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A política brasileira de redução de acidentes e violência se alinha às perspectivas internacionais?* * Artigo proveniente do trabalho final para conclusão da Disciplina: “Sociedade e Políticas de Saúde”, do Programa Interunidades de Doutoramento em Enfermagem da Escola de Enfermagem (EE) e Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da Universidade de São Paulo (USP). Apresentado em sessão de Comunicações Orais e publicado em Livro de Atas: Sakata KN, Egry EY, Narchi NZ. Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências no Brasil: os alinhamentos às perspectivas internacionais. Livro de Atas, volume II, do 3o. Congresso Ibero-Americano em Investigação Qualitativa. Jul 14-16; Badajóz, Espanha. Aveiro: Ludomedia; 2014.

Resumos

Analisou-se a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violência (PNRMAV) a partir de referenciais de análise de políticas públicas. Tomou-se por base o capítulo “Violência: um problema global de saúde pública”, do Informe Mundial sobre Violência e Saúde. A análise revelou elementos de convergência e divergência da PNRMAV às perspectivas internacionais. Verificou-se que a PNRMAV buscou convergir às políticas internacionais, entretanto ela enfatiza as ações de promoção da saúde, mas são limitadas ao contexto e comportamento dos indivíduos e das comunidades individual. Espera-se o desempenho dos profissionais de saúde, todavia sem fornecer mais investimentos estruturais, como a melhoria das condições de trabalho, o aumento dos recursos financeiros e materiais. Há poucas definições claras das responsabilidades do governo e do setor econômico.

Violência; Políticas públicas; Políticas de saúde


The study analyzed The Brazilian Policy for Reduction of Morbidity and Mortality from Accidents and Violence, in the socio-political perspective. We used as a base the chapter “Violence: a global public health problem” from the World Report on Violence and Health. The analysis revealed convergent and divergent elements of the Brazilian Policy in comparison with the international perspectives. We verified that the Brazilian Policy tried to converge to the international policies, however: it emphasizes the health promotion actions, but are limited to the context and behavior of individuals and individual communities; the performance of health professionals is expected without providing more structural investments, as the improvement in work conditions, the increase of financial and material resources; there are few clear definitions of the government and economical sector responsibilities.

Violence; Public policies; Health policy


Se analizó la Política Brasileña para la Reducción la Mortalidad y Morbilidad por Accidentes y Violencia (PNRMAV), a partir de los referenciales de análisis de políticas públicas. Se ha tomado en base al capítulo "La violencia: un problema mundial de salud pública" del Informe Mundial sobre la Violencia y la Salud. El análisis reveló elementos de convergencia y divergencia de perspectivas internacionales PNRMAV. Se encontró que la PNRMAV converge a la política internacional, sin embargo: Se hace hincapié en las acciones de promoción de la salud, pero se limitan al contexto más individual y de comportamiento de las personas y de las comunidades; Se espera el desempeño de los trabajadores de salud, sin proporcionar las inversiones más estructurales, como la mejora de las condiciones de trabajo, aumento de los recursos financieros y materiales; hay pocas definiciones claras de las responsabilidades del gobierno y el sector económico.

Violencia; Politicas publicas; Política de salud


Introdução

A violência, provavelmente, sempre esteve presente na história da humanidade e seu impacto pode ser visto de várias formas e em todas as partes do mundo(11. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi, AB, Lozano, R. Violence: a global public health problem. Geneva: WHO; 2002. World report on violence and health; pp. 3-21.,22. Dahlberg LL, Krug EG. Violence: a global public health problem. Cien Saude Colet. 2007;11(sup):1163-78.). Anualmente, mais de 1,6 milhões de pessoas morrem no mundo em decorrência de atos violentos e muitas outras sofrem ferimentos não fatais que resultam em uma diversidade de outros problemas físicos, sexuais, psicológicos, sociais, reprodutivos e de desenvolvimento(11. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi, AB, Lozano, R. Violence: a global public health problem. Geneva: WHO; 2002. World report on violence and health; pp. 3-21.,22. Dahlberg LL, Krug EG. Violence: a global public health problem. Cien Saude Colet. 2007;11(sup):1163-78.).

