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Saberes profissionais na atenção primária à saúde da pessoa/família em sofrimento mental: perspectiva Le Boterf

Resumos

O objetivo deste trabalho foi identificar os saberes e fazeres constituídos na prática da Saúde da Família (SF), na visão dos enfermeiros, no que se refere ao atendimento à pessoa e família em sofrimento mental na perspectiva dos saberes profissionais de Le Boterf. Método: Foi feito uma pesquisa descritiva exploratória de abordagem qualitativa, delineada para apresentar e aprofundar a construção de competências dos profissionais enfermeiros, foi aplicada em 3 Unidades da SF. Resultados: fazendo uma análise temática, chegou-se às seguintes categorias: “Saber agir com pertinência”; “Saber mobilizar saberes e conhecimentos em um contexto profissional”; “Saber interagir saberes múltiplos”; “Saber transpor”; “Saber aprender e saber aprender a aprender”; “Saber envolver-se”. Considerações finais: verificou-se que entre os saberes a maior dificuldade é a de “saber transpor”, e que o cotidiano das equipes de SF exige muito desse saber. Foi verificado pouca transposição de saberes/fazeres em situações reais.

enfermagem; programa saúde da família; saúde mental; competência profissional


Aim of this study was to identify knowing-doing actions constituted the practice of Family Health (FH), in view of nurses in relation to the person and family care in mental distress in terms of professional knowledge of Le Boterf. Method: Descriptive exploratory qualitative study, to deepen contruction of nurse in FH. The survey was conducted in 3 Units FH. Result: Doing a thematic analysis, came to the following categories: “Knowing how to act and react with relevance”; “Knowing how to combine resources and mobilize them in a professional context”; “Knowing how to interact with multiple knowledges”; “Knowing how to transpose”; “Knowing how to learn and knowing how to learn to learn”; “Knowing how to engage”. Final considerations: the greatest difficulty was "be able to transpose," and that the daily demand of the FH teams requires a lot of this knowledge. Little transposition of knowing-doing in real situations has been verified.

nursing; Family Health; Mental health; Clinical Competence


El objetivo del estudio fue identificar los conocimientos y acciones en la práctica de la Salud de la Familia (SF), a la vista de las enfermeras en relación con la persona y la familia en el cuidado angustia mental en términos de conocimientos profesionales de Le Boterf. Método: Un estudio cualitativo exploratorio descriptivo, se indica para introducir y profundizar en el desarrollo de habilidades de las enfermeras, aplicado a 3 unidades SF. Resultados: hacer un análisis temático, llegó a las siguientes categorías: “Saber actuar correctamente”; “Conociendo a movilizar conocimientos y experiencia en el ámbito profesional”; “Sabiendo que interactúan múltiples saberes”; “Sabiendo transponer”; “El saber aprender y saber cómo aprender a aprender”; “Sabiendo participar”. Consideraciones finales: se encontró el conocimiento de la mayor dificultad es la de "ser capaz de incorporar", y que los equipos diarias SF requiere mucho este conocimiento. Poco transposición del saber/hacer en situaciones reales ha sido verificada.

enfermaria; Salud de la Familia; salud mental; Competencia Clínica


Introdução

A construção da integralidade da atenção à saúde desafia cotidianamente ao rompimento de paradigmas hegemônicos, sobretudo, quando se trata da atenção primária (AP). Nesse contexto, uma provocação é a atenção em saúde mental na Saúde da Família (SF), quando consideramos os princípios da Reforma Sanitária e da Reforma Psiquiátrica(11. Binotto AL, Santos LL dos, Lourosa QL, Sant’Anna SC, Zanetti ACG, Forster AC, Marques JM de A. Interface saúde da família & saúde mental: uma estratégia para o cuidado. Rev bras med fam comunidade. Florianópolis 2012, abr-jun.; 7(23):83-9.), dito de outra maneira, seria buscar a integralidade da atenção à saúde por meio do modo psicossocial de assistência.

Estes processos de reforma se articulam em vários sentidos, pois têm como pressupostos a concepção de saúde a partir das necessidades da pessoa e família, a lógica da territorialidade, autonomia dos sujeitos e participação popular(11. Binotto AL, Santos LL dos, Lourosa QL, Sant’Anna SC, Zanetti ACG, Forster AC, Marques JM de A. Interface saúde da família & saúde mental: uma estratégia para o cuidado. Rev bras med fam comunidade. Florianópolis 2012, abr-jun.; 7(23):83-9.,22. Souza J de, Almeida LY de, Veloso TMC, Barbosa SP, Vedana KGG. Estratégia de Saúde da Família: recursos comunitários na atenção à saúde mental. Acta Paul Enferm 2013; 26(6):594-600.). Entendemos que a atenção psicossocial pode nortear as práticas da AP, já que se convergem se potencializam.

Para que a atenção em saúde mental seja baseada nesses pressupostos são fundamentais e desejáveis mudanças no campo das políticas, gestão, práticas em saúde, sociedade e do processo de formação dos profissionais de saúde na academia e no serviço. Esse último requer a constituição de novos saberes/fazeres de cuidado em saúde, sintonizados com os referidos pressupostos, para AP e atenção psicossocial, visto que nos remete a práticas de reinserção e permanência do sujeito em sofrimento mental no seu convívio social.

