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Encontros musicais como recurso em cuidados paliativos oncológicos a usuários de casas de apoio* * Extraído da dissertação "Encontros musicais como recurso no cuidado de enfermagem em cuidados paliativos oncológicos: uma análise fenomenológica", Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Estadual de Maringá, 2011.

Encuentros musicales como recurso en cuidados paliativos oncológicos a los pacientes de residencias de apoyo

Resumos

Investigação fenomenológica, estruturada na analítica existencial de Heidegger, que objetivou desvelar a percepção de usuários que vivenciam o câncer em uma casa de apoio, em relação aos encontros musicais. Participaram do estudo sete usuários da casa de apoio da Rede Feminina de Combate ao Câncer de Maringá, onde foram realizados oito encontros musicais, durante os meses de janeiro e fevereiro de 2011. Para a coleta de dados foi utilizada a entrevista individual, conduzida pela seguinte questão norteadora: o que esses encontros musicais representam para você neste momento de sua vida? Durante o processo de compreensão do fenômeno investigado, emergiram duas temáticas ontológicas - Sentindo-se cuidado nos encontros musicais e Transcendendo sua facticidade existencial. Constatou-se que o encontro mediado pela música constitui um recurso no cuidado de enfermagem em cuidados paliativos oncológicos, que inspira vida aos dias dos usuários, imprimindo-lhes a sensação de cuidado e ressignificando seu existir-no-mundo.

Enfermagem oncológica; Música; Musicoterapia; Cuidados paliativos


Investigación fenomenológica, estructurada en la analítica existencial de Heidegger, objetivando revelar la percepción de pacientes de cáncer en una residencia de apoyo, en relación a los encuentros musicales. Participaron siete pacientes de la residencia de apoyo de la Red Femenina de Combate al Cáncer de Maringá, donde se realizaron ocho encuentros musicales entre enero y febrero de 2011. Datos recolectados mediante entrevista individual orientada por la pregunta: ¿qué representan estos encuentros musicales para usted en este momento de su vida? Durante el proceso de comprensión del fenómeno investigado, surgieron dos temáticas ontológicas: Sintiéndose cuidado en los encuentros musicales y Trascendiendo su facticidad existencial. Se constató que el encuentro mediado por la música constituye un recurso de cuidado de enfermería en cuidados paliativos oncológicos, que inspira vida a los días de los pacientes, ofreciéndoles sensación de cuidado y otorgándole significado a su existir-en-el-mundo.

Enfermería oncológica; Música; Musicoterapia; Cuidados paliativos


This was a phenomenological investigation into musical meetings, structured according to the existential analytics of Martin Heidegger, that aimed at scrutinizing the perception of patients with cancer living in a support home. Seven users of the support home of the Rede Feminina de Combate ao Cancer in Maringá, Paraná, took part in the study, during which eight musical meetings took place during the months of January and February 2011. For the purposes of data collection individual interviews were used, starting with the following question: What do these musical meetings represent to you at this time of your life? During the process of understanding the investigated phenomenon, two ontological themes emerged: a feeling of being taken care of in the musical meetings; and transcending their existential facticity. It was observed that a meeting mediated by music represents a resource in oncologic palliative care nursing; and that it brings inspiration to the patients' daily life, instilling a feeling of being cared for and giving a new meaning to their being-in-the-world.

Oncologic nursing; Music; Music therapy; Palliative care


INTRODUÇÃO

O avanço científico e tecnológico inerente ao diagnóstico e prognóstico do câncer tem possibilitado o aumento da taxa de cura, da sobrevida e da qualidade de vida dos pacientes oncológicos. Não obstante, a complexidade que submerge o indivíduo e sua família transcende sua abrangência( 11. Bergold LB. Encontros musicais: uma estratégia de cuidado de enfermagem junto a sistemas familiares no contexto da quimioterapia {tese doutorado}. Rio de Janeiro: Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2009. ), pois a historicidade do câncer denota seu estigma social que sustenta a conotação de dor, sofrimento e morte( 22. Andrade VCC, Mikuni PK, Melo PS, Sales CA. O estar-só e o estar-com um ente querido durante a quimioterapia. Rev Enferm UERJ. 2006;14(2):226-31. ).

No Brasil, a redução das taxas de mortalidade e de natalidade aumentou a expectativa de vida, ocasionando o envelhecimento demográfico, com maior incidência e prevalência de doenças crônico-degenerativas como o câncer( 33. Brasil. Ministério da Saúde; Instituto Nacional do Câncer (INCA). Ações de enfermagem para o controle do câncer: uma proposta de integração ensino-serviço. 3ª ed. Rio de Janeiro: INCA; 2008. ). A Política Nacional de Atenção Oncológica (PNAO), consolidada em 3 de setembro de 2009 pela Portaria nº 2.048, reconhece o câncer como problema de saúde pública, dispondo ações de promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos para a redução da incidência e da mortalidade por câncer( 44. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.048, de 3 de setembro de 2009. Subseção VIII. Da Política Nacional de Atenção Oncológica {Internet}. Brasília; 2009 {citado 2012 fev. 17}. Disponível: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/regulamento_sus_240909.pdf
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).

