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Acompanhamento de famílias de crianças com doença crônica: percepção da equipe de Saúde da Família

Seguimiento de las familias de niños con enfermedades crónicas: la percepción del equipo de Salud de la Familia

Resumos

Este estudo objetivou caracterizar como a equipe da Estratégia Saúde da Família percebe sua dinâmica de acompanhamento de famílias que convivem com a doença crônica da criança. Trata-se de uma pesquisa qualitativa que teve como referencial teórico o Interacionismo Simbólico e como método a Análise de Conteúdo, técnica de análise categorial temática. Para a coleta de dados utilizou-se o grupo focal, que foi desenvolvido com três equipes de Saúde da Família, totalizando 32 sujeitos. Os resultados foram organizados em três categorias temáticas: Peculiaridades das famílias que convivem com a doença crônica da criança; Equipe, família e Estratégia Saúde da Família e Limitações para cuidar. A percepção da equipe é que o desenho da Estratégia Saúde da Família favorece o acesso à experiência familiar, permitindo o reconhecimento de suas especificidades. Os dados revelam ainda as limitações da equipe em sua capacidade de resolução e a necessidade de investimentos na articulação entre os distintos serviços, setores e equipamentos sociais.

Família; Criança; Doença crônica; Programa Saúde da Família; Enfermagem pediátrica


Este estudio tuvo como objetivo caracterizar la forma en la cual el equipo de la Estrategia Salud de la Familia percibe su dinámica de seguimiento de las familias que conviven con la enfermedad crónica del niño. Se trata de una investigación cualitativa cuyo referencial teórico fue el Interaccionismo Simbólico y el método fue el Análisis de Contenido. Para la recolección de los datos se utilizó la técnica de Grupo Focal que se desarrolló con tres Equipos de Salud de la Familia, con un total de 32 sujetos. Los resultados fueron organizados en tres categorías temáticas: Peculiaridades de las familias que conviven con la enfermedad crónica del niño; Equipo, Familia y Estrategia Salud de la Familia y Limitaciones para cuidar . La percepción del Equipo es que el diseño de la Estrategia Salud de la Familia facilita el acceso a la experiencia familiar, lo que permite el reconocimiento de sus especificidades. También revela las limitaciones del Equipo en su capacidad de resolución y apunta para la necesidad de inversiones en la mediación entre los diversos servicios, sectores y equipamientos sociales.

Familia; Niño; Enfermedad crónica; Programa de Salud Familiar; Enfermería pediátrica


The objective of this study is to characterize how the Family Health Strategy teams in Brazil perceive their role to provide continued care to families of children with chronic diseases. This was a qualitative study that used symbolic interactionism as its theoretical framework, with content analysis for thematic categorical analysis. Focus groups with three Family Health Strategy teams were used for data collection, with a total of 32 study participants. The results were organized into three thematic categories: 1) singularities of families that live with children with chronic diseases; 2) team, family and Family Health Strategy; and 3) limitations of care . The teams’ perception is that the design of the Family Health Strategy encourages access to the family experience, allowing the recognition of its specificities. Further, the data reveal team limitations regarding their capacity to provide care, and the need for investments in articulation with different social services, sectors, and equipment.

Family; Child; Chronic disease; Family Health Program; Pediatric nursing


INTRODUÇÃO

A Organização Mundial de Saúde (OMS) ( 1. World Health Organization. Global status report on noncommunicable diseases 2010 [Internet]. Geneva: WHO; 2011 [cited 2012 Mar 11]. Available from: http://www.who.int/nmh/publications/ncd_report2010/en/
http://www.who.int/nmh/publications/ncd_...
) revela que atualmente as condições crônicas são responsáveis por 60% de todo o ônus decorrente de doenças no mundo e que, em 2020, serão fator etiológico de cerca de 80% das doenças nos países em desenvolvimento. Ressalta ainda que as condições crônicas surgem basicamente no nível de atenção primária à Saúde e devem ser tratadas prioritariamente nesse mesmo âmbito ( 1. World Health Organization. Global status report on noncommunicable diseases 2010 [Internet]. Geneva: WHO; 2011 [cited 2012 Mar 11]. Available from: http://www.who.int/nmh/publications/ncd_report2010/en/
http://www.who.int/nmh/publications/ncd_...
) .