A estimativa global, em 2000, foi de que 1.659.000 pessoas morreram por causas relacionadas à violência. Destas, 49,1% (815.000 pessoas) morreram por suicídio, 31,3% (520.000 pessoas) morreram por homicídio e 18,6% (310.000 pessoas) morreram por eventos relacionados a guerras(11. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi, AB, Lozano, R. Violence: a global public health problem. Geneva: WHO; 2002. World report on violence and health; pp. 3-21.,22. Dahlberg LL, Krug EG. Violence: a global public health problem. Cien Saude Colet. 2007;11(sup):1163-78.). Um dado que chama atenção é de que 91,1% do total de mortes aconteceram em países de baixa e média renda, e 8,9% aconteceram em países de renda alta(11. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi, AB, Lozano, R. Violence: a global public health problem. Geneva: WHO; 2002. World report on violence and health; pp. 3-21.,22. Dahlberg LL, Krug EG. Violence: a global public health problem. Cien Saude Colet. 2007;11(sup):1163-78.). Estas informações são indicativas de uma distribuição desigual da violência no mundo.

Além da desigualdade em relação à renda do país, a morte por violência é também distribuída diferentemente de acordo com a faixa etária e o sexo, sendo uma das principais causas de morte na população de idade entre 15 e 44 anos e responsável por 14% das disfunções na população masculina e 7% na população feminina(11. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi, AB, Lozano, R. Violence: a global public health problem. Geneva: WHO; 2002. World report on violence and health; pp. 3-21.,22. Dahlberg LL, Krug EG. Violence: a global public health problem. Cien Saude Colet. 2007;11(sup):1163-78.).

Tão importante quanto as divisões clássicas das pessoas em grupos de renda, sexo e faixa etária, é também necessário visualizar a ocorrência dos eventos e mortes relacionados à violência a partir dos grupos sociais. Apesar deste artigo não tratar diretamente dessa temática, todas as considerações feitas serão pautadas na perspectiva adotada pela Saúde Coletiva. Portanto, aqui se define que a violência é um fenômeno histórico e social, e assim será tratado.

Por isso, destaca-se que a violência representa custos humanos, como o sofrimento e a dor que não podem ser calculados e que, na maioria das vezes, ficam invisíveis para a sociedade, acontecendo nos espaços privados dos lares, locais de trabalho e até mesmo nas instituições sociais de saúde, proteção, segurança e jurídicas, tais como hospitais, atendimentos de urgências e emergências, delegacias, tribunais, abrigos, asilos, prisões, dentre tantas outras(11. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi, AB, Lozano, R. Violence: a global public health problem. Geneva: WHO; 2002. World report on violence and health; pp. 3-21.,22. Dahlberg LL, Krug EG. Violence: a global public health problem. Cien Saude Colet. 2007;11(sup):1163-78.).

E, assim como os custos humanos, existem também as perdas e custos econômicos, que são os que, de fato, parecem chamar a atenção e despertar a preocupação da conjuntura mundial que vive e sobrevive sob o modelo capitalista de produção.

Os custos econômicos se traduzem em bilhões de dólares anuais com gastos judiciais e em saúde, além de perdas em termos de produtividade com dias não trabalhados e despesas decorrentes da população atingida pela violência, especialmente, a população em idade produtiva e ativa para o trabalho(11. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi, AB, Lozano, R. Violence: a global public health problem. Geneva: WHO; 2002. World report on violence and health; pp. 3-21.,22. Dahlberg LL, Krug EG. Violence: a global public health problem. Cien Saude Colet. 2007;11(sup):1163-78.).

A violência é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como “o uso deliberado da força física ou poder, em ameaça ou na prática, contra si próprio, outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade que resulte ou possa resultar em sofrimento, morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação”(1 p5). A definição compreende tanto a violência interpessoal como o comportamento suicida e os conflitos armados. Além disso, a introdução da palavra “poder” amplia a definição de violência ao considerá-la mais que lesões e danos físicos, mas incluindo também as ameaças e as intimidações. Independentemente do resultado produzido, a violência é tanto a ação quanto a intenção de provocá-la, bem como os atos de negligência, as omissões e todos os tipos de abuso (sexual, psicológico e físico)(11. Krug EG, Dahlberg LL, Mercy JA, Zwi, AB, Lozano, R. Violence: a global public health problem. Geneva: WHO; 2002. World report on violence and health; pp. 3-21.,22. Dahlberg LL, Krug EG. Violence: a global public health problem. Cien Saude Colet. 2007;11(sup):1163-78.).