Contudo, muitos doentes ainda se deparam com a necessidade de deslocamento para os grandes centros, onde se concentram os recursos necessários ao tratamento do câncer. Essa peregrinação na esperança de cura ocasiona vicissitudes que, agregadas ao desgaste físico e à questão financeira, inviabilizam o itinerário, obrigando-os a se hospedar em casas de apoio. Além de conviverem com o câncer e os efeitos adversos do tratamento antineoplásico, a ausência de seus entes queridos desperta sentimentos de tristeza, abandono, insegurança e derrota( 55. Silva MRB, Borbognoni K, Rorato C, Morelli S, Silva MRV, Sales CA. O câncer entrou em meu lar: sentimentos expressos por familiares de clientes. Rev Enferm UERJ. 2008;16(1):70-5. ).

Os cuidados paliativos são uma filosofia de cuidado que aprimora a qualidade de vida de pessoas que convivem com doenças ameaçadoras da vida, pela prevenção e alívio do sofrimento, por meios de identificação precoce, avaliação correta e tratamentoda dor e outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual( 66. World Health Organization (WHO). WHO definition of palliative care {Internet}. Geneva; 2006 {cited 2010 Apr 8}. Available from: http://www.who.int/cancer/palliative/definition/en/
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). Estruturadas em pressupostos filosóficos e humanísticos, surgem inúmeras iniciativas como a utilização da música como recurso terapêutico, por sua contribuição multidimensional, sobretudo por possibilitar a expressão de afetividade, emoções e delicadezas muitas vezes esquecidas ante a iminência de morte, transcendendo o cuidado fragmentado e desumano( 77. Seki NH, Galheigo SM. O uso da música nos cuidados paliativos: humanizando o cuidado e facilitando o adeus. Interface Comun Saúde Educ {Internet}. 2010 {citado 2011 set. 26}. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v14n33/a04v14n33.pdf
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).

Como intervenção de saúde, a música ultrapassa o domínio dos sintomas e das emoções, possibilitando a aproximação dos seres, o encontro do homem com sua própria essência, subsidiando a compreensão do sentido da vida, na unicidade e subjetividade de uma experiência que integra todas as dimensões humanas( 88. Leão ER. Reflexões sobre música, saúde e espiritualidade. Mundo Saúde. 2007;31(2):290-6. ). No ambiente hospitalar e instituições afins, o potencial terapêutico desse recurso pode alterar os estados de ânimo, evocar reminiscências e facilitar as relações interpessoais e o processo de comunicação, favorecendo o resgate do saudável e a autotranscendência em situações de dor, sofrimento e morte. Nesse contexto de fragilidade e vulnerabilidade, a música torna-se um convite à arte do encontro e da interação ( 99. Leão ER, Flusser V. Música e comunicação não verbal em instituições de longa permanência para idosos: novos recursos para a formação de músicos para a humanização dos hospitais. Oline Braz J Nurs {Internet}. 2008 {citado 2012 jul. 18};7(2). Available from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/j.1676-4285.2008.1600
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).

O interesse da enfermagem em utilizar esse recurso tem aumentado e a produção de conhecimento demonstra sua importância na humanização do cuidado( 1010. Bergold LB, Alvim NAT. Visita musical como uma tecnologia de cuidado. Texto Contexto Enferm. 2009;18(3):532-41. ). No ambiente de pessoas que convivem com o câncer na terminalidade da vida, constatou-se que a música aviva sensações agradáveis e contribui para o conforto e bem-estar do doente e sua família, dando sentido a seus dias; suscita sentimentos de alegria, tornando os pacientes mais comunicativos, como se a doença parasse no tempo e no espaço vivido; representa um suporte de apoio psicossocioespiritual que desperta força e coragem para transcenderem a angústia de sua condição existencial( 1111. Sales CA, Silva VA, Pilger C, Marcon SS. Music in human terminality: the family members' conceptions. Rev Esc Enferm USP {Internet}. 2011 {cited 2011 June 2};45(1):134-40. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n1/en_19.pdf
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).

Diante do exposto, o objetivo desta investigação é desvelar a percepção das pessoas que vivenciam o câncer em uma casa de apoio, em relação aos encontros musicais, que constituem uma estratégia de cuidado em grupo, tendo a música como recurso terapêutico. O estímulo musical incita o processo expressivo e interativo, as narrativas e o diálogo; promove conforto e bem-estar e reduz a ansiedade, resultando na elaboração de estratégias de enfrentamento( 11. Bergold LB. Encontros musicais: uma estratégia de cuidado de enfermagem junto a sistemas familiares no contexto da quimioterapia {tese doutorado}. Rio de Janeiro: Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2009. ). Ponderando sua incipiência enquanto recurso no cuidado de Enfermagem, bem como a necessidade de implementar recursos terapêuticos criativos e sensibilizadores, a presente investigação visa sancionar a importância dos encontros musicais nos cuidados paliativos oncológicos.

