Acessibilidade / Reportar erro

Representações sobre uso racional de medicamentos em equipes da Estratégia Saúde da Família

Representaciones sobre el uso racional de medicamentos en equipos de estrategia salud de la familia

Resumos

Pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória, cujo objetivo foi conhecer e compreender as representações sobre o uso racional de medicamentos em três equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) da zona urbana do município de Dourados-MS, tendo como aporte teórico o conceito de representações de Stuart Hall. Como técnica utilizaram-se os grupos focais, e a avaliação de dados deu-se a partir da análise temática, modalidade da análise de conteúdo. Participaram da pesquisa 26 componentes. Verificou-se que os profissionais destacaram papel curativo e aspectos negativos dos medicamentos. Também apresentaram representações acerca dos pacientes, relatando que não compreendem o uso correto dos medicamentos, não aderem ao tratamento e se automedicam. Nota-se a necessidade de implantação de práticas educativas em saúde para promoção do uso racional de medicamentos.

Uso de medicamentos; Cultura; Atenção Primária à Saúde; Saúde da família; Educação em saúde; Enfermagem familiar


Investigación cualitativa, descriptiva y exploratoria, cuyo objeto fue conocer y comprender las representaciones sobre el uso racional de medicamentos en tres equipos de la Estrategia Salud de la Familia (ESF) da la zona urbana del municipio de Dourados-MS, teniendo como aporte teórico el concepto de representaciones de Stuart Hall. Como técnica, se utilizaron los grupos focales y la evaluación de datos se produjo mediante análisis temático, modalidad de análisis de contenido. Participaron de la investigación 26 individuos. Se verificó que los profesionales descararon el papel curativo y aspectos negativos de los medicamentos. También expresaron representaciones acerca de los pacientes, relatando que no comprenden el uso correcto de los medicamentos, no adhieren a los tratamientos y se automedican. Se demuestra la necesidad de implantación de prácticas educativas en salud, para la promoción del uso racional de medicamentos.

Utilización de medicamentos; Cultura; Atención Primaria de Salud; Salud de la familia; Educación en salud; Enfermería de la familia


This qualitative, descriptive and exploratory study was performed with the objective to identify and understand the representations regarding the rational use of medications in three Family Health Strategy (FHS) teams in the urban region of Dourados, MS, founded on the theoretical framework of Stuart Hall's concept of representations. The chosen methodology was the focal group technique and the data were evaluated using thematic content analysis. There were a total of 26 participants. The professionals highlighted the curative role and the negative aspects of medications. They also presented representations regarding their patients, reporting that they do not understand the correct use of the medications, do not comply with the recommended treatment and engage in self-medication. There is a need to implement educational health practices to promote the rational use of medications.

Drug utilization; Culture; Primary Health Care; Family health; Health education; Family nursing


ARTIGO ORIGINAL

Representações sobre uso racional de medicamentos em equipes da Estratégia Saúde da Família*

Representaciones sobre el uso racional de medicamentos en equipos de estrategia salud de la familia

Kamila Onose Araujo CunhaI; Rogério Dias RenovatoII; Marina Sampaio DescoviIII; Jéssica Ribeiro Dal VescoIV; Cássia Aparecida da SilvaV; Lourdes MissioVI; Márcia Regina Martins AlvarengaVII

IGraduanda do Curso de Enfermagem da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Dourados, MS, Brasil. mila.onose@hotmail.com

IIDoutor. Professor Adjunto do Curso de Enfermagem da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Dourados, MS, Brasil. rrenovato@uol.com.br IIIGraduanda do Curso de Enfermagem da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Dourados, MS, Brasil. marinadescovi@hotmail.com

IVGraduanda do Curso de Enfermagem da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Dourados, MS, Brasil. je_ribeiro_26@hotmail.com

VGraduanda do Curso de Enfermagem da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Dourados, MS, Brasil. cahsilva91@hotmail.com

VIDoutora. Professora Adjunta do Curso de Enfermagem da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Dourados, MS, Brasil. lourdesmissio@uems.br

VIIDoutora. Professora Adjunta do Curso de Enfermagem da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Dourados, MS, Brasil. marciaregina@uems.br

Endereço para correspondência Correspondência: Rogério Dias Renovato Rua Hilda Bergo Duarte, 296 CEP 79806-020 - Dourado, MS, Brasil

