Acessibilidade / Reportar erro

Convivendo com hepatite: repercussões no cotidiano do indivíduo infectado

Conviviendo con hepatitis: repercusiones en el cotidiano del individuo infectado

Resumos

Estudo descritivo, exploratório, de abordagem qualitativa, desenvolvido com o objetivo de identificar as alterações no cotidiano do indivíduo com hepatite. Os dados foram coletados em outubro de 2011, junto a 12 pacientes com hepatite B e/ou C, por meio de entrevista semiestruturada e submetidos à análise de conteúdo do tipo temática. A maioria dos indivíduos tinha o diagnóstico de hepatite B. O tempo de diagnóstico variou de menos de 6 meses até 12 anos e o diagnóstico foi feito principalmente por meio da doação de sangue. Somente dois pacientes faziam uso de Interferon. Os relatos deram origem a duas categorias, as quais evidenciam sentimentos e reações experimentados pelos entrevistados, bem como alterações em alguns hábitos de vida. Concluiu-se ser necessário aos profissionais de saúde atentar para a complexidade que envolve os fenômenos concernentes ao processo de adoecimento e vivência com a hepatite.

Hepatite; Doenças transmissíveis; Diagnóstico; Acontecimentos que mudam a vida; Cuidados de enfermagem


Estudio descriptivo, exploratorio, de abordaje cualitativo, desarrollado con el objetivo de identificar las alteraciones en el cotidiano del individuo con hepatitis. Los datos fueron recolectados en octubre de 2011 en 12 pacientes con Hepatitis B y/o C, por medio de entrevistas semiestructuradas y luego, sometidos al análisis del contenido de tipo temático. La mayoría de los individuos tenía el diagnóstico de hepatitis B. El tiempo de diagnóstico varió de menos de 6 meses hasta 12 años, y la principal forma de diagnóstico fue a través de la donación de sangre. Solamente dos de los individuos estaban usando Interferón. Los relatos dieron origen a dos categorías relacionadas con los sentimientos y reacciones vividas por los entrevistados así como alteraciones en algunos hábitos de vida. Se concluye que es necesario que los profesionales de la salud contemplen con mayor cuidado la complejidad que involucra los fenómenos concernientes al proceso de la enfermedad y la convivencia con la hepatitis.

Hepatitis; Enfermedades transmisibles; Diagnóstico; Acontecimientos que cambian la vida; Atención de enfermería


We performed a descriptive, exploratory, and qualitative study, to identify changes in the daily life of subjects with hepatitis. The data were collected in October 2011 from 12 patients with hepatitis B and/or C, through semi-structured interview, and subjected to thematic content analysis. The majority of the subjects were diagnosed with hepatitis B. The time of diagnosis ranged from less than 6 months to 12 years, and the diagnosis was made mainly through blood donation. Only two patients were taking interferon. The results were divided into two categories that describe feelings and reactions experienced by the interviewees, as well as some lifestyle changes. It was concluded that health professionals need to be aware of the complexity of phenomena concerning the illness process and life with hepatitis.

Hepatitis; Nursing; Communicable diseases; Diagnosis; Life change events; Nursing care


INTRODUÇÃO

O Brasil encontra-se em plena transição epidemiológica e as doenças crônicas não transmissíveis constituem as principais causa de morte no País, mas o controle das doenças infecciosas ainda é um desafio para a saúde pública ( 1Cruz CRB, Shirassu MM, Martinsb WP. Comparação do perfil epidemiológico das hepatites B e C em um Serviço Público de São Paulo. Arq Gastroenterol. 2009;46(3):225-9. ) . Entre essas doenças, as hepatites constituem um importante problema para os serviços de saúde, devido a grande incidência, possibilidade de complicações das formas agudas ou crônicas e necessidade de acompanhamento em longo prazo ( 2Brasil. Ministério da Saúde; Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de aconselhamento em hepatites virais. Brasília; 2005. ) .

A Organização Mundial da Saúde estima que existam no mundo cerca de 325 milhões de pessoas com hepatite B e 170 milhões com hepatite C e, especificamente em nosso país, cerca de dois a três milhões. Além disso, pelo menos 15% da população brasileira já entrou em contato com o vírus da hepatite B (VHB) e 1% tem a doença na forma crônica. No período de 1999 a 2010 ocorreram 130.354 casos de hepatite A, 104.454 casos de hepatite B e 69.952 casos de hepatite C, com variações importantes nos Estados ( 3Brasil. Ministério da Saúde; Secretária de Vigilância em Saúde. Doenças infecciosas e parasitárias: guia de bolso [Internet]. Brasília; 2005 [citado 2011 mar. 5]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_bolso_5ed2.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
) . É importante ressaltar que a maioria das pessoas desconhece sua condição sorológica, o que agrava ainda mais a cadeia de transmissão da infecção ( 4Brasil. Ministério da Saúde; Secretaria de Vigilância em Saúde. Plano Nacional de Prevenção e Controle das Hepatites Virais [Internet]. Brasília; 2006 [citado 2011 mar. 5]. Disponível em: http://hepato.com/pnhv/Plano%20_PNHV.pdf
http://hepato.com/pnhv/Plano%20_PNHV.pdf...
) .

A infecção crônica pelo vírus da hepatite B ou C é causa importante de morbidade e mortalidade no mundo e uma das principais causas de descompensação hepática, cirrose e carcinoma hepatocelular. A infecção crônica pode causar maior estresse e, por conseguinte, impactar negativamente na qualidade de vida do indivíduo, suas relações sociais e na realização de tarefas diárias, independentemente dos sintomas clínicos hepáticos, os quais estão relacionados com as manifestações extra-hepáticas e com as alterações cognitivas ( 5Sousa VV, Cruvinel KPS. Ser portador de hepatite C: sentimentos e expectativas. Texto Contexto Enferm. 2008;17(4):689-95. ) . Assim, as hepatites constituem importante problema para os serviços de saúde, não só pela incidência elevada, mas também pela possibilidade de complicações das formas agudas, cronificação em longo prazo e as consequências que isso traz para os indivíduos infectados ( 3Brasil. Ministério da Saúde; Secretária de Vigilância em Saúde. Doenças infecciosas e parasitárias: guia de bolso [Internet]. Brasília; 2005 [citado 2011 mar. 5]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_bolso_5ed2.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
) .

