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Educação superior em Enfermagem: o processo de trabalho docente em diferentes contextos institucionais

Resumos

Objetivo

Analisar as características do trabalho docente no ensino superior em Enfermagem.

Método

Estudo exploratório e qualitativo cujo referencial teórico-metodológico foi o materialismo histórico e dialético. Como categoria analítica, adotou-se o processo de trabalho docente, ancorado nas concepções de trabalho e profissionalidade. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 24 docentes de três instituições de ensino superior da cidade de São Paulo, classificadas segundo a tipologia de contextos institucionais.

Resultados

Revelaram que os docentes dessas instituições de ensino superior constituem um grupo heterogêneo, submetido a diferentes condições de trabalho. A intensificação e a precarização do trabalho docente é comum aos três contextos, embora haja distinções importantes nas práticas didáticas relacionadas a ensino, pesquisa e extensão.

Conclusão

A profissionalização docente pode ser o ponto de partida para a análise e o enfrentamento de uma realidade tão distinta de trabalho e prática docente.

Educação superior; Educação em enfermagem; Docentes de enfermagem


Objective

To analyze the characteristics of faculty work in nursing higher education.

Method

An exploratory qualitative study with a theoretical-methodological framework of dialectical and historical materialism. The faculty work process was adopted as the analytical category, grounded on conceptions of work and professionalism. Semi-structured interviews were conducted with 24 faculty members from three higher education institutions in the city of São Paulo, classified according to the typology of institutional contexts.

Results

The faculty members at these higher education institutions are a heterogeneous group, under different working conditions. Intensification and precarious conditions of the faculty work is common to all three contexts, although there are important distinctions in the practices related to teaching, research and extension.

Conclusion

Faculty professionalization can be the starting point for analyzing and coping with such a distinct reality of faculty work and practice.


Education, higher
; Education nursing; Faculty, Nursing


Objetivo

Analizar las características del trabajo docente en la educación superior en Enfermería.

Método

Estudio exploratorio y cualitativo cuyo marco de referencia teórico-metodológico fue el materialismo histórico y dialético. Como categoría analítica, se adoptó el proceso de trabajo docente, anclado en las concepciones de trabajo y profesionalidad. Se realizaron entrevistas semiestructuradas con 24 docentes de tres instituciones de educación superior de la ciudad de São Paulo, clasificadas según la tipología de contextos institucionales.

Resultados

Se revelaron que los docentes de dichas instituciones de educación superior constituyen un grupo heterogéneo, sometido a distintas condiciones laborales. La intensificación y la precarización del trabajo docente son comunes a los tres marcos, aunque existan diferencias importantes en las prácticas didácticas relacionadas con la enseñanza, la investigación y la extensión.

Conclusión

La profesionalización docente puede ser el punto de partida para el análisis y el enfrentamiento de una realidad tan distinta de trabajo y práctica docente.


Educación superior; Educación en enfermería; Docentes de Enfermería; Docencia


Introdução

O ensino superior tem posição estratégica no desenvolvimento socioeconômico de um país, dada a sua relação com a formação e a qualificação da força de trabalho capaz de operacionalizar e efetivar processos de modernização e melhoria na sociedade.

No Brasil, o ensino superior passou por uma série de mudanças nas últimas duas décadas, em especial após a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996, com destaque para a diversificação e a expansão em todos os seus níveis e modalidades(101 Martins CB. Reconfiguring higher education in Brazil: the participation of private institutions. Análise Soc (Lisboa). 2013;(208):622-58). A LDB determinou que o ensino superior pode ser realizado em instituições de ensino superior (IES) públicas ou privadas, que podem ser universidades, faculdades e centros universitários(202 Brasil. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. [Internet]. Brasília; 1996 [citado 2014 mar. 22]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
).

Tais mudanças repercutiram na forte expansão do sistema, principalmente no setor privado, com o apoio de políticas públicas governamentais. Como consequência da política adotada, o crescimento foi marcado pela desigualdade na distribuição geográfica dos cursos, concentrados nas regiões sudeste e sul.

Estudos evidenciam que o cenário de expansão e diversificação do ensino superior incide diretamente no trabalho docente, que enfrenta os reflexos das mudanças políticas estabelecidas pelo Estado brasileiro. Por isso, o enfrentamento dessa realidade e o processo de trabalho são distintos e estão diretamente relacionados ao formato institucional no qual o docente está inserido(303 Pimenta SG, Anastasiou LGC. Docência no ensino superior. São Paulo: Cortez; 2010-404 Balbachevsky E. Academic careers in Brazil: the legacy of the past. J Prof. 2011;4(2):121-95).

No ensino em saúde, em particular no ensino de enfermagem, há uma lacuna na produção científica sobre a temática. De maneira geral, os estudos abordam as características do trabalho docente em contextos institucionais delimitados, segundo a natureza administrativa ou acadêmica das IES, não tomando como ponto de partida o processo de trabalho docente em diferentes contextos, mas abordagens específicas, como qualidade de vida(505 Silvério MR, Patrício ZM, Brodbeck IM, Grosseman S. O ensino na área da saúde e sua repercussão na qualidade de vida docente. Rev Bras Educ Med. 2010;34(1):65-73) e satisfação no trabalho(606 Lemos MC, Passos JP. Satisfação e frustação no desempenho do trabalho docente em enfermagem. REME Rev Min Enferm. 2012;16(1):48-55).

Segundo a concepção marxiana(707 Mendes-Gonçalves RB. Tecnologia e organização social das práticas de saúde. São Paulo: Hucitec; 1994), o trabalho é concebido como um processo, uma transformação de um determinado objeto por meio da ação intencional de um agente que, para atingir tal finalidade, emprega instrumentos, sejam eles materiais ou intelectuais.