MÉTODO

Trata-se de um estudo qualitativo, fenomenológico, estruturado na analítica existencial heideggeriana( 1212. Heidegger M. Ser e tempo. 3ª ed. Petrópolis: Vozes; 2008. ). Este referencial filosófico subsidia recursos imprescindíveis para desvelar fenômenos, a singularidade, a subjetividade e a autenticidade do modo de ser de outros, além de sensibilizar os enfermeiros na reflexão sobre suas vivências, em seu existir cuidando( 1313. Monteiro CFS, Rocha SS, Paz EPA, Souza IEO. Fenomenologia Heideggeriana e sua possibilidade na construção de estudos de enfermagem. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2006;10(2):297-300. ). A abordagem fenomenológica permite ao pesquisador ensimesmar-se na cotidianidade do ser que busca compreender, ou seja, aproxima-o do mundo do outro. Seguindo esse pensar, o pesquisador acredita que as experiências vividas deem significado à percepção de cada pessoa sobre um fenômeno particular, sendo a meta da pesquisa fenomenológica descrever a experiência totalmente vivida e as percepções que ela faz surgir ( 1414. Terra MG, Silva LC, Camponogara S, Santos EKA, Souza AIJ, Erdmann AL. Na trilha da fenomenologia: um caminho para a pesquisa em enfermagem. Texto Contexto Enferm. 2006;15(4):672-8. ).

Portanto, a região de inquérito ou região ontológica abrange a subjetividade latente nas vivências dos usuários da casa de apoio da Rede Feminina de Combate ao Câncer (RFCC) de Maringá, organização social sem fins lucrativos que acolhe aproximadamente 25 usuários por mês, adultos de ambos os sexos, que realizam tratamento fora do domicílio, ou seja, pacientes oriundos de outros municípios e Estados que fazem quimioterapia e/ou radioterapia em Maringá. De segunda à sexta-feira, disponibiliza pouso, banho, alimentação e transporte gratuitos para a clínica ou hospital. Independentemente do quadro clínico do paciente, a presença de um acompanhante é permitida, mas não obrigatória.

O projeto de pesquisa foi apreciado e aprovado pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos (COPEP) da Universidade Estadual de Maringá - UEM, Parecer nº 614/2010, por observar os aspectos éticos disciplinados pela Resolução 196/96 do CNS-MS. Em seguida, mediante autorização prévia da presidente da organização supracitada, teve início a etapa de familiarização com o cenário de estudo e a aproximação com os usuários.

Para descrever com transparência e especificidade os encontros musicais, foram adotadas as diretrizes recomendadas para relatórios de intervenções musicais na área da saúde, ponderando a complexidade de estímulos musicais e outros fatores como a escolha da música, o modo de entrega ou a combinação de música com outras estratégias de intervenção( 1515. Robb SL, Burns DS, Carpenter JS. Reporting guidelines for music-based interventions. J Health Psychol {Internet}. 2011 {cited 2012 July 18};16(2):342-52. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3141224/pdf/nihms293931.pdf
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).

No momento em que os usuários perceberam a presença de um dos pesquisadores, este se apresentou, falou sobre os encontros musicais e, diante da manifestação de interesse, procurou saber sobre as preferências musicais para melhor planejar a intervenção e contemplar a apreciação de todos.

Deste modo, as músicas que compunham o repertório utilizado foram pré-selecionadas pelos participantes e, durante os encontros musicais, eram escolhidas as que gostariam de ouvir naquele momento. As músicas previamente escolhidas com as quais os usuários mais se identificaram após a intervenção foram: Segura na mão de Deus em Lá maior (A), Meu reino encantado, em Si maior (B), No dia em que eu saí de casa, em Mi maior (E), O ipê e o prisioneiro, em Sol maior (G), e Noite traiçoeira, em Sol maior (G), com predominância de ritmos quaternário e ternário.

A música pode promover o acolhimento e o estabelecimento de relações e vínculos voltados para uma concepção humanizada do cuidado de Enfermagem, reduzir a sensação de despersonalização, aumentar a autoestima, proporcionar conforto e bem-estar e estimular a autonomização do cliente ao permitir sua participação na escolha do repertório( 1010. Bergold LB, Alvim NAT. Visita musical como uma tecnologia de cuidado. Texto Contexto Enferm. 2009;18(3):532-41. ). Sua utilização como recurso permite resultados significativos no que tange à mobilização de emoções atreladas ao passado do ouvinte, viabilizando distração e entretenimento( 88. Leão ER. Reflexões sobre música, saúde e espiritualidade. Mundo Saúde. 2007;31(2):290-6. ). Potencializa o processo de abertura do ser, subsidiando o desvelamento das percepções, emoções e vivências subjacentes ao estímulo musical.

Durante os meses de janeiro e fevereiro de 2011, foram realizados oito encontros musicais às segundas-feiras, com início às 17h30min e duração média de 1h30min, para não exaurir os participantes, considerando a debilidade física resultante da quimioterapia e/ou radioterapia, bem como o desgaste relacionado ao itinerário realizado nos finais de semana, uma viagem muitas vezes longa e exaustiva. Esse cronograma foi estabelecido de modo a não interferir na rotina da instituição e oportunizar o recurso terapêutico a todos os usuários, haja vista que no período da manhã ou da tarde os pacientes deslocam-se para a clínica ou hospital para se submeter ao tratamento antineoplásico.

