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Necessidades de cuidados de mulheres infectadas pelo papilomavírus humano: uma abordagem compreensiva

Necesidades de cuidados de mujeres infectadas con el virus del papiloma humano: un abordaje comprensivo

Resumos

Pesquisa fundamentada na fenomenologia de Martin Heidegger que objetivou compreender as necessidades de cuidados das mulheres infectadas pelo Papilomavírus Humanos. Participaram catorze mulheres que haviam recebido o diagnóstico dessa infecção. As questões norteadoras foram: como é, para você, estar com este diagnóstico? Conte-me sua experiência, desde que soube do diagnóstico até hoje. Como está sendo a assistência que você tem recebido? O desvelamento do tema - buscando o cuidado como solicitude - mostrou a importância do suporte dos familiares e de amigos. A presença da infecção como motivo de conflitos e separação conjugal foi outro aspecto ressaltado. Os depoimentos deixam em evidência a resignação após a tentativa frustrada de busca por informações precisas e esclarecedoras para a tomada de decisões assertivas. As ações de saúde à mulher infectada necessitam ultrapassar os modelos tradicionais de cuidado, incluindo ações de promoção e prevenção à saúde, com profissionais capacitados, sensíveis à dimensão subjetiva.

Mulheres; Infecções por papilomavírus; Enfermagem em saúde pública; Pesquisa qualitativa


Investigación fundamentada en fenomenología de Martin Heidegger que objetivó comprender las necesidades de cuidados de mujeres infectadas por el Virus del Papiloma Humano. Participaron 14 mujeres diagnosticadas con esta infección. Las preguntas orientadoras fueron: ¿Cómo es, para usted, estar con este diagnóstico? Cuénteme su experiencia, desde que supo del diagnóstico hasta hoy. ¿Cómo viene siendo la atención recibida? La revelación del tema: "buscando el cuidado como solicitud" mostró la importancia del respaldo familiar y de amigos. La presencia de la infección como razón de conflictos y separación conyugal fue otro aspecto resaltado. Los testimonios evidencian la resignación luego de la tentativa frustrada de búsqueda de informaciones precisas y esclarecedoras para la toma de decisiones asertivas. Las acciones de salud con la mujer infectada necesitan sobrepasar los modelos tradicionales de atención, incluyendo acciones de promoción y prevención de salud, con profesionales capacitados, sensibles a la dimensión subjetiva.

Mujeres; Infecciones por papillomavirus; Enfermería en salud pública; Investigación cualitativa


This study is founded on the phenomenology of Martin Heidegger, with the objective to understand the care needs of women infected with the human papilloma virus. Participants were fourteen women who had been diagnosed with this infection. The guiding questions were: What is it like to have this diagnosis? Tell me your experience, from when you received your diagnosis until today. What has your health care been like? The questions revealed the theme - seeking care as solicitude - which showed the importance of the support of family and friends. The presence of the infection as the cause of marital conflicts and separation was another highlighted aspect. The statements showed that there was a sense of resignation after an unsuccessful attempt to find accurate and clear information in order to make assertive decisions. Health interventions for infected women must overcome the traditional models of care, including interventions for health promotion and prevention, with trained professionals who are sensitive to the subjective dimension.

Women; Papillomavirus infections; Public health nursing; Qualitative research


ARTIGO ORIGINAL

Necessidades de cuidados de mulheres infectadas pelo papilomavírus humano: uma abordagem compreensiva* * Extraído da tese "Estar infectada com papilomavírus humano: vivências das mulheres e necessidades de cuidado", Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, 2010.

Necesidades de cuidados de mujeres infectadas con el virus del papiloma humano: un abordaje comprensivo

Maria Elisa Wotzasek CestariI; Miriam Aparecida Barbosa MerighiII; Mara Lúcia GaranhaniIII; Alexandrina Aparecida Maciel CardeliIV; Maria Cristina Pinto de JesusV; Dolores Ferreira de Melo LopesVI

IDoutora em Enfermagem. Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem da Universidade Estadual de Londrina. Londrina, PR, Brasil, mariaelisa@uel.br

IIDoutora em Enfermagem. Professora Titular do Departamento de Enfermagem Materno Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil, merighi@usp.br

IIIDoutora em Enfermagem. Professora Associada do Departamento de Enfermagem da Universidade Estadual de Londrina. Londrina, PR, Brasil, maragara@dilk.com.br