No que se refere ao processo de trabalho docente em enfermagem, os agentes são os docentes do ensino superior em Enfermagem, ou seja, o estudante de enfermagem, mais especificamente seus conhecimentos, habilidades e atitudes, cujo objeto de trabalho é um outro ser humano. Os instrumentos representam todo o arsenal, material ou intelectual, do qual os docentes lançam mão para intervir/agir com esse sujeito.

Considerando o contexto geral do ensino superior no país e, em particular, o ensino de enfermagem, e com a finalidade de contribuir para a compreensão dessa realidade multifacetada do trabalho docente em diferentes contextos institucionais, este estudo buscou responder às seguintes questões: Como é o processo de trabalho de docentes de Enfermagem em diferentes contextos institucionais? Em que condições é realizado? Que práticas estão sendo desenvolvidas por esses docentes?

Assim, este estudo tem como objeto o processo de trabalho docente em Enfermagem em diferentes contextos institucionais, e seu objetivo é analisar o processo de trabalho do docente de Enfermagem em IES do município de São Paulo.

Método

Adotou-se como marco teórico-metodológico o materialismo histórico e dialético, e como categoria analítica o processo de trabalho docente, ancorado nas concepções de trabalho(707 Mendes-Gonçalves RB. Tecnologia e organização social das práticas de saúde. São Paulo: Hucitec; 1994) e profissionalidade(808 Gimeno-Sacristán J. Consciência da ação sobre a prática como libertação profissional dos professores. In: Nóvoa A, organizador. Profissão professor. Porto: Porto Ed.; 1999. p. 92-63). Ao buscar compreender os principais aspectos dos diferentes níveis em que se inserem o trabalho e a profissionalidade docente, a análise materialista histórica e dialética realiza um movimento articulado à dinamicidade da realidade social.

Parte-se da premissa de que o trabalho docente é uma forma de intervir na realidade social e, portanto, uma prática social. Como tal, só pode ser apreendida e compreendida se analisada em sua relação com o contexto institucional no qual está inserida(303 Pimenta SG, Anastasiou LGC. Docência no ensino superior. São Paulo: Cortez; 2010). A profissionalidade, por sua vez, refere-se àquilo que é específico da ação docente, referente aos comportamentos, às habilidades, às atitudes e aos valores do ser docente(808 Gimeno-Sacristán J. Consciência da ação sobre a prática como libertação profissional dos professores. In: Nóvoa A, organizador. Profissão professor. Porto: Porto Ed.; 1999. p. 92-63).

Tomar o trabalho e a profissionalidade como categorias analíticas implica desvelar a heterogeneidade do trabalho docente nos formatos institucionais existentes no atual cenário de ensino superior brasileiro, partindo-se da premissa de que esse cenário determina diferentes condições de trabalho, práticas e desenvolvimento profissional.

Para classificar as IES, utilizou-se uma tipologia de contextos institucionais(909 Balbachevsky E. Carreira e contexto institucional no sistema de ensino superior brasileiro. Sociologias (Porto Alegre). 2007;9(17):158-88) que classifica as instituições de ensino superior em três grandes tipos: contextos empresariais, que apresentam uma pequena proporção de doutores e de professores em contrato de tempo integral; contextos regionais, que possuem pequena proporção de doutores e alta proporção de professores em tempo integral; e contextos acadêmicos, com alta proporção de doutores em tempo integral ou dedicação exclusiva. Os dados necessários para a classificação foram obtidos por meio de solicitação ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), e a classificação dos contextos está retratada na Tabela 1.

Tabela 1
Distribuição das instituições de ensino superior do estado de São Paulo que oferecem cursos de Enfermagem, segundo a tipologia de contextos institucionais - São Paulo, 2010

Do total de 114 IES que ofereciam cursos de Enfermagem no estado de São Paulo em 2010, cinco (4,5%) eram universidades públicas, e todas foram classificadas como contextos acadêmicos, que apresentam alta proporção de doutores em tempo integral ou dedicação exclusiva. No entanto, a maior parte, ou seja, 108 IES (94,5%) foi classificada como contextos empresariais, com pequena proporção de doutores e contratos em tempo integral. Nenhuma IES foi classificada como contexto regional. Uma instituição (1,0%) não se enquadrou em nenhum dos contextos previstos pela tipologia, por apresentar alta proporção de doutores e baixa proporção de professores com vínculo estável. Por mesclar características de dois contextos, optou-se por classificá-la como um contexto misto, pois contava com um corpo docente altamente titulado, característica de contextos acadêmicos, e também apresentava características de contextos empresariais, em especial pela alta proporção de docentes em regime de trabalho parcial.

Após a classificação, foram selecionadas, por conveniência, três IES, uma de cada contexto, ou seja, por permitirem o acesso ao corpo docente, nelas foram realizadas entrevistas individuais semiestruturadas com 24 docentes: nove do contexto empresarial, sete do acadêmico e oito do contexto misto. Para a realização das entrevistas, foi construído um roteiro com questões objetivas para a caraterização dos sujeitos e questões norteadoras para atingir os objetivos da pesquisa. Na etapa de caraterização, havia oito questões que abordavam a titulação, ano de início de trabalho na instituição, regime de trabalho, forma de contratação, trabalho em outras instituições e a carga horária semanal de trabalho. Na etapa seguinte, os sujeitos foram convidados a falar sobre o cotidiano de seu trabalho docente, identificando as dificuldades, facilidades e desafios do trabalho docente em seu contexto institucional.

