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Doença crônica na infância e adolescência: continuidade do cuidado na Rede de Atenção à Saúde * * Extraído da dissertação “Longitudinalidade e continuidade do cuidado à criança/adolescente com doença crônica e sua família nos serviços de saúde”, Universidade Federal da Paraíba, 2014.

Resumo

OBJETIVO

Analisar a continuidade do cuidado à criança/adolescente com doença crônica na rede de atenção à saúde.

MÉTODO

Pesquisa qualitativa realizada entre fevereiro e outubro de 2013 com 12 familiares, seis gestores e 14 profissionais de saúde de diferentes serviços da rede de saúde de um município da Paraíba através das técnicas de grupo focal, entrevista semiestruturada e consulta a prontuários. A triangulação dos dados e a análise temática subsidiaram a interpretação dos dados.

RESULTADOS

Foram construídas duas categorias: "Gestão da atenção à saúde" e "(Des)continuidade do cuidado". Constataram-se lacunas como a ausência de cadastro para favorecer o acompanhamento e nortear o planejamento de ações; atendimento pontual e desarticulado entre os serviços com fragilidade no fluxo de informações, que obstaculizam o seguimento ao longo do tempo.

CONCLUSÃO

A continuidade do cuidado na rede de atenção à saúde está fragilizada e há necessidade do desenvolvimento de estratégias que a favoreçam.

Descritores
Saúde da Criança; Saúde do Adolescente; Doença Crônica; Continuidade da Assistência ao Paciente; Atenção à Saúde; Enfermagem Pediátrica

abstract

OBJECTIVE

To evaluate the continuity of care for children and adolescents with chronic diseases in the health care network.

METHODS

This qualitative study was conducted between February and October 2013 with 12 families, six health managers, and 14 health professionals from different health care services in a municipality of the state of Paraíba, Brazil, using focal groups, semi-structured interviews, and medical record consultation. The data were analyzed by triangulation and thematic analysis.

RESULTS

Two categories were created: “health care management” and “(dis)continuity of care.” We found gaps in the system, including poor data recording aimed to facilitate follow-up and guide the planning actions as well as sporadic and discoordinate services with a limited flow of information, which hinders follow-up over time.

CONCLUSION

Continuity of care in the health care network is limited and creates the need to develop strategies to improve these services.

Descriptors
Child Health; Adolescent Health; Chronic Disease; Continuity of Patient Care; Health Care; Pediatric Nursing

Resumen

OBJETIVO

Enfermedad crónica en la infancia y adolescencia: continuidad del cuidado en la red de atención sanitaria.

MÉTODO

Investigación cualitativa realizada entre febrero y octubre de 2013 con 12 familiares, seis gestores y 14 profesionales sanitarios de distintos servicios de la red sanitaria de un municipio de Paraíba mediante las técnicas de grupo focal, entrevista semiestructurada y consulta a fichas. La triangulación de los datos y el análisis temático subsidiaron la interpretación de los datos.

RESULTADOS

Fueron construidas dos categorías: "Gestión de la atención sanitaria" y "(Des)continuidad del cuidado". Se advirtieron lagunas como la ausencia de registro para favorecer el seguimiento y orientar la planificación de acciones; atención puntual y desarticulada entre los servicios con fragilidad en el flujo de informaciones, que obstaculizan el seguimiento a lo largo del tiempo.

CONCLUSIÓN

La continuidad del cuidado en la red de atención sanitaria está fragilizada y existe la necesidad del desarrollo de estrategias que la favorezcan.

Descriptores
Salud del Niño; Salud del Adolescente; Enfermedad Crónica; Continuidad de la Atención al Paciente; Atención a la Salud; Enfermería Pediátrica

Introdução

A população de crianças e adolescentes com doenças crônicas cresce em todo o mundo. Nos Estados Unidos, cerca de 14% da população tem uma doença crônica, e 9,6%, duas ou mais11 National Survey of Children's Health. Child and Adolescent Health Measurement Initiative (CAHMI), “2011-2012 NSCH: Child Health Indicator and Subgroups SAS Codebook, Version 1.0” 2013 [Internet]. Maryland; 2013 [cited 2016 Feb 02]. Available from: Available from: http://childhealthdata.org/docs/nsch-docs/sas-codebook_-2011-2012-nsch-v1_05-10-13.pdf
http://childhealthdata.org/docs/nsch-doc...
. No Brasil, uma pesquisa22 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: um panorama da saúde no Brasil, acesso e utilização dos serviços, condições de saúde e fatores de risco e proteção à saúde, 2008. Rio de Janeiro: IBGE; 2010. apontou realidade semelhante em que 9,1% das crianças de 0 a 5 anos; 9,7% de 6 a 13 anos e 11% dos adolescentes de 14 a 19 anos do total geral da população nessa faixa etária tem doença crônica. Foram investigados 12 problemas crônicos de saúde, porém as áreas de hematologia, saúde mental, psiquiatria e distúrbios de desenvolvimento não foram incluídas, podendo ampliar consubstancialmente esse percentual e a significância desses dados para a saúde pública brasileira.

As doenças crônicas fazem parte de um conjunto de condições crônicas, com duração longa ou indefinida, prognóstico geralmente incerto e que apresentam períodos de remissão e exacerbação sintomatológica ao longo do tempo, requerendo um processo de cuidado contínuo sem que, necessariamente, resulte em cura33 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Documento de diretrizes para o cuidado das pessoas com doenças crônicas nas Redes de Atenção à Saúde e nas linhas de cuidado prioritárias. Brasília: MS; 2013. .