IVDoutora em Saúde Pública. Professora Associada do Departamento de Enfermagem da Universidade Estadual de Londrina. Londrina, PR, Brasil, macielalexandrina@gmail.com VDoutora em Enfermagem. Professora Associada da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Juiz de Fora. Juiz de Fora, MG, Brasil, cristina.pinto@acessa.com

VIDoutora em Enfermagem. Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem da Universidade Estadual de Londrina. Londrina, PR, Brasil, lopesdolores@yahoo.com.br

Correspondência Correspondência: Maria Elisa Wotzasek Cestari Rua João Garla, 300, casa 27 – Jardim Santana CEP 86192-180 – Cambé, PR, Brasil

RESUMO

Pesquisa fundamentada na fenomenologia de Martin Heidegger que objetivou compreender as necessidades de cuidados das mulheres infectadas pelo Papilomavírus Humanos. Participaram catorze mulheres que haviam recebido o diagnóstico dessa infecção. As questões norteadoras foram: como é, para você, estar com este diagnóstico? Conte-me sua experiência, desde que soube do diagnóstico até hoje. Como está sendo a assistência que você tem recebido? O desvelamento do tema – buscando o cuidado como solicitude – mostrou a importância do suporte dos familiares e de amigos. A presença da infecção como motivo de conflitos e separação conjugal foi outro aspecto ressaltado. Os depoimentos deixam em evidência a resignação após a tentativa frustrada de busca por informações precisas e esclarecedoras para a tomada de decisões assertivas. As ações de saúde à mulher infectada necessitam ultrapassar os modelos tradicionais de cuidado, incluindo ações de promoção e prevenção à saúde, com profissionais capacitados, sensíveis à dimensão subjetiva.

Descritores: Mulheres. Infecções por papilomavírus. Enfermagem em saúde pública. Pesquisa qualitativa.

RESUMEN

Investigación fundamentada en fenomenología de Martin Heidegger que objetivó comprender las necesidades de cuidados de mujeres infectadas por el Virus del Papiloma Humano. Participaron 14 mujeres diagnosticadas con esta infección. Las preguntas orientadoras fueron: ¿Cómo es, para usted, estar con este diagnóstico? Cuénteme su experiencia, desde que supo del diagnóstico hasta hoy. ¿Cómo viene siendo la atención recibida? La revelación del tema: "buscando el cuidado como solicitud" mostró la importancia del respaldo familiar y de amigos. La presencia de la infección como razón de conflictos y separación conyugal fue otro aspecto resaltado. Los testimonios evidencian la resignación luego de la tentativa frustrada de búsqueda de informaciones precisas y esclarecedoras para la toma de decisiones asertivas. Las acciones de salud con la mujer infectada necesitan sobrepasar los modelos tradicionales de atención, incluyendo acciones de promoción y prevención de salud, con profesionales capacitados, sensibles a la dimensión subjetiva.

Descriptores: Mujeres. Infecciones por papillomavirus. Enfermería en salud pública. Investigación cualitativa.

INTRODUÇÃO

O Papilomavírus humano (HPV), sexualmente transmissível, apresenta potencialidade carcinogênica para a cérvice uterina, o que torna a infecção de mulheres pelo HPV um problema de saúde pública. O câncer cérvico uterino afeta cerca de 500.000 e mata 270.000 mulheres anualmente no mundo(1).

Estão descritos mais de 200 genótipos diferentes de Papilomavírus humano (HPV), entretanto, só alguns têm potencial oncogênico. Segundo a classificação internacional, são considerados como carcinogênicos para os humanos do grupo 1B (reconhecidamente cancerígeno para humanos) os tipos de HPV: 16, 18, 31, 33, 35, 39, 45, 51, 52, 56, 58, 59 e 66 e do grupo 2B (possivelmente cancerígeno para humanos): HPV 6 e 11(1).

As mulheres infectadas, ao saberem do diagnóstico, geralmente, sentem-se estigmatizadas, ansiosas, sob estresse e preocupadas com as suas relações sexuais(2). Como qualquer doença sexualmente transmissível (DST), o HPV desperta sentimentos de pudor e vergonha, o que pode dificultar o relacionamento com seu parceiro, com a família, com a equipe de saúde e com a sociedade. Assim, a infecção pelo HPV pode causar um forte impacto na estrutura familiar das mulheres, principalmente no relacionamento conjugal, e desencadear descontinuidade da relação, mudança de atitude do casal, separação ou negação diante da doença(3,4-6).