RESUMO

Pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória, cujo objetivo foi conhecer e compreender as representações sobre o uso racional de medicamentos em três equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) da zona urbana do município de Dourados-MS, tendo como aporte teórico o conceito de representações de Stuart Hall. Como técnica utilizaram-se os grupos focais, e a avaliação de dados deu-se a partir da análise temática, modalidade da análise de conteúdo. Participaram da pesquisa 26 componentes. Verificou-se que os profissionais destacaram papel curativo e aspectos negativos dos medicamentos. Também apresentaram representações acerca dos pacientes, relatando que não compreendem o uso correto dos medicamentos, não aderem ao tratamento e se automedicam. Nota-se a necessidade de implantação de práticas educativas em saúde para promoção do uso racional de medicamentos.

Descritores: Uso de medicamentos. Cultura. Atenção Primária à Saúde. Saúde da família. Educação em saúde. Enfermagem familiar.

RESUMEN

Investigación cualitativa, descriptiva y exploratoria, cuyo objeto fue conocer y comprender las representaciones sobre el uso racional de medicamentos en tres equipos de la Estrategia Salud de la Familia (ESF) da la zona urbana del municipio de Dourados-MS, teniendo como aporte teórico el concepto de representaciones de Stuart Hall. Como técnica, se utilizaron los grupos focales y la evaluación de datos se produjo mediante análisis temático, modalidad de análisis de contenido. Participaron de la investigación 26 individuos. Se verificó que los profesionales descararon el papel curativo y aspectos negativos de los medicamentos. También expresaron representaciones acerca de los pacientes, relatando que no comprenden el uso correcto de los medicamentos, no adhieren a los tratamientos y se automedican. Se demuestra la necesidad de implantación de prácticas educativas en salud, para la promoción del uso racional de medicamentos.

Descriptores: Utilización de medicamentos. Cultura. Atención Primaria de Salud. Salud de la familia. Educación en salud. Enfermería de la familia

INTRODUÇÃO

A Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1985, na cidade de Nairóbi, Quênia, estabeleceu que o uso racional de medicamentos (URM) requer que pacientes recebam a medicação apropriada para sua situação clínica, nas doses que satisfaçam as necessidades individuais, por um período adequado e ao menor custo possível para eles e sua comunidade(1).

Em contrapartida, a multiplicidade de produtos farmacêuticos disponíveis, a compulsão dos pacientes por tomar remédios, que constitui uma das pressões para a necessidade de prescrição medicamentosa, a propaganda de medicamentos nas mídias, o fácil acesso a medicamentos na internet, bem como a formação dos profissionais de saúde que privilegiam ações curativistas em detrimento de estratégias de prevenção e promoção em saúde, entre outros fatores, podem contribuir para o mau uso de medicamentos(2).

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) traz dados que apontam as dimensões do uso irracional de medicamentos, afirmando que 15% da população mundial consome mais de 90% da produção farmacêutica; 50% de todos os medicamentos são prescritos, dispensados ou usados irracionalmente; os hospitais gastam de 15% a 20% de seus orçamentos para tratar agravos decorrentes do mau uso de medicamentos; e 40% dos pacientes que adentram os prontos-socorros com intoxicação são vítimas dos medicamentos(3).

Sabe-se, porém, que o uso de medicamentos não se resume apenas a uma prática terapêutica, pautada no modelo biomédico. O ato de tomar medicamentos envolve muito mais que a ingestão física de substâncias farmacêuticas para fins terapêuticos. Cada medicamento reúne em si vários elementos, como práticas científicas, agendas políticas, interesses comerciais, além de outros componentes sociais e da mídia. Os medicamentos não são somente compostos químicos, mas entidades culturais. Eles são produtos da cultura humana, mas também produtores de cultura, afetando as representações da vida e da sociedade(4).

Nesse contexto, a abordagem sobre o uso de medicamentos precisa considerar suas dimensões culturais e sociais, seu caráter antropológico, visto que os medicamentos são dotados de várias dimensões, impregnadas de sentidos e significados em contextos e situações singulares(5).

Diante disso, estudos das experiências dos seres humanos em relação à utilização dos medicamentos no cotidiano e as representações decorrentes dessas vivências podem contribuir para a compreensão desse fenômeno, que é o uso de medicamentos. Essas representações são construídas historicamente e tecidas em contextos singulares, envoltas em significados, ora positivos, ora negativos, e, assim, apresentam caráter produtivo de identidades(6).