Diversos estudos relatam que as doenças crônicas implicam ruptura no modo de vida do indivíduo, provocando alterações psicológicas e comportamentais que exigem revisão dos hábitos de vida e estratégias para enfrentar essa nova realidade ( 5Sousa VV, Cruvinel KPS. Ser portador de hepatite C: sentimentos e expectativas. Texto Contexto Enferm. 2008;17(4):689-95. ) . Em algumas situações, a descoberta da doença ou o início do tratamento podem levar a mudanças significativas na vida dos pacientes. Os indivíduos com hepatite C, por exemplo, são mais limitados no desempenho das atividades diárias (trabalho, escola, casa) e têm menor confiança em relação ao sucesso do tratamento, o que sugere um padrão de qualidade de vida inferior à de indivíduos que não possuem essa patologia ( 6Blatt CR, Roda JA, Sander G, Farias MR. Tratamento da hepatite C e qualidade de vida. Rev Bras Farm. 2009;90(1):19-26. ) .

Diante da complexidade que envolve os fenômenos concernentes ao processo de adoecimento e a convivência com a hepatite, impõem-se práticas de cuidado com abordagens que possibilitem superar a dimensão biológica, mais visível. Para tanto, são necessárias atitudes dos profissionais de saúde que visem à compreensão das variadas dimensões constituintes do processo de viver e ser saudável, a saber: biológica, cultural, social e subjetiva ( 7Melo LP, Silva NP, Silva KCL, Ponte MPTR, Gualda DMR. Representações práticas do cuidado com a ferida crônica de membro inferior: uma perspectiva antropológica. Cogitare Enferm. 2011;16(2):303-10. ) .

A influência da doença no cotidiano do indivíduo varia de pessoa para pessoa, de acordo com valores, crenças, práticas, representações, significados, experiências individuais e coletivas. Por isto é essencial que os profissionais de Enfermagem conheçam, sob a ótica do paciente, qual o impacto do diagnóstico em seu cotidiano, para possibilitar sua inserção e interação nesse contexto marcado pela diversidade cultural. Além disto, é necessário um novo enfoque quanto ao cuidado de enfermagem para garantir um atendimento individualizado que valorize o ser humano como ser holístico, em contraposição à visão reducionista e tecnocrática ( 7Melo LP, Silva NP, Silva KCL, Ponte MPTR, Gualda DMR. Representações práticas do cuidado com a ferida crônica de membro inferior: uma perspectiva antropológica. Cogitare Enferm. 2011;16(2):303-10. ) .

Diante do exposto, definiu-se como objetivo deste estudo identificar as alterações no cotidiano do indivíduo com diagnóstico de hepatite.

MÉTODO

Estudo exploratório, descritivo, transversal e de abordagem qualitativa, desenvolvido no Hospital Universitário de Maringá (HUM) com pacientes com hepatite B ou C acompanhados pelos ambulatórios de Hepatologia e Moléstias Infecciosas. O serviço é referência para os 30 municípios que integram a 15ª Regional de Saúde do Paraná no tocante ao acompanhamento de pacientes com diagnóstico suspeito ou confirmado de hepatite viral. O atendimento é realizado duas vezes por semana, sendo agendadas, em média, cinco consultas por dia. No ano de 2011 foram notificados pelo serviço 87 casos suspeitos de hepatite; todos foram investigados e, quando confirmados, acompanhados pelo ambulatório de infectologia. Dos 87 casos suspeitos, 33 tiveram diagnóstico confirmado de hepatite B, 30 de Hepatite C, 18 continuavam em investigação e seis tiveram a suspeita de hepatite descartada.

Os dados do estudo foram coletados no mês de outubro de 2011, por meio de entrevistas semiestruturadas realizadas em salas reservadas do próprio ambulatório do Hospital Universitário de Maringá. Os indivíduos foram abordados enquanto aguardavam a consulta com o infectologista, foram informados sobre os objetivos do estudo e convidados a dele participar.

As entrevistas realizaram-se em local reservado, foram gravadas com o consentimento dos entrevistados e guiadas por um instrumento constituído de duas partes: a primeira com questões referentes à caracterização do paciente, e a segunda, com seguinte questão norteadora: Fale sobre as mudanças ocorridas em seu cotidiano após o diagnóstico de hepatite .

Foram entrevistados doze indivíduos, encerrando-se as entrevistas quando as informações necessárias ao atendimento do objetivo do estudo começaram a se repetir. Os critérios adotados para inclusão no estudo foram o indivíduo ter idade igual ou superior a 18 anos e ter diagnóstico de hepatite. Foram caracterizados a partir das seguintes variáveis: sexo, idade, estado civil, escolaridade, ocupação, tempo de diagnóstico, tipo de hepatite e uso ou não de Interferon.

Para análise dos dados, as entrevistas foram transcritas na íntegra e em seguida submetidas à análise de conteúdo do tipo temática ( 8Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11ª ed. São Paulo: Hucitec; 2008. p. 219-60. ) , seguindo-se as fases de pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados e interpretação . Na pré-análise foram realizadas leituras das falas, com vistas a levantar os pontos relevantes para o objetivo do estudo. Na fase de exploração do material foi feita sua codificação, processo pelo qual os dados brutos são transformados sistematicamente e agregados em unidades. Na última fase foi realizada a categorização, que consiste na classificação dos elementos segundo suas semelhanças e por diferenciação, com o posterior reagrupamento em função de características comuns ( 8Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11ª ed. São Paulo: Hucitec; 2008. p. 219-60. ) .

O desenvolvimento do estudo ocorreu em conformidade com o preconizado pela Resolução Nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde e o projeto foi aprovado pela comissão que regulamenta e acompanha as atividades acadêmicas e serviços voluntários do HUM e pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual de Maringá (Parecer Nº 724-2011). Todos os sujeitos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em duas vias. Para diferenciação dos sujeitos e preservação de sua identidade, foram utilizados os seguintes códigos: a letra E (de entrevistado), seguida de um número indicando a ordem de realização da entrevista, e as letras F e M para identificar o sexo feminino ou masculino, com outro número indicando a idade do informante e uma terceira letra indicando o tipo de hepatite.