Estar infectada com o HPV não deveria ser motivo de extrema preocupação, mas, sim, de atenção, visto que a maioria das mulheres infectadas não chegará a desenvolver nenhuma lesão, e muitas, ainda, terão a eliminação do vírus naturalmente pelo sistema imunológico, ou ainda, este ficará em latência por muitos anos, repetindo um comportamento comum de qualquer vírus(7). Entretanto, a reação inicial da maioria das mulheres que recebem o diagnóstico do HPV, é negativa, pois este desperta, sobretudo o sentimento de medo que pode permanecer durante todo o processo de evolução da doença(3).

A situação de carência da educação em saúde, como a falta de informação de qualidade acerca do agravo e o acolhimento inadequado às mulheres infectadas, de acordo com suas necessidades individuais, parece ser uma realidade atual. Esta deficiência, de um modo geral, aumenta a vulnerabilidade das mulheres, já que o sofrimento vivenciado por elas no processo de infecção favorece o desenvolvimento de conceitos equivocados, como crenças e mitos sobre o HPV(8).

Destas constatações e das observações do cotidiano profissional de uma das autoras deste estudo que atua como docente de enfermagem, no ensino do curso de graduação em enfermagem, em campos de prática de Unidades Básicas de Saúde, atendendo mulheres portadoras do HPV surgiu a seguinte inquietação: quais as necessidades de cuidado das mulheres que vivenciam o processo de estar com HPV?

O objetivo deste estudo foi compreender as necessidades de cuidados das mulheres infectadas pelo Papilomavírus Humano.

Os avanços tecnológicos na área de saúde são imprescindíveis, contudo são necessárias transformações radicais em nossas atitudes, no que diz respeito ao pensar e ao fazer saúde. Os aspectos filosóficos devem ser revisitados para que os avanços conceituais já obtidos possam corresponder às reais modificações na prática de saúde(9).

Este estudo justifica-se na medida em que busca desvelar a necessidade de cuidado de mulheres infectadas com o HPV – doença sexualmente transmissível com alto potencial carcinogênico e permeada por inúmeros sentimentos negativos. Isso permitirá aos profissionais de saúde uma melhor compreensão das experiências vividas por essas mulheres, criando subsídios para a proposição de ações efetivas, que levarão à melhoria da qualidade da assistência, ou seja, a um cuidado que vá além das necessidades físicas, emocionais e sociais; um cuidado que considere a mulher, seu modo de ser no mundo, valorizando suas experiências, suas crenças e seus valores.

MÉTODO

Tratou-se de um estudo qualitativo, fundamentado na fenomenologia existencial de Martin Heidegger. A opção pelo referencial heideggeriano deu-se pelo fato de esse filósofo abordar o movimento inevitável e inerente ao ser, movimento esse que lhe dá significado e pode efetivar-se como mostrar-se, exibir-se ou invadir-se(10).

Heidegger ao discutir a existência humana abre possibilidades para discutir o cuidado. Para ele, por meio do cuidado, o homem abre-se ao universo e tem a possibilidade de interrogar e refletir filosoficamente sobre as causas e as circunstâncias do que está vivenciando. Ou seja, o cuidado designa o modo de ser no mundo(10).

Participaram deste estudo 14 mulheres que haviam recebido o diagnóstico de HPV, sendo 11 selecionadas por meio de uma lista de usuárias do SUS fornecida pela Secretaria de Saúde de um município com cerca de cem mil habitantes, situado na região norte do estado do Paraná. Estas mulheres estavam cadastradas no Sistema de Informação Laboratorial do Programa Nacional de Combate ao Câncer de Colo Uterino e foram diagnosticadas com o HPV nos anos de 2007 e 2008. As outras três mulheres utilizavam serviços de saúde privados e foram selecionadas por indicação de profissionais da saúde.

As mulheres selecionadas foram convidadas, por telefone ou por visita no domicílio, a participar do estudo. As entrevistas aconteceram individualmente, entre novembro de 2008 e maio de 2009, em local e horário de melhor conveniência para cada mulher; foram gravadas e transcritas logo após a sua realização.

O número de participantes foi determinado durante a análise dos dados, a partir do momento em que o fenômeno foi sendo desvelado e as inquietações dos pesquisadores foram respondidas e o objetivo do estudo alcançado.