O projeto da pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (processo nº 876/2009). As IES foram convidadas por meio dos coordenadores dos Cursos de Enfermagem, que autorizaram a realização do estudo. Todos os docentes dos cursos em questão foram convidados por meio de carta-convite enviada via correio eletrônico. Os que concordaram em participar do estudo foram esclarecidos quanto aos objetivos da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foram entrevistados docentes com diferentes formações, titulações e regimes de trabalho.

O material empírico foi submetido à técnica de análise de discurso(1010 Fiorin JL. Elementos da análise de discurso. 9ª ed. São Paulo: Contexto; 2000), o que permitiu construir um conjunto de temas que, por sua vez, foram reunidos em categorias empíricas, organizadas segundo o sistema de práticas aninhadas(808 Gimeno-Sacristán J. Consciência da ação sobre a prática como libertação profissional dos professores. In: Nóvoa A, organizador. Profissão professor. Porto: Porto Ed.; 1999. p. 92-63), adaptado para este trabalho. No sistema de práticas aninhadas, considera-se que há um conjunto de práticas interconectadas e aninhadas que caracterizam o trabalho docente.

Os resultados foram organizados em dois principais conjuntos de práticas: didáticas e organizativas. As práticas organizativas referem-se aos aspectos da estrutura do contexto organizacional que refletem no trabalho docente, como o plano de carreira, o regime de trabalho e a infraestrutura institucional, por exemplo. Já as práticas didáticas referem-se ao conjunto de aspectos relacionados ao cotidiano do trabalho docente nos diferentes contextos, relacionados, por exemplo, ao ensino, à pesquisa e à extensão (Figura 1).

Figura 1
Representação do sistema de práticas aninhadas(808 Gimeno-Sacristán J. Consciência da ação sobre a prática como libertação profissional dos professores. In: Nóvoa A, organizador. Profissão professor. Porto: Porto Ed.; 1999. p. 92-63), adaptado para o ensino superior.

Resultados

Nos três contextos observados, empresarial misto e acadêmico, os resultados demonstraram que há um processo de precarização e intensificação do trabalho docente que repercute nas práticas organizativas e didáticas, embora com distinções importantes nos diferentes contextos.

Contexto empresarial

No que concerne às práticas didáticas , os docentes do contexto empresarial afirmaram que seu trabalho está voltado basicamente para o ensino de graduação em sala de aula, com pouca inserção docente em atividades administrativas, de pesquisa, extensão e no ensino de pós-graduação.

As atividades de pesquisa não estavam previstas no trabalho docente, portanto, não eram remuneradas. Eram realizadas esporadicamente no ensino de graduação, nos trabalhos de conclusão de curso e das iniciações científicas. As atividades de extensão também eram esporádicas e não consideradas parte do trabalho docente e, portanto, não remuneradas. Embora com tais dificuldades na pesquisa e na extensão, os professores reconheceram-nas como atividades que potencializam a qualidade do ensino.

Os docentes enfrentam ainda dificuldades relacionadas ao perfil dos estudantes, que já estavam inseridos no mercado de trabalho, ou seja, são estudantes-trabalhadores, que chegam cansados à sala de aula. Os desafios dizem respeito, por exemplo, à escolha das estratégias de ensino e aos formatos de avalição adequados a esses alunos.

No que se refere às práticas organizativas , o plano de carreira, embora formalizado, não é operacionalizado efetivamente. Com relação ao regime de trabalho, mencionaram instabilidade financeira, pois o pagamento é feito por hora/aula, de modo que o salário docente está atrelado ao número de aulas/disciplinas que lhe é atribuído semestralmente, podendo haver alterações de acordo com o número de turmas a cada semestre. Os docentes desse contexto mantinham outros vínculos empregatícios, alguns na área assistencial, para complementar o salário e garantir estabilidade financeira.

A infraestrutura institucional insuficiente − com escassez de recursos materiais e instalações inadequadas − foi apontada como um aspecto que dificulta o trabalho docente. Também foram citadas dificuldades de comunicação entre os docentes e a estrutura administrativa. No entanto, na IES em questão, a coordenação da área de Enfermagem oferecia apoio, diálogo, respeito, autonomia e liberdade aos docentes. Isso possibilitava, por exemplo, que os docentes atuassem exclusivamente em disciplinas de sua área de interesse, o que, segundo os entrevistados, nem sempre ocorre em IES vinculadas a contextos institucionais com características empresariais.

Contexto misto

Com relação às práticas didáticas, o trabalho docente compartilhava alguns aspectos do contexto empresarial, mesclado com outros do contexto acadêmico. O trabalho era voltado basicamente para o ensino de graduação, mas havia um esforço institucional para a realização de atividades de pesquisa na graduação. No que se refere à relação teoria-prática, o docente que ministrava a teoria também acompanhava os estudantes no ensino prático realizado nos campos de estágio, diferentemente do contexto empresarial, no qual os docentes que ministravam a teoria não estavam necessariamente vinculados à prática.

Com relação ao perfil dos alunos, segundo afirmaram os docentes, a seleção inicial é mais rigorosa e também a mensalidade tem valor mais alto quando comparada à do contexto empresarial. Há poucos estudantes por turma, com melhor inserção social e com menores dificuldades de aprendizado. Os professores consideram que ensinam para um grupo mais seleto, com renda e nível de instrução diferenciado. Esse perfil, aliado a uma política institucional de pequenas turmas, facilita a prática docente, tornando o ensino mais individualizado para o estudante e mais satisfatório para o professor.

As principais dificuldades, desafios e facilidades do trabalho docente no contexto misto também estavam voltados ao ensino de graduação, principalmente no ensino prático em campo, considerado pelos sujeitos como gerador de desgaste físico e mental, dada a responsabilidade em acompanhar os estudantes, administrar tensões e produzir consensos entre as atividades de ensino e as atividades assistenciais realizadas nos campos de prática.