Vale ressaltar que a articulação entre a porta de entrada da AP/SF e comunidade também é fundamento das propostas dos serviços substitutivos à hospitalização psiquiátrica(33. Wetzel C, Pinho LB de, Olschowsky A, Guedes A da C, Camatta MW, Schneider JF. A rede de atenção à saúde mental a partir da Estratégia Saúde da Família. Rev Gaúcha Enferm 2014 jun;35(2):27-32.). No entanto, o que mais sabota a efetivação da SF como estratégia de reorientação do modelo assistencial na qualidade de produtor de cuidados é a persistente influencia do modelo tradicional biomédico nas práticas de saúde realizadas neste espaço. Esse processo minimiza as forças da SF e enfraquece o processo de constituição de novas práticas sanitárias, perdurando a concepção de saúde na ausência de doença, dor e morte(44. Costa GD, Cotta RMM, Ferreira MLSM, Reis JR, Franceschini SCC. Saúde da família: desafios no processo de reorientação do modelo assistencial. Rev Bras Enferm, Brasília 2009; 62(1):113-8).

Além do mais, esta realidade também se reapresenta quando buscamos a compreensão dos limites e possibilidades da atenção psicossocial. O paradigma psiquiátrico historicamente conduziu as práticas de saúde mental pelo nexo da exclusão social e medicalização praticada nos hospitais psiquiátricos. Sendo comum encontrarmos profissionais de saúde na AP que até se sensibilizam com a pessoa que sofre mentalmente, porém não estão preparados para manejar esta situação(55. Jucá VJS, Nunes MO, Barreto SG. Programa de saúde da família e saúde mental: impasses e desafios na construção da rede. Ciência & Saúde Coletiva 2009, 14(1):173-82.,66. Lucchese R, Oliveira AGB, Conciani ME, Marcon SR. Saúde mental no Programa Saúde da Família: caminhos e impasses de uma trajetória necessária. Cad. Saúde Pública 2009; 25(9):2033-42.), que é complexa por exigir mobilização de habilidades e conhecimentos para além da lógica centrada na doença.

Para atuar numa situação-complexa o profissional requer competência, isto é, a capacidade de articular recursos como o conhecimento, habilidades, valores e normas de situação real, momento em que é feito ‘o que deve ser feito’. Nestes recursos, encontramos o savoir-faire (saber/fazer) e esquemas de percepção, pensamento, julgamento e avaliação(77. Perrenoud P. Construindo as competências desde a escola. Trad. de Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artmed; 1999.). Os referenciais são de Le Boterf, que para ser competente é necessário realizar o que está prescrito e ir além, agindo diante do imprevisto e das contingências. O profissional competente toma decisões, iniciativa, negocia, escolhe, provê recursos, assume riscos e antevê incidentes(88. Le Boterf G. Desenvolvendo a competência dos profissionais. Porto Alegre: Artmed; 2003.).

Para a mobilização e combinação de recursos na administração de uma situação complexa, é preciso instrumentação de saber/fazer do profissional, como o saber agir e reagir com pertinência, saber combinar recursos e mobilizá-los num contexto, saber transpor, saber aprender a aprender a aprender e o saber envolver-se(88. Le Boterf G. Desenvolvendo a competência dos profissionais. Porto Alegre: Artmed; 2003.).

O atendimento a pessoa em sofrimento mental e sua família na SF é uma situação complexa, pois exige da equipe tomada de decisões, requerendo conhecimento e habilidades no âmbito da atenção psicossocial, como o acolhimento da família. Por essa razão, o objeto de estudo na investigação foi saber/fazer para a atenção em saúde mental na SF, considerando o enfermeiro como articulador destes saberes, pela sua posição estratégica como gerente da equipe de SF. A partir dessas considerações, nos interessou o repertório de recursos que o enfermeiro na SF conta para atender a pessoa em sofrimento psíquico, quais saberes/fazeres são constituídos por estes na sua formação e/ou vida profissional.

Assim, o presente estudo objetivou identificar saberes/fazeres constituídos na prática da SF, na visão dos enfermeiros, para atender à pessoa e família em sofrimento mental na perspectiva dos saberes profissionais de Le Boterf. Como sofrimento mental esta pesquisa considerou as pessoas com transtorno mental e seus diversos níveis (graves/persistentes/moderados/leves), diagnosticados ou auto referido, que convivem no território da SF.

Método

Pesquisa descritiva exploratória de abordagem qualitativa, que apresenta e aprofunda a construção de competências dos enfermeiros na atenção à saúde mental na SF. Foi realizada em um município do interior de Mato Grosso (MT) com aproximadamente 85.857 habitantes, que atende a gestão semiplena da atenção à saúde, representada na AP por nove Unidades de Saúde da Família (USF) (sete municipais e duas rurais), seis Unidades Básicas de Saúde rurais e um serviço 24h de pronto atendimento, um Centro de Atenção Psicossocial I (CAPS).

A pesquisa foi realizada em três USF, entre março e abril de 2008, sendo os sujeitos envolvidos três enfermeiros pertencentes e os demais membros da equipe, totalizando 33 participantes do estudo, pois a realidade de atendimento foi observada pelo pesquisador, toda a equipe foi orientada quanto ao estudo e consentiu a observação. Para seleção do local e sujeitos os critérios de inclusão foram ser USF utilizada como campo de prática do Curso de Graduação em Enfermagem, com um enfermeiro atuante no local há mais de 2 anos.

O fato de ser USF campo para aulas e estágio de graduação em enfermagem foi determinado pela importância destes espaços no processo de formação de novos profissionais. Pois se espera que neste contexto de aprendizagem haja uma sensibilidade em relação à atenção em saúde mental na AP.

