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ESTUDANTE DE MEDICINA NA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA EM SÉRIES INICIAIS: PERCEPÇÃO DOS EGRESSOS

Resumos

Considerando o desconhecimento do efetivo significado da vivência de estudantes de medicina ao serem inserido Estratégia Saúde da Família (ESF) em séries iniciais do curso por meio de estratégias de ensino baseadas na problematizaçao da realidade, propôs-se a compreender tal inserção na ótica dos egressos. Estudo qualitativo realizado por meio de entrevistas com egressos formados nos anos de 2009, 2010 e 2011. A análise dos dados teve como referência a técnica da hermenêutica-dialética. Os egressos consideram que essa inserção possibilitou o conhecimento da organização e funcionamento do serviço de saúde e do contexto de vida dos usuários, facilitou a relação médico paciente, o desenvolvimento do raciocínio clínico e o vínculo. Destacam, no entanto, que a imaturidade do estudante impede maior aproveitamento da vivência. Embora essa trajetória esteja permeada por avanços e desafios, conclui-se que ela se mostra capaz de sedimentar elementos imprescindíveis à formação médica.

Saúde da família; Ensino; Educação Médica


There is a lack of knowledge about the effective value of the experience gained by medical students who participate in the Family Health Strategy (Estratégia Saúde da Família (ESF)) during the early stages of their medical training. This teaching strategy is based on learning by experiencing the problems that exist in real life. This study proposed to understand the value of this teaching strategy from the viewpoint of the students who had participated, after their graduation. The method adopted was a qualitative study conducted through interviews with students who graduated in the years 2009, 2010 and 2011. The data analysis used the hermeneutic dialectic technique as its model. The graduates considered that this experience enabled them to understand the organization and functioning of the health service and the context of the daily life of the users. This experience facilitated the doctor patient relationship, the development of clinical reasoning and the bond with the user. However the students emphasized that a lack of maturity prevented them gaining a higher level of benefit from the experience. Therefore, although the structure of the course is permeated by advances and challenges, it was concluded that this experience contributed to the student's learning of certain essential elements of medical training.

Family Health; Teaching; Medial Education


Considerando el desconocimiento del efectivo significado de la vivencia de estudiantes de medicina al ser inserido Estrategia Salud de la Familia (ESF) en series iniciales del curso por medio de estrategias de enseñanza basadas en la problematización de la realidad, se propuso a comprender tal inserción en la óptica de los egresos. Estudio cualitativo realizado por medio de entrevistas con egresos formados en los años de 2009, 2010 y 2011. El análisis de los datos tuvo como referencia la técnica de la hermenéutica-dialéctica. Los egresos consideran que esa inserción posibilitó el conocimiento de la organización y funcionamiento del servicio de salud y del contexto de vida de los usuarios, facilitó la relación médico paciente, el desarrollo del raciocinio clínico y el vínculo. Destacan, aunque, que la inmadurez del estudiante impide mayor aprovechamiento de la vivencia. Sin embargo esa trayectoria esté permeada por avances y desafíos, se concluye que ella se muestra capaz de sedimentar elementos imprescindibles a la formación médica.

Salud de la Família; Enseñanza; Educación Médica


Introdução

A formação de profissionais de saúde com visão integral e humanizada do processo saúde e doença das pessoas, família e comunidade, vem sendo fortemente enfatizada no Brasil nas últimas décadas, o que se deve a um movimento internacional para a melhoria do perfil profissional e, mais especificamente à atual Política Nacional de Saúde que fora instituída a partir da constituição de 1988(11. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 [Internet]. Brasília: Senado; 1988. [cited 2010 mar 10]. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivi...
).

