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Núcleo Ampliado de Saúde da Família: o sofrimento na perspectiva da psicodinâmica do trabalho* * Extraído da tese: “O cotidiano de trabalho no NASF: percepções de sofrimento e prazer na perspectiva da Psicodinâmica do Trabalho”, Programa Interunidades de Doutoramento em Enfermagem, Escola de Enfermagem de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 2015.

RESUMO

Objetivo:

Analisar o processo de trabalho do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e identificar as repercussões na qualidade de vida no trabalho dos profissionais.

Método:

Estudo de caso descritivo-exploratório, de abordagem qualitativa realizado com trabalhadores de Núcleos Ampliados de Saúde da Família. O material empírico resultante foi submetido à técnica de análise de conteúdo e analisado à luz do referencial teórico da Psicodinâmica do Trabalho.

Resultados:

Participaram dos grupos focais 20 trabalhadores. Neste estudo discute-se a categoria dejouriana sofrimento, que deriva das relações interpessoais e do trabalho em equipe, da sensação de não pertencimento, da falta de infraestrutura para o trabalho, da violência e da vulnerabilidade presentes no território.

Conclusão:

A grupalidade e a integração colaborativa entre os trabalhadores podem ser estratégias para minimizar o sofrimento no trabalho no contexto da Estratégia de Saúde da Família.

DESCRITORES:
Estratégia Saúde da Família; Pessoal de Saúde; Trabalho; Relações Interpessoais; Estresse Psicológico; Saúde do Trabalhador

ABSTRACT

Objective:

To analyze the work process of the Family Health Support Center and identify the repercussions on professionals’ quality of life at work.

Method:

A descriptive-exploratory qualitative case study conducted with workers from Family Health Support Centers. The content analysis technique was used to analyze the resulting empirical material in the light of the theoretical reference of Work Psychodynamics.

Results:

Twenty workers participated in the focus groups. This study discusses the category of ‘suffering’ by the chosen theoretical perspective, which derives from interpersonal relationships and teamwork, the feeling of not belonging, lack of infrastructure for work, violence and vulnerability present in the territory.

Conclusion:

Group union and collaborative integration among workers can be strategies for the minimization of suffering at work in the context of the Family Health Strategy.

DESCRIPTORS:
Family Health Strategy; Health Personnel; Work; Interpersonal Relations; Stress, Psychological; Occupational Health

RESUMEN

Objetivo:

Analizar el proceso laboral del Núcleo Ampliado de Salud de la Familia e identificar las repercusiones en la calidad de vida en el trabajo de los profesionales.

Método:

Estudio de caso descriptivo exploratorio con abordaje cualitativo, llevado a cabo con trabajadores de Núcleos Ampliados de Salud de la Familia. El material empírico resultante fue sometido a la técnica de análisis de contenido y analizado a la luz del marco referencial teórico de la Psicodinámica del Trabajo.

Resultados:

Participaron en los grupos focales 20 trabajadores. En este estudio, se discute la categoría dejouriana sufrimiento, que deriva de las relaciones interpersonales y del trabajo en equipo, la sensación de no pertenencia, la falta de infraestructura laboral, la violencia y la vulnerabilidad presentes en el territorio.

Conclusión:

La grupalidad y la integración colaborativa entre los trabajadores pueden ser estrategias para minimizar el sufrimiento en el trabajo en el marco de la Estrategia de Salud de la Familia.

DESCRIPTORES:
Estrategia de Salud Familiar; Personal de Salud; Trabajo; Relaciones Interpersonales; Estrés Psicológico; Salud Laboral

INTRODUÇÃO

A proposição do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) no âmbito das políticas públicas voltadas para o fortalecimento da Atenção Básica (AB), em especial da Estratégia de Saúde da Família (ESF), trouxe consigo inúmeros desafios e possibilidades de reflexão acerca de suas formas de organização, atuação e resolutividade na prática cotidiana dos serviços e dos profissionais da saúde.

O NASF, atualmente denominado Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF-AB), foi criado com o objetivo de apoiar as equipes da ESF na redefinição, qualificação e resolutividade da AB, além de colaborar para a ordenação das redes de atenção à saúde, ampliando a abrangência e o escopo das ações de cuidado em saúde no Sistema Único de Saúde (SUS)11 Brasil. Ministério da Saúde; Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica, Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Ferramentas para a gestão e para o trabalho cotidiano. Brasília; 2014. (Cadernos de Atenção Básica, n. 39)..