No Brasil, a Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas, redefinida pela Portaria n° 483/14 do Ministério da Saúde (MS), tem o intuito de atender à necessidade de um processo contínuo de cuidado a essas pessoas, preconizando atenção integral em todos os pontos da rede, com realização de ações e serviços de promoção e proteção, prevenção de agravos, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos e manutenção da saúde44 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n. 483, de 01 de abril de 2014. Redefine a Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e estabelece diretrizes para a organização das suas linhas de cuidado. Diário Oficial da União, Brasília, 02 abr. 2014. Seção 1, p. 50.. Embora essa Portaria tenha o propósito de abranger todo o ciclo vital, ações direcionadas especificamente à criança/adolescente com doença crônica não são explicitadas. Tendo em vista as especificidades dessa população, reconhece-se uma lacuna importante na política pública nacional que expõe esses indivíduos à maior vulnerabilidade na medida em que os serviços não estão preparados e abertos para recebê-los e dar respostas efetivas aos seus problemas crônicos de saúde, repercutindo na continuidade do cuidado.

A continuidade do cuidado é reconhecida como um aspecto do cuidado vivenciado ao longo do tempo pelas pessoas que recorrem aos serviços de saúde e como estes se integram para coordenar as ações e manter o cuidado articulado coerentemente55 Zanello E, Calugi S, Rucci P, Pieri G, Vandini S, Faldella G, et al. Continuity of care in children with special healthcare needs: a qualitative study of family’s perspectives. Ital J Pediatr. 2015;41:7. . Nesse contexto, a Estratégia Saúde da Família (ESF) possui a proposta de reorganizar a Atenção Primária à Saúde (APS) e coordenar o cuidado66 Duarte ED, Silva KL, Tavares TS, Nishimoto CLJ, Silva PM, Sena RR. Care of children with a chronic condition in primary care: challenges to the healthcare model. Texto Contexto Enferm. 2015;24(4):1009-17. para garantir essa continuidade na perspectiva da longitudinalidade. Todavia, não tem respondido com resolutividade às demandas da criança/adolescente com doença crônica e sua família, o que resulta em insatisfação e no não reconhecimento desse serviço como fonte de confiança para o cuidado77 Neves ET, Silveira A, Arrué AM, Pieszak GM, Zamberlan KC, Santos RP. Rede de cuidados de crianças com necessidades especiais de saúde. Texto Contexto Enferm. 2015;24(2):399-406. .

Estudos66 Duarte ED, Silva KL, Tavares TS, Nishimoto CLJ, Silva PM, Sena RR. Care of children with a chronic condition in primary care: challenges to the healthcare model. Texto Contexto Enferm. 2015;24(4):1009-17. ,88 Coelho APC, Larocca LM, Chaves MMN, Felix JVC, Bernadino E, Alessi SM. Healthcare management of tuberculosis: integrating a teaching hospital into Primary Health Care. Texto Contexto Enferm. 2016;25(2):e0970015. apontam como limitações para a continuidade do cuidado lacunas no sistema de referência e contrarreferência, bem como fragilidade da articulação do Sistema Único de Saúde como um todo, em decorrência da ineficiência da comunicação entre os serviços e os profissionais da rede de atenção. Ademais, nos Estados brasileiros há dificuldade de acesso e distribuição inadequada de serviços capacitados para o atendimento da criança com doença crônica99 Pedroso MLR, Motta MGC. Children and family living with chronic conditions: mesosystem in connection with program vulnerability. Texto Contexto Enferm. 2013;22(2):493-9. , que impõem às famílias constante peregrinação pela rede de atenção, muitas vezes, em uma busca sem êxito por atendimento1010 Costa EAO, Dupas G, Sousa EFR, Wernet M. Children’s chronic disease: family needs and their relationship with the Family Health Strategy. Rev Gaúcha Enferm. 2013;34(3):72-8. .

Emerge assim a necessidade de refletir sobre o trabalho da Rede de Atenção à Saúde (RAS) e as especificidades do cuidado à criança/adolescente com doença crônica, que precisa ter ao seu dispor uma rede de cuidado integrada e qualificada para atender a suas demandas singulares em saúde.

Nesse contexto, questionou-se: como tem sido efetivada a continuidade do cuidado à criança/adolescente com doença crônica na rede de atenção à saúde? Para tal, objetivou-se analisar a continuidade do cuidado à criança/adolescente com doença crônica na RAS.

Método

Estudo qualitativo cuja construção e análise foram embasadas nos documentos oficiais do Ministério da Saúde sobre as Redes de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas. Participaram 12 familiares de crianças/adolescentes com doença crônica, 14 profissionais de saúde e seis gestores de um município na Paraíba, Brasil, totalizando 32 participantes.

A coleta dos dados ocorreu entre fevereiro e outubro de 2013. Na primeira fase do estudo, identificaram-se os familiares de criança/adolescente com doença crônica em hospital de referência dessas enfermidades. Essa decisão ocorreu em virtude de estudo77 Neves ET, Silveira A, Arrué AM, Pieszak GM, Zamberlan KC, Santos RP. Rede de cuidados de crianças com necessidades especiais de saúde. Texto Contexto Enferm. 2015;24(2):399-406. apontar um distanciamento desses usuários dos serviços da ESF. Os critérios de inclusão dos familiares foram: ser um dos principais responsáveis pelo acompanhamento da criança/adolescente com doença crônica; e ter mais de 18 anos. Excluiu-se o familiar de criança/adolescente com menos de 1 ano de diagnóstico, por acreditar ser o tempo necessário para vivenciar experiências de cuidado na rede de atenção.