Partindo desse quadro mais geral sobre violência e da definição da OMS, tencionou-se compreender a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências (PNRMAV)(33. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 737, de 16 de junho de 2001. Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. 2a ed. Brasília; 2005.) − com ênfase para as violências − nos seus alinhamentos às perspectivas internacionais e discutir sobre algumas repercussões no âmbito de sua operacionalização

Método

Com base na proposta de análise de políticas sociais proposta por Fleury e Overney em 2012(44. Fleury S, Ouverney AM. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2012. p. 25-57.), foi realizada análise dos alinhamentos da PNRMAV(33. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 737, de 16 de junho de 2001. Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. 2a ed. Brasília; 2005.) com as perspectivas internacionais apresentadas no capítulo “Violência: um problema global de saúde pública”, do Informe Mundial sobre Violência e Saúde(22. Dahlberg LL, Krug EG. Violence: a global public health problem. Cien Saude Colet. 2007;11(sup):1163-78.).

Foram utilizados para essa análise os sete aspectos ou dimensões essenciais na construção e na dinâmica da gestão da política de saúde, propostos por Fleury e Ouverney(44. Fleury S, Ouverney AM. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2012. p. 25-57.).

O primeiro aspecto refere-se à definição de objetivos ou finalidades da política, orientados por valores maiores, os quais determinam a forma de alocação de recursos, as estratégias, os planos e os instrumentos a serem adotados, e posteriormente avaliados. Essa dimensão dá visibilidade, facilita a divulgação das realizações alcançadas, possibilita visão abrangente e, consequentemente, facilita o processo de avaliação da política(44. Fleury S, Ouverney AM. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2012. p. 25-57.).

O segundo aspecto aborda a construção e o emprego de estratégias, planos e instrumentos, aspectos instrumentais que permitem visualizar mais concretamente a política, seus princípios e núcleos temáticos; as ações a serem realizadas; os resultados almejados; os responsáveis pela execução; o volume de recursos disponíveis e sua origem; e os indicadores que serão utilizados para avaliar sua execução. Essa dimensão possibilita compreender não somente a forma de ação da política social, como também sua articulação com a realidade, o que permite delimitar de forma mais concreta os potenciais e as limitações(44. Fleury S, Ouverney AM. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2012. p. 25-57.).

O terceiro aspecto é relativo ao desempenho simultâneo de papéis políticos e econômicos diferentes, ou seja, aos efeitos políticos e econômicos que a política possui na reprodução ou na transformação social. Essa dimensão permite entender os efeitos da política social no âmbito econômico, uma vez que movimenta recursos financeiros, produz bens e serviços, define áreas de atuação e prioridades, entre outros(44. Fleury S, Ouverney AM. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2012. p. 25-57.).

O quarto, aspecto diz respeito à construção oficial de arenas, canais e rotinas para orientar os processos decisórios, que definem planos, programas, estratégias e alocação de recursos das políticas, e que são influenciados pelas relações de poder e interesses dos diversos sujeitos envolvidos. Essas relações estruturam o formato geral da política e se expressam, por meio de regras estabelecidas em ambientes institucionais de pactuação e de estabelecimento de consensos, chamados arenas. No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, essa dimensão refere-se aos mecanismos de participação e controle social (principalmente as conferências e os conselhos de saúde) e os mecanismos de negociação e pactuação entre os entes governamentais (consórcios de saúde entre gestores municipais, comissões intergestores bipartites e tripartites)(44. Fleury S, Ouverney AM. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2012. p. 25-57.).

O quinto aspecto refere-se à assimilação, contraposição e/ou compatibilização de diferentes projetos sociais. Como intensa dinâmica de relações de poder, a política de saúde é também a expressão das forças de lutas políticas dos diferentes projetos e propostas sociais, o que envolve macroprocessos sociais (modelos políticos, econômicos, ideológicos e de organização social), frutos de enfrentamentos de interesses, disputas e relações de poder(44. Fleury S, Ouverney AM. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2012. p. 25-57.).

O sexto tratado desenvolvimento, da reprodução e da transformação de marcos institucionais. Nesse aspecto, as demandas sociais que se transformam em políticas públicas são institucionalizadas e dão forma aos marcos institucionais, ou seja, o aparato estatal se materializa em instituições, estruturas organizacionais, capacidade humana e técnica, leis, práticas e procedimentos. Os marcos institucionais são também chamados de reguladores da política, porque ao mesmo tempo que são os sustentáculos das ações e programas, também os regulam e delimitam(44. Fleury S, Ouverney AM. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2012. p. 25-57.).

O sétimo e último aspecto diz respeito à formação de referenciais éticos e valorativos da vida social. Nessa dimensão, a difusão de informações e valores por meio da política social influencia também os comportamentos, os padrões e hábitos culturais, as relações de organização política, a própria percepção das pessoas sobre si mesmas e a construção das relações sociais na família, no trabalho e nos espaços coletivos. A política social impulsiona, assim, um processo de redefinição, produção e apropriação de novos significados sociais, conceitos, valores e referenciais culturais que, por sua vez, também vão gerar impactos na estrutura social(44. Fleury S, Ouverney AM. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2012. p. 25-57.).