Em metassíntese de pesquisas sobre os significados do uso de medicamentos para os pacientes, o enfoque deu-se tão somente às questões relacionadas à não adesão ao tratamento, porém os resultados encontrados refletem certa fragmentação proveniente de percursos metodológicos heterogêneos e maior diálogo com aportes teóricos empregados(7). Desse modo, faz-se necessário implementar mais pesquisas qualitativas que procurem atentar para as perspectivas dos pacientes, como também dos profissionais de saúde, ampliando a compreensão desse fenômeno que é o uso de medicamentos.

Portanto este trabalho tem como objetivo conhecer e compreender as representações sobre o uso racional de medicamentos em equipes da Estratégia Saúde da Família da zona urbana do município de Dourados, MS.

MÉTODO

Trata-se de pesquisa qualitativa, descritiva e exploratória, realizada na rede de atenção básica do município de Dourados, Mato Grosso do Sul. Essa cidade tem uma área territorial de 4.086,244 m2 e dista 214 km de Campo Grande, a capital do Estado. Segundo dados do IBGE, em 2010, a população estimada do município era de 196.035 habitantes, sendo a densidade demográfica 47,97 hab/km²(8).

A Secretaria Municipal de Saúde de Dourados indicou três ESF para o desenvolvimento do estudo. Essas equipes estão localizadas no bairro Izidro Pedroso e integram a rede urbana de atenção básica do município, que no período do estudo era constituída por 39 ESF, cinco centros de saúde e uma fisioclínica(9). Foram convidados todos os componentes das equipes, perfazendo um total de 39 profissionais, sendo eles: agentes comunitários de saúde, auxiliares de enfermagem, enfermeiros, médicos, odontólogos, auxiliares dos odontólogos e recepcionistas. No entanto, alguns membros das equipes não puderam comparecer nas reuniões agendadas para a realização da pesquisa, não tendo, portanto, participado da pesquisa.

Foi utilizada a técnica do grupo focal, conduzida por um facilitador mediante roteiro planejado previamente, o que possibilitou a organização das falas dos participantes e da inserção de todos na discussão do tema(10). Neste estudo foram organizados três grupos, um de cada equipe Estratégia Saúde da Família, em três dias distintos. Cada grupo, além da presença do facilitador, contou com a participação de dois relatores, que realizavam a transcrição imediata das falas dos participantes. O facilitador lançou as seguintes questões norteadoras: Fale sobre suas experiências e vivências a respeito dos medicamentos ao longo de sua vida; Fale sobre o uso de medicamentos no seu cotidiano profissional. As entrevistas foram avaliadas conforme a análise temática, modalidade da análise de conteúdo(10).

O aporte teórico do estudo constituiu-se do conceito de representações desenvolvido por Stuart Hall. Nesse conceito a linguagem funciona através da representação, ou seja, os significados têm efeitos reais e regulam práticas sociais. O reconhecimento desses significados contribui com a constituição de identidades e nos interpela a ocupar posições construídas em práticas discursivas. Desse modo, o caráter produtivo da linguagem encontra-se articulado com a noção de representação, sendo a linguagem empregada para produzir significados. A representação envolve práticas de significação através das quais esses significados possibilitam compreender as experiências da vida, sendo específicas em espaços e tempos históricos singulares(11).

As práticas de representação ligam o significado e a linguagem à cultura. Representar é usar a linguagem para dizer algo significativo ou representar o mundo de forma significativa ao outro. A representação é parte imprescindível do processo pelo qual o significado é produzido e partilhado entre os componentes de um grupo. Ou seja, as representações são decorrentes, não apenas de como algo é utilizado, mas também do que é dito, percebido e integrado nas práticas do cotidiano(11).

A proposta de pesquisa foi encaminhada ao Comitê de Ética de Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, tendo protocolo de aprovação nº 1801/2010. Este estudo está vinculado ao Projeto Práticas Educativas em Saúde na Promoção do Uso Racional de Medicamentos em pacientes hipertensos e diabéticos na rede básica de saúde. Os entrevistados foram convidados a participar voluntariamente da pesquisa e assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido. Para preservar o anonimato dos entrevistados foram atribuídos códigos tais como P1.A, P1.B, P1.C, sendo A, B e C a ESF à qual o entrevistado pertence.