As técnicas utilizadas com os familiares foram: Grupo Focal (GF) e entrevista individual. Realizaram-se dois GFs incluindo cinco e quatro participantes, respectivamente, e três entrevistas semiestruturadas individuais, cujo conteúdo disparador de ambas foi: quais serviços da RAS foram procurados pela família e o que cada um fez para ajudá-los no cuidado ao seu filho.

Os participantes que residiam no município pesquisado foram convidados a participar da segunda fase da pesquisa. Esta consistia em consultar o prontuário do hospital e da ESF para identificar os registros dos profissionais acerca dos atendimentos à criança/adolescente e dos encaminhamentos realizados, cujo conteúdo foi transcrito em Diário de Campo (DC), e entrevistar individualmente os profissionais da ESF responsáveis pelas famílias residentes no município em estudo. Houve recusa de um familiar em participar dessa fase, pois gostaria de manter em sigilo o diagnóstico da doença da criança.

Também foram realizadas entrevistas semiestruturadas individuais com profissionais de saúde do hospital em estudo e gestores que atuavam como apoiadores dos cinco distritos sanitários de saúde e na coordenação da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), em seus locais de trabalho. A questão norteadora para profissionais de saúde foi: como é a assistência à criança/adolescente com doença crônica e à sua família no serviço em que você trabalha?; e dos gestores: qual sua percepção sobre a atenção à saúde da criança/adolescente com doença crônica no município? Todas as entrevistas individuais, com duração média de 40 minutos, e os GFs, com duração média de 100 minutos, foram gravados com a anuência dos participantes.

Os critérios de inclusão para profissionais de saúde foram: ser enfermeiro ou médico dos serviços de saúde em questão ou ser Agente Comunitário de Saúde das unidades de saúde da família de adscrição das famílias; e estar atuando no cargo, no mínimo, há 6 meses. Para os gestores, os critérios de inclusão foram: atuar na área de saúde da criança e do adolescente no município e estar no cargo, no mínimo, há 6 meses. Um único pesquisador realizou toda a coleta de dados, utilizando para o encerramento o critério de suficiência, quando se julgou que o material produzido permitiu traçar um quadro compreensivo do objeto em estudo1111 Minayo MCS, Assis SG, Souza ER. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2014..

O material empírico foi submetido à interpretação temática com triangulação dos dados, seguindo-se três etapas: pré-análise, com a leitura exaustiva do conjunto de entrevistas e registros do DC para uma primeira organização; codificação e construção dos temas e categorias; e análise final com interpretação dos resultados produzidos1212 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014.. Não foi possível incluir fragmentos dos relatos de todos os entrevistados no texto devido à limitação de espaço para a elaboração do artigo. Porém, todos os participantes foram incluídos na análise e contribuíram para a construção do conhecimento acerca da continuidade do cuidado à criança/adolescente com doença crônica.

A Resolução nº 466/121313 Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012. Dispõe sobre diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos [Internet]. Brasília; 2012 [citado 2016 jul.08]. Disponível em: Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf
http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/...
, do Conselho Nacional de Saúde, norteou o estudo, e o projeto foi aprovado sob o protocolo nº 184.351 e CAAE 11444412.8.0000.5183. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e para garantir-lhes o anonimato, foram identificados por letras, Familiar (F), Profissional (P) e Gestor (G), seguidos da numeração cronológica de realização da entrevista. As entrevistas em grupo com familiares apresentam dois números: o primeiro, anterior à letra, referente ao número do grupo, e o segundo, posterior, caracteriza o familiar (1F1). Os serviços de saúde hospitalares citados durante as entrevistas também foram identificados por letras (A, B e C).

Resultados

Foram construídas duas categorias empíricas: Gestão da atenção à saúde da criança/adolescente com doença crônica abordando a percepção dos entrevistados sobre a organização da rede de atenção para a gestão do cuidado; e a (Des)continuidade do cuidado à criança/ao adolescente com doença crônica apresentando os nós críticos da rede de atenção que inviabilizam a continuidade do cuidado, bem como as repercussões para a saúde das crianças/adolescentes com doença crônica e suas famílias.

Gestão da atenção à saúde da criança/adolescente com doença crônica

O planejamento das ações no município em estudo tem como base os programas e as políticas estabelecidas pelo MS e ainda não é valorizado o cuidado a crianças/adolescentes com doença crônica e suas famílias:

(...) na Secretaria de saúde existem os grupos de trabalho e cada um tem uma linha de cuidado. (...) Sempre nos reunimos quinzenalmente para discutirmos essas políticas e como desenvolvê-las no município, (...) eu não vejo nada destinado especialmente à criança crônica (G2).

A área temática ainda é muito focada nos programas que o Ministério preconiza para a ESF (...). Acredito que (a atenção à criança/adolescente com doença crônica) ainda seja uma fragilidade (G3).

(...) Sinto que ainda tem um pouco de fragilidade em relação à puericultura e ao acompanhamento mais de perto em relação a essas crianças. (...) Poderíamos fazer a captação (na puericultura) dessas crianças com doenças crônicas. (...) Não tínhamos a saúde da criança enquanto indicador, e aí ficávamos um pouco a desejar, porque não corríamos atrás (G6).

A atenção da rede não é organizada sob a perspectiva de compartilhamento de responsabilidades, mantendo-se a percepção hierárquica da organização:

Eu acho que o fluxo da rede ainda está muito mal, muito desestruturado para o atendimento (à criança/adolescente com doença crônica). Então, é preciso estruturar a rede, quem é baixa complexidade, quem é alta complexidade (P1).