Na coleta dos dados os pesquisadores permaneceram uma semana em cada USF, utilizando de roteiro (diário de campo) de observação da rotina do serviço e entrevista semiestruturada com os enfermeiros. As questões estimularam um diálogo sobre a prática em relação à saúde mental no cotidiano do serviço. Para o início da coleta de dados, enfermeiros e demais membros das equipes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

As entrevistas foram gravadas e transcritas na integra que, juntamente com o conteúdo do diário de campo passaram por um método de análise de conteúdo, modalidade temática(99. Bardin L. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2009.). As unidades de registro foram codificadas em E(1), E(2) e E(3) para enfermeiros, e O(1), O(2) e O(3) para os trechos de observação.

O processo de análise foi relacionado aos saberes constituídos e que se fizeram constituir diante da situação-complexa de atenção em saúde mental na SF, que por fim compuseram categorias pré-definidas, seguindo a teoria de Le Boterf. Esse referencial tem como base a pedagogia das competências, que compreende competência como capacidade de evocar saberes em ato para administrar uma situação-complexa(88. Le Boterf G. Desenvolvendo a competência dos profissionais. Porto Alegre: Artmed; 2003.,1010. Perrenoud P. Dez novas competências para ensinar: convite à viagem. Tradução Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Artmed; 2000.).

As categorias pré-definidas foram “Saber agir com pertinência”; “Saber mobilizar saberes e conhecimentos num contexto profissional”; “Saber interagir saberes múltiplos”; “Saber transpor”; “Saber aprender e saber aprender a aprender”; “Saber envolver-se”. Em orientação à Resolução 196/96, (vigente na época) o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Júlio Muller - parecer 451/CEPHUJM/07.

Resultados e Discussão

Os três enfermeiros sujeitos desta pesquisa concluíram a graduação em enfermagem entre os anos de 2004-2005 e possuíam Pós-Graduação em Saúde Pública. Todos estudaram no mesmo estado de realização da pesquisa.

Os dados foram sintetizados em um quadro, que ilustra as categorias pré-definidas e indicam saberes constituintes das competências estudadas. Para saberes que ainda não foram incorporados na ação dos profissionais estudados, há exemplos extraídos das falas dos sujeitos ou das observações, seguidos pelos indicadores que são pertinentes a cada saber específico.

Quadro 1
Categorias e suas dimensões acompanhadas dos fragmentos de falas (unidades de registro) que se aproximam e não se aproximações da constituição de saberes e fazeres em saúde mental na SF. MT, 2009.

Entre os saberes construídos e os a serem construídos referentes ao modelo psicossocial, há o interjogo entre o que é proposto e o que é feito. Pois estamos abordando a SF que tem propósitos inovadores como serviço de saúde capaz de romper com o modelo assistencial medicocêntrico, ao se estruturarem no território/domicílio das pessoas, evocando dos profissionais um olhar que possibilite cuidar da totalidade, a integralidade destes sujeitos(1111. Souza LGS, Menandro MCS, Couto LLM, Schimith PB, Lima RP. Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família: revisão da literatura brasileira. Saúde Soc. São Paulo 2012; 21(4):1022-34.). Sendo esta característica de postar-se no domicílio das pessoas uma via em direções opostas, que poderá tanto promover a autonomia dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) ou reafirmar/reforçar as práticas em saúde centradas nas medicações/patologia(66. Lucchese R, Oliveira AGB, Conciani ME, Marcon SR. Saúde mental no Programa Saúde da Família: caminhos e impasses de uma trajetória necessária. Cad. Saúde Pública 2009; 25(9):2033-42.,1212. Lancet A, Amarante P. Saúde mental e saúde coletiva. In: Campos WSC, Minayo MCS, Akerman M, Drumand Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo(SP): Hucitec; Rio de Janeiro(RJ): Fiocruz; 2009, p. 615-34.).

Neste espaço contraditório buscamos a constituição de saberes. A primeira categoria ‘O saber agir com pertinência’, operar além daquilo que está posto, não somente executar o prescrito, mas superá-lo(88. Le Boterf G. Desenvolvendo a competência dos profissionais. Porto Alegre: Artmed; 2003.). Quanto ao conceito ‘saber o que fazer’ está constituído nas relações em que os sujeitos entrevistados se colocaram responsáveis pelas pessoas que assistiram e, ouviram os sofrimentos em suas várias dimensões e contextos; agiram direcionados às suas reais necessidades de saúde, certamente valorizaram as relações interpessoais e avançaram na atenção integral. Sendo assim, esclarecem o espaço das relações interpessoais como possibilitador do saber/fazer além do prescritivo.

Este campo relacional se colocado a serviço de objetivos terapêuticos, justificando a participação de apoio matricial (AM) dos profissionais da saúde mental, que aqui deveriam ser representados/desempenhados pelos CAPS(1212. Lancet A, Amarante P. Saúde mental e saúde coletiva. In: Campos WSC, Minayo MCS, Akerman M, Drumand Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo(SP): Hucitec; Rio de Janeiro(RJ): Fiocruz; 2009, p. 615-34.).

Entretanto, quanto aos demais conceitos desta categoria emergiram uma fragilidade de dispositivos que amparem a atenção psicossocial, no sentido de formatação de uma rede de atenção à saúde mental, diante da indefinição programas de saúde mental na AP, principalmente na equipe AM. Relembrando, cabe ao CAPS a organização da rede de atenção em saúde mental e AM, com inclusão desta no sistema de informações da Atenção Básica. O AM é uma estratégia de interação entre as equipes num dado território, com planejamento e implementação de ações conjugadas na atenção às questões de saúde mental(1313. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estra¬tégicas. Saúde Mental no SUS: acesso ao tratamento e mudança do modelo de atenção. Relatório de Gestão 2003-2006. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2007.).