O Sistema Único de Saúde (SUS), pressupõe profundas mudanças no modo de pensar e agir, especialmente dos profissionais da saúde, os quais se constituem nos principais atores dessa mudança, cabendo-lhes desenvolver ações e imprimir uma nova lógica para o cuidado. Enquanto proposta para mudanças no modelo de atenção, foi implantada em todo território nacional a Estratégia Saúde da Família (ESF), tendo como meta principal o fortalecimento da atenção primária, por meio do trabalho interdisciplinar em um território adscrito. Para a formação de profissionais em conformidade com tal perspectiva foram estabelecidas as novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), para formação médica, que propõem um perfil profissional com uma boa formação geral, humanista, crítico e reflexivo, que este esteja capacitado a atuar em conformidade com os princípios e diretrizes do SUS(22. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução n. 4, CNE/CES de 7 de novembro de 2001 [Internet]. Institui diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em medicina. Diário Oficial da União, Brasília, 9 nov. 2001. Seção 1, p. 38. [cited 2010 mar. 10]. Available from: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pedf/CES04.pdf
http://portal.mec.gov.br/cne/arq...
).

Mais recentemente, nas proposições das novas diretrizes curriculares para os cursos de medicina, esses princípios são reafirmados, além de se delimitarem direcionamentos para o fortalecimento dos mesmos, por meio da obrigatoriedade de que 35% da carga horária do internato seja desenvolvido na atenção básica. Acrescenta-se a isso, a orientação para sejam criadas oportunidades de aprendizagem, tendo como eixo transversal a ciências Humanas e Sociais, além da inserção dos estudantes nas redes de serviços desde o início do curso(33. Brasil. Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e nº 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília , 23 out.2013; Seção 1).

Mesmo com tal direcionamento, afimam-se que, escolas médicas brasileiras ainda não dispõem de uma organização que possibilite ênfase na ESF(44. Freeman J, Kelly P, Blasco PG. Attitudes about Family Medicine among Brazilian medical students. Mundo Saúde. 2010;34(3):336-40.). Estudo realizado com estudantes de medicina indica que a inserção precoce em unidades da ESF apresenta problemas estruturais e de integração ensino-serviço-comunidade que tornam o cenário inadequado ao processo de aprendizagem(55. Costa JRB, Romano VF, Costa RR, Vitorino, RR, Alves, LA, Gomes, AP, Siqueira-Batista, R. Formação médica na estratégia de saúde da família: percepções discentes. Rev Bras Educ Med.2012;36(3):387-400. ).

Uma Faculdade de Medicina localizada no interior do estado de São Paulo, Brasil, há mais de uma década, vem caminhando para atender os princípios e diretrizes do SUS e das DCNs. O currículo foi organizado por competência e foram adotados métodos ativos no processo de ensino e aprendizagem. A parceria com os serviços de saúde do município incorporou a inserção de docentes e estudantes nos serviços locais de saúde, passando a desenvolver a maior parte das atividades educacionais da primeira, segunda e quarta séries na ESF(66. Faculdade de Medicina de Marília. Necessidades de saúde: 1ª e 2ª série – Cursos de Medicina e Enfermagem. Marília; 2010.). Este movimento vem sendo subsidiado por projetos vinculados ao Ministério da Saúde, quais sejam, o Pró-Saúde e o Programa de Educação pelo Trabalho em Saúde (PET-Saúde), por meio dos quais se mantém o fortalecimento da integração ensino-serviço, com ênfase nas ações educativas voltadas para a promoção da saúde.

Os estudantes são inseridos na ESF desde a primeira série do curso, em uma atividade denominada de Unidade de Prática Profissional (UPP), na qual compartilham o processo de trabalho da equipe tanto no que se refere ao cuidado individual, como o coletivo e o de gestão dos serviços de saúde, por meio do acompanhamento de famílias da área de abrangência e das distintas atividades realizadas pela equipe. As vivências dos estudantes neste cenário são problematizadas e a partir da busca em diferentes fontes, definem-se estratégias de intervenção a ser implementadas de forma compartilhada com a equipe de saúde.

Busca-se com tal atividade aproximar a formação profissional dos princípios e diretrizes do SUS, os quais enfatizam a promoção da saúde, na lógica da vigilância. No entanto, não se pode negar que essa construção caminha na contra-mão do modelo de cuidado centrado nos aspectos biológicos, na queixa principal e no atendimento à demanda, o que se encontra fortemente arraigado no imaginário dos estudantes, profissionais da saúde, comunidade e gestores dos serviços, dificultando a transformação da prática profissional.