RESULTADOS

No Quadro 1 são apresentadas algumas características dos indivíduos em estudo que, em sua maioria, eram do sexo masculino, casados e com baixa escolaridade. A idade variou de 21 a 57 anos, com média de 43 anos. O tempo de diagnóstico foi bastante variável e, com exceção de E6 e E12, os entrevistados tiveram o diagnóstico de hepatite a partir da doação de sangue, sendo mais frequente a hepatite B. Os entrevistados E2 e E7 apresentavam a doença na fase crônica e por isto faziam uso de Interferon.

Quadro 1
Características sociodemográficas e clínicas dos indivíduos com hepatite − Maringá, 2011

A análise dos dados permitiu a identificação de duas categorias temáticas: Sentimentos diante da doença e Atitudes e comportamentos após a infecção , descritas a seguir.

Sentimentos diante da doença

Vários relatos colocaram em evidência alguns sentimentos e reações que os entrevistados experimentaram após o diagnóstico de hepatite B ou C, como a preocupação e o medo de ter transmitido o vírus ao parceiro(a), o sentimento de impotência ante a falta de conhecimento sobre a doença e a angústia em querer saber de que forma adquiriu a hepatite.

A doutora falou que eu tinha hepatite (...) fiquei assustada, porque eu não sabia como era. Não tava sentindo nada (...) (E1, F54, B).

Fiquei bem triste, fui pega de surpresa, achei que era o fim, uma doença muito grave... Fiquei com medo porque não sabia direito dessa doença, mas aí a médica falou que não precisava ficar preocupada, que ia fazer todos os exames sempre, para ver se manifesta (E6, F35, B)

Observou-se que, para a maioria dos entrevistados (8), o diagnóstico veio acompanhado de sentimentos negativos e angustiantes, decorrentes principalmente da surpresa por causa da falta de sintomas e desconhecimento da doença. Outro sentimento identificado foi a preocupação/angústia em saber como adquiriram a doença.

Fiquei muito preocupada e desconfiada. Queria saber como peguei. Meu marido falou que não era para me preocupar com isso (...) (E10, F42, B).

Não tenho ideia de como peguei isso, porque eu só tenho meu marido, e ele não tem relação com ninguém, só comigo (...) (E1, F54, B ).

Eles falaram que é através do sexo e transfusão de sangue que pega. Fiz uma transfusão em 1979, mas o meu marido era caminhoneiro e tinha um monte de mulheres na estrada. Depois que nos separamos ele descobriu que tinha hepatite, então pode ser por isso que peguei... fico preocupada se peguei só isso (E5, F56, B).

Eu só esperava que não fosse uma coisa que transmita para alguém, porque não queria passar nada para os meus familiares(E11, M57, B e C).

Nos relatos das mulheres em estudo, observa-se que em geral elas associam o contágio com relações extraconjugais por parte do esposo, visto que a via sexual é uma das principais formas de transmissão da doença, interferindo de certa forma no relacionamento e confiança entre os parceiros.

Ainda em relação à forma de contágio, alguns entrevistados, após serem informados no serviço sobre as diferentes formas de transmissão da doença, apontaram situações que eles acreditavam serem responsáveis pelo contágio.

Uma vez eu fui pescar num riozinho, aí acabou a água de beber, e como eu estava com muita sede, fui obrigado a beber água do rio. Faz mais ou menos uns 15 anos. A água estava marrom, mas eu estava morrendo de sede. Às vezes desconfio que foi dessa água que eu peguei, né? (E2, M44, B e C).

Quando fico pensando, acho que peguei isso quando era criança, porque ia muito no dentista (...) a unha eu nunca fui de fazer (E10, F42, B ).

Uma das questões suscitadas de forma constante no momento do diagnóstico de hepatite refere-se ao medo da transmissão do vírus ao (à) parceiro(a) e familiares.

A primeira coisa que eu perguntei para o médico é se a hepatite que eu tenho pegava em alguém, aí ele disse que não, então nem me preocupei. (...) porque não quero passar para ninguém (E5, F56, B).

Na época falei com minha namorada também, pedi para ela fazer o exame (...) Fiquei preocupado, angustiado de ter passado para alguém; até o aparelho de barba que minha irmã usava era meu; fiquei preocupado e paguei particular para ela fazer exame (E8, M27, C).

Foram também identificados sentimentos de ansiedade devido à incerteza quanto à evolução da doença.

Eu fico preocupada, com medo de aparecer alguma coisa mais para frente, porque até agora não apareceu nada (...) (E1, F54, B).

Quando eu venho aqui fico meio ansiosa, para saber o que eles vão falar ali dentro, como que está a doença. (...) (E6, F35, B).

Eu fico preocupado dessa doença já ter atingido o fígado, daí não sei o que vai acontecer (...) (E2, M44, B e C).

É interessante observar que os entrevistados expressam insegurança diante da doença e sentem-se apreensivos a cada acompanhamento ambulatorial, pois sentem medo da possibilidade de a doença evoluir para a forma crônica. Observou-se que, enquanto aguardava a consulta, E6 apresentava sudorese e fazia movimentos repetitivos com as mãos; E2, por sua vez, movimentava as pernas enquanto era entrevistado; ou seja, ambos apresentavam sinais indicativos de angústia e ansiedade.

Dois dos doze entrevistados estavam em tratamento com Interferon e ambos relatam medo das possíveis reações associadas ao uso desse medicamento:

Quando comecei a tomar as injeções, deu umas reações estranhas, insônia, entrei em depressão, parecia que eu ia morrer, e tudo por causa do remédio. Interferiu no trabalho, no trânsito atrapalhou bastante. Um dia eu tava andando de carro e parei quando o sinaleiro estava verde e depois saí quando o sinaleiro ficou vermelho. Tinha hora que eu ficava meio esquisito, meio estranho, umas reação estranha. Dava um distúrbio, um branco do nada, sentia medo (...) (E2, M44, B e C).

No primeiro dia que eu tomei o remédio senti mal-estar, corpo ruim, garganta, febre, comecei a vomitar. Fiquei com um pouco de medo, aí tomei um remédio, dormi e outro dia acordei um pouco melhor. (...) Tem dia que acordo meio ruim, desanimado, com falta de vontade e muito sono. Acho que é por causa da hepatite e dos remédios. Eu perguntei para o médico e ele disse que é normal ter isso (E7, M21, B).