A política de fortalecimento da Atenção Primária em Saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro é a Estratégia Saúde da Família (ESF), que tem como diretrizes a territorialização e a adstrição da clientela, o trabalho em equipe, o vínculo entre equipe e usuários, a atenção às necessidades de saúde e a integralidade da assistência ( 2. Brasil. Ministério da Saúde. Saúde da Família: uma estratégia para a reorientação do modelo assistencial [Internet]. Brasília; 1997 [citado 2012 mar. 17]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cd09_16.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
) .

Nesse campo, cabe questionar o quanto o cuidado desenvolvido pelas equipes tem de fato acolhido a família, bem como quais conceitos de família , de saúde da família e de interação intra e extra familiar são adotados no processo de cuidar ( 3. Oliveira RG, Marcon SS. Trabalhar com famílias no Programa de Saúde da Família: a prática do enfermeiro em Maringá-Paraná. Rev Esc Enferm USP. 2007;41(1):65-72. ) .

O Cuidado Centrado na Família é uma abordagem assistencial que pode ser adotada no processo de cuidado em saúde. Reconhece a parceria entre profissionais de saúde, pacientes e famílias e ressalta a centralidade do sistema familiar no cuidado ( 4. Svavarsdottir EK. Listening to the family’s voice: Nordic nurses’ movement toward family centered care. J Fam Nurs. 2006;12(4):346-67. ) , o que implica incluir a família nas decisões e no cuidado de seus membros, considerando suas reais necessidades.

A convivência com a doença crônica da criança gera demandas específicas de cuidados, tais como a dependência de atenção contínua, cuidados com a alimentação, tratamento medicamentoso, constante preocupação com o estado clínico da criança, o que impõe à família necessidades ( 5. Herzer M, Godiwala N, Hommel KA, Driscoll K, Mitchell M, Crosby LE, et al. Family functioning in the context of pediatric chronic conditions. J Dev Behav Pediatr. 2010;31(1):26-34. ) que podem e devem ser acolhidas pela rede de saúde, aliviando assim a sobrecarga e o sofrimento da unidade familiar ( 6. Bocchi SCM, Angelo M. Entre a liberdade e a reclusão: o apoio social como componente da qualidade de vida do binômio cuidador familiar-pessoa dependente. Rev Latino Am Enferm [Internet]. 2008 [citado 2011 mar. 20];16(1). Disponível em: http:// http://www.scielo.br/pdf/rlae/v16n1/pt_02.pdf
http:// http://www.scielo.br...
) .

A fim de compreender melhor o cenário de cuidado acima descrito, este estudo, desenvolvido a partir da pergunta Como a equipe da ESF percebe o cuidado ofertado às famílias que convivem com a doença crônica da criança? , objetivou caracterizar a experiência da equipe da ESF em sua dinâmica de acompanhamento de famílias que convivem com a doença crônica da criança.

Esta investigação e a reflexão sobre os alcances e os limites da ESF vão ao encontro dos novos desafios que se impõem ao SUS, principalmente no que diz respeito ao estabelecimento de um cuidado em saúde respaldado pela integralidade e as diversas potencialidades que podem emanar da relação entre equipe de saúde e família ( 7. Hopia H, Paavilainen E, Astedt-Kurki P. Promoting health for families of children with chronic conditions. J Adv Nurs. 2004;48(6):575-83. ) .

MÉTODO

Estudo qualitativo que foca as interações no cuidado à saúde. Para tanto, adotou como referencial teórico o Interacionismo Simbólico (IS) que considera que a experiência humana é mediada por um processo de interpretação que resulta no comportamento humano ( 8. Charon JM. Symbolic interactionism: an introduction, an interpretation, an integration. 3rd ed. Englewood Cliffs: Prentice Hall; 1989. ) . Este, por sua vez, está correlacionado a significados que surgem e são transformados na interação social, por meio de processos interpretativos.