Embora se reconheçam as potencialidades da organização curricular que atualmente se desenvolve, na prática são observadas dificuldades na sua implementação e se desconhece qual o efetivo significado dessa vivência para a atuação do médico nos distintos espaços ocupados por esse profissional. Frente a isso, tem-se como objetivo Compreender o significado da inserção do estudante na prática profissional da ESF desde a primeira série do curso, na ótica de egressos de um Curso de Medicina.

Método

Trata-se de um estudo qualitativo realizado com egressos de um Curso de uma cidade de médio porte do interior do Estado de São Paulo, Brazil. Tal instituição é estadualizada e oferece anualmente 40 vagas no Curso de Enfermagem e 80 no de Medicina. Além dos dois cursos, conta também com um complexo hospitalar, ambulatórios em diversas especialidades.

Esses espaços se constituem em cenário de ensino aprendizagem para os estudantes de enfermagem e medicina e, além disso, a instituição mantém parceria com a Secretaria Municipal de Saúde, com vista a proporcionar a diversificação de cenários e possibilitar a formação de profissionais generalistas com ênfase na atenção básica, conforme proposto pelas Diretrizes Curriculares Nacionais. Das 32 unidades da ESF existentes no município, 20 são disponibilizadas para os estudantes dos cursos de Enfermagem e de Medicina da Famema.

A estrutura curricular do Curso de Medicina, conta com UPP e a Unidade Educacional Sistematizada (UES), cujo propósito é promover o desenvolvimento de recursos cognitivos, afetivos e psicomotores que possam ser mobilizados e integrados para a realização de tarefas, que visam à identificação de necessidades de saúde de indivíduos, famílias e coletividades.

A UES segue a metodologia da Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP) e busca oportunizar maior elaboração de processos cognitivos relacionados a situações-problema apresentadas nos diferentes cenários de aprendizagem, com a manutenção do olhar ampliado para as necessidades de saúde dos usuários dos serviços de saúde, com ênfase no processo saúde-doença, validando experiências e promovendo aprendizagem significativa.

No cenário real (UPP), problematizam-se as necessidades de saúde das pessoas e suas famílias, formula-se o problema de saúde e elabora-se um plano de cuidado. Essas práticas alternam-se com momentos grupais de discussão, nos quais cada dupla de estudantes elege uma ou mais situações a serem apresentadas e partir da leitura e esclarecimentos, problematizam-se as situações. Definidas as lacunas de conhecimento, elaboram-se as questões de estudo, em seguida, os estudantes buscam informações para responder às questões formuladas. Em grupo, é realizada a socialização das informações encontradas, elaborando-se uma nova síntese e, finalizando o ciclo, procede-se à avaliação oral (auto-avaliação, do grupo, dos professores e do ciclo).

Fizeram parte do estudo egressos do curso de medicina que concluíram o curso nos anos 2009, 2010 e 2011, sendo 76, 78 e 83, respectivamente. Foram entrevistados cinco egressos por turma, por meio de entrevistas gravadas, tendo como questão norteadora “o significado da inserção na prática profissional nas séries iniciais do curso”. As entrevistas foram realizadas nos meses de novembro e dezembro de 2013 e tiveram uma duração média 20 minutos.

A hermenêutica dialética guiou o tratamento e a análise dos dados resultantes das narrativas dos sujeitos, pois buscou-se entender os significados subjacentes às narrativas, por meio da compreensão do sentido dos fatos que compuseram a dinâmica do processo vivenciado. A análise hermenêutico-dialética compreende as seguintes etapas: leitura compreensiva do contexto em que os dados são gerados, criação de estruturas de análise em que se buscam idéias que subjazem aos textos, identificação dos sentidos mais amplos, caminhando em um movimento de síntese por meio da construção de possíveis significados(77. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2010.). A proposta de investigação foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, Parecer: 359.585 de 14/08/2013, CAAE: 7992413.0.0000.5413. Os participantes foram esclarecidos quanto à finalidade do estudo e, quando de acordo em participar, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os egressos entrevistados encontram-se na faixa etária dos 25 a 32 anos de idade e oito deles ainda estão cursando a residência médica, os demais já concluiram. Destaca-se, entretanto, que apenas um desenvolve atividades na ESF e outro com formação em psiquiatria está atuando no Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF). Os demais buscaram as mais diferentes especialidades, como radiologia, pediatria, medicina nuclear, medicina do trabalho, pneumologia, cardiologia, infectologia, cirurugia geral, dermatologia e otorrinolaringologia.