Atitudes e comportamentos após a infecção

O diagnóstico de hepatite, assim como qualquer outra doença, desencadeia alterações em alguns hábitos de vida, as quais irão ocorrer de forma diferente em cada indivíduo. A mudança no hábito alimentar e no consumo de bebida alcoólica foi evidenciada nos relatos dos pacientes:

A ultima vez que vim aqui, a médica me explicou que eu devia evitar comida engordurada. Bebida eu nunca fui de beber muito e hoje em dia não bebo nada (...) Carne gorda, não como. Como bastante coisa integral, cereais, pão integral. Tentei melhorar a alimentação (E2, M44, B e C).

(...) de um ano para cá comecei a tomar um remédio, aí então resolvi nenhuma cervejinha tomar mais, achei melhor parar, né. O médico tinha falado que se eu pudesse parar era bom, então parei (E4, M56, B).

Uma coisa que tive que mudar e não gostei muito, o médico falou que não era mais para beber a cervejinha que eu gostava. Aí isso eu parei. A comida também, procuro não comer gordura, né, evitar (E5, F56, B).

Tô evitando sair para festa, me afastei porque não posso beber, aí acabo me sentindo mal. Ao invés de sair para as baladas, prefiro ficar no computador jogando. Às vezes passo o dia inteiro no computador (E8, M27, C).

Também emergiu das falas a constatação de mudanças no trabalho e nos relacionamentos.

Antes eu trabalhava à noite, mas depois de ficar doente, comecei a tomar o remédio, mudei o turno de trabalho, comecei a trabalhar pela manhã. Tinha medo de passar mal à noite, né, e também por causa das reações do medicamento (E7, M21, B).

Meu namoro terminou, porque minha namorada não queria fazer o exame. Aí depois ela resolveu fazer, e não deu nada, mas aí disse que queria terminar porque eu não confiei nela (E8, M27, C).

Em relação ao trabalho, podemos notar que a falta de informação precisa sobre os modos de transmissão da doença desencadearam mudanças bruscas na vida de alguns indivíduos.

Na época, quando o médico falou que eu tinha que acompanhar porque estava com suspeita de hepatite, pedi para sair do emprego, porque trabalhava numa cozinha e como mexia com alimentos, essas coisas, tinha medo de me cortar, machucar e acabar passando isso para alguém. Então decidi sair do emprego. Não tinha certeza se eu tinha ou não, mais tinha muito medo de passar para alguém (E5, F56, B).

Eu trabalhava no frigorífico, era operador de máquina de corte, a primeira coisa que eu fiz foi sair do serviço, porque eu mexia com manipulação de alimentos. Então eu pensei: se eu me cortar o problema não era eu, o problema era a pessoa que ia comer o alimento depois. Ninguém falou para eu sair do serviço, mais eu quis, porque me senti mal, e também fiquei pensando nos outros, né? (E8, M27, C).

Alguns indivíduos relataram que, apesar do diagnóstico, continuaram adotando comportamentos de risco para a transmissão do vírus:

O médico falou também para usar camisinha para evitar de passar para minha mulher, mas a gente não usa. Minha mulher mesmo fala que não queria usar porque se tivesse que pegar já tinha pego (E4, M56, B).

Nós não estamos usando preservativo ainda não, estamos esperando o resultado do exame (E6, F35, B).

DISCUSSÃO

O fato de a maioria dos indivíduos ter tomado conhecimento do diagnóstico da hepatite em decorrência da doação de sangue é justificável, pois a hepatite é uma doença que pode apresentar sintomas muito tempo depois da infecção. Por esta razão, é comum o diagnóstico ocorrer em função de exames laboratoriais de rotina, em que são observadas alterações da função hepática. Um estudo aponta que as principais fontes de diagnóstico são os hemocentros e bancos de sangue, clínicas de hemodiálise e laboratórios ( 9Araújo MAL, Silveira CB. Vivências de mulheres com diagnóstico de doença sexualmente transmissível - DST. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2007;11(3):479-86. ) . Isto demonstra certa fragilidade na prevenção da doença.

As hepatites têm apresentado um quadro de persistência, dada à dificuldade de se fazer o diagnóstico na fase aguda da doença, sendo necessário o fortalecimento de estratégias de prevenção com vistas à interrupção da cadeia de transmissão. A inserção do aconselhamento e da testagem das hepatites virais na Atenção Básica e a realização de campanhas de educação em saúde são medidas importantes preconizadas pelo Ministério da Saúde com o intuito de sensibilizar os indivíduos quanto aos riscos de infecção e à necessidade de se submeter ou não a exames diagnósticos ( 2Brasil. Ministério da Saúde; Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de aconselhamento em hepatites virais. Brasília; 2005. ) Isto, porém, requer conhecimento prévio de conteúdos específicos referentes ao agravo, incluindo a identificação de aspectos indicativos de maior vulnerabilidade e das necessidades singulares dos usuários. O conhecimento da vulnerabilidade das pessoas às doenças transmissíveis auxilia na identificação de suas necessidades em saúde, que são marcadas por estigma, exclusão social e sentimentos de medo ( 1010 Nichiata LYI, Bertolozzi MR, Gryschek ALPL, Araújo NVDÁL, Padoveze MC, Ciosak SI, et al. The potential of the concept of vulnerability in understanding transmissible diseases. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2012 Jan 12]; 45(n.spe2):1769-73. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45nspe2/en_23.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45nspe2...
) . Há grupos que historicamente são excluídos dos serviços de saúde por causa de estilo de vida, hábitos de consumo ou orientação sexual - como os usuários de drogas, travestis, prostitutas e moradores de rua; porém são essas mesmas condições que tornam estes grupos mais vulneráveis às hepatites, sendo importante ampliar seu acesso aos serviços, respeitando suas especificidades ( 2Brasil. Ministério da Saúde; Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de aconselhamento em hepatites virais. Brasília; 2005. ) .