Para a coleta de dados, a estratégia selecionada foi o grupo focal, que enfatiza o aspecto interativo na geração dos dados e faz uso intencional da interação grupal ( 9. Barbour R. Grupos focais. Porto Alegre: Artmed; 2009. ) . Este aspecto potencializou a expressão do cuidado da equipe, em contraponto ao cuidado de cada profissional.

Realizou-se um grupo focal com equipes da ESF a partir da seguinte proposição: Relembrem o cuidado que vocês desenvolvem junto a uma família que convive com a doença crônica da criança e contem-nos como é este cuidado .

À medida que a narrativa de cuidado ocorria, perguntas eram formuladas a fim de compreender em profundidade as dimensões do fenômeno estudado, com relação a conceitos, crenças, estratégias utilizadas pela equipe, vínculos, parcerias, recursos de apoio, dificuldades, iniqüidades entre outros elementos que constituem as experiências de cuidado da equipe.

Integraram o estudo três equipes da ESF de uma mesma Regional de Saúde de um município do interior paulista. Na data de realização do estudo, o tempo médio de inserção das equipes em seus territórios, como Unidade de Saúde da Família (USF), era de oito anos.

Compuseram o estudo 32 profissionais que atendiam aos seguintes critérios de inclusão: ser membro de equipe das USF escolhidas para a realização do estudo ou ser residente do Programa de Residência Multiprofissional (RMP) do município e estar inserido nas unidades estudadas. Outro critério de inclusão foi a equipe ter tido experiência de cuidado de pelo menos uma família que convivia com a doença crônica da criança.

Foram seguidas todas as recomendações da Resolução CNS/MS nº 196/96 e o estudo recebeu aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) no parecer de número 500/2009.

A coleta dos dados ocorreu de abril a julho de 2010. Todas as sessões de grupo focal foram gravadas em áudio e imediatamente transcritas na íntegra. O material resultante foi submetido aos processos analíticos preconizados pelo método da Análise de Conteúdo ( 1010 . Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2008. ) , especificamente a técnica de análise categorial temática. Foram seguidas as seguintes etapas operacionais: pré-análise, com a leitura flutuante do material empírico, formulação e reformulação de hipóteses; exploração do material, quando ocorreu a codificação e a classificação do mesmo em categorias; tratamento dos resultados obtidos e sua interpretação por meio de um processo crítico e reflexivo.

RESULTADOS

A análise dos dados permitiu a aproximação com a experiência da Equipe de Saúde da Família em cuidar de famílias que vivenciam a doença crônica da criança. A Tabela 1 apresenta informações acerca dos integrantes do estudo, inseridos nas respectivas equipes, que no estudo foram identificadas como 1, 2 e 3. Merece destaque a presença de todas as categorias profissionais da equipe mínima preconizada pelo Ministério da Saúde do Brasil ( 2. Brasil. Ministério da Saúde. Saúde da Família: uma estratégia para a reorientação do modelo assistencial [Internet]. Brasília; 1997 [citado 2012 mar. 17]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cd09_16.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoe...
) .

Tabela 1
– Informações acerca dos integrantes do estudo Acompanhamento de famílias de crianças com doença crônica: percepção da Equipe de Saúde da Família – São Carlos, SP, Brasil, 2010.

Do material analisado emergiram três categorias temáticas: Peculiaridades das famílias que convivem com a doença crônica da criança; Equipe, família e Estratégia Saúde da Família e Limitações para cuidar.

Peculiaridades das famílias que convivem com a doença crônica da criança

A equipe identifica que a percepção do funcionamento familiar só é possível graças à convivência com as famílias possibilitada pela ESF. A dinâmica de acompanhamento permite à equipe identificar nas famílias que convivem com a doença crônica da criança uma organização própria e diferenciada, orientada a responder as necessidades de saúde e cuidado da criança. Ademais, tais famílias são constantemente desafiadas a se (re)organizar em função dos desdobramentos da cronicidade.