A estratégia de intervenção utilizada foi a audição musical, associada ao processo expressivo e interativo dos sujeitos. O modo de entrega musical foi música ao vivo - voz e violão de seis cordas Tagina(r) Dallas com cordas de aço - além de 10 cópias do material impresso em folhas de sulfite A4 brancas, contendo as letras das músicas para os participantes (sugestão feita por um deles no primeiro encontro), uma estante de partituras Hunter(r), cadeiras e sofás dispostos em círculo com o intuito de propiciar a interação do grupo.

As músicas foram executadas pelo próprio intervencionista e pesquisador - músico e enfermeiro com experiência clínica pregressa - com a participação dos usuários, em volume agradável aos ouvidos. Os encontros aconteceram na sala social, onde transitam funcionários, usuários e beneficiários da RFCC. Os ruídos ambientais aparentemente não interferira, nos resultados da intervenção, visto que nesse ambiente os usuários assistem TV, conversam e, muitas vezes, adormecem no sofá.

Vinte usuários participaram dos encontros musicais, sendo oito no primeiro, 11 no segundo, oito no terceiro, 12 no quarto, nove no quinto, oito no sexto, sete no sétimo e quatro no oitavo. Entretanto, apenas sete usuários foram sujeitos de pesquisa, pois estiveram presentes no mínimo em três encontros musicais, condição estabelecida como critério de inclusão. Salienta-se que as intervenções em grupo podem agregar valores em termos de apoio aos participantes e que os efeitos terapêuticos das interações sociais podem transcender os da própria intervenção( 1515. Robb SL, Burns DS, Carpenter JS. Reporting guidelines for music-based interventions. J Health Psychol {Internet}. 2011 {cited 2012 July 18};16(2):342-52. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3141224/pdf/nihms293931.pdf
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).

Para a coleta de dados foi utilizada observação de campo e a entrevista individual, realizada nos aposentos de cada usuário, ambiente onde vivenciavam as nuances mais subjetivas de sua facticidade. A solicitação de participação no estudo deu-se por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que abordava os objetivos da pesquisa, a garantia de sigilo das informações obtidas e anonimato sempre que os resultados fossem divulgados.

Na fenomenologia, o pesquisador procura entrar no mundo do informante, para ter pleno acesso as suas experiências, pela participação, observação e reflexão introspectiva( 1414. Terra MG, Silva LC, Camponogara S, Santos EKA, Souza AIJ, Erdmann AL. Na trilha da fenomenologia: um caminho para a pesquisa em enfermagem. Texto Contexto Enferm. 2006;15(4):672-8. ). Logo, as notas de observação registradas no diário de campo enriqueceram a análise dos dados. Para desvelar os sentimentos dos seres que experienciam o fenômeno pesquisado, foi formulada a seguinte questão norteadora: O que esses encontros musicais representam para você neste momento de sua vida?

Com o intuito de captar a plenitude expressa pelos sujeitos em suas linguagens, optou-se pela análise individual de cada discurso. Assim, a priori, foram realizadas leituras atentas de cada depoimento, separando os trechos ou unidade de sentidos (us) que se mostraram como estruturas fundamentais da existência do ser. A posteriori, foram analisadas as unidades de sentidos, realizando seleção fenomenológica da linguagem de cada sujeito, pois uma unidade de sentido é, em geral, constituída de sentimentos que contemplam a interrogação ontológica( 1616. Josgrilberg RS. A fenomenologia como novo paradigma de uma ciência do existir. In: Pokladek DD, organizador. A fenomenologia do cuidar: prática dos horizontes vividos na área da saúde, educacional e organizacional. São Paulo: Vetor; 2004. p. 31-52. ). Os discursos foram transcritos na íntegra e interpretados à luz de algumas ideias heideggerianas, bem como de outros autores que tratam da temática.

Evitando designar os sujeitos de forma genérica, foram usados como pseudônimos nomes de figuras musicais, ou seja, símbolos que representam o tempo de duração das notas musicais, assim como os discursos revelaram a temporalidade vivenciada na casa de apoio.

RESULTADOS

Durante o processo de compreensão do fenômeno investigado, emergiram duas temáticas ontológicas - Sentindo-se cuidado nos encontros musicais e Transcendendo sua facticidade existencial.

Sentindo-se cuidado nos encontros musicais

Na compreensão heideggeriana, a afinação ou tonalidade afetiva constitui um dos três comportamentos essenciais que o ser-no-mundo utiliza para se revelar ao mundo( 1212. Heidegger M. Ser e tempo. 3ª ed. Petrópolis: Vozes; 2008. ). Uma afinação é um jeito, como uma melodia ao qual o homem está imerso e que fornece a ele um certo tom, ou seja, que afina e determina o modo e o como de seu ser ( 1717. Jardim L. Articulação da afinação e a arte para Martin Heidegger. Rev Eletr Grupo PET {Internet}. 2007 {citado 2011 set. 26};3(3). Disponível em: http://www.fenoegrupos.com/JPM-Article3/pdfs/Jardim_filosofia.pdf
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). É a condição de tocar e ser tocado, de poder compartilhar sentimentos com outros seres.

Desse modo, os encontros musicais subsidiaram o desvelar da afinação dos sujeitos do estudo, revelando o quanto sesentiram cuidados diante das manifestações de solicitude do enfermeiro, dos efeitos terapêuticos da música e da oportunidade de poder expressar seus sentimentos e compartilhar experiências de vida.