Para realização da análise proposta neste estudo, foram identificadas a presença das sete dimensões propostas por Fleury e Ouverney(44. Fleury S, Ouverney AM. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2012. p. 25-57.) tanto na política nacional quanto no informe mundial, o que possibilitou comparação e reflexão a respeito dos alinhamentos da política brasileira às perspectivas internacionais.

Após a análise da PNRMAV de acordo com as sete dimensões(44. Fleury S, Ouverney AM. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2012. p. 25-57.) e seus alinhamentos às perspectivas internacionais tomando por referência o Informe Mundial, foram discutidas algumas repercussões no âmbito da operacionalização da PNRMAV, utilizando experiências descritas na literatura científica(55. Minayo MCS, Deslandes SF. Análise da implantação da rede de atenção às vítimas de acidentes e violências segundo diretrizes da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade sobre Violência e Saúde. Cienc Saude Colet. 2009;14(5):1641-49.).

Resultados

Os resultados estão organizados no Quadro1 de acordo com as dimensões de análise de políticas sociais proposta por Fleury e Ouverney(44. Fleury S, Ouverney AM. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2012. p. 25-57.). Trechos da PNRMAV e do Informe Mundial sobre Violência e Saúde foram dispostos, na íntegra ou interpretados, lado a lado no quadro, para posterior comparação e reflexão.

Quadro 1
ALINHAMENTOS DA POLÍTICA NACIONAL DE REDUÇÃO DA MORBIMORTALIDADE POR ACIDENTES E VIOLÊNCIAS COM O INFORME MUNDIAL SOBRE VIOLÊNCIA E SAÚDE, SEGUNDO AS DIMENSÕES PROPOSTAS POR FLEURY E OUVERNEY(44. Fleury S, Ouverney AM. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2012. p. 25-57.).

Discussão

A Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências e seus alinhamentos às perspectivas internacionais

Uma política social é uma política voltada para a reprodução dos indivíduos e das coletividades, pautada no bem-estar e na proteção social. Ela age concretamente na realidade social por meio de uma dinâmica complexa e multifacetada, distribuindo recursos e oportunidades, promovendo a igualdade e os direitos de cidadania e afirmando os valores humanos como ideais e referência para a organização da sociedade. Um dos aspectos importantes é que são políticas orientadas por valores, ainda que, em muitos casos, seus objetivos finais não correspondam, de fato, aos objetivos traçados inicialmente. E isso acontece porque muitos são os interesses e os determinantes envolvidos na construção e implementação de uma política, bem como nos condicionantes impostos pela burocracia para a gestão e efetivação das mais diversas políticas sociais de saúde, educação, habitação, previdência e assistência social(44. Fleury S, Ouverney AM. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2012. p. 25-57.).

Sistematizar a análise de uma determinada política social permite compreender melhor seus elementos constituintes, como estes estão sendo operacionalizados na prática ou como poderiam ser operacionalizados diante de suas potencialidades e limitações.

Verificou-se que a PNRMAV no Brasil é composta de elementos que possibilitaram a análise pela proposta definida por Fleury e Ouverney(44. Fleury S, Ouverney AM. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2012. p. 25-57.).

A partir da análise dos resultados com enfoque nas violências, observou-se que a PNRMAV tem foco na redução da morbimortalidade pela violência enquanto o Informe Mundial tem como foco prevenir o acontecimento dos comportamentos violentos, mais do que reagir a eles.

O documento do Informe Mundial destaca a Saúde Pública e seus requisitos rigorosos de método científico como um campo de conhecimento privilegiado para lidar com a violência, uma vez que esta representa um problema de saúde pública mundial e requer uma abordagem baseada em ações coletivas, interdisciplinares e com ênfase na prevenção(22. Dahlberg LL, Krug EG. Violence: a global public health problem. Cien Saude Colet. 2007;11(sup):1163-78.). Já a PNRMAV define suas estratégias, planos e instrumentos com ênfase nas ações de intervenção na situação de violência já instalada, como por exemplo, na recuperação e reabilitação. Tão importantes quanto as ações de atuação direta na situação ocorrida, são as ações de prevenção das violências e suas consequências e de promoção da saúde. As ações de promoção delineadas nas diretrizes da PNRMAV ficam restritas ao âmbito mais individual e comportamental das pessoas e comunidades, bem como muitas iniciativas são esperadas a partir dos trabalhadores de saúde, não havendo aportes mais estruturais para as ações e as mudanças, tais como as condições de trabalho e os recursos financeiros e materiais destinados para o desenvolvimento das ações. Por outro lado, isso pode revelar que não é possível buscar total compatibilidade com as diretrizes globais para nortearem políticas nacionais, uma vez que as realidades são mesmo muito diversas e heterogêneas.

