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Cuidado - essência da identidade profissional de Enfermagem

A criação do primeiro órgão de divulgação da enfermagem está ligada a figuras de pioneiras da enfermagem, como Edith de Magalhães Fraenkel, primeira diretora da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, e Rachel Haddock Lobo, então diretora da Escola Anna Nery, no Rio de Janeiro. Relata a história que, em julho de 1929, a Associação Brasileira de Enfermagem, representada por Edith, havia sido aceita oficialmente como membro do Conselho Internacional de Enfermeiras (CIE)11 Carvalho AC. Associação Brasileira de Enfermagem, 1926-1976: documentary. Brasília: ABEn; 1976. . Nesse evento, Edith encontrou-se com sua antiga mestra, Lillian Clayton, na ocasião presidente da Associação Americana de Enfermeiras, que lhe disse que "uma profissão para se desenvolver precisava de uma associação e de uma revista"11 Carvalho AC. Associação Brasileira de Enfermagem, 1926-1976: documentary. Brasília: ABEn; 1976. . Da sugestão à concretização da ideia, foram três anos de trabalhos das duas pioneiras, que lançaram a primeira revista brasileira de enfermagem, em 1932. Já a Revista da Escola de Enfermagem da USP surgiu em setembro de 1967, pelas mãos de outra pioneira notável, Maria Rosa Sousa Pinheiro, segunda diretora da mesma Escola, consolidando, assim, a ideia de Lillian Clayton sobre o desenvolvimento da profissão. Nesse primeiro número da nova Revista, que ora vem a completar seu cinquentenário, Maria Rosa deixou registrada a verdadeira saga histórica da fundação da Escola de Enfermagem.

Já no segundo volume dessa Revista, em 1968, Wanda de Aguiar Horta, outra figura lendária e docente da Escola, no afã de produzir sua teoria de enfermagem, buscava conceituar enfermagem, analisando definições de Florence Nightingale e de outras notáveis da profissão, como Irmã Maria Olivia, da Universidade Católica da América, e Virginia Henderson, terminando por apresentar seu próprio conceito, baseado no "assistir o ser humano no atendimento de suas necessidades básicas"22 Horta WA. Conceito de enfermagem. Rev Esc Enferm USP. 1968;2(2):1-5.. Desde aquela ocasião, essa questão conceitual vem permeando discussões e estudos na tentativa de definir a essência da enfermagem, como forma de caracterizar sua identidade profissional.

Nos primórdios da profissão, quando a enfermagem era praticada quase que exclusivamente por mulheres, as enfermeiras eram facilmente identificadas a distância dentro dos hospitais, em meio a todos os demais profissionais, pela tradicional touca, que era o símbolo universal das enfermeiras. Originalmente, a touca era derivada do hábito das religiosas que cobriam os cabelos com véus para significar recato e modéstia. O véu foi sendo encurtado e adaptado para as candidatas a - enfermeiras e transformou-se na touca, que passou a fazer parte do uniforme da enfermeira e seu uso foi mesmo estimulado por Florence Nightingale para dar aparência profissional. Com o aumento do número de homens na profissão, que nunca usaram touca, a necessidade de uniforme comum a ambos os sexos, e a questão de que as toucas poderiam transportar microrganismos, aquele conhecido símbolo identificador das enfermeiras caiu em desuso e desapareceu na década de 1970.

O que passaria, então, a ser a identidade profissional da enfermagem? Teoricamente parece claro que o que constitui a identidade desse profissional é a efetiva atividade de cuidar, diferenciando-o de outros profissionais e convertendo-se esta na realização técnica e única dentre todas as profissões de saúde. Com isso, o cuidado passa a constituir-se função essencial, fundamental ou a razão última que justificaria todas as atividades e competências dos profissionais de enfermagem. Entretanto, se existe unanimidade nessa assertiva entre enfermeiros, há ainda a considerar os sinais que estamos dispostos a produzir para demonstrar tal identidade. Na prática, aceitamos que a função essencial da profissão seja o CUIDAR, mas, simultaneamente, há uma forte resistência a ATUAR, de fato, como cuidador33 Castell RMA. La identidad profesional de la enfermera. Rev Rol Enferm. 1992;15(170):39-44. . Por que essa contradição? Um dos motivos pode ser o fato de que a atividade de cuidar seja realizada numa fase oculta, ou seja, trata-se daquele trabalho realizado num episódio de dependência do paciente, quando ele recebe cuidados de higiene, mesmo os mais íntimos, é alimentado, ou confortado em suas necessidades fisiológicas pelas mãos do cuidador. Outra razão histórica plausível remete à historiografia do cuidado, tendo em vista que este fazia parte do rol das atividades domésticas, ligadas às mulheres, um trabalho invisível e desvalorizado socialmente.