As questões norteadoras para os depoimentos das mulheres foram: como é para você estar com HPV? Conte-me sua experiência, desde que soube do diagnóstico até hoje. Como está sendo a assistência que você tem recebido?

Para a análise dos depoimentos foram seguidos os passos adotados no estudo(11): leitura e releitura de cada uma das entrevistas para detecção das unidades de sentido e agrupamento das unidades similares (convergentes) que culminaram nos temas: ser-aí com HPV, ser-com nas relações, buscando o cuidado como solicitude e o caminho de transcendência com HPV. O tema buscando o cuidado como solicitude foi escolhido para este texto, considerando a ênfase nas necessidades de cuidado das mulheres infectadas pelo Papilomavírus Humano. Sua discussão foi realizada, segundo o referencial teórico de Martin Heidegger(10) e referenciais sobre a temática.

Para garantir o anonimato, as mulheres entrevistadas foram identificadas por nomes fictícios. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual de Londrina (Protocolo CEP nº. 184/08).

RESULTADOS

Todas as mulheres entrevistadas tinham recebido o diagnóstico do HPV durante um atendimento ambulatorial e mantinham sua rotina diária, como os cuidados com a casa, trabalho, filhos, lazer, entre outros. A vivência de estar com o HPV foi experienciada juntamente com a vivência do mundo do senso comum dessas mulheres. Assim, estar infectada pelo HPV gerou angústia, para as mulheres entrevistadas, e consequentemente, permitiu a abertura para novas possibilidades e diferentes necessidades de cuidado:

ninguém quer ficar doente, ter uma patologia, ainda mais sabendo que pode ser incurável, que pode limitar a sua vida sexual, que possa atrapalhar seu relacionamento. Eu não queria que isso acontecesse. [...começou a chorar muito...]. É como se eu estivesse com AIDS e não quisesse que ninguém soubesse. (...) um diagnóstico que as vezes nem é um diagnóstico final, mas como isso mexe com a gente. (...). Esta situação abre uma janela para várias outras. Ia mexer com a minha vida íntima, que as vezes você não está pronta pra falar com as pessoas e nem são todos os amigos que você fala destas coisas (Nice).

Dentre as necessidades de cuidado, destacamos a importância de suporte da família e amigos:

o que me ajudou também foi a força e o apoio da família. Falavam que não era para eu me apavorar, que ia dar tudo certo, que eu ia passar mais essa (Fábia). Eu só falei sobre isso com uma amiga (Elza). Quem falou para mim sobre isso foram as minhas amigas (Joice).

Algumas mulheres relataram que tiveram suporte somente dos profissionais que as atenderam, não tendo revelado a situação da infecção para outras pessoas:

eu só fui ao posto, mesmo. Não conversei com ninguém sobre isso (Gilda). A enfermeira me deu apoio. (...) Eu só falei com a enfermeira sobre isso (Ilda). Eu ia conversando só com o médico (...) (Mara).

Desvelamos que as mulheres infectadas pelo HPV, muitas vezes não tiveram o apoio do seu parceiro marital:

não conversei sobre isso com o meu marido, porque diz que é uma doença que se pega na relação que você teve. Eu só tenho ele, e ele é machista, e vai falar: o que você fez? Onde você pegou isso?'E eu sei que homem é bicho sem-vergonha, né? Aí é onde começa a briga em casa. Daí, eu fiquei quieta, não falei nada (Dora).

Outra questão desvelada, associada às relações de gênero, foi a dificuldade de aceitação por parte do parceiro e, das próprias mulheres casadas, do uso da camisinha:

se eu quisesse usar a camisinha, ele tinha que usar. Eu vou ao posto, eu pego, tem um monte na minha gaveta [risos]. Eu acho que os solteiros se cuidam melhor. O risco de infecção está dentro do casamento. A gente fala com as amigas, as casadas, ninguém usa. Mas os solteiros, não! Eles estão mais cientes do risco. A mulher confia no marido, o marido confia na mulher. Dizem, né? Mas, na verdade, traem (Elza).

A presença da infecção pelo HPV como motivo de conflitos e separação conjugal foi outro aspecto ressaltado:

eu me senti só, quando mais eu precisei, ele me abandonou. (...) Foi uma fase difícil, porque logo o meu marido separou de mim, achou que eu tinha traído ele. Foi bem doloroso (...) Minha filha ficou doente por causa dele, nossa! [choro]. (...) Eu morei na casa dos outros de favor. Essa fase foi uma fase difícil. (...) Meu marido achou que eu tinha traído ele, porque os colegas falaram que esta doença pegava sexualmente (Célia).