O desejável dentro do paradigma psicossocial, é que as ações das equipes de saúde mental estejam voltadas ao sofrimento do sujeito e seu corpo social(1414. Camatta MW, Schneider JF. A visão da família sobre o trabalho de profissionais de saúde mental de um centro de atenção psicossocial. Esc Anna Nery Rev Enferm 2009 jul-set; 13(3):477-84), e entendemos que este espaço só é possível no contexto de atuação da SF.

Uma experiência de atuação conjunta entre SF e CAPS apontou ganhos significantes, iniciados pela efetivação do trabalho em e Inter equipes, que tanto funcionam como assistência aos usuários do serviço como capacitação profissional. Os rendimentos foram percebidos desde a ressignificação de concepções a cerca da pessoa que sofre mentalmente, até ampliação da capacidade de intervenção em saúde mental, havendo melhor manejo de grupos, consumo coerente de medicamentos, redução de encaminhamentos aos serviços especializados(1515. Rabelo IVM, Tavares RC. Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família. Saúde em Debate 2008; 32(78/79/80):133-42.).

Nesta pesquisa, observamos uma realidade deficiente de AM, podendo ser um dos fatores facilitadores de ações de saúde orientadas pelo modelo médico-psiquiátrico, pois nos casos de urgência o doente mental ainda é assistido com auxílio da polícia e encaminhado ao hospício. Movimentos contrários ao agir pertinente à atenção psicossocial. Este não é um fato isolado, uma vez que a dificuldade de atenção à saúde mental por parte da SF já fora constatada por pesquisa realizada no âmbito nacional(1111. Souza LGS, Menandro MCS, Couto LLM, Schimith PB, Lima RP. Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família: revisão da literatura brasileira. Saúde Soc. São Paulo 2012; 21(4):1022-34.).

Logo, lutar pela construção de saberes pertinentes à atenção psicossocial e o estabelecimento de sua rede é otimizar e nortear integralidade da atenção à saúde na SF. Destarte, na SF o território alcançado vai muito além do geográfico, possibilitando aos profissionais lidarem com o sofrimento humano, em que os sujeitos experimentam o relacionamento sujeito/família com a equipe de SF(1212. Lancet A, Amarante P. Saúde mental e saúde coletiva. In: Campos WSC, Minayo MCS, Akerman M, Drumand Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo(SP): Hucitec; Rio de Janeiro(RJ): Fiocruz; 2009, p. 615-34.).

A possibilidade deste saber/fazer diferenciado também se desenvolve por meio da ferramenta do acolhimento, que revela evidências para o autocuidado, corresponsabilidade no processo terapêutico, na motivação do trabalho em equipe multidisciplinar, além de qualificar as práticas da atenção às necessidades de saúde dos cidadãos(1616. Garuzi M, Achitti MCO, Sato CA, Rocha SA, Spagnuolo RS. Acolhimento na Estratégia Saúde da Família: revisão integrativa. Rev Panam Salud Pública 2014;35(2):144–9.), sendo que os saberes nas dimensões citadas são consonantes com a área de saúde mental e, aborda a compreensão da pessoa, somando para a atenção integral à saúde. Assim, contar com a saúde mental nas ações em SF oportuniza consolidar um trabalho focado na integralidade dos indivíduos/família(1717. Nunes M, Jucá VJ, Valentim CPB. Ações de saúde mental no Programa Saúde da Família: confluências e dissonâncias das práticas com os princípios das reformas psiquiátrica e sanitária. Cad. Saúde Pública 2007; 23(10):2375-84.,1212. Lancet A, Amarante P. Saúde mental e saúde coletiva. In: Campos WSC, Minayo MCS, Akerman M, Drumand Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo(SP): Hucitec; Rio de Janeiro(RJ): Fiocruz; 2009, p. 615-34.).

Também observamos a facilidade que as equipes de SF têm em atuarem orientados por programas pré-formatados pelo Ministério da Saúde (MS), subsidiando ações em saúde. Parece-nos que ao mesmo tempo essa organização fomenta ações, no sentido burocrático em atendê-lo, limita a criatividade em superar e inovar as práticas em saúde, especialmente nas questões de saúde mental, que está excluída nestes programas.

Este é o saber prescritivo que referencia a ocupação profissional, como as regras de segurança, respeito às exigências profissionais e instrumentais. Pertinentes a uma competência burocrática em estabelecer e conviver com funções, rotinas, normas dos serviços, característico ao modelo herdado do Taylorismo e Fordismo, no qual o sujeito é um operador com habilidade limitada a saber executar operações prescritas(88. Le Boterf G. Desenvolvendo a competência dos profissionais. Porto Alegre: Artmed; 2003.).

Na presente pesquisa, o prescritivo surgiu como uma ‘receita de bolo’, um protocolo a ser seguido, que não viabilizou aspectos interpessoais.

O saber prescritivo é reforçado na SF quando trabalha orientada por programas, ou seja, os profissionais respondem aos processos instituídos pela gestão, como cobertura vacinal, vigilância e controle das doenças crônicas e infecto-contagiosas, pré-natal, hiperdia, entre outras. Estes cuidados à saúde são mensurados sob a forma de relatórios, seu cuidar é orientado por manuais.

Nesta direção, uma pesquisa que analisou a bibliografia nacional quanto à assistência à saúde mental na atenção básica, verificou contradições na prática da integralidade da atenção às pessoas em sofrimento mental e família, com ações restritas ao tratamento medicamentoso, remissão de sintomas e desarticulação com o familiar(1111. Souza LGS, Menandro MCS, Couto LLM, Schimith PB, Lima RP. Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família: revisão da literatura brasileira. Saúde Soc. São Paulo 2012; 21(4):1022-34.).