(...) nas minhas visitas [visitas domiciliárias], uma coisa que eu observo... é que tem uma rotina totalmente diferente, uma organização muito diferente... tudo isso voltado para a necessidade daquela criança. Eles se organizam de uma forma que zele para o cumprimento das necessidades... (...) (Equipe 1).

Para se manterem responsivas neste processo, as famílias buscam conhecimentos sobre: a doença da criança, suas repercussões orgânica e física, o tratamento ideal e o ofertado em sua situação específica, os recursos necessários e os obtidos na rede de saúde.

(...) e aí a família tem adaptações dentro da própria casa... ela se organiza, faz as coisas de um jeito diferente, primeiro vem as necessidades da doença da criança, depois o resto, só que isso não dura uns dias, passa a fazer parte da vida (...) (Equipe 2).

Equipe, família e Estratégia Saúde da Família

Esta categoria temática remete à percepção por parte da equipe de que o desenho da ESF favorece o acesso, o conhecimento e a intervenção voltada para a unidade familiar. Afirma existir na ESF espaço para aproximação com as realidades de cada família em seu território, o que permite identificar suas necessidades e, com isso, praticar a equidade de maneira mais intencional. A aproximação é facilitada pela visita domiciliária, a reunião de equipe, o acolhimento e a atuação do agente comunitário de saúde, elementos presentes no processo de trabalho na ESF.

A visita domiciliária permite acompanhar mais de perto cada família do nosso território, principalmente com os agentes, que fazem mais visitas. Nós vamos na casa e dentro da casa temos outras visões, que dentro do consultório não poderíamos ter. Então, a visão que nós temos na casa é bem diferente da que o médico vai ter no consultório em qualquer outro serviço... e depois nós discutimos a situação na reunião aqui na unidade (Equipe 1).

Na dinâmica de acompanhamento das famílias de crianças doentes crônicas, a relação estabelecida com a família é vista como elemento central do acompanhamento e do cuidado. O vínculo que nasce da relação entre a equipe e a família é o mesmo que a sustenta.

O fato de a família te escolher para ser quem vai escutar o que ela tem para contar é emocionante... é um reconhecimento do seu potencial de ajuda, mesmo com os limites que a gente tem. Isso para mim já é um grande sinal de vínculo... (Equipe 1).

A escuta da família por parte da equipe revelou-se uma ferramenta importante de acesso à experiência, às necessidades e às demandas da família decorrentes do estado crônico de saúde da criança. Ao interagir com os familiares no espaço de escuta, a equipe ressignifica esse momento como cuidado ofertado, uma vez que identifica a necessidade da família em ser ouvida em sua vivência.

Na interação mediada por uma sensibilidade de escuta, a equipe considera a sinceridade com a família importante elemento de cuidado e manutenção de vinculo.

(...) quando você vê o que a família está fazendo, quando você vê o esforço, o sofrimento... é preciso elogiar, e isso é cuidado sim! Mas não pode ser na ‘falsidadezinha’, tem que ser de verdade, quando merece, porque a família sabe quando é verdadeiro e quando não é... (Equipe 3).

A equipe aponta a importância do envolvimento de outros setores no cuidado à família, como educação, serviço social, transporte, uma vez que a saúde da família envolve outros elementos que vão além do setor saúde.

(...) a gente percebeu que não é só a gente da saúde que tem que dar suporte para uma criança com problema crônico. A gente precisa da Educação, a gente precisa do Serviço Social, a gente precisa de tudo... E aí, muitas vezes a gente empaca em umas questões... transporte, por exemplo. Então a gente avança, faz grandes discussões, planos e aquelas coisas e, na hora de operacionalizar, a gente se depara muitas vezes com essas questões (Equipe 2).

