.mz/?__target__=Tex_PoliticasEstrat
  • 13. Fonseca RMGS. Equidade de gênero e saúde das mulheres. Rev Esc Enferm USP. 2005;39 Supl 4:450-9.
  • Correspondência:

    Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca
    Escola de Enfermagem da USP
    Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 – Cerqueira Cesar
    CEP 05403-000 – São Paulo, SP, Brasil
  • *
    Extraído do Grupo de Pesquisa "Gênero, Saúde e Enfermagem", da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, 2011.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Aceito
      11 Nov 2011
    • Recebido
      29 Out 2011
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