Mesmo assim, nas falas dos egressos, depreende-se que essa forma de organização curricular, ao colocar o estudante desde as primeiras séries do curso em contato com a comunidade, possibilitou a valorização e a sedimentação das tecnologias leves como central do cuidado em saúde. Esta é uma posição defendida como essencial na produção do cuidado e que, portanto, deve permear a formação nos diferentes cenários de atenção à saúde(88. Feuerwerker LCM. Médicos para o SUS: gestão do trabalho e da educação na saúde no olho do furacão! Interface Comun Saúde Educ. 2013;17(47):929-30.).

Como se observa na fala a seguir, a inserção na Estratégia Saúde da Família desde a primeira série do curso contribui para que haja o conhecimento acerca do funcionamento do serviço de saúde.

Eu achei muito importante para entender o funcionamento do Programa de Saúde da Família. Qual que é a função de cada um na unidade, a questão das reuniões de equipe e porque isso era importante, pelos Agentes Comunitários estarem inseridos na realidade dessas pessoas, conhecerem mais de perto essas pessoas, por eles morarem nesse bairro. E13

Na formação de um profissional critico e reflexivo, capaz de transformar a realidade de atuação, conforme proposto nas diretrizes curriculares, compreender o contexto que está inserido e o funcionamento dos serviços de saúde representa um passo inicial importante. Além disso, tal iniciativa introduz o pressuposto da diversificação do cenário de prática, indo ao encontro da necessidade desospitalizar formação medica, visto que esse modelo que se manteve hegemônico por muitos anos, não contempla as necessidades sociais da atualidade e os pressupostos do Sistema Único de Saúde (SUS).

Além de conhecer o funcionamento do serviço e a organização da equipe de saúde, os egressos indicam que a inserção na Estratégia Saúde da Família permitiu conhecer o contexto de vida das pessoas, o que, muitas vezes, diferencia completamente da forma como os estudantes vivem. A compreensão de realidades distintas inclui o modo de viver frente às condições sociais, as crenças e os valores das mesmas.

Para mim, no inicio, foi um pouco... impactante porque era uma realidade muito diferente da minha. Eu saí de um mundo e eu comecei a participar de um outro mundo, com pessoas totalmente diferentes, com dificuldades diferentes, problemas diferentes (...). Acho que eu não teria outro aprendizado assim tão grande se não fosse dessa forma. (E2)

Nesta perspectiva reforça-se que a inserção em pauta permitiu uma visão ampla do processo saúde doença, envolvendo os aspectos biopsicossociais.

A gente tem uma visão muito para o lado social também, do lado psíquico do paciente. Então a gente passa a considerar a medicação, o porque toma, o porque não toma, porque não conseguiu seguir a dieta, quais eram as necessidades de saúde que estavam falhas. Então, a gente consegue ter uma visão global dele e não só focada na doença. Eu acho que era uma anamnese muito mais completa, esta parte biopsicosocial mesmo, não só o biológico.( E15)

Identifica-se, portanto, uma direcionalidade para o principio da integralidade, o que significa assumir uma nova postura frente ao cuidado à saúde, ou seja, propor novas soluções para as necessidades das pessoas, famílias e comunidade e atender a demandas que por muito tempo foram ocultadas ou negligenciadas pelo modelo fragmentado e biologicista(99. Araújo D, Miranda MCG, Brase SL. Formação de profissionais de saúde na perspectiva da integralidade. Rev Baiana Saúde Pública. 2007;31 Supl 1:20-31.).