E ainda, quando procuraram um serviço de saúde, muitas vezes, não foram atendidas em suas necessidades:

(...) eu acho que ele deveria ter explicado mais, explicado para eu voltar, para ver se tinha voltado a verruga. Ele deveria ter perguntado. (...) toda a minha gravidez, ele não comentou nada sobre isso. (...) eu ainda tenho dúvida. Eu quero uma explicação do médico. Porque ele só falou o que eu tinha que fazer e não explicou nada (Helena).

Os depoimentos também deixam em evidência a resignação após a tentativa frustrada de busca de cuidado. As mulheres sentiram a necessidade de um cuidado diferente daquele que estavam recebendo, assim como de informações mais precisas e esclarecedoras sobre o que estava acontecendo com elas, para que pudessem tomar decisões corretas.

As diversas oportunidades de solicitude vivenciadas pelos profissionais de saúde nas interações que aconteceram durante as ações de saúde não foram aproveitadas para que se alcançasse um cuidado de qualidade. Durante o atendimento de saúde as mulheres sentiam-se, algumas vezes, intimidadas para realizar questionamentos e algumas vezes foram submetidas a exames e procedimentos sem compreender a razão destes:

(...) Eu queria saber ao certo como que é isso aí. Do que a gente pega isso aí. Porque a gente vai nos médicos, e é aquele tempo corrido pra gente perguntar. A gente fica sem jeito de perguntar. Eu perguntei pro doutor, e ele falou assim: Eu vou te encaminhar pro especialista. Com a médica especialista eu não entrei em detalhes, não insisti, só perguntei uma vez e pronto! Justamente o dia que eu fui, ela estava atrasada, estava atendendo tudo correndo, né? Aí, eu não perguntei mais. (...) ultimamente, eu estou me conformando muito fácil com tudo. (...) Até hoje, eu não entendo... Quando eles me deram eu entendia que era o HIV, tem alguma coisa a ver esses dois? (Dora).

As mulheres desvelaram ainda, outras dificuldades que vivenciaram ao procurarem a atenção à saúde. Em alguns casos, foram encaminhadas para serviços de referência sem orientações sobre seu diagnóstico e ainda relataram a falta de profissionais:

A médica falou (...) que o SUS aqui é demorado (...) Me mandaram lá pro serviço de referência. Cheguei lá no dia pra fazer a biópsia, e a mulher não estava lá pra fazer. Tive que vir embora. Aí que eu fui fazer o tratamento por fora (Célia).

A solicitude foi desvelada como uma necessidade real de cuidado. As mulheres infectadas pelo HPV sentiram necessidade de saber mais sobre a doença, de saber que os profissionais de saúde se importavam com elas: buscaram o cuidado.

DISCUSSÃO

A mulher como um ser de relação ou um ser com o outro perpassa por diferentes espaços e tem possibilidades de compartilhar suas experiências. O ser-com é o modo de ser básico do ser-aí, ou seja, é por meio das relações que o ser se completa em seu próprio modo de ser. É a partir do mundo que o ser se relaciona com todas as coisas(10).

Sendo a mulher um ser de relação, dentre as necessidades de cuidado, revela-se a importância do papel da família como suporte para o enfrentamento das dificuldades pelas mulheres com HPV. A interação das participantes deste estudo com a família e com as amigas indicou a importância de um apoio para o enfrentamento dos sentimentos, das dúvidas e das diversas necessidades. A relação cotidiana assinala-se por um constante estar com os outros. O ser-aí não só está no mundo, mas, sobretudo, relaciona-se com os outros seres humanos para, então, encontrar-se(10).

Nesse estudo, as questões das relações de gênero se evidenciaram e permearam também as necessidades de cuidado. Percebemos a feminização da culpa sobre a infecção e desvelou-se a situação da fidelidade conjugal posta à prova, visto que o HPV é uma doença sexualmente transmissível. Algumas mulheres relataram desconforto nas suas relações conjugais, como acusações de traição e desconfiança de ambas as partes.

O HPV pode causar um forte impacto na estrutura familiar e, na maioria dos casos, as mulheres não podem contar com o apoio de seu parceiro(4,6). Muitas vezes a mulher sente-se duplamente vitimizada: sente-se culpada por desconfiar do seu parceiro e ainda, por ele desconfiar dela(4).