As carências e fragilidades nas ações de prevenção da violência também são identificadas em políticas públicas e em sistemas de saúde de outros países que respondem a um modelo dicotômico da violência e que, por vezes, o próprio sistema de saúde não tem a questão da violência como prioridade, sendo a ênfase dada pelo sistema judicial e ficando difuso o papel do sistema sanitário(66. Loría KR, Rosado TG, Espinosa LMC, Marrochi, LM, Sánchez, AF. Trends in public health policies addressing violence against women. Rev Saude Publica. 2014;48(4):613-21.).

A PNRMAV define as responsabilidades dos gestores de cada instância do SUS, mas não define as responsabilidades do setor econômico, apesar de destacar a preocupação com o impacto que a situação da violência e dos acidentes podem gerar na economia em termos de despesas com cuidados de saúde e perdas de mão de obra. Nesse sentido, o Informe Mundial também apresenta a explícita preocupação com o impacto econômico gerado pela situação da violência no mundo.

Em relação à dimensão da construção oficial de arenas, canais e rotinas para orientar os processos decisórios, no Brasil é garantido pelo SUS espaços de apoio aos processos decisórios, como por exemplo, as conferências e conselhos de saúde e as comissões intergestores(44. Fleury S, Ouverney AM. Política de saúde: uma política social. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2012. p. 25-57.). No âmbito internacional, a situação apresentada pelo Informe Mundial diz respeito ao desconhecimento da real situação da violência por parte de muitas pessoas e autoridades que acabam por entender a violência como uma questão apenas de cunho jurídico e criminal(22. Dahlberg LL, Krug EG. Violence: a global public health problem. Cien Saude Colet. 2007;11(sup):1163-78.).

A assimilação, contraposição e compatibilização de diferentes projetos sociais aparecem na PNRMAV como a possiblidade de rearranjos e reajustes na própria Política por meio de mecanismos do Estado: a prática, os programas e o cumprimento de metas nacionais e internacionais(33. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 737, de 16 de junho de 2001. Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. 2a ed. Brasília; 2005.). Não são mencionados projetos constituídos na e pela comunidade. Já o Informe Mundial refere-se a inovações vindas de comunidades e governos locais que sofrem diretamente com as consequências da violência(22. Dahlberg LL, Krug EG. Violence: a global public health problem. Cien Saude Colet. 2007;11(sup):1163-78.).

Na dimensão do desenvolvimento, reprodução e transformação dos marcos institucionais, a PNRMAV e o Informe Mundial parecem estar alinhados em relação a ações que sejam multi e intersetoriais(22. Dahlberg LL, Krug EG. Violence: a global public health problem. Cien Saude Colet. 2007;11(sup):1163-78.,33. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 737, de 16 de junho de 2001. Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. 2a ed. Brasília; 2005.).

Na formação de referenciais teóricos e valorativos da vida social, o Informe Mundial traz como valor a saúde e o bem-estar da população mundial(22. Dahlberg LL, Krug EG. Violence: a global public health problem. Cien Saude Colet. 2007;11(sup):1163-78.). A PNRMAV reforça a conquista constitucional do SUS, sendo a saúde tida como um direito(33. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 737, de 16 de junho de 2001. Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. 2a ed. Brasília; 2005.). Incorpora a ideia de saúde como direito para o desenvolvimento social, mas também para o econômico. Considera o direito e respeito à vida como valores éticos e, novamente, destaca a promoção da saúde como elemento importante para embasar as ações de redução da violência, sem deixar claro quais seriam essas ações e como e com quais recursos (financeiros e humanos) seriam operacionalizadas.

Há um forte clamor no sentido de se combater a violência e isso se reforça pelo fato de ser uma situação que comporta uma série de valores humanos e éticos. No entanto, tão necessárias quanto as posturas e os comportamentos individuais com base nos valores éticos e humanos, são as ações de grande abrangência definidas nas políticas e de responsabilidade do Estado e dos governantes. Daí a necessidade de formulação de políticas claras e coerentes que deem sustentabilidade às ações, determinando diretrizes e garantindo as reais condições para que elas sejam implementadas, no sentido de transformar a realidade objetiva.