Desde sua implantação, em 2008, o NASF-AB contribui para o enfrentamento e a resolução dos problemas clínicos e sanitários mais prevalentes nos diversos territórios, em consonância com suas diretrizes, as quais preveem que sua atuação seja pautada na clínica ampliada e no trabalho em equipe interdisciplinar de forma corresponsável com a ESF. O NASF-AB tem como referencial teórico-metodológico o apoio matricial, em que um profissional “especialista”, que detém um determinado núcleo de saber advindo de sua formação, apoia outros profissionais com diferentes núcleos de formação, objetivando ampliar a eficácia de sua atuação22 Cunha GT, Campos GWS. Apoio matricial e atenção primária em saúde. Saúde Soc [Internet]. 2011 [citado 2013 jan. 14];20(4):961-70. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v20n4/13.pdf
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Apesar dos avanços e das transformações no fazer em saúde observados em diversos contextos que contam com a presença do NASF-AB, existem questões intrínsecas e extrínsecas a essa equipe que impactam negativamente a efetividade da proposta e a qualidade de vida no trabalho destes profissionais. Entre elas podem ser citadas as dificuldades de efetivação do apoio matricial, do trabalho em equipe e das ações compartilhadas. Ademais, os profissionais do NASF-AB ressentem-se da falta de reconhecimento pelo trabalho que executam.

O reconhecimento dos pares é um julgamento relativo ao trabalho realizado, uma retribuição simbólica que “pode ganhar sentido em relação às expectativas subjetivas e à realização de si mesmo”, capaz de transformar o sofrimento em prazer33 Dejours C. Trajetória teórico conceitual: a clínica do trabalho: perspectivas. In: Lancman S, Sznelwar LI, organizadores. Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. 3a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. Partes I-III.. Sem o reconhecimento, o desejo e o engajamento para a ação diminuem, e há tendência à desmobilização, o que leva ao sofrimento. Este pode estar ligado diretamente à organização do trabalho, mas também pode ser resultado de relacionamentos interpessoais pouco satisfatórios e equipes disfuncionais44 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo da psicopatologia do trabalho. 5a ed. São Paulo: Cortez/Oboré; 1992..

Diversos estudos que envolvem a saúde do trabalhador limitam-se a investigar intervenções com vistas à melhoria da produtividade e das condições de trabalho. São necessárias investigações que busquem desvelar a percepção subjetiva dos trabalhadores acerca do trabalho, assim como os aspectos simbólicos envolvidos55 Lancman S, Sznelwar LI, organizadores. Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. 3a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011..

Assim, este estudo tem como objetivo analisar o processo de trabalho do NASF-AB, identificando as repercussões na qualidade de vida no trabalho dos profissionais e as percepções sobre as situações geradoras de estresse e sofrimento.

MÉTODO

TIPO DE ESTUDO

Trata-se de um estudo de caso descritivo-exploratório, de abordagem qualitativa, que segue as recomendações dos Critérios Consolidados para Relatos de Pesquisa Qualitativa (COREQ) e adota o marco teórico-metodológico da Saúde Coletiva e a hermenêutica-dialética. Frente à complexidade da realidade contida na dinâmica que permeia o objeto, a pesquisa qualitativa proporciona uma compreensão aprofundada das percepções e representações dos sujeitos envolvidos na pesquisa, e a hermenêutica busca apreender o sentido que está oculto, com vistas à interpretação dos processos de trabalho, que são resultantes de um processo social e histórico66 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª ed. São Paulo: Hucitec; 2014.. O estudo fundamenta-se ainda no referencial teórico da psicodinâmica do trabalho de Christophe Dejours para analisar o processo e a organização do trabalho no NASF-AB, assim como as situações geradoras de estresse e sofrimento a partir do distanciamento existente entre o trabalho prescrito e o trabalho real33 Dejours C. Trajetória teórico conceitual: a clínica do trabalho: perspectivas. In: Lancman S, Sznelwar LI, organizadores. Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. 3a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. Partes I-III..

POPULAÇÃO

O estudo foi realizado em uma Organização Social de Saúde da região leste do município de São Paulo, que possui contrato de gestão com a Prefeitura Municipal de São Paulo, e contou com a participação de 20 trabalhadores do NASF-AB, selecionados por conveniência. Os participantes já haviam sido avaliados previamente por meio do Inventário de Sintomas de Estresse para Adultos de Lipp77 Lipp MEN. Manual do inventário de sintomas de stress para adultos de Lipp (ISSL). São Paulo: Casa do Psicólogo; 2000., aplicado por psicóloga, e que objetiva detectar a presença de estresse. Havia 38 profissionais do NASF-AB com sintomas de estresse, no entanto, na ocasião do convite por telefone para participarem dos grupos focais, 18 não puderam devido a férias, afastamento ou desligamento da instituição.