Em muitas ocasiões, o acesso ao serviço especializado por parte das famílias que convivem com a doença crônica da criança é permeado por dificuldades que refletem negativamente na dinâmica do cuidado ofertado pelos profissionais da equipe.

Limitações para cuidar

Os sujeitos deste estudo verbalizaram sentimentos de restrição e tolhimento, quando não conseguem efetivamente acompanhar o tratamento que a criança portadora de doença crônica realiza em outros níveis de assistência à saúde. Isso está relacionado às lacunas no sistema de referência e contra-referência previsto na dinâmica assistencial da ESF e do SUS como um todo, que se mostram ineficientes na realidade estudada, o que significa pouca articulação da ESF com a rede de apoio social, imprescindível no contexto das famílias com crianças doentes crônicas na ótica destes profissionais. Exemplificam tal ineficiência citando repetidas vezes os entraves existentes na comunicação com os serviços de saúde de distintos níveis.

Nesse movimento, de necessitar da rede para complementar o seu cuidado e atender às necessidades da família, a equipe identifica barreiras no acesso aos serviços. Tais barreiras atuam reflexivamente sobre a equipe que necessita de mais recursos para cuidar na cronicidade, levando-a a não conseguir avançar no plano de cuidados estabelecido.

(...) a gente tem pouco recurso para dar conta disso, e eu precisei do meu colega pediatra. Um pediatra não me deu a resposta satisfatória, eu insisti com a mãe e falei olha, eu acho que precisa fazer um tratamento, uma investigação. Aí mandamos para outro pediatra e ele também não deu uma resposta satisfatória. E então, como cuidar? (Equipe 2).

No meu modo de ver, fica não só esta equipe de mãos atadas, como outras aí. Se você começar a perguntar, você começa a perceber. (Equipe 1).

O sentimento de impotência diante de algumas vivências da família é permeado também por frustração e desânimo, quando a equipe não obtém sucesso em suas intervenções junto às famílias, ou quando nem sequer consegue colocar em prática aquilo que foi planejado, em razão de restrições relacionadas à gestão e à organização do serviço de saúde.

(...) e às vezes desmotiva. Eu me sinto às vezes muito desmotivada com esta situação, sabe? Então é difícil manter a motivação com tanto entrave, sabe? Às vezes a gente tira força não sei de onde para... Às vezes desmotiva bastante... (Equipe 3).

Em resposta às restrições que experiencia, a equipe procura transpor as barreiras que a estrutura do serviço impõe, buscando ir além dos limites para acolher as necessidades e as demandas das famílias com crianças portadoras de doenças crônicas, mesmo na adversidade, fruto do vínculo que a ESF promove.

(...) a gente tenta criar mecanismos de como driblar o sistema, ver com quem que a gente pode entrar em contato e que possa falar com a gente, ajudar, resolver... ir além, sabe? (Equipe 2).

DISCUSSÃO

A situação de doença crônica da criança produz repercussões psicológicas, sociais e de funcionamento familiar. Daí a necessidade dos profissionais compreenderem como a família é afetada nos diversos aspectos ( 1111 . Howe CJ, Ayala J, Dumser S, Buzby M, Murphy K. Parental expectations in the care of their children and adolescents with diabetes. J Pediatr Nurs. 2012;27(2):119-26. - 1212 . Fisher HR. The needs of parents with chronically sick children: a literature review. J Adv Nurs. 2011;36(4):600-7. ) , pois a complexidade das necessidades familiares precisa ser considerada no planejamento do cuidado ( 1313 . Nuutila L, Salanterä S. Children with a long-term illness: parents’ experiences of care. J Pediatr Nurs. 2006;21(2):153-60. ) .