RESULTADOS

Participaram da pesquisa 26 componentes das ESF, sendo nove da ESF A, sete da ESF B e dez da ESF C. Em relação à categoria profissional, foram três enfermeiros, três médicos, um odontólogo, quatro auxiliares de enfermagem, um auxiliar odontológico, 12 agentes comunitários de saúde e dois recepcionistas. Dentre as características predominantes dessa amostra, verificou-se a maioria de mulheres, totalizando 20. A média de idade dos participantes ficou em torno de 39 anos, atuando na ESF em média há cerca de cinco anos. Quanto à escolaridade, 15 possuíam ensino médio completo, nove ensino superior completo, um ensino superior incompleto e um possuía ensino fundamental incompleto.

A partir dos grupos focais realizados com as ESF A, B e C, emergiram as seguintes categorias de análise: os profissionais das ESF e o uso de medicamentos, os pacientes e o uso de medicamentos.

Os profissionais das ESF e o uso de medicamentos

Em suas falas os profissionais demonstraram os significados que atribuem aos medicamentos. Esses significados são práticas de representações sobre o uso dos fármacos expressas através da linguagem. Para esses sujeitos os medicamentos representam objetos destinados à cura de doenças que devem ser usados somente após prescrição médica. O modelo biomédico, nesse caso, parece ser a base explicativa para esses profissionais.

...Se doendo, então pronto. Vamos pro posto. O médico vai indicar qual o remédio que ele vai ter que tomar (P1.A).

Além disso, a partir dos relatos dos profissionais emergiram representações negativas atribuídas aos medicamentos. Essas representações estão associadas às experiências desses sujeitos com os efeitos colaterais ou com danos causados pelo uso inadequado, por exemplo, decorrentes da automedicação. Diante disso os profissionais demonstraram perceber que os medicamentos não são inócuos. Para eles isso constitui seu diferencial perante a população leiga, que parece realizar o consumo, algumas vezes exacerbado de medicamentos, no intuito de obter o alívio imediato de seus males, sem levar em conta os riscos dessa atitude.

A minha experiência foi com medicamento para emagrecer. Eu engordei tudo que emagreci. Também alterou meu comportamento, fiquei irritada, chorosa e eu ficava 'ligadona', me dava muita disposição (P4.C).

Eu tenho uma experiência traumática. Eu trabalhava numa farmácia quando era criança; então, acabaram as balas e eu comi um monte de Melhoral® infantil. Fui parar no hospital com overdose de Melhoral® (P2.C).

A minha experiência foi com a fluoxetina. Eu trabalhava em dois hospitais; então, me falaram que fluoxetina era bom pra ficar acordada. Tomei e fiquei uns três dias acordada (P3.C).

Pacientes e o uso de medicamentos

Os relatos dos profissionais acerca dos pacientes e o uso que estes fazem dos medicamentos expressam que eles não compreendem as informações sobre o uso e muitas vezes, pela falta de conhecimento, acabam utilizando os fármacos de forma irracional, ficando expostos a sérios riscos.

Há também a dificuldade dos pacientes em entender a receita médica. Houve um caso de um paciente que teria que tomar três comprimidos de um anti-inflamatório às oito horas e ele tomou três de oito em oito horas. Há casos de reações alérgicas à dipirona, reações extrapiramidais à metoclopramida (P4.B).

Há um problema com a confusão que os pacientes fazem com as receitas. Eles também procuram muitos médicos de diferentes especialidades e cada um receita um novo tratamento sem conhecer o anterior, e os pacientes não informam que já usam outros medicamentos (P5.C).

Os pacientes também têm muita dificuldade em entender a receita médica. Às vezes o medicamento que é pra tomar a cada oito horas eles tomam às oito horas da manhã e às oito horas da noite (P5.C).

...Às vezes a pessoa está acostumada com o Capoten® e a gente leva o captopril, e aí é uma dificuldade pra convencer o paciente que é o mesmo medicamento que ele estava tomando. Principalmente os idosos, é uma dificuldade pra convencer eles (P2.A).

No entanto, as equipes da Estratégia Saúde da Família em estudo, ainda apresentam dificuldades em implementar estratégias para a promoção do uso racional de medicamentos, parecendo restringir-se a práticas isoladas de orientações aos usuários, às vezes emitindo apenas conselhos e advertências sobre os efeitos nocivos desses recursos terapêuticos e a importância da adesão ao tratamento e da não adoção da automedicação:

Os pacientes também muitas vezes tomam um remédio porque o vizinho toma e dá certo. Às vezes descobre que é hipertenso e quer tomar captopril porque o outro toma e dá certo. Mas, eu sempre falo que não adianta tomar o remédio que outra pessoa toma porque o nosso organismo é diferente do da outra pessoa. Agora diminuiu esse comportamento dos pacientes porque eu falo e eles ficam com medo de tomar remédio sem receita médica (P8.C).