Esta disposição de ações reforça o saber burocrático e biomédico na atenção à saúde, impossibilitando a democratização dos valores atribuídos ao saber multidisciplinar, na versão transdisciplinar da construção da integralidade. O caráter prescritivo ficou claro em todas as três equipes de SF pesquisadas, com impregnação de práticas instituídas do fazer em saúde, como se as ações estivessem engessadas pela gestão do sistema. A pré-formatação de ações é tão presente no cotidiano da SF, que uma solução verbalizada foi justamente criar ‘protocolo’ para a atenção integral à saúde.

Os registros em diário de campo corroboraram ao desvelarem na conduta das equipes esse olhar recortado, focado em atender uma organização do serviço de saúde centrado no biológico. A atenção às pessoas que buscaram a SF foi pontual e fragmentada, direcionada às solicitações que estão na superfície, sem grandes investigações ou aprofundamento.

Entendemos essas situações como complexas, pois envolve um (des)valor da subjetividade dos sujeitos, num contexto que deveria estimar esta dimensão do cuidado, como o inter-relacionamento e protagonismo dos atores. Assim, o profissional deve administrar uma situação num contexto diferenciado, ou seja, o saber agir é saber interpretar(88. Le Boterf G. Desenvolvendo a competência dos profissionais. Porto Alegre: Artmed; 2003.).

Quanto a segunda categoria ‘Saber combinar recursos e mobilizá-los em um contexto profissional’ revelou o saber mobilizado em situações reais(88. Le Boterf G. Desenvolvendo a competência dos profissionais. Porto Alegre: Artmed; 2003.) no âmbito da SF. Igualmente, podemos evidenciar as competências, pois ao se manifestarem em determinada ação, mobilizam, integram e utilizam conhecimentos e habilidades em ato. Estes saberes distinguem-se em declarativos (leis, fatos), procedimentais (metodológicos) e os condicionais que determinam a legitimidade em que os procedimentais foram aplicados(77. Perrenoud P. Construindo as competências desde a escola. Trad. de Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artmed; 1999.). Contudo, agregam recursos incorporados (saberes/habilidades) e objetivados (máquinas, banco de dados, documentos) e transpõe estes na ação.

Desta forma, um enfermeiro competente, seria aquele que mobiliza saberes/habilidades e demais recursos adquiridos, e aplica-os usando de outros componentes que o ambiente dispõe. Nesta pesquisa as relações do enfermeiro com os sujeitos/família na SF possibilitou/possibilita esse ‘mobilizar recursos’ que ultrapassam o saber/fazer prescritivo. Ouvir a comunidade e dar-lhe espaço para expor suas necessidades foi um caminho para a construção de autonomia, co-responsabilidade, bem como, olhar o sujeito e atentar para as diferenças, destituindo o preconceito e revelando necessidades reais (família/comunidade). Postura compreendida como saber tirar partido de recursos incorporados associados aos recursos de seu meio.

Na SF os profissionais veem as pessoas na rede onde organizam suas vidas, portanto, deveriam deixar de serem números e respostas a questionários de programas instituídos(1212. Lancet A, Amarante P. Saúde mental e saúde coletiva. In: Campos WSC, Minayo MCS, Akerman M, Drumand Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo(SP): Hucitec; Rio de Janeiro(RJ): Fiocruz; 2009, p. 615-34.). Entretanto, esta estratégia requer muito trabalho, pois desafia a co-participação de serviços de saúde e comunidades na construção de práticas efetivas e resolutivas na atenção ao vínculo, acolhimento e cuidado humanizado/humanístico(44. Costa GD, Cotta RMM, Ferreira MLSM, Reis JR, Franceschini SCC. Saúde da família: desafios no processo de reorientação do modelo assistencial. Rev Bras Enferm, Brasília 2009; 62(1):113-8).

Outro recurso do ambiente de trabalho da SF mobilizado e considerado essencial na construção da atenção a pessoa em sofrimento mental, foi a inserção do Agente Comunitário de Saúde (ACS) na lógica da territorialidade. Certamente ambos retroalimentam-se, quanto a territorialidade discutida por meio de vários estudos(66. Lucchese R, Oliveira AGB, Conciani ME, Marcon SR. Saúde mental no Programa Saúde da Família: caminhos e impasses de uma trajetória necessária. Cad. Saúde Pública 2009; 25(9):2033-42.,1111. Souza LGS, Menandro MCS, Couto LLM, Schimith PB, Lima RP. Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família: revisão da literatura brasileira. Saúde Soc. São Paulo 2012; 21(4):1022-34.,1515. Rabelo IVM, Tavares RC. Homens-carrapatos e suas mulheres: relato de experiência em Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família. Saúde em Debate 2008; 32(78/79/80):133-42.), ela fundamenta a existência e a prática da ACS na SF. O ACS está inserido na comunidade onde atua, transita entre ela e o serviço de saúde, com atividade mediadora e facilitadora do trabalho na atenção básica(1818. Bornstein VJ, Stotz EM. O trabalho dos agentes comunitários de saúde: entre a mediação convencedora e a transformadora. Trab. Educ. Saúde 2009; 6(3):457-80.).

Talvez, este seja um dos fatores que amplia a capacidade deste trabalhador da SF em superar a prática medicalizante na atenção a pessoa em sofrimento mental, aproximando o olhar singular para o processo saúde-doença, da disponibilidade de ajudar. Atitudes que constroem confiança na relação com o sujeito e família, promovem vínculo entre família e equipe SF(66. Lucchese R, Oliveira AGB, Conciani ME, Marcon SR. Saúde mental no Programa Saúde da Família: caminhos e impasses de uma trajetória necessária. Cad. Saúde Pública 2009; 25(9):2033-42.).