Os profissionais da ESF mostraram sensibilidade para reconhecer as necessidades da família, pois relatam a percepção de modificações no funcionamento familiar frente às demandas advindas da doença da criança. Demonstram preocupação e esforço em buscar os recursos necessários à família, com vistas a apoiá-la na sua trajetória de cuidado. Isto aponta para a capacidade destes profissionais de ressignificar a família como sujeito de seus cuidados. Contudo, não se evidenciaram práticas sustentadas por conhecimentos teóricos relativos a sistemas familiares, funcionamento e dinâmica familiar, o que confirma resultados de outros estudos ( 1414 . Silva MCLSR, Silva L, Bousso RS. Approaching the family in the Family Health Strategy: an integrative literature review. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2012 Mar 17];45(5):1250-5. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n5/en_v45n5a31.pdf
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- 1515 . Oliveira RG, Marcon SS. The opinion of nurses regarding the work they perform with families in the Family Health Program. Rev Latino Am Enferm. 2007;15(3):431-8. ) .

Verifica-se, portanto, que a intimidade que a equipe de saúde tem com a temática família é insuficiente ( 1414 . Silva MCLSR, Silva L, Bousso RS. Approaching the family in the Family Health Strategy: an integrative literature review. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2012 Mar 17];45(5):1250-5. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n5/en_v45n5a31.pdf
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) , o que evidencia a necessidade de incorporar habilidades e conhecimentos acerca dos conceitos de família, dinâmica familiar e cuidado centrado na família para que a equipe exerça uma prática mais cônscia e intencional no cuidado às famílias ( 1515 . Oliveira RG, Marcon SS. The opinion of nurses regarding the work they perform with families in the Family Health Program. Rev Latino Am Enferm. 2007;15(3):431-8. ) .

O impacto das demandas à família é percebido pela equipe ao longo da convivência nas distintas interações de cuidado. Os profissionais reconhecem que para cuidar de famílias nessas condições é preciso saber quem é a família, conhecer suas peculiaridades, as formas de enfrentamento que adota adotando, as dificuldades que encontra e o que tem de potencialidades. Esses elementos, mencionados pela equipe como necessários ao cuidar, já integram as recomendações de uma abordagem centrada na família ( 4. Svavarsdottir EK. Listening to the family’s voice: Nordic nurses’ movement toward family centered care. J Fam Nurs. 2006;12(4):346-67. )

A equipe demonstra incorporar em sua prática pressupostos que podem derivar em ações de apoio e fortalecimento das famílias. Esse patamar é alcançado por meio da proximidade da relação que estabelece com a família ( 1515 . Oliveira RG, Marcon SS. The opinion of nurses regarding the work they perform with families in the Family Health Program. Rev Latino Am Enferm. 2007;15(3):431-8. ) , o que constitui um diferencial para a compreensão de sua experiência. O desenho da ESF atua como promotor de tais relações e de processos de ressignificação.

O vínculo, as visitas domiciliárias e o acompanhamento longitudinal das famílias são destacados como recursos que determinam um espaço diferenciado de interação, instigam a afetividade e o estabelecimento de laços entre os profissionais e as famílias ( 1414 . Silva MCLSR, Silva L, Bousso RS. Approaching the family in the Family Health Strategy: an integrative literature review. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2012 Mar 17];45(5):1250-5. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n5/en_v45n5a31.pdf
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) . Porém, quando adotados como formas de controle burocrático, extinguem tal potencialidade ( 1616 . Matumoto S, Mishima SM, Fortuna CM, Pereira MJB, Almeida MCP. Family discussion in the Family Health Strategy: a working process under construction. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2011 July 12];45(3):603-10. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n3/en_v45n3a08.pdf
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) .

Os achados confirmam a potência da ESF como cenário propício ao cuidado familiar ( 1717 . Kantorski LP, Jardim VMR, Pereira DB, Coimbra VCC, Oliveira MM. A integralidade no cotidiano de trabalho na Estratégia Saúde da Família. Rev Gaúcha Enferm. 2009;30(4):594-601. ) . O vínculo mobilizou a equipe a buscar um cuidado centrado na família, fomentou laços de confiança, mutualidade, cumplicidade e corresponsabilidade entre profissionais e famílias. Consumou-se como o elemento que colocou os sujeitos em interação autêntica, quando os profissionais permitiram-se ser tocados pelas famílias, suas potencialidades e fragilidades. Provocou na equipe a empatia, o compromisso, o respeito e a confiança na família, gerando corresponsabilização.