Esses encontros para mim foi a coisa mais maravilhosa! Porque me deixou tranquila, me deixou feliz. Eu amei, adorei (...) deixou a gente maravilhosamente bem. Ficamos muito contentes. Aliviou muito o astral da gente (...) É muito bom assistir o que você canta, o que você fala, a força que você dá para a gente (Semibreve).

Ah! Representou muita tranquilidade (...) Foi um apoio muito grande que a gente recebeu (...) A gente se sente mais seguro, mais tranquilo (...) Isso ajuda muito na doença da gente (...) A gente não fica pensando bobagem (...) Parece que as coisas cada dia estão ficando melhor (...) O que eu mais gostei foi o carinho e a simpatia sua, de se comunicar com a gente (...) Se pudesse duas vezes por semana era melhor. A gente tinha mais tempo para refletir (...) Não esquentava tanto a cabeça, ficava menos preocupado (Mínima).

Ah! Eu procurei viver aquele momento (...) Tentei ser feliz naquele momento (...) Parece que a semana é melhor. A música ajuda muito. (...) Você está cantando... Você não está lembrando de nada. Você está vivendo aquele momento gostoso ali. Olha num rosto, olha no outro, sabe? Vê gente participando, vê gente cantando. Eu procurei naquele momento, esquecer o resto (...) Ah! Eu acho muito legal o que você está fazendo, muito importante... para nós, que estamos passando por este momento... sensível da vida da gente (...) Talvez, assim no seu rosto, no seu olhar, no jeito que você me olha, eu percebo um carinho que na minha casa eu não tenho (pausa/choro). (...) Talvez eu não encontro nas pessoas que eu queria encontrar, eu não encontro... (choro) (Semicolcheia).

Ah! Para mim foi bom. Você se desenvolve com o pessoal... seus companheiros, que a gente está num local de pessoas que vem de lugares diferentes. Um companheirismo, uma maneira de descontração para a gente e também uma forma de promover uma harmonia, um bem-estar, entre o grupo e até mesmo um bem-estar para a gente. É bom! Você vai se descontraindo, se soltando mais. (...) O meu problema mesmo, é um câncer leve, mas a gente se sente frágil, me parece. E tem música que toca muito a gente (Fusa).

Transcendendo sua facticidade existencial

Outro aspecto importante na analítica existencial heideggeriana trata-se da capacidade de compreensão do Ser-aí transcendental, isto é, esse ser é capaz de, por si só, pela reflexão, transcender-se a si mesmo, isto é, de existir, projetando-se para além de si e descobrindo o seu próprio sentido de estar-no-mundo ( 1818. Martins J. Ontologia de Heidegger. In: Martins J, Bicudo MAV. Estudo sobre existencialismo, fenomenologia e educação. 2ª ed. São Paulo: Centauro; 2006. p. 43-56. ). Assim sendo, os encontros musicais forneceramaos sujeitos do estudo recursos imprescindíveis para transcenderem a facticidade de existir-no-mundo com câncer e resignificar a razão de vivenciar o tratamento antineoplásico em um ambiente adventício.

Ai, eu achei maravilhoso! Porque a gente chega aqui, a gente está sozinho, a gente está longe de casa, a gente fica triste... (pausa/choro). A gente já chega lembrando que naquele dia você vem, aí quando você vai, parece que deixa aquela paz para a gente. (...) Aí depois deito na cama e fico lembrando. (...) Cada dia passa mais rápido e a noite também, para a gente ir embora. (...) Porque não é fácil estar aqui... A gente não vê a hora de chegar sexta-feira para ir embora. Aí já... lembrando que vai voltar na segunda, mas que na segunda de tarde tem você, para alegrar a gente (risos). Aí é gostoso esperar aquela tarde chegar (Semímina).

É bom! O coração da gente ficou mais alegre. E o sofrimento é bastante, mas na hora das músicas a gente se alegra e esquece um pouco do tratamento, do passado, as coisas que a gente está passando. Mas, é muito bom cantar, orar... Cantar para Deus. É a coisa mais bonita que tem (risos)... Todo mundo junto ali, os amigos, com umas carinhas... cada um diferente do outro. (...) Alegrar! Regalar os olhos! para a vida (risos), saber que viver é a coisa mais importante. Eu tenho muita gente esperando por mim (risos), tem meus netos, filhos... E eu tenho que estar de pé ali, firme, para não entregar não. (...) É uma hora que passa tranquilo. Parece que a gente nem vê a hora (risos) (Colcheia).

A música trouxe para mim libertação... da minha alma. (...) o louvor é... Como se diz, quem canta, seus males espanta e traz também uma alegria dentro do nosso coração, que não tem lugar para ficar pensando coisas negativas (...) A música é muito especial para as pessoas doentes. E o carinho também que você tem com todas as pessoas que tem aqui. (...) Todos estão ali em recolhimento, em tratamento... tudo deprimido (...) E escutar música, nossa! Muda muito a vida de cada um. Como para mim, foi ótimo! Eu não cantava! Eu não sabia cantar, de maneira nenhuma, por que eu era oprimida e deprimida, nem na igreja eu não cantava. Eu fui liberta aqui, com o sofrimento... Em nome de Jesus. Louvando a Deus e cantando. (...) Eu era uma mulher triste, cheia de complexo de inferioridade. E ainda com o câncer, me deixou mais triste ainda, sem nenhum ânimo de nada nessa vida. Parece que eu tinha parado no tempo, eu me prendi num mundo que era só meu. Eu não dividia para ninguém, estava fechado. (...) De hoje em diante eu vou cantar (...) a gente às vezes nem percebe que está sendo escravo de si próprio, porque eu estava escrava de mim mesma e eu não sabia (Semifusa).