As tarefas propostas para a primeira e segunda série do curso, com vistas a uma abordagem ampliada, realizada no domicílio, exige do estudante o estabelecimento de vínculo, uma vez que ele irá acompanhar as famílias por um período de dois anos. Neste cenário, observa-se que assumem uma postura diferenciada em relação a outros contextos do cuidado, em que o usuário, por estar fora do seu ambiente e, na maioria das vezes, em uma situação de doença que o torna vulnerável, acaba se submetendo de forma passiva.

(...) foram abordados como conversar com o paciente, como entrar em contato com ele, visitando a casa, vendo na casa do paciente como que ele é, eu acho que o grande diferencial foi a criação de vinculo, a facilidade de criar empatia com o paciente e a possibilidade de visitá-lo na casa dele, que é o ambiente dele. ( E14)

Sobre a vista domiciliar feita por estudantes de séries iniciais, estudo realizado na mesma instituição com a finalidade de conhecer a visão dos usuários, revelou que, embora com a visão de cuidado centrada na doença, eles indicam um conjunto de atributos que vão além do cuidado a um corpo biológico, incluindo a importância das relações interpessoais no contexto da atenção à saúde, a necessidade da escuta, da atenção, da orientação e da preocupação em dar respostas e encaminhamentos para as necessidades identificadas(1010. Marin MJS, Gomes R, Siqueira Júnior AC, Nunes, CRR, Cardoso, CP, Otani, MP, Moravcik, MY. O sentido da visita domiciliária realizada por estudantes de medicina e enfermagem: um estudo qualitativo com usuários de unidades de saúde da família. Ciênc Saúde Coletiva. 2011;16(11):4357-65. ).

(...) deu para aprender muito bem como que a gente ia agir diante daquele paciente dentro da realidade dele. Porque é totalmente diferente você atender um paciente na casa dele, ser recebido na casa dele do que quando você atende ele internado, aqui no hospital.(E13)

Os aspectos abordados pelos egressos no que se refere à relação médico- paciente, à capacidade de comunicação e ao estabelecimento de vínculo, se aproxima pressupostos da Política Nacional de Humanização, eixo central quando se propõe mudanças no modelo de cuidado. Essa política, criada pelo Ministério da Saúde do Brasil, incentiva que as práticas em saúde sejam desenvolvidas com maior valorização dos diferentes sujeitos envolvidos no processo de produção de cuidados e, para isso, destaca como essencial a valorização da escuta, o vínculo e o afeto na prática dos profissionais de saúde(1111. Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de humanização da Assistência Hospitalar [Internet]. 2004. [cited 2013 set. 10]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/php/level.php?lang=pt&component=44&item=104
http://bvsms.saude.gov.br/php/le...
).

Eu acho importante... o mais importante é essa questão mesmo de olhar para o doente e não para a doença. Olhar ele dentro do contexto que ele vive (E13).

A importância da humanização na atenção em saúde torna indispensável a contribuição das ciências sociais e humanísticas no desenvolvimento de competências que os estudantes devem adquirir para o exercício da profissão(1212. Macias Llanes ME. Ciencias sociales y humanísticas en la formación médica. Rev Hum Med. 2011;11(1):18-44. ).

Compreender o processo comunicativo e desenvolver habilidades de comunicação é fundamental a todos os profissionais de saúde. No entanto, atualmente, o reconhecimento acerca do impacto da comunicação em saúde tem sido menor do que deveria ser.

No processo de comunicação de pessoas com diferentes níveis de escolaridade e de conhecimento, é considerada uma das tarefas mais difíceis para a equipe de saúde que precisa despir-se da sua posição e fazer-se compreender, o que por certo também é uma condição bastante enriquecedora(1313. Campos FE, Brenelli SL, Lobo LC, Haddad, AE. O SUS como escola: a responsabilidade social com a atenção à saúde da população e com a aprendizagem dos futuros profissionais de saúde. Rev Bras Educ Med. 2009;33(4):513-4.). Para atingir tal assimetria é preciso a compreensão das diferenças de visão de mundo e do modo de viver das pessoas em diferentes contextos.