A atividade do ACS é relevante na mudança do modelo de atenção à saúde, porém é questionável se a SF corrobora com este potencial, haja vista as condições precárias de trabalho e formação desses servidores(1818. Bornstein VJ, Stotz EM. O trabalho dos agentes comunitários de saúde: entre a mediação convencedora e a transformadora. Trab. Educ. Saúde 2009; 6(3):457-80.).

Quando os enfermeiros foram questionados sobre como atendiam o sofrimento mental na USF, ficou claro que todos buscaram recursos dentro do contexto de trabalho, e por vezes há um completo ‘não sei o que fazer’, principiando uma busca pelo serviço especializado. Em situações que os profissionais encontram-se ‘desinstrumentalizados’ diante do sofrimento mental, a alternativa encontrada é o encaminhamento da pessoa e família para o serviço especializado. Fato que pode colocar em risco a capacidade resolutiva da SF(66. Lucchese R, Oliveira AGB, Conciani ME, Marcon SR. Saúde mental no Programa Saúde da Família: caminhos e impasses de uma trajetória necessária. Cad. Saúde Pública 2009; 25(9):2033-42.), pois o uso excessivo e indiscriminado desta prática compromete sua capacidade resolutiva e de limitar triagem do problema e encaminhamentos para serviço especializado(33. Wetzel C, Pinho LB de, Olschowsky A, Guedes A da C, Camatta MW, Schneider JF. A rede de atenção à saúde mental a partir da Estratégia Saúde da Família. Rev Gaúcha Enferm 2014 jun;35(2):27-32.).

Mediante estes achados entendemos que estes são os saberes que necessitam ser constituídos, devido ausência de instrumentos, como uma rede de atenção à saúde mental eficaz. O ‘saber constituir competências a partir de recursos’ ficou limitado a busca do serviço especializado como resposta às necessidades daquele que sofre mentalmente. No entanto, uma procura solitária, gerando sofrimento da equipe da SF diante da certeza de que necessita de parceiros para efetivarem a atenção à saúde mental na SF.

A terceira categoria exposta no quadro 1 ‘Saber transpor/Saber integrar saberes múltiplos’ estabeleceu o que o profissional reconheceu em seu repertório recursos que agregaram, organizaram e empregaram ou não em determinada atividade profissional(88. Le Boterf G. Desenvolvendo a competência dos profissionais. Porto Alegre: Artmed; 2003.).

Devemos pensar estes saberes como todos os conhecimentos/habilidades/recursos que o profissional e a rede de saúde dispõem. Nesse sentido, as limitações da rede também reduzem a capacidade de resposta da SF. Diante de situação de sofrimento mental, os sujeitos mobilizaram ações em busca de ajuda, todavia os dispositivos que poderiam colaborar não responderam à demanda apresentada.

Este contexto configura uma situação-complexa gerando a necessidade de respostas do enfermeiro da SF, este foi acionando esquemas na medida em que o problema foi se mantendo. Entretanto, notamos a constituição do ‘saber determinar e interpretar indicadores de contexto’. Embora a ação mais freqüente diante do sofrimento mental tenha sido a de encaminhar para o serviço de especialidade e de atuar orientado pelo saber biomédico, houve o registro do que podemos chamar de uma concepção de saúde ampliada, num movimento de agregar ao saber patológico outros saberes. Aqui encontramos uma sensibilização para os saberes sociais, econômicos, relacionais, dos processos dinâmico-familiar e pedagógicos, juntamente com a necessidade de contextualização das situações em saúde.

Contudo, esta pesquisa revelou que os demais saberes que constituem o ‘saber transpor’ requerem investimentos, como ‘Saber memorizar múltiplas situações e soluções-tipo’; ‘Saber distanciar-se, funcionar em dupla direção’; ‘Saber mobilizar/utilizar seus metaconhecimentos para modelizar’; ‘Saber criar as condições de transponibilidade com o auxílio de esquemas transferíveis’. A fragilidade destes saberes compromete a transposição de saberes constituídos pelos profissional ou pelo meio em ações na saúde. O profissional competente, é aquele que ao transpor suas ações, não se limita a repetir uma atividade já desenvolvida, ele tem capacidade de inovar, adaptar(88. Le Boterf G. Desenvolvendo a competência dos profissionais. Porto Alegre: Artmed; 2003.).

Mas, é eminente a precisão da criatividade e de inovação no âmbito da SF, vista a perspectiva da desconstrução e reconstrução de novos saberes e práticas que viabilizem a saúde mental na AP(11. Binotto AL, Santos LL dos, Lourosa QL, Sant’Anna SC, Zanetti ACG, Forster AC, Marques JM de A. Interface saúde da família & saúde mental: uma estratégia para o cuidado. Rev bras med fam comunidade. Florianópolis 2012, abr-jun.; 7(23):83-9.,1313. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estra¬tégicas. Saúde Mental no SUS: acesso ao tratamento e mudança do modelo de atenção. Relatório de Gestão 2003-2006. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2007.). E foi na conjunção da prática, no contato comunitário, no cotidiano da SF que os sujeitos da pesquisa revelaram a demanda de transposição de saberes. A prática é o cenário da situação-complexa, nela dinamicamente se dão as relações.

E foi o confronto com este campo fértil de transposições de saberes e na busca de uma assistência à saúde integral, que mobilizou o profissional a questionar o valor dos estudos teóricos durante o processo de formação, quanto é distante a teoria da prática. Essa problemática foi ‘aprender algo que não se conseguiu transpor em situação real’, a formação profissional não desenvolveu a capacidade de orquestrar saberes em ato, talvez pela fragmentação do planejamento e implementação da educação, nas instituições de ensino ou capacitação.