Tinha um morador na minha área que era hipertenso e diabético. E ele tomava a medicação até quinta-feira de manhã. Aí ele bebia quinta à noite, sexta, sábado e domingo. E mesmo com a enfermeira fazendo visitas e orientando, ele não mudava o hábito (P2.A).

Além das representações já relatadas, os profissionais descrevem práticas dos pacientes que demonstram contrariedade ao uso racional de medicamentos, dentre as quais destacam-se a automedicação e a não adesão à terapêutica. Para os profissionais tais condutas podem se traduzir como rebeldia dos pacientes e falta de interesse deles em melhorar o estado de saúde, talvez levando a equipe ao desânimo no desenvolvimento de intervenções na promoção do uso racional de medicamentos.

Há casos dos pacientes que são hipertensos e não tomam medicação, só quando têm crise vão ao serviço de saúde (P5.B).

Quanto aos pacientes eu vejo que eles muitas vezes abandonam o tratamento. Muitos tomam chás em vez de tomar os medicamentos (P1.C).

Além da automedicação e baixa adesão à terapêutica, os profissionais relataram que alguns pacientes atuam como prescritores e dispensadores de medicamentos, indicando e distribuindo ao longo de suas redes sociais, sendo essas práticas representação considerável de desafios à equipe de saúde, além do risco do uso inadequado da medicação.

Os pacientes tomam muitos remédios receitados pelos vizinhos. Tem uma paciente que sempre pedia receita de dipirona, diclofenaco, amoxacilina porque ela sempre medicava os vizinhos. Agora estamos conseguindo mudar, mas ela é uma pessoa complicada porque o que ela tiver de remédio em casa ela toma e também dá pros filhos (P7.B).

Na recepção teve paciente que chegou desesperado todo empolado (com erupções cutâneas). Porque tomou medicação indicada pelo outro (P1.B).

DISCUSSÃO

A caracterização das equipes da ESF, no que se refere aos agentes comunitários de saúde, converge com pesquisa realizada na cidade de Ribeirão Preto, que teve como temática a investigação desses profissionais em relação ao uso racional de medicamentos. Neste estudo, a média de idade dos agentes foi de 39 anos, sendo predominantemente do sexo feminino e com ensino médio completo(12).

A respeito das representações dos profissionais de saúde das ESF, verificou-se que o papel curativo do medicamento ainda parece assumir relevância, em detrimento das funções profiláticas e paliativas que foram menos consideradas, e isso pode comprovar certo predomínio de concepções pautadas apenas em dimensão biológica da saúde e da doença. Sob essa perspectiva, o medicamento tem sido o principal recurso terapêutico, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, com o avanço da industrialização dos fármacos e a descoberta de meios que comprovassem a eficácia e segurança dos medicamentos. Na contemporaneidade, o uso de medicamento é um fenômeno vinculado e subordinado não somente às questões de saúde, mas também aos aspectos econômicos e políticos. Por isso o medicamento, muitas vezes, pode assumir simultaneamente a forma de mercadoria e de objeto terapêutico(13).

Como recurso terapêutico, o uso de medicamentos apresenta também caráter ambivalente, relacionado à sua eficácia, às suas qualidades curativas intrínsecas, como objeto de alívio, reforçando sua popularidade e o otimismo farmacológico. Por outro lado, as experiências negativas com seu uso reforçam o ceticismo quanto a esse artefato terapêutico, bem como suas representações de objeto estranho, não natural e permeado de efeitos secundários(14-15).

As falas dos profissionais de saúde reforçam a importância de conhecer as suas experiências em relação ao uso de medicamentos, atentando para os sentidos atribuídos que podem influenciar suas ações no cotidiano das práticas de saúde, ou seja, como se concretiza o processo de cuidado ao paciente que faz uso de medicamentos, principalmente conhecer quais as condutas diante das suspeitas de reações adversas. Estudo realizado com profissionais de saúde da ESF, no estado do Ceará, verificou que intervenções a respeito das reações adversas são escassas e a notificação dos agravos decorrentes do uso de medicamentos ao Sistema Nacional de Farmacovigilância tem sido negligenciada(16).