Os sentimentos e as mudanças no cotidiano referidos pelos sujeitos do estudo como decorrentes do diagnóstico de hepatite confirmam o que tem sido encontrado na literatura: que o diagnóstico de uma doença infecciosa e transmissível traz preocupações e incertezas ao paciente, especialmente quando se trata de doença silenciosa, de curso lento e prognóstico variável ( 1111 CampolinaAG, Dini PS, Ciconelli RM. Impacto da doença crônica na qualidade de vida de idosos da comunidade em São Paulo (SP, Brasil). Ciênc Saúde Coletiva. 2011;16(6):19-25. ) . Tanto os sentimentos como as mudanças ocorridas parecem estar associados ao momento e à forma como o diagnóstico é informado e à falta de conhecimento que a população em geral tem sobre a doença, mais precisamente sobre modo de transmissão, evolução, prognóstico, efeitos colaterais do tratamento, entre outros aspectos, tornando os indivíduos frágeis e impotentes para o enfrentamento da doença.

Cabe salientar que o desconhecimento dos sintomas específicos da hepatite e da possibilidade de cronificação da doença observado no depoimento de E1 não existe só por parte dos doentes. Um estudo realizado com estudantes de enfermagem, farmácia e biologia no Vale do Araguaia constatou que eles tinham baixo conhecimento sobre esses mesmos aspectos ( 1212 Ferrari CKB, Savazzi K, Honório-França AC, Ferrari GSL, França EL. Conhecimentos sobre hepatites virais numa amostra de estudantes brasileiros do Vale do Araguaia, Amazônia Legal. Acta Gastroenterol Latinoam. 2012;42(1):120-6. ) . Outro estudo realizado com profissionais de saúde de um hospital militar no Rio de Janeiro identificou que só 20,5% deles conheciam as formas de transmissão da doença ( 1313 Pinheiro J, Zeitoune RCG. Hepatite B: conhecimento e medidas de biossegurança e a saúde do trabalhador de enfermagem. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2008;12(2):258-64. ) .

Tais resultados indicam a necessidade de os profissionais de saúde serem devidamente sensibilizados sobre esta doença e preparados não só para oferecer orientações adequadas, mas também para esclarecer dúvidas e questionamentos dos pacientes e, inclusive, antecipá-las em sua abordagem, favorecendo o conhecimento sobre a doença, o que é imprescindível na prevenção de complicações e no autocuidado ( 1414 Ávila MP, Freitas AM, Isaac DLC, Bastos ALM, Pena RV. Retinopatia em paciente portador de hepatite C tratado com interferon peguilado e ribavirina: relato de caso. Arq Bras Oftalmol. 2006;69(2):255-9. ) . Ademais, o profissional também precisa estar apto para identificar manifestações da doença, apoiar o paciente em seu enfrentamento e estimulá-lo a se comprometer com o tratamento e o acompanhamento da doença, pois, conforme o doente processa as informações acerca da infecção, constrói uma representação e em função dela regula seu comportamento ( 1515 Carlo FS, Lima JF, Sene MC, Rosa NM, Cardoso VH, Aguiar JE. Perfil do portador de hepatite B do Município de Maringá. Saúde Pesq. 2008;1(3):241-6. ) .

Ainda em relação ao conhecimento da doença, um dos aspectos que instigavam alguns indivíduos em estudo, em especial os do sexo feminino, era descobrir o modo como adquiriram a doença. Isto é compreensível, pois se trata de uma doença infecciosa e de possível transmissão pela via sexual. Nestes casos, é comum um dos membros do casal associar a contaminação por uma doença sexualmente transmissível (DST) a relações extraconjugais do parceiro(a), desconsiderando outras possibilidades, como o período de latência e outras possíveis formas de infecção ( 1616 Barroso MGT, Souza LB. DST no âmbito da relação estável: análise cultural com base na perspectiva da mulher. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2009;13(1):123-30. ) . Cumpre considerar também que as mulheres encontram-se em uma situação de grande vulnerabilidade em relação às DST e, em função de relações desiguais de gênero, normalmente aceitam um comportamento sexual desprotegido, por confiança nos parceiros ( 1414 Ávila MP, Freitas AM, Isaac DLC, Bastos ALM, Pena RV. Retinopatia em paciente portador de hepatite C tratado com interferon peguilado e ribavirina: relato de caso. Arq Bras Oftalmol. 2006;69(2):255-9. ) .

Estas questões precisam ser abordadas durante o atendimento em saúde. Assim, é importante que o profissional ofereça apoio emocional, orientações precisas acerca das formas de transmissão, prevenção e tempo de latência do vírus e que esteja disponível para a escuta e o diálogo, a fim de esclarecer as dúvidas dos pacientes e auxiliá-los nos conflitos emocionais, o que é possível com uma abordagem multiprofissional humanizada e holística ( 1616 Barroso MGT, Souza LB. DST no âmbito da relação estável: análise cultural com base na perspectiva da mulher. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2009;13(1):123-30. ) .

Os problemas psicológicos surgidos após o início do tratamento com Interferon, referidos por E2 e E7, inclusive com impacto em seu cotidiano, são semelhantes aos efeitos colaterais descritos na literatura. O Interferon é a única modalidade terapêutica aprovada pelo Food and Drug Administration e deve ser utilizado tanto sob a forma de monoterapia como em associação com a ribavirina ( 1414 Ávila MP, Freitas AM, Isaac DLC, Bastos ALM, Pena RV. Retinopatia em paciente portador de hepatite C tratado com interferon peguilado e ribavirina: relato de caso. Arq Bras Oftalmol. 2006;69(2):255-9. ) . Cerca de 20 a 40% dos pacientes que fazem uso dessa medicação podem apresentar depressão, ansiedade, dificuldade de concentração, apatia, transtornos do sono, irritabilidade e inclusive tendência suicida, sintomas que podem ter um impacto negativo sobre o curso da doença, por interrupção do tratamento e alteração na qualidade de vida ( 1717 Miyazack MCOS, Domingos NAM, Valério NI, Souza EF, Silva RCMA. Tratamento da hepatite C: sintomas psicológicos e estratégias de enfrentamento. Rev Bras Ter Cogn. 2005;1(1):119-28. ) .