Embora, recentemente, esse aspecto tenha sido enfatizado pela política nacional de saúde, é preciso levar em conta que a criação de políticas e estratégias não são prescrições capazes de gerar mudanças apenas por sua implantação; elas orientam a prática e devem servir como fonte de aprendizado para novas experiências(1414. Deslandes SF, Mitre RMA. Processo comunicativo e humanização em saúde. Interface Comun Saúde Educ. 2009;13 Supl. 1:641-9. ).

A humanização do cuidado e, mais especificamente, a comunicação interpessoal efetiva, não são inatas e somente se consolidarão se forem praticadas e sustentadas nas ações cotidianas, alimentadas pelo mecanismo de reprodução entre os profissionais, seja pela via da formação acadêmica ou pelo exemplo na prática(1515. Puggina ACG, Silva MJP. Ética no cuidado e nas relações: premissas para um cuidar mais humano. REME Rev Min Enferm. 2009;13(4):599-605.).

Estudo realizado com estudantes de seis escolas de medicina, no Brasil, também identificou como ponto positivo da inserção na ESF a relação médico paciente, além de indicarem aspectos que se relacionam com os valores e a filosofia da estratégia(55. Costa JRB, Romano VF, Costa RR, Vitorino, RR, Alves, LA, Gomes, AP, Siqueira-Batista, R. Formação médica na estratégia de saúde da família: percepções discentes. Rev Bras Educ Med.2012;36(3):387-400. ).

O depoimento abaixo retrata a relevância da estratégia de ensino em que aluno tem oportunidade de exercitar e refletir sobre suas ações com a finalidade de aprender formas mais adequadas para seu comportamento e relacionamento interpessoal.

... esse contato com a prática desde o primeiro ano da faculdade, facilita o aluno a tomar um... uma visão de responsabilidade e de ética muito grande desde o inicio da faculdade. E5.

Compreende-se que o cuidado em saúde deve ser discutido junto com a ética, com os valores de responsabilidade e de integridade. É preciso sentir, vivenciar a situação para agir com clareza, respeitando os princípios de beneficência, de autonomia e de justiça(1616. Campos FE, Belisário AS. O programa de saúde da família e os desafios para a formação profissional e a educação continuada. Interface Comun Saúde Educ. 2001;5(9):133-42.).

O progresso científico e tecnológico ocorrido nos últimos anos trouxe grande avanços na solução de problemas de saúde, contudo, trouxe também a crescente especialização e a segmentação do cuidado, tendo como um dos resultados a priorização das técnicas e o empobrecimento das relações interpessoais e do processo comunicativo. Além disso, grande parte dos conhecimentos e técnicas recomendáveis atualmente, não estarão em uso em um futuro próximo, sendo necessária a utilização de métodos e estratégias que valorizem o auto-aprendizado, a reflexão crítica dos conhecimentos teóricos e práticos e favoreçam a escuta e o atendimento às demandas das pessoas, famílias e comunidades(1717. Fiedler PT. Avaliação da qualidade de vida do estudante de medicina e da influência exercida pela formação acadêmica [tese de doutorado]. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; 2008. 308 f.).

Os depoimentos dos egressos permitiram, ainda, identificar que eles, enquanto estudantes da primeira e segunda série, poderiam ter tido maior aproveitamento da prática nas Unidades de Saúde da Família. Relacionam esse fato à pouca maturidade que possuíam na época para apreender integralmente o sentido das vivências.

Ah! Parece que eu sou Agente Comunitário, parece que eu sou... parece que eu não sirvo para nada, só estou aqui fazendo um teatro’. Mas eu acho importante até saber o que é Agente Comunitário. Saber exatamente o que o Agente Comunitário faz. (E1)

A gente chega lá (na Unidade de Saúde da Família) achando que não tem objetivo ‘Ah! eu vou ser médico e não preciso disso’. Depois que a gente se forma, depois de um tempo de formado a gente vê que isso faz muita diferença. E2

Ao iniciar um curso de medicina, os estudantes têm expectativas diversas quanto à prática profissional e, cada um, dependendo da sua história de vida, crenças, características pessoais e da postura adotada frente à realidade, encontra um grau de dificuldade diferente em relação à adaptação ao curso, amadurecendo e aprendendo a ser médico ao final dos anos de graduação(1818. Barreto MAM, Reis CN, Miranda IB, et al. Ser médico: o imaginário coletivo de estudantes de medicina acerca da profissão de médico [Internet]. Cad UniFOA. 2009;4(11):73-9. [cited 2013 set. 10]. Available from: http://web.unifoa.edu.br/cadernos/edicao/11/73.pdf
http://web.unifoa.edu.br/caderno...
).