Assim, é fundamental para a promoção do uso racional de medicamentos que a equipe de saúde da ESF, porta de entrada dos serviços de saúde no Brasil, seja preparada para atuar perante a ocorrência de reações adversas a medicamentos ou outros efeitos negativos destes, os quais podem estar vinculados ao seu uso irracional. Esses efeitos adversos podem interferir negativamente na adesão à terapia medicamentosa, além de serem causadores de sérios danos à saúde e também um dos fatores que aumentam os gastos do sistema de saúde pública(16).

A respeito dos pacientes e o uso de medicamentos, os profissionais atribuem àqueles a responsabilidade pela utilização incorreta da medicação. No entanto, o conceito de uso racional de medicamentos não envolve apenas os aspectos relacionados às condutas dos pacientes quanto aos fármacos. Estudos mostram que as práticas irracionais no uso dos medicamentos também estão relacionadas às condutas dos próprios profissionais, dentre as quais podem ser citadas: a falta de orientações necessárias para o paciente, as prescrições inadequadas, a dependência de fontes comerciais e não científicas de informação sobre uso racional de medicamento, o não seguimento das recomendações dos estudos científicos, bem como a negligência na notificação das suspeitas de reações adversas, incluindo as extremamente graves, para as entidades fiscalizadoras(17). Além disso, as prescrições medicamentosas podem ser ainda influenciadas pelo marketing industrial de fármacos e pelo fato de que padrões culturais estabeleceram representações que em toda consulta a terapêutica envolvendo medicamentos é quase obrigatória(18).

Outro fato apontado pelos profissionais de saúde referiu-se à falta de conhecimento dos pacientes a respeito do uso correto da medicação. Como consequência disso, podem ocorrer práticas inadequadas e a exposição dos usuários aos efeitos adversos e tóxicos dos fármacos. Um possível principal fator que desencadeia essa situação é a comunicação ineficaz entre o profissional de saúde e o paciente(17), visto que o emprego de termos técnicos e explicações complexas dificulta o entendimento do paciente, e assim muitos se sentem constrangidos em demonstrar suas dúvidas, persistindo a não compreensão do esquema terapêutico e da própria doença(19).

Em estudo realizado sobre a adesão de pessoas com esquizofrenia à medicação, apesar de o medicamento ser apontado pelos pacientes como estratégia relevante no tratamento desse transtorno crônico, observou-se conhecimento insuficiente sobre a terapêutica medicamentosa, como, por exemplo, não saber o nome dos fármacos tomados, acreditar que o medicamento proporcionará a cura dessa desordem crônica e, portanto, que a medicação seria prescrita apenas por um tempo limitado. Assim, a precariedade quanto ao entendimento da doença e do tratamento pode se constituir em barreiras no seguimento da terapêutica(20).

Por vezes, os profissionais de saúde podem assumir o papel de simplesmente verificar o cumprimento do tratamento medicamentoso, decorrente de representações fragmentadas no processo do cuidado. Em pesquisa sobre as atividades dos agentes comunitários de saúde na promoção do uso racional de medicamentos realizada em Ribeirão Preto, verificou-se que tais profissionais adquirem uma postura de vigilância do uso de medicamentos, como, por exemplo, questionar se o paciente está tomando o medicamento certinho, porém bastante desarticulada e distante de uma perspectiva interdisciplinar(12).

Além da falta de compreensão da terapêutica medicamentosa pelos pacientes, os profissionais de saúde relataram a dificuldade do usuário em cumprir o tratamento ou promover a automedicação. Estudos descrevem que a adesão à terapia medicamentosa por parte do paciente está intimamente relacionada com o entendimento que eles têm de suas patologias e do tratamento. Além disso, a ausência de sintomas pode ser um fator preponderante para o abandono da terapêutica. Muitas vezes os profissionais de saúde podem exercer certa hierarquia, não levando em conta os saberes, experiências e representações dos pacientes sobre sua doença e seu tratamento. Dessa forma, no processo do cuidado, podem ser fornecidas informações não contextualizadas, ou até insuficientes sobre seu estado de saúde e sobre as especificidades do tratamento proposto, dificultando assim a sua adesão(17,19).