Desvelamos também a dificuldade dessas mulheres nas ações de prevenção das DST. Conhecer os riscos e saber como se proteger das doenças sexualmente transmissíveis parece não garantir mudanças nas práticas de atitudes preventivas das mulheres. Fato que não acontece só em relação à prevenção do HPV. Geralmente, mesmo quando se trata de uma doença grave, de transmissão sexual, como a AIDS, apesar de as mulheres terem o conhecimento das formas de prevenção, o sentimento de segurança da relação conjugal e a confiança no parceiro, gerados pela união conjugal estável, as afastam das práticas preventivas - o uso da camisinha(12).

O fato se contradiz quando se observa que a maior parte dos grupos de orientação sobre métodos contraceptivos é formada por mulheres que parecem não exercer autonomia na escolha destes em suas relações conjugais(13). O conceito de autonomia abrange a liberdade de a pessoa ser ela mesma(10). A amplitude desse conceito ainda precisa ser alcançada pela maioria das pessoas.

Reforça-se, assim, a necessidade de investimentos que ampliem a educação preventiva do HPV. Há necessidade de estímulo do uso de preservativo, como estratégia preventiva da transmissão viral, e de novos métodos diagnósticos, ainda mais sensíveis e de menor custo e mais acessíveis às mulheres(7).

Não há como negar que ainda existem desigualdades entre homens e mulheres quando o assunto é fidelidade. As mulheres podem demonstrar o desejo de trair, mas este é frequentemente ocultado. Elas mantêm valores tradicionais sobre o estereótipo de segurança e estabilidade de um casamento e, paralelamente, demonstram-se mais modernas, com mais autonomia, independência e privacidade nas suas relações conjugais(14).

Para Heidegger, as vivências têm um significado idiossincrático, ou seja, constituem uma experiência única para cada ser humano e determinam o caminho a ser trilhado por cada um. Quando um ser se apresenta em um papel de submissão a outro, pode estar vivendo de um modo não autêntico, restringindo sua vida e, muitas vezes, vivendo pelo outro, o que, na realidade, não seria possível(10). Ao se colocar nesse papel, a mulher pode estar se anulando como ser humano, afastando-se do que deveria ser seu principal projeto, tornar-se si-mesma, muitas vezes, por sentimentos como medo, defesa, insegurança e não uso da autonomia.

Alguns relatos mostraram a dificuldade para obtenção, por parte das mulheres, das informações necessárias sobre o HPV. A orientação foi dada de forma incompleta, sem clareza quanto ao diagnóstico, porém, com foco na necessidade de uso das medicações prescritas pelo médico.

Os dilemas éticos como: falhas na terapêutica, informações imprecisas, falhas na privacidade, falhas na organização do serviço, entre outros, possivelmente permeiam situações comuns da prática diária dos serviços de saúde, como na atenção básica. Esses problemas são difíceis de serem identificados e podem colocar em risco a qualidade da assistência oferecida. É necessário que esses sejam identificados e superados no processo de trabalho em saúde(15).

Para algumas mulheres, a enfermeira e o médico aparecem como os únicos profissionais que souberam do diagnóstico e que tiveram a possibilidade de alguma intervenção de cuidado. O fato remete a uma maior preocupação em relação à responsabilidade desses profissionais durante o atendimento dessas mulheres, visto que podem ser, muitas vezes, a única fonte de atenção e informação disponível.

A demora para o agendamento de exames, erros no processo de marcação dos mesmos e informação desconexa entre os profissionais também foram relatados. Estes resultados demonstram que existe necessidade de repensar a estrutura organizacional do processo de trabalho dos serviços de saúde. Muitas vezes, algumas unidades de saúde estabelecem barreiras aos comportamentos de prevenção das mulheres, dificultando o acesso ao cuidado, o que gera ansiedade(16).

A informação adequada sobre o agravo e o respeito pelas necessidades das mulheres são, então, uma forma de cuidado autêntico. Entretanto, faz-se necessário que elas tenham a possibilidade de ser realmente participantes das decisões relacionadas à sua própria saúde.

Buscamos a relação das necessidades de cuidado dessas mulheres com a fenomenologia de Heidegger, quando compreendemos que a solicitude é o modo de ser com o outro(10); é a essência do modo de ser do homem, traduz-se como uma ocupação antecipada em relação a alguma coisa, no sentido de importar-se, de ter intenção de realizar algo ou mesmo de buscar o cuidado(10).