Muitas vezes a gente ia lá.... eu acho que é todo mundo inseguro no começo porque você não sabe direito... que voce vai chegar lá, conversar com as pessoas, de repente invadir o espaço dela, atrapalhar o que ela está fazendo, mas conforme o tempo vai passando, você acaba criando vinculo, eles gostam desse processo, a população gosta desse contato com... e eles vêem como um contato com a saúde mesmo, um interesse na qualidade de vida, na saúde. (E7)

Nos fragmentos das falas acima depreende-se que no momento que foram colocados em confrontado com a prática profissional nas séries iniciais, não conseguiam perceber de forma clara o sentido de estarem ali, o que para eles diferia do que imaginavam sobre o papel do médico. As diferenças entre o que é preconizado e o que é compreendido levam à necessidade de atuar de forma preventiva(1515. Puggina ACG, Silva MJP. Ética no cuidado e nas relações: premissas para um cuidar mais humano. REME Rev Min Enferm. 2009;13(4):599-605.), assim como também foi proposto pelos próprios egressos.

“Tem que esclarecer muito bem para os alunos desde que eles chegam, o quanto eles podem fazer a diferença mesmo não tendo uma formação médica. As vezes a gente chega lá muito cedo as vezes parece que a gente(....)”.

Quanto a essa dificuldade expressa pelos estudantes, embora não tenha sido sugerido por eles, é possível que um preparo maior por meio da simulação da prática profissional antes de adentrarem os domicílios e se depararem com a diferença possa ser uma forma de amenizar o impacto causado. O cenário simula confere ao estudante a possibilidade de enfrentar novas situações em um contexto mais protegido. Mesmo assim, é preciso reforçar que nada se compara com a complexidade imposta no confronto com à realidade, pois nele se expressão as condições de vida da pessoa, família e comunidade, além da forma de gestão e organização dos serviços, em suas múltiplas dimensões. Torna-se relevante também, neste contexto, a integração ensino-serviço, uma vez que com a inserção ocorra de forma efetiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo que essa trajetória esteja permeada por avanços, dificuldades e desafios foi possível a sedimentação de elementos imprescindíveis à formação médica, principalmente no que se refere à relação com os usuários por meio do vínculo, comunicação adequada, além do reconhecimento de que vivem em “mundos distintos”, cabendo-lhes a adoção de condutas condizentes com cada realidade, envolvendo a totalidade das potencialidades e necessidades das pessoas e famílias.

Fica evidente que a visita domiciliar em séries iniciais exige que o estudante desenvolva a habilidade de comunicação, respeito pelas diferenças e efetiva responsabilização para que possa ser aceito pelas famílias e, assim, desenvolver o seu papel.

A esse respeito, é importante destacar que, mesmo atuando em distintas especialidades, pontuam aspectos dessa inserção que serviram de base para a atual prática que realizam. Sendo necessário salientar que apenas um está atuando na ESF, sendo este um aspecto a ser questionado, visto que esforços governamentais vêm sendo dispensados com a finalidade de fortalecer a formação de profissionais para atuar na atenção básica.

Pode se afirmar, portanto, a ESF se constitui em um importante cenário de ensino e aprendizagem para estudantes de medicina em séries iniciais, em função disso, vale destacar que as diretrizes para a formação de médicos de 2014 reforçam tal perspectiva, além de recomendar que seja ampliada a inserção dos estudantes na atenção primária, inclusive nas séries finais do curso.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2014
  • Aceito
    16 Jul 2014
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