DISCUSSÃO

Ao se descobrir como ser-no-mundo, o homem também se descobre como ser-com-outro, ou seja, visualiza em seu horizonte a possibilidade de se situar com alguém, não apenas como objeto de cuidado, mas de uma forma envolvente e significativa( 1212. Heidegger M. Ser e tempo. 3ª ed. Petrópolis: Vozes; 2008. ). Nessa perspectiva, compreendo que para Semibreve esses momentos de abertura mútua que a farão emergir de seu ocultamento e vivenciar por algum tempo a claridade da vida irão fortalecê-la para enfrentar sua facticidade.

A fenomenologia existencial da percepção analisa o corpo não enquanto um organismo físico, mas o contempla como uma totalidade, uma estrutura com relação às coisas que estão aí, ou seja, o sentido é algo que acontece no próprio corpo. Assim, o corpo é uma obra de arte, como em nós de significações vivas; as percepções táteis, visuais e auditivas participam sempre de um gesto. O corpo é um conjunto de significações vividas no sentido de seu equilíbrio: um novo nó de significações ( 1919. Merleau Ponty M. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2006. ).

O contexto permitiu apreender aspectos da comunicação não verbal expressa por Semibreve durante os encontros musicais, quando fechava os olhos e encostava a cabeça no sofá, deixando-se invadir pelos estímulos musicais como se a música despertasse a vida adormecida pelo câncer. De fato, a linguagem corporal está sempre associada a um significado e tem função adaptativa, expressiva, ou defensiva, consciente ou inconsciente( 99. Leão ER, Flusser V. Música e comunicação não verbal em instituições de longa permanência para idosos: novos recursos para a formação de músicos para a humanização dos hospitais. Oline Braz J Nurs {Internet}. 2008 {citado 2012 jul. 18};7(2). Available from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/j.1676-4285.2008.1600
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). O comportamento de Semibreve pode refletir a intencionalidade de ocultar a intensidade da emoção ou sentimentos experienciados naquele momento, ou de se isolar, distanciar-se de sua condição existencial, escoltada pela música.

Na meditação heideggeriana, a existência não traz em si uma definição comumente utilizada de realidade, como o existir de uma árvore ou uma pedra, mas sim um portal para o Ser-aí abrir-se ao mundo e essa abertura do homem ao se relacionar com o mundo (Ser-em) Heidegger denomina de iluminação do Ser-aí, sendo basicamente nessa claridade que se torna possível qualquer encontro, que pode ocorrer de forma autêntica ou inautêntica( 1212. Heidegger M. Ser e tempo. 3ª ed. Petrópolis: Vozes; 2008. ).

Destarte, a linguagem de Mínima sugere que os encontros musicais imprimiram-lhe a sensação de não estar-só naquele momento e a consciência de que alguém se preocupava consigo, com sua fatalidade existencial, emudecendo assim suas angústias e inquietações. Especialmente quando diz a gente não fica pensando bobagem, evidenci que a música trouxe em si não apenas a capacidade de preencher o vazio de sua alma, mas um sustentáculo de enfrentamento, que lhe permitiu refletir sobre o seu existir-no-mundo com câncer, suavizando os pensamentos negativos que apareciam em seus momentos de solidão.

Existencialmente, o ser humano pode desvelar-se como um ser de cuidado, tornando-se um verdadeiro revelador de seu existir, buscando possibilidades de abertura mais abrangentes e originadas dentro de suas possibilidades. Quando Mínima expressa parece que as coisas cada dia estão ficando melhor, revela implicitamente que por meio da música o enfermeiro pode estar presente com a pessoa doente, transformando a sensação de desconforto em conforto. Em cuidados paliativos, o papel dos profissionais envolvidos é curar algumas vezes, aliviar frequentemente, confortar sempre( 2020. Saunders CM. La filosofia del cuidado terminal. In: Saunders CM. Cuidados de la enfermedad maligna terminal. Argentina: Salvat; 1980. p. 259-72. ).

No discurso de Semicolcheia, os encontros musicais também constituíram momentos de esquecimento da tristeza de estar com câncer. E, ao pronunciar Ah! Eu procurei viver aquele momento (...) ser feliz naquele momento (...) esquecer o resto, denota que por meio dos encontros musicais e das manifestações de solicitude recebidas, pôde despir-se de seus temores e deslembrar por um instante sua condição existencial. Contudo, ao exprimir no seu olhar, no jeito que você me olha, eu percebo um carinho que na minha casa eu não tenho, Semicolcheia abaixa a cabeça e chora em silêncio. A fala e a expressão corporal da usuária levam a refletir que naquele momento de sua vida ela não sentia privação apenas de saúde, mas também de manifestações de solicitude em seu seio familiar.