Além da fragilidade dos aspectos da formação a rede social e de serviços de saúde também são insuficientes para restabelecer a pessoa que sofre mentalmente e família. Um desafio seria constituir uma rede fortalecida e intersetorial, que contasse com recursos socioculturais e políticos-econômicos juntamente com a formação profissional qualificada(33. Wetzel C, Pinho LB de, Olschowsky A, Guedes A da C, Camatta MW, Schneider JF. A rede de atenção à saúde mental a partir da Estratégia Saúde da Família. Rev Gaúcha Enferm 2014 jun;35(2):27-32.).

No entanto, no espaço de trabalho da SF, em que os profissionais conhecem os usuários e agregam relações interpessoais e papel terapêutico(1212. Lancet A, Amarante P. Saúde mental e saúde coletiva. In: Campos WSC, Minayo MCS, Akerman M, Drumand Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. São Paulo(SP): Hucitec; Rio de Janeiro(RJ): Fiocruz; 2009, p. 615-34.), os profissionais buscam outras estratégias, oriundas do universo informal de aprendizagem, uma vez que não perceberam utilidade no que lhes foi ofertado na formação ou, não encontraram suporte na rede de atenção à saúde. Igualmente, agem conforme perceberam a diversidade e singularidade dos sujeitos, se responsabilizando na medida em que desvendam a necessidade da gerencia, da tomada de decisão e expectativa de ações diante dos problemas vivenciados.

Quanto a qualificação do profissional de saúde para atender as demandas da saúde mental na SF, a formação profissional agrega mais valia ao modelo biomédico e psiquiátrico. Portanto, não subsidiando uma prática de superação, baseada nas relações humanas, no estabelecimento de vínculo e acolhimento, desenvolvendo autonomia das pessoas envolvidas no processo(1111. Souza LGS, Menandro MCS, Couto LLM, Schimith PB, Lima RP. Saúde Mental na Estratégia Saúde da Família: revisão da literatura brasileira. Saúde Soc. São Paulo 2012; 21(4):1022-34.).

A categoria ‘Saber aprender e saber aprender a aprende’, foi organizada conforme sua aproximação com a capacidade em transformar sua ação em experiência, fazer da prática profissional uma ocasião de criação de saber.

A criação do saber ocorre quando aprendemos, mas não mudamos nossas teorias (circuito simples), ou quando modificamos nossa ação e nossas teorias (circuito duplo)(88. Le Boterf G. Desenvolvendo a competência dos profissionais. Porto Alegre: Artmed; 2003.). Nesta pesquisa identificamos a ocorrência do circuito simples de aprendizagem, como tirar lições da experiência, transformar suas ações em experiência ou descrever como se aprende, porém não houve a superação do saber médico-psiquiátrico.

No material analisado, percebemos que o saber aprender a aprender do enfermeiro acontecendo na prática atual, exemplificando o que seria uma experiência passada, porém, advinda da reflexão sobre a ação(88. Le Boterf G. Desenvolvendo a competência dos profissionais. Porto Alegre: Artmed; 2003.). Assim, esse saber veio se construindo à medida que vai sendo consumido, e sua legitimidade nas ações (competência) reforça-se por experiências já vividas, pregressas ou não.

Percebemos que a formação e os serviços de saúde não relacionaram saúde mental na SF. Afirmamos isso a partir de dois pressupostos, o primeiro de que a formação formal de enfermeiros ainda não desenvolve recursos como: comunicação, relacionamento intra/interpessoal e a integralidade na mesma proporção que o saber biomédico. O segundo é que a SF se mantém a lógica prescritiva, atendendo a programas e protocolos burocráticos.

Desta forma o saber aprender a aprender num contexto de práticas de saúde mental na SF ficou prejudicado, pois a base de teorias desse profissional é da relação profissional-doença, com reprodução de um trabalho burocrático e fragmentado(33. Wetzel C, Pinho LB de, Olschowsky A, Guedes A da C, Camatta MW, Schneider JF. A rede de atenção à saúde mental a partir da Estratégia Saúde da Família. Rev Gaúcha Enferm 2014 jun;35(2):27-32.). Somando a isto, as unidades de SF ainda funcionam numa lógica verticalizada, pois atendem a demandas preestabelecidas, mensuradas por meio de relatórios de produção e, a saúde mental na AP/SF não aparece nestes instrumentos burocráticos.

Sendo assim, ficou para da quinta categoria apontar as oportunidades em constituir saberes/fazeres inovadores na atenção da saúde mental na SF, ‘Saber envolver-se’. A partir deste verificamos o como o enfermeiro da SF se coloca sujeito de ação, capaz de realizar mudanças. Este é um somatório dos demais saberes, em que o profissional consegue envolver-se com iniciativas e propostas que ultrapassem instruções e procedimentos(88. Le Boterf G. Desenvolvendo a competência dos profissionais. Porto Alegre: Artmed; 2003.).

Como dito, a SF possibilita atividades em defesa da vida e de promoção da saúde, com práticas de saúde junto a comunidade, potencializando os espaços sociais/públicos, com interação entre as pessoas da sociedade, valorizando as atividades grupais(1,3). Contanto com a participação popular, com diálogo entre os diversos saberes e sujeitos, cada qual com a sua contribuição a cerda de determinada situação(44. Costa GD, Cotta RMM, Ferreira MLSM, Reis JR, Franceschini SCC. Saúde da família: desafios no processo de reorientação do modelo assistencial. Rev Bras Enferm, Brasília 2009; 62(1):113-8).