COLETA DE DADOS

Para a realização dos grupos focais, foi utilizado um roteiro com sete questões norteadoras e um diário de campo, além de gravação de áudio para a coleta de dados. Entre os meses de junho e agosto de 2014, foram realizados três grupos focais, denominados G1, G2 e G3, em uma sala no local de trabalho dos participantes, com duração média de 1h40 cada.

ANÁLISE E TRATAMENTO DOS DADOS

A gravação dos grupos focais foi transcrita, e o material resultante foi submetido a repetidas leituras, visando à elaboração de categorias empíricas. Para o tratamento do material, foi utilizada a análise de conteúdo preconizada por Bardin88 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2011., a qual contempla as fases de pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados para a produção de sentidos e significados a partir da inferência e interpretação. Os núcleos de sentido foram construídos considerando as ideias centrais e relevantes presentes nos depoimentos66 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª ed. São Paulo: Hucitec; 2014..

ASPECTOS ÉTICOS

Todos os aspectos éticos foram observados no estudo, que foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da USP sob o parecer n.º 205.892 e pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo sob o parecer n.º 597.535-0. Os sujeitos concordaram em participar da pesquisa mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

RESULTADOS

O uso da categoria analítica o sofrimento no trabalho , do referencial teórico dejouriano, propiciou a identificação de seis núcleos de sentido, a saber: 1) o trabalho real versus o trabalho prescrito: a resistência à proposta do NASF-AB e a falta de compreensão de seu papel; 2) a cultura imediatista e curativa do usuário, da ESF e da gestão; 3) o perfil, a sobrecarga e a identificação com o trabalho; 4) as relações interpessoais e o trabalho em equipe; 5) a sensação de não pertencimento e a falta de infraestrutura para o trabalho; 6) a violência e a vulnerabilidade no território.

Em artigo anterior, abordaram-se os três primeiros núcleos99 Nascimento DDG, Oliveira MAC. Analysis of suffering at work in Family Health Support Centers. Rev Esc Enferm USP. 2016;50(5):846-52. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420160000600019
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, cabendo a este artigo enfocar os demais.

AS RELAÇÕES INTERPESSOAIS E O TRABALHO EM EQUIPE

Ao analisar a intersubjetividade presente no trabalho em equipe, ficaram evidentes os limites e o desgaste, assim como o estresse e os embates gerados nas relações interpessoais no cotidiano do trabalho, principalmente nos momentos de reunião de equipe. A motivação para o trabalho mostrou-se igualmente relacionada à dinâmica e à interação entre as equipes. A falta de envolvimento, comprometimento, cooperação e comunicação também foi citada como geradora de sofrimento. Essas dificuldades fizeram-se presentes entre a equipe do NASF-AB e da ESF, entre o NASF-AB e a gerência das Unidades Básicas de Saúde (UBS) e no interior da própria equipe NASF-AB.

(...) o trabalho em equipe é ambíguo: ao mesmo tempo em que a equipe se fortalece (...) isso ajuda, isso também atrapalha, porque quando tem uma pessoa que não está na onda, na ‘vibe’ de fazer o trabalho como tem que ser feito, essa pessoa destoa da equipe, e isso dificulta muito o trabalho (...) (G3).

(...) é muito mais cansativa a dinâmica de fluxo de trabalho, de colegas de trabalho. Às vezes realmente sinto que falta o mesmo comprometimento de colegas (...). Não dá para fazer por nós e pelo outro sempre (...) (G3).

Acho que as relações desgastam muito (…) eu tenho que trabalhar com alguém que não está se doando para o trabalho, não fazendo da forma que deveria e você quer fazer com que as coisas funcionem certo, daí não acontece. Acho que é um fator que ultimamente tem me exaurido (...) (G2).

Embora haja um discurso de integração e alinhamento, transparece a disputa e a desigualdade de poder entre as equipes NASF-AB e ESF, assim como a diferença de maturidade entre os profissionais. Fica evidente o peso de trabalhar em uma equipe com profissionais com formações distintas, como ocorre no NASF-AB. Os depoimentos também destacaram a importância do vínculo entre os trabalhadores.