A rede fragilizada dificulta a gestão da atenção no acompanhamento e controle da doença crônica:

Não existe um trabalho de desospitalização desse paciente crônico. Ele tem alta e sabemos que em menos de um mês vai voltar pior, descompensado. Não existe uma rede lá fora que esteja apta a recebê-lo (P1).

Diante dessas lacunas, gestores apontaram a necessidade dos profissionais promoverem mudanças em seu processo de trabalho para que essa realidade seja transformada:

(...) É preciso entender a política, a doença crônica, mas é preciso ter estratégia de alcance, (...) os profissionais das equipes de saúde têm que ter ciência do que é o SUS. (...) Não dá para a unidade só preencher formulário (G1).

Essas lacunas na organização interferem na continuidade do cuidado e são percebidas pelos familiares que clamam providências:

Falta às autoridades terem consciência que essas crianças existem realmente, que precisam e têm necessidades de serem cuidadas (2F2).

(Des)continuidade do cuidado à criança/ao adolescente com doença crônica

A RAS ainda não foi efetivada em ações no cotidiano, especialmente no que se refere à garantia da continuidade do cuidado à criança/adolescente com doença crônica.

Não vejo comunicação entre os serviços da rede (P3).

Na realidade não sei se na ESF eles são acompanhados ou simplesmente encaminham para nós (hospital A) e fica nisso (P2).

Não tem nenhum profissional de saúde para acompanhar ela na minha cidade (2F4).

Não existe um levantamento das crianças e adolescentes com doenças crônicas aqui no Distrito (G4).

Ao consultar os prontuários, tanto no hospital quanto na ESF, foram identificados alguns empecilhos para a garantia da continuidade informacional, como a desorganização das fichas de registros de dados, anotações incompletas, ilegíveis e sem a identificação do profissional responsável.

Nos prontuários do hospital, detectaram-se muitas informações repetitivas e sem subsídios importantes para o cuidado, as quais, na maioria das vezes, limitavam-se ao registro do cumprimento das atribuições da equipe de saúde.

Na consulta do prontuário da ESF foi possível confirmar os relatos dos familiares, no que se refere à fragilidade do vínculo com o serviço e a equipe, constatada pela escassez de registros dos profissionais da equipe, ausência de registros com informações sobre o acompanhamento da saúde da criança e raros registros de utilização do serviço, restringindo-se ao atendimento quando exacerbado os sinais e sintomas de alguma doença para tratamento medicamentoso com antibiótico, sem acompanhamento da resolutividade. Dos cinco prontuários consultados na ESF, somente um dava suporte ao cuidado clínico, com informações sobre o atendimento e acompanhamento do tratamento medicamentoso na ESF.

Não obstante, o compartilhamento de informações na RAS entre os profissionais e serviços está deficitário:

Nunca os serviços que cuidam dele se comunicam. Eu que já saio e digo o que passou e o que aconteceu, o que tomou, o que não deu certo. Sempre sou eu mesmo que falo e resolvo (F1).

Não entramos em contato com a nova unidade porque o vínculo é por área e por rua. Eles (os profissionais da ESF da nova área) nunca pediram (informações a respeito de criança) (P14).

A fragilidade na comunicação e no trabalho integrado dos serviços constituintes da RAS obstaculiza seu funcionamento:

Não vejo essa rede funcionando bem, é uma rede que funciona através de favores, de acordo com as nossas influências, de ligação, de pedir, de favor e tudo (P6).

A articulação (na rede) é entre os médicos, o que facilita é isso. Por amizade se consegue (P5).

O acesso dificultado aos serviços da rede e a ausência de referência e contrarreferência repercute negativamente na saúde da criança/adolescente com doença crônica e em sua família:

Para quase todos os lugares que ia era dificultado. Eu estava no hospital B para repor a sonda, não me atenderam, mandaram eu ir para o hospital C, e o hospital C me mandou de volta. Desde três horas até quase meia noite, sem se alimentar (criança), tendo crises convulsivas, porque estava sem tomar a medicação e não teve nenhuma assistência (2F1).

As dificuldades no acompanhamento da criança/adolescente com doença crônica estão relacionadas à ausência de feedback das especialidades quando há encaminhamento dessa para consultas (P11).

Há desresponsabilização pela construção de um Projeto Terapêutico Singular articulado aos demais níveis assistenciais:

Infelizmente não temos um serviço (de ESF) voltado para esses casos, eles são assistidos pelos especialistas e quando precisam renovar, por exemplo, uma receita, faço a transcrição (P12).

Médico de PSF (Programa Saúde da Família) que vê minha luta e tudo, procurasse se interessar mais em saber como lidar com essa doença, porque ainda não vejo esse esforço da área que sou atendida. Para ir lá (na ESF), chegar e passar o encaminhamento para internar, eu já venho direto (para o hospital) (F3).

Os profissionais da ESF tentam justificar essa falta de atitude:

A demanda de usuários na ESF é grande para o atendimento curativo, além de o Ministério da Saúde propor muitas ações para os profissionais da ESF executar, o que impede maior dedicação para os casos de crianças/adolescentes com doença crônica (P10).

Outro obstáculo à continuidade do cuidado encontra-se na assistência farmacêutica:

A medicação é cara, está vindo regularmente e daqui a pouco é interrompido (o fornecimento) e não tem uma notícia de quando vai ser feito isso de novo (P13).