Com relação às atividades de pesquisa, embora contratados sob o regime de trabalho parcial, os professores desenvolviam atividades de pesquisa por exigência institucional e divulgavam seus resultados em publicações e apresentações de trabalhos em eventos. Mencionaram que por vezes o tempo era insuficiente para a realização de tais atividades, o que os levava a realizá-las fora do horário de trabalho. Tal como no contexto empresarial, a atividade de pesquisa também estava voltada ao ensino de graduação. As atividades de extensão, pouco mencionadas, eram esporádicas e pontuais, sob a forma de cursos, eventos e apresentações de trabalhos dos estudantes.

Em relação às práticas organizativas, havia um plano de carreira que seguia alguns critérios institucionais (publicação, titulação, tempo de trabalho na instituição), embora tenha sido mencionado que o salário não era compatível com o volume de trabalho. O regime de trabalho predominante era o parcial e oferecia certa estabilidade frente ao regime horista, característico do contexto empresarial.

Em que pesem tais dificuldades, os docentes compartilhavam a percepção de que a IES prezava a qualidade do ensino, não visando apenas ao lucro, e sim à qualidade da formação de seus estudantes. Exemplificaram tal fato citando a boa aceitação dos egressos no mercado de trabalho na área.

Contexto acadêmico

Nesse contexto, no que se refere às práticas didáticas , o trabalho docente estava concentrado em atividades de pesquisa e administrativas e no ensino de pós-graduação. Entretanto, segundo alguns sujeitos, havia um grande esforço institucional para realizar a reorientação curricular do ensino de graduação. Para as docentes entrevistadas, o contexto acadêmico supervalorizava as atividades administrativas e de pesquisa, em prejuízo das atividades de ensino de graduação e as de extensão, consideradas pouco valorizadas.

Em relação ao perfil do aluno, não houve grande menção a dificuldades ou desafios para o trabalho docente. As dificuldades e os desafios foram relacionados à necessidade de promoção da participação ativa do estudante e ao enfrentamento da resistência de muitos docentes, que valorizavam a pesquisa em detrimento do ensino. Também havia dificuldades para desenvolver o ensino prático em campo, dada a imprevisibilidade das ações, por conta da realidade complexa dos serviços, o que gerava insegurança.

Com relação às atividades de pesquisa, foi relatada grande preocupação e até mesmo angústia dos docentes para atingir as metas institucionais de produção científica e de publicação, sendo mencionada a valorização da quantidade e não da qualidade dos artigos produzidos; a competitividade entre os pares para obter financiamento de pesquisa e também para conseguir publicar em revistas conceituadas da área; a dificuldade em gerenciar os projetos financiados, com uma intensa atividade de produção de relatórios e prestação de contas às agências financiadoras; e a necessidade de um currículo internacional, o que demanda um trabalho de articulação com grupos de pesquisa de instituições estrangeiras.

No ensino de pós-graduação, segundo os sujeitos, as avaliações internas e externas direcionavam a participação docente para a pesquisa e a orientação de mestrandos e doutorandos, e os docentes não inseridos nessa modalidade de ensino percebiam-se como um grupo menos valorizado institucionalmente. Outro aspecto relevante desse contexto foi a menção dos docentes a áreas de conhecimento mais renomadas e valorizadas que a Enfermagem.

Os professores afirmaram ainda que as atividades de extensão estavam subsumidas à pesquisa e à inserção dos docentes em cargos administrativos. Embora acreditassem na potencialidade da extensão, em articulação com o ensino e a pesquisa, mencionaram que esta era pouco valorizada pelo contexto institucional, o que é expresso no baixo peso que lhe é atribuído na avaliação docente.

Quanto às práticas organizativas , predominava o regime de trabalho integral, em dedicação exclusiva, no qual a carreira docente está explícita e os critérios de ascensão validados institucionalmente. Nas atividades administrativas, a queixa principal era a de que consumia parte substancial do trabalho, por conta da burocracia nos processos de gestão institucional, que se desdobram em mais trabalho.

A autonomia docente, característica desse contexto, foi apontada como geradora de grande responsabilidade, relacionada à dificuldade em estabelecer regras e consensos entre os demais colegas de profissão. Foi unânime, entre os entrevistados, que o contexto confere estabilidade financeira e a carreira é formalizada e assegurada institucionalmente, embora alguns relatem uma discrepância entre o trabalho exercido e a remuneração auferida.

Em síntese, o trabalho docente nos três contextos também apresentou aspectos semelhantes como, por exemplo, a falta de tempo para realizar as diferentes atividades e a necessidade de melhoria da infraestrutura organizacional, de acordo com as expectativas e as necessidades do trabalho em cada contexto abordado.

Nos contextos empresarial e misto, a experiência assistencial na Enfermagem é tida como um aspecto importante para a prática docente, conferindo um diferencial muito valorizado pelos estudantes e pelos próprios docentes. Nesses contextos, alguns docentes mencionaram a necessidade de um segundo vínculo empregatício, para complementação salarial. No contexto acadêmico e, em certa medida, no misto, dada a valorização institucional para a pesquisa, os docentes referiram sentir-se pressionados para atingir as metas institucionais de produtividade acadêmica.

Discussão

A análise do trabalho docente em diferentes contextos institucionais permitiu construir quatro grandes temas de análise, também organizados segundo as práticas organizativas e didáticas(808 Gimeno-Sacristán J. Consciência da ação sobre a prática como libertação profissional dos professores. In: Nóvoa A, organizador. Profissão professor. Porto: Porto Ed.; 1999. p. 92-63) e adaptadas para este estudo (Figura 2).