Nesses casos, a existência de um protocolo para avaliação psicológica de pacientes em tratamento com Interferon permitiria monitorar sintomas psicológicos e necessidade de intervenção, assim como identificar os principais problemas experimentados pelos pacientes durante o tratamento, assim fornecendo subsídios para a elaboração de programas compatíveis com as necessidades identificadas ( 1717 Miyazack MCOS, Domingos NAM, Valério NI, Souza EF, Silva RCMA. Tratamento da hepatite C: sintomas psicológicos e estratégias de enfrentamento. Rev Bras Ter Cogn. 2005;1(1):119-28. ) .

Juntamente com o psicólogo, o enfermeiro deve se tornar vigilante, a fim de identificar precocemente sintomas depressivos. Pacientes que têm uma doença crônica como a hepatite e depressão necessitam de maior número de consultas, aumentando, consequentemente, os custos do tratamento. Apresentam incapacidade para realizar atividades de vida diária e a consequente piora na qualidade de vida, maior número de queixas somáticas, maior dificuldade de adaptação aos sintomas aversivos associados à doença, além de aderirem menos ao tratamento prescrito e terem um risco aumentado de mortalidade ( 1818 Kraus MR, Schaefer A, Csef H, Scheurlen M, Faller H. Emotional state, coping styles, and somatic variables in patients with chronic hepatitis C. Psychosomatics. 2000;41(5):377-84. ) .

Ademais, é importante salientar que identificar as dificuldades vivenciadas por portadores de doenças crônicas e seu tratamento, bem como as estratégias utilizadas por aqueles que se adaptam a essas condições adversas, pode auxiliar os profissionais no delineamento de programas de intervenção mais eficazes para aqueles que têm dificuldades de adaptação ( 1919 Carvalho MF, Zanini AC, Camacho JLP, Barone AA. Monitoramento de reações adversas da interferona alfa no tratamento ambulatorial da hepatite C crônica. RBCF Rev Bras Ciênc Farm. 2001;37(1):27-38. ) .

Neste estudo, chama a atenção o fato de os indivíduos demonstrarem em seus relatos que não tinham certeza sobre os sintomas que apresentavam serem ou não decorrentes da medicação utilizada, indicando, em alguma medida, falha na comunicação com os profissionais de saúde, pois o conhecimento prévio sobre os efeitos adversos da medicação ajuda o paciente a enfrentar o tratamento de forma mais positiva ( 1717 Miyazack MCOS, Domingos NAM, Valério NI, Souza EF, Silva RCMA. Tratamento da hepatite C: sintomas psicológicos e estratégias de enfrentamento. Rev Bras Ter Cogn. 2005;1(1):119-28. ) .

Assim, considerando que nem sempre é possível prevenir a ocorrência de efeitos adversos, é necessário que pacientes e profissionais estejam atentos para o seu aparecimento, de modo a detectá-los precocemente, pois isto facilita seu controle e favorece a adesão ao tratamento ( 1919 Carvalho MF, Zanini AC, Camacho JLP, Barone AA. Monitoramento de reações adversas da interferona alfa no tratamento ambulatorial da hepatite C crônica. RBCF Rev Bras Ciênc Farm. 2001;37(1):27-38. ) . Assim, os profissionais de saúde precisam estar preparados para identificar dificuldades vivenciadas por pacientes que fazem uso da medicação e também para oferecer orientações claras e precisas quanto aos efeitos colaterais, a fim de instrumentalizar pacientes e familiares para identificar precocemente suas manifestações e sensibilizá-los quanto à importância do tratamento e à necessidade de mantê-lo, apesar do surgimento de efeitos que poderão influenciar negativamente seu dia a dia.

O diagnóstico de uma doença crônica traz impactos que interferem na vida do indivíduo como um todo. Essa nova condição exige do indivíduo mudanças no estilo de vida, em suas relações e comportamentos e na maneira de lidar consigo mesmo e com a saúde, pois necessita adaptar-se às novas exigências e superar dificuldades e obstáculos que até então não eram vivenciados. No caso de hepatite, os pacientes temem a evolução para a forma crônica, pois isto irá exigir mudanças mais radicais em diferentes aspectos da vida diária. A realidade cotidiana de uma pessoa com uma doença com possibilidade de cronificação é marcada por limitações nas atividades diárias, em função de mudanças necessárias no estilo de vida e nos hábitos alimentares.

A alteração dos hábitos alimentares é uma medida que permite reduzir a progressão da doença, retardando os efeitos danosos do vírus no organismo e o aparecimento dos sintomas ( 6Blatt CR, Roda JA, Sander G, Farias MR. Tratamento da hepatite C e qualidade de vida. Rev Bras Farm. 2009;90(1):19-26. ) . Não obstante, pode-se observar nas falas que essa alteração dificilmente é aceita pelos pacientes, em função da dificuldade em seguir as recomendações, especialmente no início do processo.

Mudanças de hábitos geralmente são vivenciadas com dificuldade, assim como em qualquer outro tipo de doença crônica; por isso os profissionais devem estar aptos a fornecer orientações aos indivíduos, apontando principalmente os riscos da ingestão de bebida alcoólica, visto que o principal órgão acometido pelo uso do álcool é o fígado. O comprometimento do paciente e a responsabilização por sua própria condição de saúde é condição sine qua non para o sucesso do tratamento.

Em face disso se faz necessário prestar, de forma individual e específica para cada caso, orientações que possam nortear os indivíduos nas escolhas alimentares mais adequadas a sua condição de saúde. Este procedimento possibilita que seja realizada uma avaliação em consultas subsequentes quanto à adaptação do indivíduo ao que lhe foi proposto. Além disso, é preciso que as orientações sejam adaptadas às condições socioeconômicas e culturais do indivíduo e que este seja devidamente esclarecido sobre a importância do tratamento, de modo a favorecer sua adesão ( 6Blatt CR, Roda JA, Sander G, Farias MR. Tratamento da hepatite C e qualidade de vida. Rev Bras Farm. 2009;90(1):19-26. ) .

Além de mudanças alimentares, os indivíduos do estudo relataram com relativa frequência a redução ou mesmo a cessação da ingesta de bebidas alcoólicas. Um estudo sobre o efeito de substâncias aditivas na progressão da hepatite C apontou que a associação da infecção pelo vírus da hepatite e o consumo elevado de bebidas alcoólicas podem resultar em aceleração sinérgica da fibrose hepática ( 2020 Ferreira AIG. Substâncias aditivas como fatores de progressão na Hepatite C crônica [dissertação]. Porto (PT): Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Universidade do Porto; 2007. ) .