Para ele a solicitude possui duas possibilidades: fazer o cuidado pelo outro, substituindo-o; e quando o ser não substitui o outro no cuidado. Na primeira possibilidade, o outro pode tornar-se dependente, manipulado e dominado, mesmo que esse domínio seja silencioso e permaneça velado. Seria como retirar os problemas do outro, impossibitando-o de trilhar o próprio caminho. Neste caso, o ser não se preocupa tanto com o outro, mas com as coisas que lhe deve proporcionar. Este seria um cuidado inautêntico(10).

O cuidado inautêntico foi demonstrado nas falas das mulheres, quando afirmam que foram submetidas a exames e procedimentos sem compreender a razão destes, ou então, quando, simplesmente, não participavam da tomada de decisões sobre seu estado de saúde.

Os profissionais de saúde, referidos pelas informantes desse estudo, não aproveitaram os momentos em que estavam com estas mulheres para realizarem as orientações necessárias. Especialmente, quando inseridos na atenção básica, esses profissionais deveriam ter, como uma de suas atividades primordiais no cuidado, as atribuições de educador e orientador de atitudes positivas. Na interação entre os atores envolvidos no cuidado da saúde, a escuta sensível e capaz de efetivar o cuidado faz-se de suma importância e demonstra uma real preocupação com o outro(17).

Faz-se indispensável, ainda, incluir valores éticos e técnicos nas ações de cuidado. O profissional precisa realizar o cuidado a partir da determinação das demandas e necessidades de sua clientela, levando em consideração os recursos tecnológicos de saúde disponíveis na sua realidade(18).

Existencialmente, sendo o cuidado próprio do ser, ele não pode ser visto como momentâneo, mas uma marca da condição humana. Heidegger traduz a preocupação como providência, planejamento, importar-se com o outro, calcular, prever ações (19), e, com base nessas ações, o ser pode determinar as decisões necessárias para se preservar. A preocupação permite ao homem antecipar-se a si mesmo, ou seja, importar-se e preservar-se, no sentido espacial e temporal. Este sentimento é entendido como um movimento para o futuro ou para o passado(19).

CONCLUSÃO

Este estudo evidencia que a mulher infectada com o Papilomavírus humano (HPV) apresenta necessidades de cuidado nas suas relações familiares e com os profissionais dos serviços de saúde, especialmente o suporte familiar, com destaque para o parceiro e, o acolhimento dos profissionais de saúde.

O vivido por essas mulheres deve ser considerado pelos profissionais de saúde nas ações de cuidado. Nesse sentido, as informações sobre o HPV devem ser compartilhadas com as mulheres, respeitando-se suas necessidades e o nível de compreensão de cada uma. É necessário que haja um cuidado mais efetivo e afetivo, no qual as mulheres infectadas tenham um papel ativo no processo de saúde e as interações sejam verdadeiras. Assim sendo, é preciso incorporar um cuidado mais abrangente, sustentado no referencial compreensivo, agregando às ações de cuidado em enfermagem a atenção, o envolvimento com o outro, o respeito e a empatia.

Deste estudo emerge a valorização dos profissionais da área de saúde e reitera a sua importante atuação na assistência à mulher portadora de HPV de modo integral e individualizada, fortalecendo a composição da rede de apoio a estas mulheres.

Ainda que restrito à compreensão dos significados do ser mulher com HPV com um grupo específico, este estudo remete à reflexões importantes e estimula a realização de pesquisas que buscam a compreensão dos profissionais que atuam junto às mulheres portadoras. Os resultados desta pesquisa subsidiam o incremento do ensino, orientando as atividades dos profissionais na busca de um cuidado integral, colaborando, assim, para a melhoria da qualidade da assistência.

Recebido: 31/05/2011

Aprovado: 16/02/2012

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  • Correspondência:

    Maria Elisa Wotzasek Cestari
    Rua João Garla, 300, casa 27 – Jardim Santana
    CEP 86192-180 – Cambé, PR, Brasil
  • *
    Extraído da tese "Estar infectada com papilomavírus humano: vivências das mulheres e necessidades de cuidado", Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, 2010.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Out 2012

    Histórico

    • Recebido
      31 Maio 2011
    • Aceito
      16 Fev 2012
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