Figura 2
Temas de análise organizados segundo o sistema de práticas aninhadas

Práticas organizativas

Condições de trabalho docente em enfermagem em tempos de precarização e flexibilização do trabalho

A precarização e a flexibilização do trabalho docente manifestam-se de formas distintas nos diferentes contextos, e os principais aspectos observados foram relacionados ao regime de trabalho, à carreira e às limitações estruturais e de infraestrutura material e humana.

Tais aspectos indicam a nova configuração das relações de trabalho estabelecidas nos Estados que adotam o neoliberalismo como base político-econômica, em que são cada vez mais observados o desemprego e a espoliação dos direitos trabalhistas construídos historicamente. Nessa reconfiguração, surge um novo perfil de trabalhador, cada vez mais flexível para a realização de multitarefas, proativo e consciente de sua necessidade de constante atualização e capacitação frente às exigências do mercado de trabalho(1111 Lima KRS. O Banco Mundial e a educação superior brasileira na primeira década do novo século. Rev Katál (Florianópolis). 2011;14(1):86-94-1212 Mancebo D. Trabalho docente na educação superior brasileira: mercantilização das relações e heteronomia acadêmica. Rev Port Educ. 2010;23(2):73-91).

No caso do trabalho docente, em especial o de Enfermagem, esse perfil expressa-se em sobrecarga de trabalho, intensificação das tarefas e autopenalização pela não consecução das muitas linhas de frente . Mesmo nos contextos em que a forma de contratação é mais estável, os professores queixam-se da intensificação das atividades e do pouco tempo para as executar(1313 Ferreira EM, Fernandes MFP, Prado C, Baptista PCP, Freitas GF, Bonini BB. Prazer e sofrimento no processo de trabalho do enfermeiro docente. Rev Esc Enferm USP. 2009;43(n.esp 2):1292-6).

Quando os contratos de trabalho são instáveis, o docente acumula empregos na docência ou na assistência à saúde para manter um nível razoável de estabilidade financeira, sobrecarregando-se de atividades e muitas vezes extrapolando as 40 horas semanais estabelecidas pela legislação trabalhista. Estabelece-se uma relação mercantil entre o trabalho executado pelo professor e as IES, que compram esse trabalho, tornando-o cada vez mais precário, por meio de contratos precários e regimes de trabalho financeiramente instáveis(1414 Calderón AI. Terceirização do trabalho docente à luz da responsabilidade social da educação superior. Trab Educ Saúde. 2013;11(3):487-501).

O cenário internacional também mostra sinais de precarização da força de trabalho docente no ensino superior. Estudo realizado na Austrália, em 2011, revelou que, apesar dos professores sentirem-se motivados e considerarem sua carreira gratificante, o crescimento do número de alunos não acompanhado de novas nomeações vem aumentando sua carga de trabalho(1515 Bexley E, James R, Arkoudis S. The Australian academic profession in transition: addressing the challenge of reconceptualising academic work and regenerating the academic workforce. Melbourne: Centre for the Study of Higher Education, The University of Melbourne, 2011).

Práticas didáticas

O ensino em sala de aula e a prática em campo: realidades e desafios da prática docente em enfermagem

Os desafios refletem-se na prática didática dos professores que desenvolvem o ensino, a pesquisa e a extensão de formas diferenciadas, a depender do contexto institucional. No ensino teórico e prático, observou-se que os desafios vão desde a escassez de ensino prático em campo no contexto empresarial, até o desgaste físico e mental provenientes dessa atividade, dada a imprevisibilidade das ações nos campos de prática, nos contextos misto e acadêmico.

Estudos mostram que a prática em campo sobrecarrega o professor pelo acúmulo de atividades, como o contato prévio com os profissionais de saúde, o reconhecimento do campo e suas normas e rotinas, a supervisão dos estudantes e a preocupação com a assistência ao usuário do serviço(1616 Aguayo-Gonzales M, Monereo-Font C. The nurse teacher: construction of a new professional identity. Invest Educ Enferm. 2012;30(3):398-405). O professor sente-se tão responsável pelas atividades desenvolvidas que se percebe como um catalisador das diferentes demandas encontradas no campo, assumindo mais responsabilidades.

Embora desgastante, o ensino prático é tido como necessário para promover o contato do estudante com a realidade dos serviços de saúde e os problemas de saúde da população assistida. A imprevisibilidade nos cenários de prática, ainda que geradora de estresse é vista como uma oportunidade de estudante e professor exercitarem a escuta das necessidades dos usuários dos serviços de saúde, respeitando as decisões das pessoas com quem convivem(1717 Ribeiro MRR, Ciampone MHT. O debate acerca da complexidade dos objetos do trabalho docente na área de saúde. Educ Rev. 2008;9(2):51-64).

Com relação ao perfil dos alunos, mencionado no contexto empresarial como um aspecto que dificulta a escolha das estratégias de ensino e de avaliação, os resultados corroboram estudo sobre a trajetória dos cursos de Enfermagem no período de 1991 a 2004, que identificou que a maior parte dos estudantes dos cursos superiores em Enfermagem já estava inserida no mercado de trabalho. A dupla jornada de trabalho também se revelou uma característica importante dos estudantes de Enfermagem, principalmente da rede privada, em que predominam estudantes que trabalham(1818 Haddad AE, Pierantoni CR, Ristoff D, organizadores. A trajetória dos cursos de graduação na área da saúde: 1991 e 2004. Brasília: Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Estudos Anísio Teixeira; 2006. p. 142-68).