Em um estudo de revisão sistemática da literatura, foram discutidos os impactos da crise mundial − econômica e financeira de 2008 − sobre a saúde das crianças. Dentre os achados estão o aumento de mortes infantis em países da África e na Grécia e o aumento de riscos nutricionais (obesidade e desnutrição) devido à elevação do preço dos alimentos em situações de crise, que reduz a diversidade e qualidade nutricional das dietas, sendo os grupos vulneráveis os mais afetados, tal como as populações mais pobres das áreas urbanas, seja nos países desenvolvidos ou naqueles em desenvolvimento. Outro achado diz respeito a própria situação da violência contra as crianças, as quais são direta e indiretamente afetadas quando os problemas mentais, estresse, suicídios e violências atingem em maior número as famílias em tempos de crise. Experiências prévias também evidenciaram que ações de proteção desenvolvidas por um Estado de bem-estar, e que mantidas durante o período de crise, foram efetivas, não havendo impactos negativos ou tendo impactos mínimos sobre a saúde das crianças(77. Rajmil L, Sanmamed MJF, Choonara I, Faresjo, T, Hjern, A, Kozyrskyj, AL, Lucas, PJ, Raat, H, Séguin, L, Spencer, N, Taylor-Robinson, D. Impact of the 2008 economic and financial crisis on child health: a systematic review. Int J Environ Res Public Health. 2014;11:6528-46.). Isso reforça a importância da formulação de políticas que sejam capazes de intervir nos determinantes sociais para redução das iniquidades em saúde e das desigualdades que estruturam a sociedade capitalista.

Algumas repercussões na operacionalização da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências

Estudo realizado pelo Centro Latino-Americano de Estudos sobre Violência e Saúde (Claves/Fiocruz)(55. Minayo MCS, Deslandes SF. Análise da implantação da rede de atenção às vítimas de acidentes e violências segundo diretrizes da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade sobre Violência e Saúde. Cienc Saude Colet. 2009;14(5):1641-49.,88. Lima MLC. Sobre a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências hoje. Cien Saude Colet. 2009;14(5):1654-55.), em 2007, em parcerias com demais centros de pesquisas de cinco capitais brasileiras (Rio de Janeiro, Recife, Manaus, Curitiba e Brasília), traz informações acerca do quadro de morbimortalidade por violências e acidentes; adequação dos serviços pré-hospitalares móvel e fixo, hospitalar, de reabilitação e de promoção; formação profissional específica para lidar com esses agravos; vigilância e monitoramento e apoio a estudos e pesquisas nesta temática. Esse estudo já mostrou importantes avanços na organização do sistema de saúde em algumas capitais do país a partir da PNRMAV. Como avanços, são exemplos o atendimento móvel de urgência e os núcleos de estudos e programas voltados especificamente para lidar com a violência. Como alguns dos entraves a serem superados estão a desarticulação da rede de saúde e da comunicação entre gestores nas diversas instâncias de gestão do SUS, a precariedade das condições de trabalho representada no baixo número de trabalhadores e de recursos materiais e a falta de investimentos no setor saúde(55. Minayo MCS, Deslandes SF. Análise da implantação da rede de atenção às vítimas de acidentes e violências segundo diretrizes da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade sobre Violência e Saúde. Cienc Saude Colet. 2009;14(5):1641-49.,88. Lima MLC. Sobre a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências hoje. Cien Saude Colet. 2009;14(5):1654-55.).

Análises realizadas sobre a implementação da PNRMAV nessas cinco capitais brasileiras atentam para práticas engendradas de formas diferentes, mesmo que direcionadas por uma política que é nacional. Isso se dá pelo fato de estarem lidando com realidades diferentes, que interpretam e operacionalizam uma política por meio de sujeitos que também são diferentes entre si(99. Moysés SJ. Krempel MC. Dialogando sobre a implementação da Política Nacional de Saúde para Redução de Acidentes e Violências em cinco capitais brasileiras. Cien Saude Colet. 2009;14(5):1652-54.).

Neste sentido, a análise da PNRMAV feita neste artigo também não teve a pretensão de representar prioridades a serem adotadas para operacionalização dessa política, tampouco delinear um padrão de como ela deve ser interpretada e implementada. Todavia, a intenção foi proporcionar uma análise sistematizada da PNRMAV que, ao se buscar uma compreensão dos alinhamentos desta às perspectivas internacionais, foi possível identificar uma contradição interna na própria PNRMAV: apesar de seu objetivo estar na redução da morbimortalidade desses agravos, havendo ênfase para as ações de promoção da saúde delineadas nas diretrizes da PNRMAV, estas dizem respeito ao âmbito mais individual e comportamental das pessoas e comunidades, sendo muitas iniciativas esperadas na atuação dos trabalhadores de saúde, sem prever aportes mais estruturais, tais como melhorias nas condições de trabalho e aumento de recursos financeiros e materiais(33. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria GM/MS n. 737, de 16 de junho de 2001. Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. 2a ed. Brasília; 2005.).

