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Agnes Heller: influência definitiva no pensamento crítico da Enfermagem em Saúde Coletiva brasileira

Este Editorial não pretende fazer uma digressão sobre a obra da famosa filósofa húngara da Escola de Budapeste, Agnes Heller, que infelizmente faleceu este ano. É apenas uma homenagem póstuma singela de uma discípula cuja existência ela jamais soube e dos mestres e doutores em Enfermagem formados ou influenciados ao longo dos últimos 32 anos no Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo.

Heller foi desde sempre uma referência que ajudou a construir a base teórico-metodológica sobre a qual, em nosso modo de pensar, se assenta a Enfermagem em Saúde Coletiva. A primeira obra Heller que nos dedicamos a estudar foi O cotidiano(11. Heller A. O cotidiano e a história. Trad. de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. São Paulo: Paz e Terra; 2004.), que deu sustentação às pesquisas sobre os processos de trabalho(22. Mendes-Gonçalves RB. Práticas de saúde: processos de trabalho e necessidades. São Paulo: CEFOR; 1992.) e também às intervenções e planos assistenciais para famílias na comunidade, expressão que utilizávamos antes de adotar uma denominação mais precisa: famílias pertencentes a grupos sociais heterogêneos(33. Egry EY, Oliveira MAC, Ciosak SI, Maeda ST, Barrrientos DMS, Fonseca RMGS, et al. Reviewing health needs assessment approaches in the Family Health Strategy. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2009 [cited 2019 Oct 1°];43(spe2):1181-5. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-62342009000600006&lng=en&nrm=iso&tlng=en
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).

Na pós-graduação em Enfermagem em Saúde Coletiva, duas disciplinas inauguradas em 1990, longevas porque continuam existindo, revisitam parte da obra dessa notável autora. O avanço mais substantivo derivou de uma ousadia: utilizar a Teoria das Necessidades em Marx(44. Heller A. Teoria das Necessidades em Marx. Barcelona: Península; 1986.), em oposição à Teoria das Necessidades Humanas Básicas, de Maslow, adotada por Wanda de Aguiar Horta, a primeira teorista da Enfermagem brasileira.

Quando elaborou sua teoria, Wanda de Aguiar Horta tinha em mente o indivíduo hospitalizado, pois atuava no Hospital das Clínicas Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, cuidando de pacientes acamados e ensinando a cuidar. Eu fui uma de suas estudantes de graduação, e ela me ensinou os primeiros passos do cuidado de enfermagem. Assim, fazia todo o sentido para ela visualizar o indivíduo como totalidade finita, sem vislumbrar sua face coletiva. Na época, inclusive, a dicotomia entre prevenção e cura era bastante acentuada, sendo a prevenção reportada à história natural das enfermidades. O objeto de ação da enfermeira era o cuidado do paciente visando à cura.

Hoje a distinção entre as duas bases teóricas de necessidades relativas ao ser humano é estudada em seminários cujos temas são: As necessidades em saúde referidas a diferentes visões de mundo: um panorama teórico-conceitual e Avaliação das necessidades em saúde de grupos sociais na perspectiva da equidade, nos quais temos debatido a perspectiva helleriana na Enfermagem em Saúde Coletiva.

Talvez não o tenhamos feito com tanta intensidade como Veroneze(55. Veroneze RT. Agnes Heller: cotidiano e individualidade – uma experiência em sala de aula. Textos Contextos (Porto Alegre) [Internet]. 2013 [citado 2019 out. 1°];12(1):162-72. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/fass/ojs/index.php/fass/article/view/14217
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), que em suas aulas de pós-graduação em Serviço Social, discute a práxis helleriana sob ponto de vista de sua profissão. Concordamos inteiramente com o autor que diz: “Ao nos apropriarmos desse referencial teórico-metodológico-conceitual, em sua totalidade, percebemos que, muito mais que trazer elementos para a análise interventiva na e para a vida cotidiana dos sujeitos sociais, oferecia elementos propositivos para uma práxis profissional e social consciente de seus propósitos”(55. Veroneze RT. Agnes Heller: cotidiano e individualidade – uma experiência em sala de aula. Textos Contextos (Porto Alegre) [Internet]. 2013 [citado 2019 out. 1°];12(1):162-72. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/fass/ojs/index.php/fass/article/view/14217
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).

Nossos alunos de pós-graduação estudam a perspectiva de necessidades defendida por Heller para debater a intervenção em Enfermagem. A dialética das necessidades humanas básicas e das necessidades em Marx abordada nos seminários de pós-graduação permitiu que compreendessemos as necessidades em saúde como algo inerente aos grupos sociais e não a indivíduos em si. O mais interessante foi a possibilidade de retratar as necessidades de grupos sociais heterogêneos em termos de classes sociais (ou frações de classe) ou gênero, geração e etnia, que nos territórios apareciam em oposição dual, ou seja, polaridades.

Revisitando nossa trajetória de estudos sobre Agnes Heller, podemos dizer que se concentrou principalmente nas obras O Cotidiano e a história e Teoria das Necessidades em Marx, por conta da atuação imperiosa na práxis cuidativa da Enfermagem, articulando as dimensões singular, particular e estrutural da realidade objetiva. Com isso, talvez tenhamos apenas tangenciado o pensamento nuclear dessa importante filósofa.

Por isso, ao nos referirmos a ela postumamente e de forma pública, talvez devamos assumir o compromisso de ir adiante no estudo de sua produção filosófica, revisitando seus primeiros pensamentos até chegar a hoje, e até mesmo contestando-os ou refutando na práxis, como ela corajosamente o fez em entrevista dada aos 83 anos de idade.

Que o pensamento da Agnes Heller viva para confrontar o que parece dado e consagrado. E que a criticidade seja a chave para costurar as ideias da realidade objetiva de nossa vida cotidiana ao produzir cuidado à saúde na face do indivíduo e das coletividades.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Heller A. O cotidiano e a história. Trad. de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. São Paulo: Paz e Terra; 2004.
  • 2
    Mendes-Gonçalves RB. Práticas de saúde: processos de trabalho e necessidades. São Paulo: CEFOR; 1992.
  • 3
    Egry EY, Oliveira MAC, Ciosak SI, Maeda ST, Barrrientos DMS, Fonseca RMGS, et al. Reviewing health needs assessment approaches in the Family Health Strategy. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2009 [cited 2019 Oct 1°];43(spe2):1181-5. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-62342009000600006&lng=en&nrm=iso&tlng=en
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0080-62342009000600006&lng=en&nrm=iso&tlng=en
  • 4
    Heller A. Teoria das Necessidades em Marx. Barcelona: Península; 1986.
  • 5
    Veroneze RT. Agnes Heller: cotidiano e individualidade – uma experiência em sala de aula. Textos Contextos (Porto Alegre) [Internet]. 2013 [citado 2019 out. 1°];12(1):162-72. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/fass/ojs/index.php/fass/article/view/14217
    » http://revistaseletronicas.pucrs.br/fass/ojs/index.php/fass/article/view/14217

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019
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