Outra característica está relacionada à inserção social do alunado, que provém de famílias em que o nível de escolaridade dos pais é mediano. Esse dado, somado ao fato de terem cursado o ensino fundamental e médio em escolas públicas, merece atenção por parte dos cursos de Enfermagem, que devem buscar estratégias diversificadas com a finalidade de promover o aprendizado para os estudantes. Estudo na área de enfermagem mostra que a deficiência na base teórica do aluno ingressante no ensino superior tem se tornado um obstáculo para a condução do processo ensino-aprendizagem e, por consequência, da prática docente(1919 Rodrigues MTP, Mendes Sobrinho JAC. Obstáculos didáticos no cotidiano da prática pedagógica do enfermeiro professor. Rev Bras Enferm. 2008;61(4):440-35).

Segundo o Fórum Nacional de Educação de 2013, o Brasil ainda precisa encarar o desafio de universalizar o ensino médio obrigatório de qualidade. Esse desafio, certamente, implicará em melhorias na qualidade do ensino superior(2020 Fórum Nacional de Educação. Educação brasileira: indicadores e desafios: documentos de consulta [Internet]. Brasília: Ministério da Educação; 2013 [citado 2014 set. 26]. Disponível em: http://conae2014.mec.gov.br/images/pdf/educacao_brasileira_indicadores_e_desafios.pdf
http://conae2014.mec.gov.br/images/pdf/e...
).

Essa realidade não é exclusiva do Brasil. Nos Estados Unidos, o relatório do Centro Nacional de Políticas Públicas em Educação Superior, em parceria com o Centro Nacional de Sistema de Gestão em Educação Superior, identifica a necessidade de melhorar a qualidade da formação em ensino médio para garantir aos futuros graduandos melhores condições de acesso e permanência(2121 Brenneman MW, Callan PM, Ewell PT, Finney JE, Jones DP, Zis S. Good Policy, Good Practice II. Improving outcomes and productivity in higher education: a guide for policymakers: a Joint Report from The National Center for Public Policy and Higher Education and The National Center for Higher Education Management Systems [Internet]. Boulder, Colorado; 2010 [cited 2014 Jan 10]. Available from: http://www.highereducation.org/reports/Policy_Practice_2010/GPGPII.pdf
http://www.highereducation.org/reports/P...
).

Além das características já mencionadas, há ainda o grande número de alunos por turma, que, no contexto empresarial, por exemplo, é bastante variável, o que também pode dificultar o trabalho docente. É interessante observar que esse movimento reflete claramente a expansão de vagas no ensino superior, principalmente a partir da década de 1990.

A oferta de cursos de Enfermagem teve um crescimento de 340% no período de 1991 a 2004, crescimento ocorrido fortemente no setor privado, como é o caso de muitas das instituições do contexto empresarial(1818 Haddad AE, Pierantoni CR, Ristoff D, organizadores. A trajetória dos cursos de graduação na área da saúde: 1991 e 2004. Brasília: Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Estudos Anísio Teixeira; 2006. p. 142-68). O crescimento repercute diretamente na prática de ensino desenvolvida pelo docente: quanto maior o número de alunos, mais desafiador o trabalho pedagógico. Já no contexto misto, no qual o perfil dos estudantes é distinto, com uma seleção inicial mais rigorosa e a mensalidade de valor mais alto quando comparada à do contexto empresarial, há poucos estudantes por turma, com melhor inserção social e com menores dificuldades de aprendizado. No contexto acadêmico, os professores não mencionaram o perfil do estudante, pois o alunado passa por um exame de ingresso rigoroso, para se dedicar a um curso em período integral.

Tal distinção no perfil do aluno nos diferentes contextos evidencia que o acesso dos estudantes ao ensino superior também mudou após a LDB. A legislação dá liberdade às IES para formularem os exames de entrada, o que resulta em facilidade de ingresso de alunos com diferentes perfis(2222 Schwartzman J, Schwartzman S. O ensino superior privado como setor econômico [Internet]. Brasília; 2002 [citado 2012 maio 05]. Disponível em: http://biblioteca.planejamento.gov.br/biblioteca-tematica-1/textos/educacao-cultura/texto-98-2013-o-ensino-superior-privado-como-setor-economico.pdf
http://biblioteca.planejamento.gov.br/bi...
).

Outro aspecto presente nos contextos empresariais é a falta de preparação para a docência, onde se apresentam poucas possibilidades de participação em processos de profissionalização, mais evidenciados no contexto acadêmico.

Pesquisadoras brasileiras alertam para o fato de que a maior parte dos programas de formação docente em nível de pós-graduação stricto sensu não prepara os docentes para o exercício do ensino, salientando que a formação para a pesquisa não equivale à formação pedagógica(303 Pimenta SG, Anastasiou LGC. Docência no ensino superior. São Paulo: Cortez; 2010).

No âmbito internacional, desde 2004, o European Trade Union Committee for Education recomenda três grandes áreas de ação prioritária para formação de professores: melhoria na qualidade da formação inicial, recrutamento e retenção de professores qualificados e garantia de que o desenvolvimento profissional é um direito dos professores e faz parte de seu processo de trabalho(2323 European Trade Union Committee for Education; Committee Syndical European de L’Education. Teacher education in Europe: an ETUCE policy paper [Internet]. 2008 [cited 2014 Jan 10]. Available from: http://etuce.homestead.com/Publications2008/ETUCE_PolicyPaper_en_web.pdf
http://etuce.homestead.com/Publications2...
).

Da supervalorização à escassez da pesquisa: efeitos no trabalho docente e na qualidade do ensino de enfermagem

No contexto acadêmico, a atividade de pesquisa é considerada o foco do trabalho docente, na medida em que as avaliações docentes prezam mais a produção derivada da atividade de pesquisa que a dedicação ao ensino de graduação e extensão.