Nesse sentido, as técnicas constituíram-se em instrumento de trabalho para o cuidado, e o saber administrativo em instrumento de trabalho para a organização do ambiente. Assim, a dimensão prática das técnicas e a dimensão prática do saber administrativo resultaram na divisão técnica do trabalho na enfermagem: alguns agentes administrando e outros executando44 Almeida MCP, Rocha SMM. O trabalho de enfermagem. São Paulo: Cortez; 1997.. Contudo, há quem considere que "as funções desempenhadas pela enfermeira caracterizam, destarte, uma supervalorização dos aspectos administrativos e de supervisão do pessoal auxiliar, em detrimento dos aspectos técnico-assistenciais, apesar de serem estes os que evidenciam a perícia e a excelência"55 Carvalho V, Castro IB. Reflexões sobre a prática da enfermagem. In: Anais do 31º Congresso Brasileiro de Enfermagem; 1979 ago. 5-11, Fortaleza, CE. Fortaleza: ABEn; 1979. p. 51-9..

Poucos pacientes lembram quem os banhou, cuidou, higienizou ou atendeu. Sempre é mais glamouroso recordar e relatar aos amigos os exames e procedimentos sofisticados ou a cirurgia ou outro tratamento especializado a que foi submetido. Como resgatar o valor do cuidado do ser humano sem menosprezar o valor das tecnologias, que podem contribuir para o primeiro como uma mola propulsora da qualidade e da segurança assistenciais, tão preconizadas nos dias atuais? O ser que cuida não pode negligenciar o valor das técnicas/tecnologias, já que a enfermagem consiste em "gente que cuida de gente", como já dizia a professora Wanda de Aguiar Horta em seus ensinamentos22 Horta WA. Conceito de enfermagem. Rev Esc Enferm USP. 1968;2(2):1-5..

Mais recentemente, alguns autores66 Johnson M, Cowin LS, Wilson I, Young H. Professional identity and nursing: contemporary theoretical developments and future research challenges. Int Nurs Rev. 2012;(59):562-9. também corroboram essa necessidade de construir uma identidade profissional. Embora as características da identidade profissional possam ser alteradas ao longo dos tempos, a identificação como enfermeira permanece uma força poderosa, conferindo-lhe reconhecimento dentro de um grupo social mais amplo. Em suma, a história sugere que a busca por uma identidade profissional agrega significados à vida e ao trabalho77 Lynaugh JE. Identity: the meaning of nursing. In: Baer ED, D'Antonio P, Rinker S, Lynaugh JE. Enduring issues in American Nursing. New York: Springer; 2002..

References

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    Castell RMA. La identidad profesional de la enfermera. Rev Rol Enferm. 1992;15(170):39-44.
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    Almeida MCP, Rocha SMM. O trabalho de enfermagem. São Paulo: Cortez; 1997.
  • 5
    Carvalho V, Castro IB. Reflexões sobre a prática da enfermagem. In: Anais do 31º Congresso Brasileiro de Enfermagem; 1979 ago. 5-11, Fortaleza, CE. Fortaleza: ABEn; 1979. p. 51-9.
  • 6
    Johnson M, Cowin LS, Wilson I, Young H. Professional identity and nursing: contemporary theoretical developments and future research challenges. Int Nurs Rev. 2012;(59):562-9.
  • 7
    Lynaugh JE. Identity: the meaning of nursing. In: Baer ED, D'Antonio P, Rinker S, Lynaugh JE. Enduring issues in American Nursing. New York: Springer; 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2016
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