O ‘envolver-se’ e estar atento à equidade, acessibilidade e resolutividade da SF; sensível o suficiente para perceber as alterações dos sujeitos atendidos, incluindo a subjetividade, levando o enfermeiro pesquisado a assumir alguns riscos. Entretanto, tais saberes corroboram com a possibilidade de inclusão dos sujeitos que sofrem mentalmente como objeto de cuidado das equipes da SF, com capacidade de identificar as manifestações emocionais e psíquicas das pessoas em contexto(22. Souza J de, Almeida LY de, Veloso TMC, Barbosa SP, Vedana KGG. Estratégia de Saúde da Família: recursos comunitários na atenção à saúde mental. Acta Paul Enferm 2013; 26(6):594-600.,1616. Garuzi M, Achitti MCO, Sato CA, Rocha SA, Spagnuolo RS. Acolhimento na Estratégia Saúde da Família: revisão integrativa. Rev Panam Salud Pública 2014;35(2):144–9.). Os enfermeiros entrevistados, também reconhecem a SF como um campo que disponibiliza essas práticas.

E, é neste espaço em que convivemos com práticas contraditórias, as não resolutivas e cristalizadas ao modelo medicalizante e, alguns avanços em direção aos princípios SUS e da atenção psicossocial, embora ainda de forma tímida, desarticulada com a rede e, não muito clara para quem as realiza(1616. Garuzi M, Achitti MCO, Sato CA, Rocha SA, Spagnuolo RS. Acolhimento na Estratégia Saúde da Família: revisão integrativa. Rev Panam Salud Pública 2014;35(2):144–9.). Nesse sentido, consideramos que os avanços são iniciais, contudo muito importantes para a construção deste processo complexo e sem precedentes na história da atenção em saúde mental.

Considerações finais

As mudanças na SF dependem de como os serviços se organizam e desenvolvem suas práticas. E nesta pesquisa o ‘saber agir com pertinência’ em situações de saúde na SF, foi responder aos programas do MS. E dada pouca presença da saúde mental na AP nos programas, os enfermeiros acabam por se envolver muito mais com outras áreas do que com esta em especial. Não podemos desconsiderar que os programas do MS impõem uma rotina a SF que garante certa efetividade, porém cerceia a criatividade e o agir inovador.

Certamente os fundamentos do modo psicossocial muito contribuiriam para a constituição de fazeres pertinentes para atender a pessoa com sofrimento mental e toda população no âmbito da SF. O olhar, ouvir e o se responsabilizar pelos atores em seu local de viver a vida, abre caminhos para compreensão ampliada das necessidades de saúde, dá cor e movimento para a comunidade e a dimensão subjetiva das relações. Contudo, esta realidade convive dialeticamente com o desejo dos profissionais em atuarem conforme o prescrito, na lógica burocrática, que a nosso ver, traz uma leitura equivocada do que seria o saber pertinente para a SF, colocando em risco a constituição de práticas transformadoras.

Nesse sentido, os saberes necessários para a constituição de competências para atenção à saúde mental na SF são limitados, mas em movimento. Sendo que, os dados coletados juntamente com trabalhos científicos nessa área revelam que por: mais dialética que seja a realidade estudada; mais entraves, dificuldades e resistências que encontram na inclusão da saúde mental na SF; mais que as ações de saúde estejam norteadas pelo modelo biomédico; os pequenos passos que os profissionais das SF estão realizando, é fenômeno histórico que deve ser levado em conta, vista que é um avanço da formatação de um espaço nunca antes constituído na história da saúde brasileira ‘atender a pessoa que sofre mentalmente na AP’.

Quanto a territorialidade, a inserção do ACS na comunidade ganha um status justo de facilitador da ‘contextualização’ do saber/fazer, pois encaminham a identificação e acompanhamento de suas necessidades subjetivas. Um aditivo para o ‘saber integrar saberes múltiplos’, na compreensão da condição de saúde das pessoas evocando o saber patológico, social, econômico, relacional, processos dinâmico-familiar e pedagógicos.

A maior dificuldade ficou para o ‘saber transpor’, o cotidiano das equipes de SF demandam muito desse saber, porém com pouca transposição de saberes/fazeres em situação real, já que o mais comum é ação repetitiva diante do sofrimento psíquico encaminhar para o serviço de especialidade. Uma condição que inviabiliza a constituição de competência do profissional, já que o desejável na busca de respostas resolutivas às situações-complexas é o ‘orquestrar recursos’, com conhecimento/habilidades na atenção de saúde mental na SF.

Ainda vale o reconhecimento das limitações do estudo, uma vez que representa uma leitura da realidade local, sustentada por observação e entrevistas. Todavia oferece subsídios para outros estudos e discussão da atenção à saúde mental na SF que merece ser amplamente pesquisada.

Por fim, refletimos diante da permanente preocupação entre gestão, formação e o profissional em acumular conhecimentos e protocolos de programas ministeriais, formatando fazer pontual e fragmentado que garanta a produtividade. Não há a apreensão de como aplicar todo esse conhecimento, ou o uso dessa burocracia na atenção às necessidades de saúde das pessoas, de maneira prática e dinâmica, assim como a vida é. Essa é a essência da competência, que contribui para a constituição de saberes inovadores, como saber agir, mobilizar/transpor recursos adquiridos nas situações em que as manifestações ocorrem, o que faremos com um ementário de habilidades/conhecimentos se não os utilizamos efetivamente para modificar as práticas de saúde.

Agradecimentos

Agradecemos ao CNPq, a CAPES e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG) pelo apoio financeiro fornecido a este artigo/trabalho por meio do edital FAPEG nº 006/2012.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2014
  • Aceito
    16 Jul 2014
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