A corresponsabilização por uma população de um território determinado propicia uma atenção compartilhada, com estabelecimento de objetivos comuns e criação de vínculo entre profissionais e famílias ( 1818 . Villa EA, Aranha AVS. A formação dos profissionais da saúde e a pedagogia inscrita no trabalho do Programa de Saúde da Família. Texto Contexto Enferm. 2009;18(4): 680-7. ) . É esse vínculo que fomenta a empatia e o compromisso verificados nos resultados deste estudo, e nutre a identificação do profissional com o sofrimento e a luta da família diante das demandas de cuidado. Com isso, a equipe ousa ir além do que a estrutura e a organização dos processos de trabalho lhe permitem, soma-se à família para transformar a realidade. Mas não a todas as famílias, o que demonstra que tal movimento está relacionado à interação estabelecida ao longo do tempo.

Outro núcleo desvelado foi a importância do diálogo efetivo entre os diferentes níveis de assistência à saúde, e destes com outros equipamentos sociais disponíveis no território, indispensável para a integralidade do cuidado ( 1919 . Colomé ICS, Lima MADS, Davis R. Visão de enfermeiras sobre as articulações das ações de saúde entre profissionais de equipes de saúde da família. Rev Esc Enferm USP. 2008;42(2):256-61. ) . Em consonância com esses achados, uma pesquisa que analisou em profundidade os movimentos de retomada de equilíbrio de vida em famílias que experienciavam a doença crônica mostrou que suas tentativas de alcançar um equilíbrio foram seriamente prejudicadas por serviços fragmentados, a complexidade da transição entre diferentes serviços de saúde e o relacionamento conflituoso com alguns profissionais ( 2020 . Jeon YH, Jowsey T, Yen L, Glasgow NJ, Essue B, Kljakovic M, et al. Achieving a balanced life in the face of chronic illness. Aust J Prim Health. 2010;16(1):66-74. ) .

O trânsito entre os diferentes níveis da assistência mostrou-se uma busca isolada e solitária de cada família ou do profissional do serviço, quando deveria ser um compromisso do sistema de saúde ( 7. Hopia H, Paavilainen E, Astedt-Kurki P. Promoting health for families of children with chronic conditions. J Adv Nurs. 2004;48(6):575-83. ) . Ademais, a família que acessa o serviço de saúde pela ESF não pode perder sua referência de cuidado quando necessita da assistência especializada. Para tanto, faz-se necessário que a ESF seja fortalecida. Achados semelhantes ( 1818 . Villa EA, Aranha AVS. A formação dos profissionais da saúde e a pedagogia inscrita no trabalho do Programa de Saúde da Família. Texto Contexto Enferm. 2009;18(4): 680-7. ) reforçam a necessidade de investimentos neste âmbito.

Este estudo permite sugerir o aperfeiçoamento dos processos de comunicação entre os distintos níveis de assistência referentes ao cuidado à criança doente crônica e sua família, especificamente no sistema de referência e contra-referência ( 1717 . Kantorski LP, Jardim VMR, Pereira DB, Coimbra VCC, Oliveira MM. A integralidade no cotidiano de trabalho na Estratégia Saúde da Família. Rev Gaúcha Enferm. 2009;30(4):594-601. ) . Isso contribuiria para que o cuidado fosse menos fragmentado e desconexo, com desdobramentos mais positivos tanto para a família como para a equipe da ESF na busca de significantes para o cuidado na cronicidade.