Discussão

A organização da atenção à saúde da criança/adolescente com doença crônica deve favorecer a integralidade do cuidado, com garantia de acesso à rede de serviços para acompanhá-los em suas necessidades singulares e nas inerentes à doença crônica. Nessa perspectiva, as RASs foram criadas para reorganizar o sistema de saúde de acordo com as necessidades da população33 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Documento de diretrizes para o cuidado das pessoas com doenças crônicas nas Redes de Atenção à Saúde e nas linhas de cuidado prioritárias. Brasília: MS; 2013. , de modo a garantir essa atenção.

Todavia, o planejamento de ações tem sido focado em programas e políticas disparadas pelo MS e, deste modo, tem reproduzido os limites das políticas brasileiras de atenção às doenças crônicas, como a Portaria nº 483/201444 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n. 483, de 01 de abril de 2014. Redefine a Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e estabelece diretrizes para a organização das suas linhas de cuidado. Diário Oficial da União, Brasília, 02 abr. 2014. Seção 1, p. 50., no que diz respeito ao planejamento de estratégias voltadas ao cuidado da crianças/adolescentes com doença crônica. Dessa forma, estas permanecem invisíveis às ações programáticas da gestão e, portanto, aos profissionais e serviços de saúde. Essa situação é preocupante, visto que, no cotidiano, as equipes da ESF focam ações disparadas pelos gestores, inviabilizando a construção do diagnóstico situacional e o planejamento estratégico, com base nas necessidades singulares dos usuários do território.

Na Itália, onde o atendimento é gratuito e universal financiado pelo governo, os cuidados de saúde primários são realizados por pediatras de família remunerados por captação e responsáveis por assegurar a coordenação e a continuidade dos cuidados entre os serviços e profissionais de saúde, porém ainda apresentando limitações55 Zanello E, Calugi S, Rucci P, Pieri G, Vandini S, Faldella G, et al. Continuity of care in children with special healthcare needs: a qualitative study of family’s perspectives. Ital J Pediatr. 2015;41:7. . Entretanto, reconhecem-se avanços quando comparados ao Brasil, como a elaboração do projeto SpeNK, específico para atender às singularidades das crianças até os 16 anos de idade com condições de saúde complexas ou crônicas e necessidades especiais de cuidados de saúde. O projeto SpenNK apresenta os procedimentos de alta hospitalar e as vias clínicas integradas para o acompanhamento da criança bem como orientações para avaliar a continuidade do cuidado pela família e o papel do pediatra da família55 Zanello E, Calugi S, Rucci P, Pieri G, Vandini S, Faldella G, et al. Continuity of care in children with special healthcare needs: a qualitative study of family’s perspectives. Ital J Pediatr. 2015;41:7. .

Hodiernamente no Brasil, as ações para o cuidado às crianças com condições crônicas não se diferenciam das ações programáticas estabelecidas pela SMS para as demais crianças atendidas66 Duarte ED, Silva KL, Tavares TS, Nishimoto CLJ, Silva PM, Sena RR. Care of children with a chronic condition in primary care: challenges to the healthcare model. Texto Contexto Enferm. 2015;24(4):1009-17. . Assim, corroboram os resultados deste estudo em que os profissionais de saúde não pensam nas singularidades desse grupo, acomodando-se e esperando cobranças da gestão para implementar ações à criança/adolescente com doença crônica.

A realidade encontrada é denominada de vulnerabilidade programática. Esta é decorrente de lapsos de atitudes das pessoas responsáveis pela construção, implementação e avaliação de políticas e programas norteadores da prática cotidiana nos serviços de saúde99 Pedroso MLR, Motta MGC. Children and family living with chronic conditions: mesosystem in connection with program vulnerability. Texto Contexto Enferm. 2013;22(2):493-9. .

Essas lacunas desencadeiam reflexos nas ações dos serviços a essa população, pois uma inadequada gestão traz prejuízos para a organização e a qualidade da atenção ofertada99 Pedroso MLR, Motta MGC. Children and family living with chronic conditions: mesosystem in connection with program vulnerability. Texto Contexto Enferm. 2013;22(2):493-9. . A alienação no processo de trabalho da ESF, na qual a gestão direciona ações e condutas padronizadas a serem executadas no cotidiano, faz com que os profissionais realizem ações sem refletir e sem considerar as particularidades locais1414 Cardoso JR, Oliveira GN, Furlan PG. Gestão democrática e práticas de apoio institucional na Atenção Primária à Saúde no Distrito Federal, Brasil. Cad Saúde Pública. 2016;32(3):e00009315. e, automatizados, tendem a não se interessar pela promoção da saúde e pelo conhecimento das necessidades da população sob sua responsabilidade1515 Flisch TMP, Alves RH, Almeida AC, Torres HC, Schall VT, Reis DC. Como os profissionais da atenção primária percebem e desenvolvem a Educação Popular em Saúde? Interface (Botucatu) 2014; 18 Supl 2:1255-68. . No caso em questão, as ações planejadas limitaram-se à puericultura, não abrangendo a complexidade e singularidade dessa população.

Em decorrência da vulnerabilidade programática, há o desenvolvimento de um trabalho com intervenções desconexas que, isoladas, são incapazes de produzir modificações importantes na saúde de grupos99 Pedroso MLR, Motta MGC. Children and family living with chronic conditions: mesosystem in connection with program vulnerability. Texto Contexto Enferm. 2013;22(2):493-9. , como o de crianças/adolescentes com doenças crônicas.