Antes de partir para a discussão das repercussões na operacionalização da PNRMAV, fez-se, nesse contexto, fundamental refletir a respeito do padrão político e decisório adotado atualmente pelo Estado brasileiro, que parece estar fundamentado mais na adoção de medidas paliativas em relação à situação da violência.

Nesse sentido, observou-se que a PNRMAV se dá a partir da possível perspectiva em que a construção dessa política social foi centrada na sociedade e, por isso mesmo, é permeável aos interesses e competições entre grupos interessados muito mais na redução dos índices de morbimortalidade provocada pelas violências do que na sua ampla prevenção, baseada em determinações estruturalistas feitas pelo Estado para o funcionamento social. Restaria conhecer melhor os condicionantes impostos pela burocracia para o processo de implementação dessa política de saúde, bem como de que forma esta se articula com a política econômica ou dependeu dela para ser formulada. Com base nessa reflexão, faz-se necessário avançar em estudos que possibilitem análise mais precisa dos processos decisórios e das intermediações de interesses que envolvem o setor saúde no Brasil(1010. Viana ALA, Baptista TWF. Análise de políticas de saúde. In: Giovanella L, Escorel S, Lobato LVC, Noronha JC, Carvalho AI, organizadores. Políticas e sistema de saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2012. p. 59-87.).

A PNRMAV mostra que foi formulada para atender à demanda da população brasileira pela erradicação da violência, sem que fossem estabelecidos os critérios fundamentais para a sua prevenção, ou seja, atuação sobre os determinantes sociais com ações integradas de melhoria de educação, transporte, moradia, saúde, entre outros.

Isso implica repercussões na operacionalização da PNRMAV, podendo algumas serem discutidas a partir das experiências evidenciadas no estudo realizado pelo Claves(88. Lima MLC. Sobre a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências hoje. Cien Saude Colet. 2009;14(5):1654-55.): ausência de atendimento e assistência às famílias na prática dos serviços de saúde de qualquer nível de atenção, com exceção da capital Curitiba, na qual 58% das unidades estudadas atentavam para inclusão das famílias das pessoas que sofriam com agravos de acidentes e violências; possibilidades pouco exploradas de interação com os diversos setores sociais (escolas, universidades, organizações não governamentais, grupos comunitários, etc.); desarticulação no sistema de referências e contrarreferências entre os diversos equipamentos da rede de saúde; inexistência ou falta de registro de ações de prevenção e promoção da saúde no âmbito hospitalar; deficiência na composição de equipes interdisciplinares e falta de trabalhadores especializados; atendimentos dos acidentes e violências ainda centrados no modelo de atenção tradicional e focado nos cuidados médicos e biológicos, não avançando para o caráter da saúde enquanto direito dos cidadãos; dentre outros(88. Lima MLC. Sobre a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências hoje. Cien Saude Colet. 2009;14(5):1654-55.,1111. Melo E. Resenha: análise diagnóstica da Política Nacional de Saúde para Redução de Acidentes e Violências. Cad Saude Publica. 2008;24(7):1717-18.).

“Ações de prevenção são ainda muito pouco pensadas, institucionalizadas e empreendidas. Nossa pesquisa mostra que apenas metade dos serviços que atendem a vítimas de acidentes e violência cuida dessa importante ação que tem centralidade na PNRMAV, que coloca como sua diretriz principal a promoção da qualidade de vida e não apenas o tratamento dos agravos”(88. Lima MLC. Sobre a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências hoje. Cien Saude Colet. 2009;14(5):1654-55. p1645).

Mesmo com a prerrogativa da Estratégia Saúde da Família ser responsável pelo acompanhamento longitudinal dos usuários e suas famílias na rede de atenção em saúde com foco na prevenção e na promoçao da saúde e, ainda que as unidades básicas se destaquem por promover o encaminhamento e o acompanhamento dos casos, observa-se desarticulação e descontinuidades no cuidado quando se perpetuam as falhas na via da contrarreferência(88. Lima MLC. Sobre a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências hoje. Cien Saude Colet. 2009;14(5):1654-55.).

Somam-se a isso uma certa naturalização de atitudes de descaso e desvalorização para com ações de prevenção e promoção da saúde, o que reflete no pouco reconhecimento da importância dessas ações por parte da população e em baixos de investimentos públicos na esfera da Atenção Primária à Saúde.