A música é uma linguagem universal com múltiplas possibilidades de comunicação que possibilita alavancar a intersubjetividade. Entretanto, é a comunicação não verbal que subsidia a demonstração de afetividade, compaixão e solidariedade. O olhar assegura a presença e a importância do encontro naquele momento( 99. Leão ER, Flusser V. Música e comunicação não verbal em instituições de longa permanência para idosos: novos recursos para a formação de músicos para a humanização dos hospitais. Oline Braz J Nurs {Internet}. 2008 {citado 2012 jul. 18};7(2). Available from: http://www.objnursing.uff.br/index.php/nursing/article/view/j.1676-4285.2008.1600
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). Assim sendo, Semicolcheia sentiu-se acolhida no encontro mediado pela música.

Na concepção heideggeriana, se por um lado a existência inautêntica prejudica o momento do encontro entre as pessoas, a abertura autêntica desvela em si a capacidade do Ser-aí manifestar atitudes de companheirismo para consigo mesmo e o mundo ao seu redor( 1212. Heidegger M. Ser e tempo. 3ª ed. Petrópolis: Vozes; 2008. ). A enunciação de Fusa demonstra que os encontros musicais representam um momento de interação social com os seres que se tornaram co-pre-sença em sua temporalidade na casa de apoio. Estruturados na intencionalidade de cuidar do enfermeiro na co-construção de um ambiente de reconstituição física, emocional e social, os encontros musicais são passíveis de promover conforto e bem-estar, resultando em crescimento e potencialização dos clientes no enfrentamento das vicissitudes que permeiam a convivência com o câncer( 11. Bergold LB. Encontros musicais: uma estratégia de cuidado de enfermagem junto a sistemas familiares no contexto da quimioterapia {tese doutorado}. Rio de Janeiro: Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2009. ).

A música possibilita o encontro do enfermeiro com o cliente e estimula o processo de comunicação, incitando a expressão de diferentes emoções, a percepção de si mesmo e a reflexão sobre o vivido( 11. Bergold LB. Encontros musicais: uma estratégia de cuidado de enfermagem junto a sistemas familiares no contexto da quimioterapia {tese doutorado}. Rio de Janeiro: Escola de Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2009. ). Referenciada também nos pressupostos filosóficos dos cuidados paliativos, a comunicação, atributo essencial do relacionamento interpessoal, deve ser empática e compassiva, fornecer suporte e sustento na terminalidade da vida, expressar com palavras e atitudes mensagens que denotam atenção e cuidado( 2121. Araujo MMT, Silva MJP. A comunicação com o paciente em cuidados paliativos: valorizando a alegria e o otimismo. Rev Esc Enferm USP. 2007;41(4):668-74. ).

O Ser-aí em seu sendo-no-mundo não existe de uma forma isolada, pois existem outros mundos ao seu redor, o Mitwelt e o Umwelt, o primeiro representando o mundo das pessoas ao seu redor e o segundo relacionado às entidades que as rodeiam( 1818. Martins J. Ontologia de Heidegger. In: Martins J, Bicudo MAV. Estudo sobre existencialismo, fenomenologia e educação. 2ª ed. São Paulo: Centauro; 2006. p. 43-56. ). Ao mencionar a gente está sozinho, a gente está longe de casa, a gente fica triste, Semínima reporta-se à ausência de entes familiares e do aconchego de seu lar, privações que a fizeram imergir em uma solidão existencial, que em muitos momentos tornou-se difícil alcançá-la.

Nas palavras de Semínima, depreende-se que as lágrimas marcadas pela intensidade do seu sofrimento foram substituídas por pensamentos de tranquilidade e alegria e que os encontros musicais proporcionaram-lhe a paz interior que confortou o seu coração, deixando boas lembranças, que eram reavivadas no silêncio da noite. A expectativa de cada encontro fortaleceu-a em sua temporalidade, quando descreve Aí é gostoso esperar aquela tarde chegar. Assim, a ansiedade resultante da monotonia daquele ambiente foi amenizada, pois os encontros musicais ajudaram a tornar essa temporalidade menos entristecida, encorajando-a em sua transcendência, dando sentido ao seu existir na casa de apoio.

Na linguagem de Colcheia, a música conduziu-a esquecer parcialmente a situação vivenciada no ik-stante de sua vida. Alegrou ao integrar os encontros musicais, ao se descobrir acolhida por outros seres e, especialmente, ao entoar louvores a Deus, agradecendo pelo dom da vida, pois, para ela, viver é a coisa mais importante.

No que concerne à dimensão espiritual, a música conforta e facilita a expressão da espiritualidade; possibilita a manifestação de sentimentos e incertezas relacionados ao significado da vida e sua finitude( 2222. Leão ER. Dor oncológica: a música como terapia complementar na assistência de enfermagem {Internet} {citado 2011 set. 26}. Disponível em: http://www.musicaeadoracao.com.br/efeitos/corpo_mente/dor_oncologica.htm
http://www.musicaeadoracao.com.br/efeito...
), atrelada à esperança e ao temor. No discurso existencial heideggeriano, se por um lado o Ser-aí relaciona o temor a um malum futurum, visualiza na esperança o desenvolver de um bonum futurum, pois a esperança traz ao Ser-aí a força necessária para emergir de sua angústia e vislumbrar novas possibilidades. Aquele que tem esperança se carrega, por assim dizer, a si mesmo para dentro da esperança, contrapondo-se ao que é esperado ( 1212. Heidegger M. Ser e tempo. 3ª ed. Petrópolis: Vozes; 2008. ). No discurso de Colcheia, o tratamento radioterápico traz-lhe temor quanto a seu porvir, por outro lado aviva-lhe a esperança de regressar, sem o câncer, junto a seus entes queridos.