Ainda em relação às mudanças ocorridas após o diagnóstico da doença, chama a atenção o fato de alguns indivíduos terem abandonado o emprego por desconhecimento preciso sobre as formas de transmissão da doença e pelo medo de prejudicar outras pessoas. Diante disso, vale ressaltar novamente a necessidade de os profissionais, logo após a comunicação do diagnóstico, realizarem uma abordagem integral ao paciente, oferecendo-lhe informações gerais sobre a doença e esclarecendo-o quanto às formas de transmissão. Estas informações devem ser reforçadas em todos os contatos com o paciente.

Em alguns casos, identificamos alterações nas relações sociais, principalmente nos casos de pacientes jovens, para os quais divertir-se implica estar em locais da moda, com amigos, e desfrutar de atividades ligadas à música e à dança. O problema é que a recreação noturna tem uma ligação intrínseca com o consumo de álcool e drogas e o uso de substâncias psicoativas nestes ambientes é tão elevado que eles são considerados fatores de risco para o seu consumo ( 2121 World Health Organization (WHO). Working Group on Youth Violence, Alcohol and Nightlife. Global Campaign for Violence Prevention [Internet]. 2012 [cited 2012 Mar 5]. Available from: http://www.who.int/violenceprevention/en/
http://www.who.int/violenceprevention/en...
) . Estudo realizado em nove cidades portuguesas com jovens frequentadores de ambientes recreativos noturnos apontou que 59,44% deles valorizavam a acessibilidade a bebidas alcoólicas como fator de peso na escolha do local de diversão ( 2020 Ferreira AIG. Substâncias aditivas como fatores de progressão na Hepatite C crônica [dissertação]. Porto (PT): Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Universidade do Porto; 2007. ) , o que denuncia a relação objetiva entre estes locais e o consumo de substâncias psicoativas com fins recreativos ( 2222 Stamm M, Bressan L. Consumo de álcool entre estudantes do Curso de Enfermagem de um Município do Oeste Catarinense. Ciênc Cuidado Saúde. 2007;6(3):319-24. ) . Não obstante, tais substâncias potencializam a adoção de comportamentos de risco, por exemplo, na área da sexualidade.

Vale salientar que a opção por não frequentar determinados ambientes como forma de evitar o consumo de bebidas alcoólicas pode futuramente comprometer a qualidade de vida dos indivíduos em decorrência de diferentes perdas, por exemplo, nos relacionamentos sociais e nas atividades de lazer e de prazer.

Em relação ao comportamento sexual, pudemos observar que, embora orientados sobre a necessidade do uso de preservativo, alguns indivíduos optam deliberadamente por não usá-lo. Alguns estudos têm destacado as relações de gênero como responsáveis pelo fato de as mulheres - mesmo aquelas com conhecimento razoável do ponto de vista epidemiológico sobre as formas de contaminação das DST - serem incapazes ou terem dificuldades de implementar o uso do preservativo e buscar formas de alterar esse quadro. Além disso, a adoção de um comportamento preventivo tende a diminuir quando o parceiro é conhecido ( 1414 Ávila MP, Freitas AM, Isaac DLC, Bastos ALM, Pena RV. Retinopatia em paciente portador de hepatite C tratado com interferon peguilado e ribavirina: relato de caso. Arq Bras Oftalmol. 2006;69(2):255-9. ) . Alguns fatores influenciam esta decisão: a) o poder do companheiro(a) de decidir sobre a adoção de medidas de prevenção; b) as questões culturais; c) as diferenças de gênero, que se tornam evidentes quando a mulher vivencia dificuldades em relação ao uso do preservativo, deixando a decisão a cargo do homem; d) a falta de autonomia da mulher, que deixa de aderir ao sexo mais seguro, tornando-se suscetível a contrair doenças ou uma gravidez não planejada e até não desejada; e) a confiança depositada no(na) companheiro(a) ( 1414 Ávila MP, Freitas AM, Isaac DLC, Bastos ALM, Pena RV. Retinopatia em paciente portador de hepatite C tratado com interferon peguilado e ribavirina: relato de caso. Arq Bras Oftalmol. 2006;69(2):255-9. ) .

A não adesão ao uso de práticas sexuais segura é uma situação difícil e capaz de trazer sérias consequências para o casal. Isso demonstra uma dificuldade preexistente em manter diálogo no relacionamento, situação que se agrava quando o casal depara-se com uma situação conflitante, como é o diagnóstico de uma DST ( 8Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11ª ed. São Paulo: Hucitec; 2008. p. 219-60. ) .

CONCLUSÃO

Diante da complexidade que envolve os fenômenos concernentes ao processo de receber um diagnóstico de hepatite, conhecer a vivência dos portadores constitui elemento essencial para a garantia da qualidade do atendimento integral que valorize o ser humano em suas particularidades. Os resultados do estudo mostram que conviver com o diagnóstico de hepatite B ou C repercute em uma variedade de sentimentos, levando os sujeitos ao sofrimento e a mudanças de comportamento que interferem na sua qualidade de vida. A preocupação com o diagnóstico, o desconhecimento do quadro clínico da doença, a possibilidade de cronificação, o modo de transmissão e o medo e desconforto causados pelas reações da medicação permeiam os sentimentos e as vivências dos indivíduos infectados.

As mudanças de hábitos e comportamentos, especialmente em relação à alimentação e ao uso de bebida alcoólica, o impacto nas relações sociais (apontada principalmente pelos jovens) e a manutenção do comportamento de risco no tocante à sexualidade constituem indicativos importantes de que as pessoas com hepatite necessitam ser compreendidas no contexto do adoecer e conviver com uma doença transmissível e de natureza crônica, necessitando de apoio por parte dos profissionais de saúde para suas necessidades de cuidado.