Adicionalmente, a concepção dos profissionais de saúde sobre o seu processo de trabalho também converge para a oferta de um atendimento pontual e pobre em suas ações1616 Rehem T, Silva A, Vasconcelos A, Ciosak S, Egry E. Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária: percepção de usuários e profissionais de saúde. Atas CIAIQ [Internet] 2016 [citado 2016 jul 08];2:1039-48. Disponível em: Disponível em: http://proceedings.ciaiq.org/index.php/ciaiq2016/article/view/852/838 .
http://proceedings.ciaiq.org/index.php/c...
. Essa organização fragmentada e desconexa para gerir a atenção à saúde, tanto em nível programático quanto local, é incapaz de suprir as necessidades de cuidado à criança/adolescente com doença crônica e sua família, uma vez que necessitam de atenção contínua, permeada por responsabilização, acolhimento e comprometimento dos profissionais responsáveis pelo planejamento de ações, direta e indiretamente. Além disso, necessitam de uma rede de atenção que supra as necessidades em saúde dessa população nas diferentes fases da doença.

Historicamente, no Brasil, a atenção à saúde volta-se para os problemas agudos, persistindo esse modo de organizar o trabalho na atualidade. No entanto, essa forma fragmentada de organização do trabalho nos serviços de saúde foi desenhada para funcionar reativamente à busca do usuário, resultando em lacunas importantes no cuidado às condições crônicas33 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Documento de diretrizes para o cuidado das pessoas com doenças crônicas nas Redes de Atenção à Saúde e nas linhas de cuidado prioritárias. Brasília: MS; 2013. .

Há necessidade também de superar esse pensamento de organização hierárquica, para efetivar, na prática, o funcionamento dos serviços em redes poliárquicas de atenção à saúde, que rompem as relações verticalizadas e permitem a oferta de um cuidado contínuo e integral à determinada população em todos os pontos de atenção, coordenado pela ESF1717 Mendes EV. A construção social da Atenção Primária à Saúde. Brasília: Conselho Nacional de Secretários de Saúde; 2015..

Um programa de atenção à saúde funciona de forma integrada se o seu planejamento também for feito de modo integrado, pois todos os serviços participantes precisam atuar com o mesmo nível de eficiência para garantir a qualidade do cuidado prestado1818 Rucci P, Latour J, Zanello E, Calugi S, Vandini S, Faldella G, et al. Measuring parents’ perspective on continuity of care in children with special health care needs. Int J Integr Care [Internet] 2015 [cited 2016 June 28];15:e046. Available from: Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4843181/
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
. Cada serviço precisa ser um ponto do sistema que ofereça vínculo e responsabilização para as famílias das crianças em condição crônica, buscando ofertar cuidado singular para o manejo adequado da doença.

Entretanto, no Brasil, muitos municípios não têm serviços capacitados para dar assistência às doenças crônicas e, muitas vezes, as famílias deparam-se com profissionais sem a competência necessária para promover o cuidado de seus filhos e sem conhecimento sobre a doença99 Pedroso MLR, Motta MGC. Children and family living with chronic conditions: mesosystem in connection with program vulnerability. Texto Contexto Enferm. 2013;22(2):493-9. . Com isso, estes são encaminhados a várias especialidades médicas, gerando altos custos ao sistema, além de desgastar a confiança da família, gerar frustação e promover o agravamento dos problemas de saúde não resolvidos1919 Lister G. 2011 Joseph W. St Geme Jr lecture: five things I'd like to see changed in american pediatrics, five lessons I've learned. Pediatrics. 2012;129(5):961-7..

Capacitar profissionais de saúde para cuidar das crianças/adolescentes com doenças crônicas e suas famílias e mobilizar estratégias para estabelecer a articulação e a comunicação entre os serviços da rede constituem-se em ações fundamentais para qualificar o cuidado.

Esses nós críticos da RAS precisam ser reconhecidos e trabalhados, em busca de alcançar um cuidado capaz de suprir as necessidades das crianças/adolescentes com doenças crônicas e suas famílias.

Além dos obstáculos supracitados, identifica-se como um dos nós críticos da RAS a continuidade informacional, pois quando não há integração entre os diversos serviços de saúde, obstaculiza-se o fluxo necessário das informações pela RAS.

Essa ausência de comunicação entre os serviços e os profissionais de saúde desfavorecem a coordenação do cuidado pela ESF e a continuidade na RAS33 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Documento de diretrizes para o cuidado das pessoas com doenças crônicas nas Redes de Atenção à Saúde e nas linhas de cuidado prioritárias. Brasília: MS; 2013. . Estudo88 Coelho APC, Larocca LM, Chaves MMN, Felix JVC, Bernadino E, Alessi SM. Healthcare management of tuberculosis: integrating a teaching hospital into Primary Health Care. Texto Contexto Enferm. 2016;25(2):e0970015. evidencia que essa lacuna na comunicação ocorre já no momento de alta hospitalar, pois o hospital não entra em contato com a ESF para compartilhamento das informações, a fim de garantir as condições fundamentais para a continuidade do cuidado.

Nesse contexto, a família passa a desempenhar papel central indispensável para compensar as lacunas na continuidade da gestão do cuidado e atua como elo entre os profissionais e as instituições de saúde, com a finalidade de garantir os cuidados à criança55 Zanello E, Calugi S, Rucci P, Pieri G, Vandini S, Faldella G, et al. Continuity of care in children with special healthcare needs: a qualitative study of family’s perspectives. Ital J Pediatr. 2015;41:7. . Esse entrave no fluxo das informações na RAS dificulta a compreensão ampliada sobre o caso, pois a família tende a sintetizá-las de acordo com o seu foco1919 Lister G. 2011 Joseph W. St Geme Jr lecture: five things I'd like to see changed in american pediatrics, five lessons I've learned. Pediatrics. 2012;129(5):961-7. e sua compreensão, podendo não explicitar informações importantes, sem a intenção. Ademais, se a família não estiver ciente e informada sobre a situação da criança para repassar as informações, a falta de atitude da equipe da ESF no estabelecimento da comunicação e compartilhamento de informações repercutirá em prejuízos significativos para a continuidade do cuidado.