Por outro lado, a não adesão ao tratamento envolve também o desejo dos pacientes em manter o controle sobre si, especialmente em tratamentos crônicos, nos quais eles adquirem certo conhecimento sobre a medicação e aprendem a decifrar efeitos e reações que os fármacos provocam(6). Assim, os esquecimentos esporádicos sobre o uso dos medicamentos e automedicação se sobrepõem às prescrições, podendo significar para eles autonomia(21). No entanto, para os profissionais de saúde, o não seguimento das prescrições ou questionamento delas é considerado como estratégia de resistência(6).

Diante disso, afere-se a importância da interdisciplinaridade na promoção do uso racional de medicamentos, principalmente no âmbito da Estratégia Saúde da Família(19). A equipe interdisciplinar deve trabalhar coesa no intuito de elaborar práticas convergentes e colaborativas, priorizando sempre que possível, terapias não medicamentosas, a fim de desmistificar a questão cultural de que todos os males devem ser curados com medicamentos. Faz-se necessário que a equipe de saúde procure compreender as vivências e representações sobre o uso de medicamentos dos usuários, a fim de que a equipe possa adequar-se à forma de lidar com esses indivíduos, fornecendo-lhes informações claras sobre a patologia que os acomete, seu estado clínico e a necessidade e características do tratamento proposto(18).

Dentro dessa equipe interdisciplinar, a enfermagem tem um papel relevante na promoção do uso racional de medicamentos. No âmbito da Saúde da Família o enfermeiro tem função primordial de, juntamente com toda a equipe de saúde, desenvolver a prevenção de doenças e agravos e promover a saúde, sendo a educação em saúde um dos seus principais instrumentos de intervenção. A esse profissional também cabe desenvolver a educação continuada da equipe de enfermagem e dos agentes comunitários de saúde; portanto, a compreensão pelo enfermeiro das representações do uso racional de medicamentos dos membros da equipe de saúde possibilita desenvolver práticas mais eficazes, resolutivas e cooperativas(12).

CONCLUSÃO

Por meio deste estudo verificamos que o cotidiano e as histórias dos profissionais de saúde participantes da pesquisa estão permeados de experiências com medicamentos, as quais geraram representações, principalmente negativas. Em suas falas os profissionais relataram que o medicamento não é um elemento inócuo, pois através de práticas inadequadas sofreram consequências negativas, apresentando até mesmo certo temor em relação ao uso de medicamentos.

Constatamos ainda que os profissionais, apesar de não terem clareza sobre a definição do uso racional de medicamentos, compreendem até certo ponto o que este representa, e muitos expressam a importância de seguir a prescrição medicamentosa corretamente, os riscos da automedicação, entre outros aspectos. No entanto, eles expressam representações de que a maior responsabilização pelo uso racional de medicamentos ainda parece ser do paciente, demonstrando que a percepção de seus papéis na promoção dessa prática pode requerer ações educativas que levem à reflexão e transformação.

Concluímos ainda que os participantes do estudo apresentam representações acerca do uso que o outro, nesse caso os pacientes, faz dos medicamentos e descrevem que eles não compreendem as informações sobre o uso de medicamentos, se automedicam e não aderem ao tratamento. Para os profissionais de saúde, essas condutas podem significar resistência dos pacientes. Além disso, o uso correto dos medicamentos pode ser prejudicado pela comunicação ineficaz entre profissionais e pacientes, pois são fornecidas informações muitas vezes insuficientes a respeito de seu estado de saúde e das especificidades do tratamento proposto.

Verificou-se que as estratégias de promoção do uso racional de medicamentos formuladas pelos profissionais das Estratégias Saúde a Família consistem em iniciativas ainda pontuais e com enfoque curativo, prevalecendo a cosmovisão biomédica. Dessa forma, é necessária a formulação de práticas educativas em saúde sobre uso racional de medicamentos, focalizando o envolvimento da equipe interdisciplinar e a inserção de outros profissionais, como o farmacêutico, e, assim, promovendo rupturas em relação ao modelo curativista e centrado no medicamento. Portanto, é imprescindível conhecer as representações que esses profissionais têm sobre o processo do adoecer, sobre os medicamentos e o uso racional deles, sabendo as posições que esses indivíduos ocupam em seus discursos a fim de que se possam desenvolver processos cuidativos mais eficazes.