Há a necessidade de atenção à intersetorialidade, com vistas a alcançar resultados de saúde mais efetivos e eficientes ( 2020 . Jeon YH, Jowsey T, Yen L, Glasgow NJ, Essue B, Kljakovic M, et al. Achieving a balanced life in the face of chronic illness. Aust J Prim Health. 2010;16(1):66-74. ) . A comunicação entre serviços, setores e equipamentos sociais desponta como um grande desafio ( 2121 . Silva KL, Rodrigues AT. Ações intersetoriais para promoção da saúde na Estratégia Saúde da Família: experiências, desafios e possibilidades. Rev Bras Enferm. 2010; 63(5):762-9. - 2222 . Gabardo RM, Junges JR, Selli L. Family Health Program professionals’ view on family structures and health implications. Rev Saúde Pública. 2009;43(1):91-7. ) . A complexidade do cuidado exige do setor saúde uma atuação integrada, em que parcerias entre diferentes setores e segmentos sociais contribuam para a resolutividade.

Identificou-se que o cotidiano de cuidado da equipe junto a essas famílias é gerador de angústia e que os profissionais convivem simultaneamente com a compaixão e os limites e os limitantes do cuidado. De maneira dual, este sofrimento impulsiona a equipe a ser criativa, transpor limites e buscar soluções inovadoras ( 2222 . Gabardo RM, Junges JR, Selli L. Family Health Program professionals’ view on family structures and health implications. Rev Saúde Pública. 2009;43(1):91-7. ) , mas também a desanima, principalmente quando ao longo do tempo percebe não conseguir ser resolutiva, não conseguir alcançar o melhor cuidado para aquela família. Assim, no cuidado às famílias de crianças doentes crônicas, a equipe vivencia a ambiguidade entre querer e poder cuidar, o que implica aproximação ou afastamento da família.

O ambiente e o desenho de assistência na ESF favorecem a aproximação com as famílias ( 1919 . Colomé ICS, Lima MADS, Davis R. Visão de enfermeiras sobre as articulações das ações de saúde entre profissionais de equipes de saúde da família. Rev Esc Enferm USP. 2008;42(2):256-61. ) . Contudo, ao considerar sua inserção no sistema de saúde, é possível ainda identificar lacunas relevantes em relação ao conceito de linha de cuidado e de intersetorialidade, o que a limita as possibilidades de um cuidado efetivo às famílias.

CONCLUSÃO

Este estudo confirma a potência da ESF para estabelecer ações promotoras do cuidado familiar. O vínculo desponta como um diferencial, pois é por meio dele e em função dele que a equipe, nas interações com os elementos da história de cada família, aproxima-se e sente interesse em a apoiar em sua trajetória.

Em contrapartida, revelou fragilidades teóricas dos profissionais da ESF em relação aos conceitos necessários para o cuidado centrado na família, bem como dificuldades na intersetorialidade. Esses são aspectos que limitam o cuidado integral e efetivo e que precisam ser explorados de forma focalizada.

Em função da corresponsabilidade pelo cuidado, a equipe percebe-se vivenciando angústias, alegrias, desapontamentos, restrições, que acabam por impulsioná-la a querer ou não estar com a família, à medida que se sente ou não capaz de servir como apoio. Define e age no acompanhamento de famílias com crianças doentes crônicas de acordo com as significações ali construídas, que emergem da interação com a família e com a macroestrutura do sistema de saúde e influem nas atitudes dos profissionais.

Relatos de experiências bem sucedidas em relação à linha de cuidado e à intersetorialidade precisam ser divulgados, bem como explorações na linha de intervenção-ação, com vistas a produzir evidências científicas que preencham as lacunas existentes neste âmbito. Há ainda necessidade de investigar o quanto e como a família é impactada pelas formas de organização do sistema de saúde.

REFERÊNCIAS

  • 1
    World Health Organization. Global status report on noncommunicable diseases 2010 [Internet]. Geneva: WHO; 2011 [cited 2012 Mar 11]. Available from: http://www.who.int/nmh/publications/ncd_report2010/en/
    » http://www.who.int/nmh/publications/ncd_report2010/en/
  • 2
    Brasil. Ministério da Saúde. Saúde da Família: uma estratégia para a reorientação do modelo assistencial [Internet]. Brasília; 1997 [citado 2012 mar. 17]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cd09_16.pdf
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2013

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2012
  • Aceito
    26 Mar 2013
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