Esses resultados, embora sejam limitados aos sujeitos do estudo e não possam ser generalizados, em vista da subjetividade humana, possibilitam uma aproximação com as diferentes vivências que a doença acarreta à vida do indivíduo, contribuindo para a ampliação do conhecimento nessa área. Não obstante, novos estudos com essa abordagem são fundamentais para o enriquecimento e melhor compreensão sobre as diferentes alterações que ocorrem na vida do indivíduo após o diagnóstico de hepatite.

Por fim, é importante salientar que, para definir estratégias de controle das hepatites virais, faz-se necessário que a amplitude do problema seja reconhecida. A vigilância epidemiológica das hepatites é possível a partir da notificação compulsória e qualificada dos casos suspeitos.

O enfermeiro, além de estar preparado para assistir e orientar os pacientes necessita também estar atento à identificação de sinais de complicação do quadro clínico, ao surgimento de reações adversas ao tratamento e à qualidade da notificação. Todos estes aspectos são importantes na avaliação e no acompanhamento da evolução da doença, além da intervenção precoce, que sempre é necessária. Essa conjugação de medidas garantirá ao indivíduo melhor qualidade de vida e permitirá aos serviços conhecer as características epidemiológicas dos indivíduos doentes.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Cruz CRB, Shirassu MM, Martinsb WP. Comparação do perfil epidemiológico das hepatites B e C em um Serviço Público de São Paulo. Arq Gastroenterol. 2009;46(3):225-9.
  • 2
    Brasil. Ministério da Saúde; Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de aconselhamento em hepatites virais. Brasília; 2005.
  • 3
    Brasil. Ministério da Saúde; Secretária de Vigilância em Saúde. Doenças infecciosas e parasitárias: guia de bolso [Internet]. Brasília; 2005 [citado 2011 mar. 5]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_bolso_5ed2.pdf
    » http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_bolso_5ed2.pdf
  • 4
    Brasil. Ministério da Saúde; Secretaria de Vigilância em Saúde. Plano Nacional de Prevenção e Controle das Hepatites Virais [Internet]. Brasília; 2006 [citado 2011 mar. 5]. Disponível em: http://hepato.com/pnhv/Plano%20_PNHV.pdf
    » http://hepato.com/pnhv/Plano%20_PNHV.pdf
  • 5
    Sousa VV, Cruvinel KPS. Ser portador de hepatite C: sentimentos e expectativas. Texto Contexto Enferm. 2008;17(4):689-95.
  • 6
    Blatt CR, Roda JA, Sander G, Farias MR. Tratamento da hepatite C e qualidade de vida. Rev Bras Farm. 2009;90(1):19-26.
  • 7
    Melo LP, Silva NP, Silva KCL, Ponte MPTR, Gualda DMR. Representações práticas do cuidado com a ferida crônica de membro inferior: uma perspectiva antropológica. Cogitare Enferm. 2011;16(2):303-10.
  • 8
    Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11ª ed. São Paulo: Hucitec; 2008. p. 219-60.
  • 9
    Araújo MAL, Silveira CB. Vivências de mulheres com diagnóstico de doença sexualmente transmissível - DST. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2007;11(3):479-86.
  • 10
    Nichiata LYI, Bertolozzi MR, Gryschek ALPL, Araújo NVDÁL, Padoveze MC, Ciosak SI, et al. The potential of the concept of vulnerability in understanding transmissible diseases. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2012 Jan 12]; 45(n.spe2):1769-73. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45nspe2/en_23.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45nspe2/en_23.pdf
  • 11
    CampolinaAG, Dini PS, Ciconelli RM. Impacto da doença crônica na qualidade de vida de idosos da comunidade em São Paulo (SP, Brasil). Ciênc Saúde Coletiva. 2011;16(6):19-25.
  • 12
    Ferrari CKB, Savazzi K, Honório-França AC, Ferrari GSL, França EL. Conhecimentos sobre hepatites virais numa amostra de estudantes brasileiros do Vale do Araguaia, Amazônia Legal. Acta Gastroenterol Latinoam. 2012;42(1):120-6.
  • 13
    Pinheiro J, Zeitoune RCG. Hepatite B: conhecimento e medidas de biossegurança e a saúde do trabalhador de enfermagem. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2008;12(2):258-64.
  • 14
    Ávila MP, Freitas AM, Isaac DLC, Bastos ALM, Pena RV. Retinopatia em paciente portador de hepatite C tratado com interferon peguilado e ribavirina: relato de caso. Arq Bras Oftalmol. 2006;69(2):255-9.
  • 15
    Carlo FS, Lima JF, Sene MC, Rosa NM, Cardoso VH, Aguiar JE. Perfil do portador de hepatite B do Município de Maringá. Saúde Pesq. 2008;1(3):241-6.
  • 16
    Barroso MGT, Souza LB. DST no âmbito da relação estável: análise cultural com base na perspectiva da mulher. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2009;13(1):123-30.
  • 17
    Miyazack MCOS, Domingos NAM, Valério NI, Souza EF, Silva RCMA. Tratamento da hepatite C: sintomas psicológicos e estratégias de enfrentamento. Rev Bras Ter Cogn. 2005;1(1):119-28.
  • 18
    Kraus MR, Schaefer A, Csef H, Scheurlen M, Faller H. Emotional state, coping styles, and somatic variables in patients with chronic hepatitis C. Psychosomatics. 2000;41(5):377-84.
  • 19
    Carvalho MF, Zanini AC, Camacho JLP, Barone AA. Monitoramento de reações adversas da interferona alfa no tratamento ambulatorial da hepatite C crônica. RBCF Rev Bras Ciênc Farm. 2001;37(1):27-38.
  • 20
    Ferreira AIG. Substâncias aditivas como fatores de progressão na Hepatite C crônica [dissertação]. Porto (PT): Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Universidade do Porto; 2007.
  • 21
    World Health Organization (WHO). Working Group on Youth Violence, Alcohol and Nightlife. Global Campaign for Violence Prevention [Internet]. 2012 [cited 2012 Mar 5]. Available from: http://www.who.int/violenceprevention/en/
    » http://www.who.int/violenceprevention/en/
  • 22
    Stamm M, Bressan L. Consumo de álcool entre estudantes do Curso de Enfermagem de um Município do Oeste Catarinense. Ciênc Cuidado Saúde. 2007;6(3):319-24.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2013

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2012
  • Aceito
    15 Dez 2012
Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: reeusp@usp.br