AGRADECIMENTOS

Aos profissionais de saúde das ESF participantes da pesquisa e ao apoio financeiro da FUNDECT/Ministério da Saúde/CNPq/Secretaria de Estado da Saúde do Mato Grosso do Sul

Recebido: 11/11/2011

Aprovado: 13/03/2012

  • 1. Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos. O que é uso racional de medicamentos. São Paulo: Sobravime; 2001.
  • 2. Wannmacher L. Uso racional de medicamentos: medida facilitadora do acesso. In: Zepeda Bermudez JA, organizador. Aceso a medicamentos: derecho fundamental, papel del Estado. Rio de Janeiro: ENSP; 2004. p. 91-102.
  • 3. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Parcerias para diminuir o mau uso de medicamentos. Rer Saúde Pública. 2006;40(10):191-4.
  • 4. Persson A. Incorporating pharmakon: HIV, medicine, and body shape change. Body Soc. 2004;10(4):45-67.
  • 5. Whyte SR, Van der Geest S, Hardon A. Social lives of medicines. Cambridge: University Press; 2002.
  • 6. Shoemaker SJ, Oliveira DR. Understanding the meaning of medications for patients: The medication experience. Pharm World Sci. 2008;30(1):86-91.
  • 7. Pound P, Britten N, Morgan M, Yardley L, Pope C, Daker-White G, et al. Resisting medicines: a synthesis of qualitative studies of medicine taking. Soc Sci Med. 2005; 61(1):133-55.
  • 8. Instituto Brasileiro de geografia e Estatística (IBGE). Cidades [Internet]. Rio de Janeiro; 2010 [citado 2011 jul. 10] Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm
  • 9
    Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde [Internet]. Brasília; 2009 [citado 2011 jul. 10]. Disponível em: http://cnes.datasus.gov.br
  • 10. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 10ª ed. São Paulo: Hucitec; 2007.
  • 11. Hall S. Representation: cultural representations and signifying practices. London: Sage; 1997.
  • 12. Marques TC. As atividades de agentes comunitários de saúde e a promoção do uso correto de medicamentos em unidades do Distrito de Saúde Oeste do município de Ribeirão Preto-SP [dissertação]. Ribeirão Preto: Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo; 2008.
  • 13. Renovato RD. O uso de medicamentos no Brasil: uma revisão crítica. Rev Bras Farm. 2008;89(1):64-9.
  • 14. Thoër-Fabre C, Garnier C, Tremblay F. Le Médicament dans les sciences sociales: une analysedocumentaire d'un champ en construction. In: Lévy JJ, Garnier C. La chaîne dês médicaments: perspectives pluridisciplinaires. Québec: Presses de l'Universitédu Québec; 2007. p. 19-84.
  • 15. Miasso AI, Cassiani SHB, Pedrão LJ. Bipolar affective disorder and medication therapy: identifying barriers. Rev Latino Am Enferm. 2008;16(4):739-45.
  • 16. Salviano LHMS, Luiza VL, Ponciano AMS. Percepção e condutas de profissionais da Estratégia Saúde da Família acerca de reações adversas a medicamentos. Epidemiol. Serv Saúde. 2011;20(1):47-56.
  • 17. Cohen D, McCubbin M, Collin J, Pérodeau G. Medication as social phenomena. Health. 2001;5(4):441-69.
  • 18. Leite SN, Cordeiro BC. A interdisciplinaridade na promoção do uso racional de medicamentos. Ciênc Cuid Saúde. 2008;7(3):399-403.
  • 19. Nunes CC, Amador TA, Heineck I. O medicamento na rotina de trabalho dos agentes comunitários de saúde da unidade básica de saúde Santa Cecília, em Porto Alegre, RS, Brasil. Saúde Soc. 2008;17(1):85-94.
  • 20. Nicolino OS, Vedana KGG, Miasso AI, Cardoso L, Galera SAF. Schizophrenia: adherence to treatment and beliefs about the disorder and the drug treatment. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2011 Oct 19];45(3):708-15. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n3/en_v45n3a23.pdf
  • 21. Mendonça RT, Carvalho ACD. O papel de mulheres idosas consumidoras de calmantes alopáticos na popularização do uso destes medicamentos. Rev Latino Am Enferm. 2005;13(n.esp):1207-12.
  • Correspondência:
    Rogério Dias Renovato
    Rua Hilda Bergo Duarte, 296
    CEP 79806-020 - Dourado, MS, Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      11 Nov 2011
    • Aceito
      13 Mar 2012
    Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: reeusp@usp.br