Na analítica do Ser-aí, a angústia constitui uma possibilidade ontológica que revela o horizonte ôntico do homem como ente. Não obstante, esse mostrar-se do Ser-aí advém de sua abertura ao mundo, com disposição e compreensão, pois a angústia surge do próprio homem, à medida que se percebe um ser-lançado-para-a-morte. O filósofo observa ainda que a angústia não desentranha um ser aflito e conturbado com o temor, ao contrário, libera o Ser-aí de suas possibilidades nulas, tornando-o livre para assumir as possibilidades concretas de seu existir. É na angústia que se revela o abandono do homem a si mesmo( 1212. Heidegger M. Ser e tempo. 3ª ed. Petrópolis: Vozes; 2008. ).

A música trouxe para mim, libertação... da minha alma. Nas palavras de Semifusa, percebe-se que os encontros musicais despertaram-lhe a capacidade de atribuir um novo sentido a seu ser e juntar os pedaços a que estava reduzida, enredada nas banalidades cotidianas. Na angústia somos nós mesmos que nos tornamos prisioneiros em nosso existir-no-mundo. Esse pensar é corroborado pelas palavras finais de Semifusa a gente às vezes nem percebe que está sendo escravo de si próprio, porque eu estava escrava de mim mesmo e não sabia. Todavia, ao explicitar De hoje em diante eu vou cantar, a música ajudou-a superar sua própria angústia e libertar-se de sua decadência, manifestando seu poder de transcendência sobre o mundo e sobre si mesma.

CONCLUSÃO

Esta investigação permitiu depreender que os encontros musicais contemplam os pressupostos filosóficos dos cuidados paliativos, pois inspiraram vida aos dias de quem viveu e conviveu com o câncer, imprimindo a sensação de cuidado, ressignificando o existir-no-mundo-com-câncer e o co-existir-no-mundo com ele, dando sentido à razão de ser e estar-em-uma-casa-de-apoio. Com efeito, a música intermediou a co-pre-sença entre os usuários, viabilizando o compartilhar de experiências, expectativas e estratégias de enfrentamento, ou seja, a possibilidade de estar-com-o-outro em sua facticidade existencial.

Ao dispor desse recurso de comunicação que propicia o desvelamento da afinação do ser, o enfermeiro reverenciou os usuários em sua integralidade e complexidade, conduzindo-os a uma experiência transcendental: refletir sobre a vida e a morte. O ambiente insípido da casa de apoio, que parecia retardar a temporalidade vivenciada, e o cenário de sofrimento, angústia, temores e privações dissiparam-se ante a supereminência da música, pois os encontros musicais reavivaram a esperança de cura, descortinando um horizonte de possibilidades, permitindo-lhes aceitar sua condição existencial e lançar-se em seu poder-ser.

Na disposição de estar-com esses seres em sua mundaneidade, o encontro mediado pela música aproximou o ser cuidador do ser doente e a valorização de suas preferências musicais transmitiu-lhe acolhimento e a impressão de não estar-só em sua peregrinação, contrapondo-se ao paradigma biotecnocientífico e ao cuidado inautêntico subsistente no âmbito da saúde. Concretizou-se a intenção paliativa de confortar, aliviar a dor e o sofrimento desses seres, aprimorando sua qualidade de vida.

Ponderando sobre as estimativas da incidência de câncer no Brasil e a disponibilidade restrita de recursos terapêuticos, as casas de apoio destacam-se como um recurso ante à necessidade dos pacientes serem acolhidos durante o tratamento antineoplásico.

Destaca-se ainda a importância da implementação de projetos de extensão universitária que explorem a música como recurso de cuidado, disponibilizando cuidados paliativos e construindo um ambiente de cuidado humanizado e interdisciplinar, que permita aos acadêmicos despertar para esta causa nobre.

Embora se apresente como uma iniciativa isolada, sobretudo por constituir um estudo qualitativo que não permite generalizações, os resultados desta investigação podem contribuir para a divulgação dessa filosofia de cuidado e ampliar as diversas possibilidades de sua aplicação, incitando novas propostas de articulação interdisciplinar entre o cuidado de enfermagem e as propriedades terapêuticas da música.

À guisa de conclusão, fica o convite para refletir sobre o nosso existir-no-mundo cuidando e vislumbrar a música como um recurso terapêutico inovador e sensibilizador que pode contribuir para a ciência, os fundamentos e arte da Enfermagem.

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    Extraído da dissertação "Encontros musicais como recurso no cuidado de enfermagem em cuidados paliativos oncológicos: uma análise fenomenológica", Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Estadual de Maringá, 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2013
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