A avaliação institucional, por sua vez, segue parâmetros externos, como os da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior − CAPES, em que o trabalho docente é medido principalmente pelo tempo dedicado às atividades de pesquisa, expresso pelo número de artigos publicados em revistas indexadas com Qualis elevado, projetos de pesquisa financiados por agências de fomento e atividades no ensino de pós-graduação, como o número de orientações de mestrado e doutorado(2424 Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Critérios de Avaliação Trienal. Triênio avaliado: 2004-2007 [Internet]. Brasília: CAPES; 2008 [citado 2012 jun. 18]. Disponível em: http://www.capes.gov.br/images/stories/download/avaliacao/CA2007_CienciasSaude.pdf
http://www.capes.gov.br/images/stories/d...
).

O fenômeno é designado produtivismo acadêmico , que considera produtivo o professor que possui quantidade expressiva de produtos, como orientações, projetos, publicações, patentes, dentre outros. Tais aspectos levam ao aumento da competitividade entre os pares, ao isolamento profissional do professor em seu grupo de pesquisa e, muitas vezes, à alienação no trabalho(2525 Bosi MLM. Produtivismo e avaliação acadêmica na saúde coletiva brasileira: desafios para a pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. Cad Saúde Pública. 2012;28(12):2387-92-2626 Silva Junior JR, Ferreira LR, Kato FBG. Trabalho do professor pesquisador diante da expansão da pós-graduação no Brasil pós-LDB. Rev Bras Educ. 2013;18(53):435-56).

Essa preocupação também tem sido apontada no contexto mundial, conforme o relatório do Grupo de Estudos da União Europeia sobre Modernização do Ensino Superior de 2013 que recomenda que a preponderância da pesquisa em relação ao ensino na definição do mérito acadêmico precisa ser revista(2727 High Level Group on the Modernisation of Higher Education. Report to the European Commission on improving the quality of teaching and learning in Europe’s higher education institutions [Internet]. 2013 [cited 2014 Jan 10]. Available from: http://ec.europa.eu/education/higher-education/doc/modernisation_en.pdf
http://ec.europa.eu/education/higher-edu...
).

Por outro lado, há contextos institucionais nos quais o trabalho docente na atividade de pesquisa é escasso. Nos contextos misto e empresarial, a pesquisa é vista apenas como uma atividade obrigatória para a formação dos estudantes, circunscrita ao trabalho de conclusão de curso. Atividades de pesquisa não articuladas a esse trabalho são escassas. Ainda assim, os professores do contexto misto sentem que devem desenvolver pesquisas, muito embora sejam contratados em regime de trabalho parcial, com a carga horária direcionada fortemente ao ensino em sala de aula. Os professores do contexto empresarial, por sua vez, desenvolvem a atividade de pesquisa, voluntariamente, fora do horário de trabalho. Por vezes, a atividade de pesquisa na modalidade de trabalho de conclusão de curso é oferecida em uma disciplina e um professor é designado para essa atividade e remunerado pelo valor da hora/aula atribuída à disciplina.

Vê-se, portanto, no que diz respeito às atividades de pesquisa, que o trabalho docente fica condicionado às condições efetivas proporcionadas pelo formato institucional, como regime de trabalho, por exemplo, que direciona o trabalho para essa atividade. Neste estudo, a atividade de pesquisa no trabalho docente transitou da supervalorização no contexto acadêmico, passando pela tentativa institucional de desenvolvimento no contexto misto, até a escassez dessa atividade no contexto empresarial.

Na perspectiva dos docentes, a supervalorização da pesquisa é geradora de sobrecarga. A exigência institucional da pesquisa, mesmo que limitada ao ensino de graduação, se não aliada a um regime de trabalho condizente, também sobrecarrega e intensifica o trabalho docente. A falta de exigência institucional para o exercício dessa atividade, por sua vez, também tem consequências na profissionalização docente. De fato, ambas as formas de conceber a pesquisa exercem efeitos na qualidade do ensino prestado.

Ser um pesquisador reconhecido, como ocorre no contexto acadêmico, não garante necessariamente um desempenho pedagógico de excelência. É necessário colocar a pesquisa a serviço da própria prática docente, fazendo com que os professores possam ressignificar sua prática, revendo-a, contextualizando-a e confrontando-a com os aspectos condicionantes e determinantes de seu trabalho.

Articulação ensino-pesquisa-extensão: a necessidade de ressignificar as atividades de extensão em Enfermagem

Quanto à extensão, em todos os contextos analisados, tais atividades são pontuais, esporádicas, por vezes nem previstas como parte do processo de trabalho docente ou então desvalorizadas institucionalmente. Mesmo no contexto acadêmico, no qual ela é prevista como parte das atividades docentes, fica subsumida às atividades administrativas e de pesquisa.

No contexto empresarial, as atividades de extensão são pouco mencionadas pelos professores. Alguns chegam a dizer que elas não são desenvolvidas, enquanto outros mencionam seu caráter episódico. Como o regime de trabalho nesse contexto é por hora/aula, as atividades de extensão não são uma exigência institucional.

No contexto misto, a extensão é compreendida como atividades realizadas em ligas de trabalho ou então como um prolongamento das atividades acadêmicas, na forma de difusão dos trabalhos desenvolvidos pelos estudantes. Portanto, são atividades pontuais e realizadas por poucos docentes, o que equivale dizer que o processo de trabalho do conjunto de docentes não incorpora esse tipo de atividade.

Embora faça parte das funções da universidade, em conjunto com as atividades de ensino e pesquisa, as atividades de extensão não estão em posição de igualdade em termos de valorização institucional, o que coloca em desequilíbrio o pretendido tripé de funcionamento universitário.