Esse fluxo de informações é prejudicado dentro do próprio serviço, pois se identificou nos registros dos profissionais, tanto no hospital quanto na unidade básica, a escassez de informações que favorecessem ou viabilizassem a continuidade do cuidado internamente. A falta ou a precariedade do registro de informações traz prejuízos para o acompanhamento qualificado em saúde e inviabiliza a comunicação para o planejamento, a continuidade e a avaliação da assistência66 Duarte ED, Silva KL, Tavares TS, Nishimoto CLJ, Silva PM, Sena RR. Care of children with a chronic condition in primary care: challenges to the healthcare model. Texto Contexto Enferm. 2015;24(4):1009-17. . Não obstante, as informações clínicas devem alimentar a RAS para favorecer o monitoramento e possibilitar a avaliação dos resultados, de modo que as melhores estratégias sejam implementadas para a qualificação do cuidado2020 Lima RAG. Chronic conditions and the challenges for knowledge production in health [editorial]. Rev Latino Am Enfermagem. 2013;21(5):1011-2..

Como os registros ainda são manuscritos em prontuário físico, há fragilidades e desorganização das informações que pode desestimular a busca da história pregressa de saúde da criança/adolescente pelos profissionais do hospital, das terapêuticas implementadas e dos resultados obtidos com o tratamento para dar continuidade ao cuidado.

A consulta aos prontuários da ESF confirmou os achados das entrevistas com os profissionais, nas quais foi possível constatar fragilidade do vínculo, pois estes demonstraram não ter o conhecimento necessário sobre a criança/adolescente com doença crônica e a família sob sua responsabilidade, de modo a favorecer um cuidado proativo e resolutivo.

A falta de acolhimento acentua a vulnerabilidade e o sofrimento da família e da criança/adolescente com doença crônica, pois gera insegurança e questionamentos do familiar quanto a sua competência para cuidar1010 Costa EAO, Dupas G, Sousa EFR, Wernet M. Children’s chronic disease: family needs and their relationship with the Family Health Strategy. Rev Gaúcha Enferm. 2013;34(3):72-8. . Estabelecer fluxos e contrafluxos na RAS prepara o atendimento ao usuário, facilita o acesso, garante o cuidado contínuo2121 Erdmann AL, Andrade SR, Mello ALSF, Drago LC. Secondary Health Care: best practices in the health services network. Rev Latino Am Enfermagem 2013;21(n.spe):131-9. e contribui para um sentimento de satisfação e segurança dessas famílias ao perceberem a resolutividade em tempo oportuno das demandas apresentadas, além de evitar o desgaste físico e emocional do processo de busca constante pelos serviços.

As famílias que convivem com a doença crônica anseiam pela mobilização dos profissionais da ESF para ajudá-las a ser esse apoio em busca de solucionar as demandas para um cuidado qualificado, pois, por estar mais próxima dos usuários, à ESF cabe conhecer as necessidades de sua área adscrita para planejar e executar ações adequadas.

Nesse processo, é função da ESF coordenar o cuidado tendo como apoio complementar a atenção especializada e o sistema de apoio diagnóstico, terapêutico e assistência farmacêutica33 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Documento de diretrizes para o cuidado das pessoas com doenças crônicas nas Redes de Atenção à Saúde e nas linhas de cuidado prioritárias. Brasília: MS; 2013. . Nos casos de crianças/adolescentes com doença crônica, ao se responsabilizar pela coordenação do cuidado, pode acelerar o processo de acesso aos serviços e às ações da RAS, pois tem condições de mobilizar mais rapidamente os recursos presentes na equipe e na rede de apoio para agilizar a resolução das demandas que a condição crônica impõe1010 Costa EAO, Dupas G, Sousa EFR, Wernet M. Children’s chronic disease: family needs and their relationship with the Family Health Strategy. Rev Gaúcha Enferm. 2013;34(3):72-8. .

Na realidade, frente às demandas da criança/adolescente com doença crônica, a ESF não tem demonstrado iniciativa em suas ações, pois, ao identificar que essa está sendo atendida por um serviço de referência, se desresponsabilizam pela construção de um Projeto Terapêutico Singular e articulado aos demais níveis assistenciais.

A ESF precisa envidar esforços em um contexto mais amplo de cuidados de saúde na comunidade para colaborar com a integração do sistema no cuidado às pessoas com doenças crônicas2222 Rosenthal MP. Childhood asthma: considerations for primary care practice and chronic disease management in the village of care. Prim Care. 2012;39(2):381-91.. Trabalhando nessa perspectiva, fortalece a RAS, ao desenvolver um processo proativo e resolutivo e reduzir a demanda nos demais níveis de atenção2121 Erdmann AL, Andrade SR, Mello ALSF, Drago LC. Secondary Health Care: best practices in the health services network. Rev Latino Am Enfermagem 2013;21(n.spe):131-9. .

No entanto, equipes da ESF sentem-se sobrecarregadas pela demanda de atendimento por condições agudas superior para o número de profissionais que se sobressai ao planejamento de ações de acordo com as singularidades de sua população66 Duarte ED, Silva KL, Tavares TS, Nishimoto CLJ, Silva PM, Sena RR. Care of children with a chronic condition in primary care: challenges to the healthcare model. Texto Contexto Enferm. 2015;24(4):1009-17. . Apesar de ser realidade de muitos municípios brasileiros, crianças/adolescentes com doença crônica não podem ficar sem esse apoio na coordenação do cuidado.