Outro aspecto são as discrepâncias entre legislação e investimentos públicos e as influências de ordem mundial sobre a organização da sociedade e das políticas nacionais. As repercussões, em última instância, em especial nas áreas estratégicas de ações políticas, tais como educação e saúde serão sobre aqueles que dão a tônica da qualidade das ações realizadas, ou seja, nos próprios trabalhadores(1212. Cavalcanti MLT. A análise da implantação da PNRMAV ressalta os problemas do SUS. Cien Saude Colet. 2009;14(supl.1):1650-51.). A nível nacional, educação e saúde são áreas cada vez mais precarizadas pela falta de investimentos públicos e que pouco têm valorizado seus trabalhadores, uma vez que, a depender do momento político e dos planos de governo, sofrem com a especulação do mercado neoliberal que precarizam os processos de trabalhos e forçam para uma transformação de direitos fundamentais em mercadorias para geração de lucro.

Como visto, apesar de experiências bem-sucedidas e exitosas na implementação da PNRMAV, um número significativo de ações delineadas por esta políticaainda não foram implementadas ou enfretam grandes dificuldades para serem verdadeiramente efetivas, como é caso das ações de prevenção dos agravos e promoção da saúde, o que exemplifica a repercussão da contradição interna da PNRMAV, que dá ênfase à importância da promoção da saúde, mas não prevê mudanças mais estruturais, tal como aumento de investimentos políticos e financeiros nesta área.

Conclusão

Refletir sobre a PNRMAV, buscando o seu alinhamento às perspectivas internacionais com base na comparação com o Informe Mundial sobre Violência e Saúde, possibilitou compreender melhor como os organismos internacionais influenciam na definição da legislação dos países, mais especificamente no direcionamento em relação à violência no Brasil.

Foram encontrados tanto elementos de convergências quanto de divergências entre a PNRMAV e o Informe Mundial. A principal divergência diz respeito à ênfase na prevenção fortemente anunciada no Informe Mundial e que pouco aparece na PNRMAV, a qual tem como principal objetivo a redução de morbimortalidades causadas pelas violências, intervindo nas situações já instaladas. A partir daí, foi possível identificar uma contradição interna na própria PNRMAV, que dá ênfase para as ações de promoção da saúde, mas apresenta diretrizes que tangem iniciativas individuais, atitudinais e comportamentais das pessoas, comunidades e trabalhadores de saúde, sem prever mudanças mais estruturais da organização do sistema de saúde e demais setores da sociedade, tais como melhorias nas condições de trabalho e aumento de recursos financeiros.

Essa contradição tem implicações na operacionalização da PNRMAV em âmbito nacional, como evidenciado no estudo realizado pelo Claves(88. Lima MLC. Sobre a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências hoje. Cien Saude Colet. 2009;14(5):1654-55.) e apresentado no presente artigo como elemento para exemplificar a discussão. Dentre as várias experiências exitosas e as limitações para a implantação efetiva da PNRMAV, uma das principais contradições encontradas na sua operacionalização, e que é reflexo da própria contradição identificada na PNRMAV, foi o fato de existirem pouquíssimas ações destinadas à prevenção desses agravos e à promoção da saúde, sendo que na dimensão da construção e emprego de estratégias, planos e instrumentos, a principal ênfase foi dada na importância das ações de promoção da saúde.

Compreender a PNRMAV, no sentido de investigar os alinhamentos às perspectivas internacionais e buscando as repercussões na operacionalização dessa política no país deixa em aberto a possibilidade (e a importância) de reproduzir com outras políticas essa e outras propostas de análises desse cunho. E fica evidente a necessidade de desenvolver estudos que possam dar suporte para produção de políticas e que sejam potencialmente fortes para transformar a realidade da violência no mundo e no Brasil.

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    Artigo proveniente do trabalho final para conclusão da Disciplina: “Sociedade e Políticas de Saúde”, do Programa Interunidades de Doutoramento em Enfermagem da Escola de Enfermagem (EE) e Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da Universidade de São Paulo (USP). Apresentado em sessão de Comunicações Orais e publicado em Livro de Atas: Sakata KN, Egry EY, Narchi NZ. Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências no Brasil: os alinhamentos às perspectivas internacionais. Livro de Atas, volume II, do 3o. Congresso Ibero-Americano em Investigação Qualitativa. Jul 14-16; Badajóz, Espanha. Aveiro: Ludomedia; 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2014
  • Aceito
    16 Jul 2014
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