Recentemente, um movimento de ressignificação do conceito de extensão universitária veio alargar seu sentido tradicional de difusão e disseminação de conhecimento para um processo educativo, cultural e científico que articula ensino e pesquisa com potencial transformador(2828 Brasil. Decreto n. 6.495, de 30 de junho de 2008. Institui o Programa de Extensão Universitária – PROEXT [Internet]. Brasília; 2008 [citado 2014 set. 26]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Decreto/D6495.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
).

Um dos exemplos de programas de estímulo à extensão é o Programa de Extensão Universitária (PROEXT), com a finalidade de apoiar IES públicas no desenvolvimento de atividades de extensão que promovam maior interação com a sociedade. Trata-se de um programa dedicado às IES públicas, pois nas IES privadas a extensão é de responsabilidade do contexto institucional e sua valorização depende da gestão administrativa(2828 Brasil. Decreto n. 6.495, de 30 de junho de 2008. Institui o Programa de Extensão Universitária – PROEXT [Internet]. Brasília; 2008 [citado 2014 set. 26]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Decreto/D6495.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
).

Algumas experiências mostram que, nas IES privadas, é possível desenvolver atividades de extensão com repercussão positiva na atenção à saúde da comunidade. Esses estudos compartilham a compreensão de que a atividade de extensão é vital para o fortalecimento do papel das IES na formação de profissionais comprometidos com a saúde das pessoas(2929 Hennington EA. Acolhimento como prática interdisciplinar num programa de extensão universitária. Cad Saúde Pública. 2005;21(1):256-65-3030 Ilha S, Zamberlan C, Gehlen MH, Dias MV, Nicola GDO, Backes DS. Qualidade de vida do familiar cuidador de idosos com Alzheimer: contribuição de um projeto de extensão. Cogitare Enferm. 2012;17(2):270-6). Uma visão que possibilita o desenvolvimento de processos de ensino e aprendizagem a partir das práticas cotidianas articuladas à pesquisa, propiciando o confronto entre teoria e mundo real. As dificuldades de operacionalização estão relacionadas à baixa valorização institucional, expressa nas formas de avaliação internas que priorizam a produção científica em detrimento de outras atividades e, consequentemente, ao baixo incremento financeiro para realizá-las.

Independentemente do formato institucional em que são realizadas, as atividades de extensão não podem ser consideradas um extra para a formação dos estudantes. Precisam ser consideradas como parte do processo de ensino e articuladas à pesquisa. Na Enfermagem, em especial, as atividades de extensão são imprescindíveis à formação e, portanto, à prática docente, já que, sem elas, a formação fica desconectada da realidade dos problemas e das necessidades de saúde da população.

Conclusão

Observou-se que o processo de trabalho docente nos três contextos assume formatos distintos no que se refere às práticas organizativas e didáticas. Entretanto, como características comuns, foram identificadas a intensificação e a precarização do trabalho. Frente aos resultados, constata-se que os desafios para o trabalho docente são muitos e desdobram-se em questionamentos, dentre os quais: como provocar ou iniciar processos de mudança no trabalho docente e, portanto, na sua prática, se o contexto institucional parece ser dado, imutável, não passível de interferência docente? Como enfrentar essa realidade sem a ação dos sujeitos nela envolvidos, em especial os docentes?

As respostas a esses desafios são complexas. A melhoria das condições estruturais advindas de um processo de reestruturação institucional orientado por políticas educacionais voltadas mais para a qualidade do ensino superior do que para a expansão quantitativa das vagas nessa área impactará positivamente o processo de trabalho docente de diferentes contextos institucionais e, portanto, a qualidade do ensino e da formação. Tal mudança parece distante na realidade atual, cada vez mais assentada em princípios mercadológicos, com pouca valorização do ensino, em especial do acesso universal ao ensino de qualidade.

Todavia, trata-se de uma realidade determinada social e historicamente que, em um processo dialético, também pode ser reconstruída. Para isso é necessário reconhecer que a determinação social do trabalho docente não pode impossibilitar a busca por estratégias de enfrentamento em prol de melhorias das condições de trabalho e práticas docentes. Pelo contrário, é fundamental que, por meio da análise desse processo, os docentes do ensino superior, em suas diferentes práticas organizativas e didáticas, possam identificar e conhecer os problemas e refletir sobre seu trabalho, ressignificando-o e procurando novas possibilidades de reconstrução de sua prática.

Esse processo pode ser garantido pela profissionalização docente, desde que esta não fique limitada ao desenvolvimento das capacidades específicas da profissão, mas inclua proposição de alternativas que possam promover melhores condições objetivas de trabalho. A profissionalização docente é um processo permanente de formação e de reflexão sobre a prática profissional. Leva em consideração o reconhecimento crítico e reflexivo sobre as práticas didáticas, as práticas organizativas e sua relação com o contexto estrutural do ensino superior.

Esse processo de mudança social é complexo e envolve ações de contestação à realidade de ensino, promovidas pela participação em entidades sindicais, científicas e estudantis, num movimento de resistência à proposta neoliberal, que resulta na precarização do trabalho docente.

Reconhecer a diversidade desses formatos no contexto do trabalho e da prática docente permite reconhecer os docentes do ensino superior como um grupo heterogêneo que, embora inserido numa mesma realidade estrutural, está submetido a diferentes condições de trabalho. A profissionalização docente, como um processo de mudança social, pode ser tomada como ponto de partida para a proposição de estratégias de enfrentamento condizentes com uma realidade tão distinta de trabalho e prática docentes.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2014
  • Aceito
    18 Set 2014
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