Urge a necessidade de transformação no processo de trabalho desenvolvido na ESF, com a implantação do autocuidado apoiado, em que crianças/adolescentes com doenças crônicas e suas famílias participem ativamente da atenção à saúde1717 Mendes EV. A construção social da Atenção Primária à Saúde. Brasília: Conselho Nacional de Secretários de Saúde; 2015.. Por meio do cuidado apoiado e compartilhado poderão construir parcerias ampliadas com foco na resolutividade.

Compreende-se a iminência da APS ampliar seus esforços progressivamente para implementar estratégias que visem mudanças na micropolítica das unidades assistenciais e favoreça a articulação de profissionais, equipes e serviços66 Duarte ED, Silva KL, Tavares TS, Nishimoto CLJ, Silva PM, Sena RR. Care of children with a chronic condition in primary care: challenges to the healthcare model. Texto Contexto Enferm. 2015;24(4):1009-17. , papel essencial, especialmente frente à fragilidade do sistema de regulação responsável por garantir acesso aos serviços. O sistema de regulação da RAS não está respondendo com eficiência às demandas da população, gerando significativo absenteísmo2121 Erdmann AL, Andrade SR, Mello ALSF, Drago LC. Secondary Health Care: best practices in the health services network. Rev Latino Am Enfermagem 2013;21(n.spe):131-9. e longa espera pelo agendamento. Esse fato é identificado quando a rede não contempla a opção dos usuários pelos locais de encaminhamento para consultas com especialistas e exames que, não raras vezes, encontram-se distantes de sua residência, tornando difícil o acesso. A ineficiência da regulação também é evidenciada quando os profissionais do hospital recorrem a sua rede de influências pessoais para conseguir acesso aos serviços e dar resolutividade às demandas de exames e consultas especializadas.

Também se reconhece como obstáculo para a continuidade do cuidado o acesso a medicamentos e insumos. A maioria das crianças/adolescentes com doenças crônicas depende de medicamentos para manter seu quadro clínico estável, e a burocracia da RAS, bem como a fragilidade na disponibilidade de insumos, são obstáculos para o cuidado contínuo. Comumente, essas famílias são de baixa renda e não conseguem suprir a necessidade medicamentosa, o que pode resultar em descompensação no quadro clínico da criança/adolescente e na necessidade de hospitalização, repercutindo em seu estado emocional e no de sua família, bem como no aumento dos custos para o sistema como um todo.

Diante da realidade analisada, reconhece-se que a fragilidade da continuidade do cuidado à criança/adolescente com doença crônica e sua família na RAS vulnerabiliza ainda mais essa população. Não existe uma fórmula única para a criação de um sistema de saúde eficiente e eficaz no cuidado às condições crônicas2020 Lima RAG. Chronic conditions and the challenges for knowledge production in health [editorial]. Rev Latino Am Enfermagem. 2013;21(5):1011-2.. Experiências exitosas indicam a necessidade de articulação de todos de modo a desenvolver suportes para o cuidado e construir as pontes necessárias com os serviços da comunidade para superar lacunas da prática e viabilizar a continuidade do cuidado2222 Rosenthal MP. Childhood asthma: considerations for primary care practice and chronic disease management in the village of care. Prim Care. 2012;39(2):381-91.. Assim, cada município tem a missão e responsabilidade de reunir os envolvidos, inclusive os enfermeiros, para planejar as melhores estratégias na superação dos obstáculos da rede.

Evidencia-se que a atenção à saúde da criança/adolescente com doença crônica está fragilizada quanto à gestão, lócus do planejamento das políticas públicas e das ações programáticas que articulam a rede de cuidado. Enquanto os gestores não despertarem para a importância de dar atenção a essa população, ela permanecerá invisível ao sistema de saúde.

Longo é o caminho a ser percorrido para a consolidação da RAS na oferta de cuidado contínuo à criança/adolescente com doença crônica e sua família. Mesmo desenvolvido em um único contexto, podendo configurar-se como a limitação deste estudo, este avança na construção do conhecimento ao trazer para análise as lacunas da atenção a essa população, conhecimento ainda escasso na literatura.

Conclusão

As fragilidades na continuidade do cuidado podem estar contribuindo para as alterações constantes no quadro clínico das crianças e dos adolescentes com doenças crônicas, podendo levar, inclusive, a hospitalizações desnecessárias. O cuidado fragmentado e pontual, ofertado atualmente, é incapaz de suprir as demandas inerentes a essa população.

O estudo identificou atendimento pontual e desarticulado entre os serviços, com fragilidade no fluxo de informações, indicando a necessidade de estudos aprofundados sobre o sistema de comunicação da RAS e a articulação dos serviços no cuidado a essa população, no intuito de revelar as fragilidades e identificar as melhores estratégias para efetivação da rede.

Crianças e adolescentes com doença crônica têm necessidades singulares em cada fase da doença, demandando da RAS e dos profissionais integrantes dessa rede, inclusive os enfermeiros, sensibilidade para acolhê-las por meio do cuidado apoiado, ampliado, contínuo, proativo e resolutivo, constituindo-se estes como aspectos fundamentais da atenção para essa população.

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  • Apoio financeiro

    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Processo nº 474762/2013-0.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2016
  • Aceito
    28 Jan 2017
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