Três vertentes impactam na qualidade do NASF-AB. E acho que fica um pouco baseado no vínculo, o tanto que a gente trabalha com o vínculo com a população, isso vai ter resultado no nosso trabalho... o tanto que a gente depende do vínculo com a Estratégia para fazer o processo de trabalho funcionar e o quanto a gente tem de vínculo dentro da equipe para conseguir falar tudo na mesma linha frente às dificuldades (G1).

A maturidade emocional das pessoas é o que mais impacta na relação, é o que mais atrapalha. Não é nem a questão técnica, porque eu posso chegar em uma enfermeira (e dizer) que eu estou tendo problema técnico, chegar em um médico, em uma equipe e discutir algo que pode ser melhorado, mas se aquela pessoa não consegue separar (…) Tem de entender que é uma coisa profissional, que não existe uma crítica pessoal (...) Isso impacta muito. Então eu acho que nossa maturidade para poder trabalhar é muito importante, não só para atender, mas para lidar com o colega (G1).

(...) porque a gente tem outros fatores que influenciam também, como o relacionamento interpessoal (...) A gente tem um coordenador, tem unidade que tem um, dois gerentes, cada um com um pensamento diferente. Nós temos que ser flexíveis o suficiente para poder se adaptar em cada unidade, em cada reunião de equipe, cada enfermeiro, cada médico. Eu acho que isso é um probleminha mesmo, que gera um pouco de ansiedade (G1).

As diferentes dinâmicas e características presentes entre os profissionais que compõem as UBS ficaram explícitas nas falas acerca das reuniões de equipe. Para os trabalhadores do NASF-AB, essa é a atividade que mais estressa e repercute negativamente na qualidade de vida profissional. A postura de superioridade de alguns trabalhadores também foi mencionada como um obstáculo no processo de interação da equipe.

(...) a reunião de equipe é muito estressante (G2).

Tem dia que você acorda e você lembra: - ‘Vixe, hoje tem reunião com a equipe quatro’ (G2).

É uma equipe que não se envolve, não discute o caso previamente, não está aberta para qualquer sugestão que você vai propor de construção coletiva (...) (G1).

(...) você pode falar muito tranquilamente ou você pode ir como se fosse uma consultora, sabe? (...) Sou uma consultora e aí eu chego toda montada no salto e vou apontar o erro do outro. E às vezes eu acho que alguns profissionais se colocam assim, acima do bem e do mal. Você está fazendo um trabalho e aí causa um ranço que depois é difícil quebrar, entendeu? (G2).

A SENSAÇÃO DE NÃO PERTENCIMENTO E A FALTA DE INFRAESTRUTURA PARA O TRABALHO

Os depoimentos também deixaram evidente o sofrimento dos trabalhadores do NASF-AB por não se sentirem integrados à UBS. A sensação de estar invadindo o espaço da ESF faz-se presente quando utilizam as salas e os demais recursos da UBS. As limitações de infraestrutura, especialmente física, que afetam todos, incidem de forma ainda mais intensa no trabalho do NASF-AB, dificultando-o.

(...) a gente não constrói junto. Eu vejo às vezes o NASF-AB longe, separado, fazendo (o trabalho) na salinha dele (G1).

O que impacta é a possibilidade de fazer algumas coisas, mas não ter espaço, não ter uma estrutura mais organizada para isso, então tem que improvisar além da conta e isso é um fator estressante (G1).

(...) é o espaço, é o material que você vai correr atrás, é a cadeira que você tem de correr atrás. Você perde muito tempo organizando um espaço, e as pessoas não entendem que você precisa de um espaço. A outra pessoa que está dividindo espaço com você também não gosta. Então o outro precisa entender seu trabalho também (…) (G1).

É ruim quando a gente não pertence a ponto de ser vítima da violência, de um roubo e os outros não, porque eles têm uma estrutura, armário, sala e aquele ambiente, né? (G2).

(...) porque tem um sentimento também de ‘desvalia’, né? Porque você está fazendo um trabalho que não está sendo valorizado em nada. Parece que você está lá implorando para fazer uma coisa que é seu trabalho, e que é importante (G3).

Para fazer frente a tais limitações, muitas vezes são utilizados recursos e espaços existentes no território. No entanto, alguns deles são insalubres para o desenvolvimento de ações de saúde, não possuem acessibilidade e não podem ser considerados como uma extensão da UBS.

Eu sinto que a gente precisa melhorar a parte estrutural, nem todas as unidades (têm) disponibilidade de salas para grupos... Atendimento na comunidade, a gente consegue parceria (...) muitas das igrejas, dos centros comunitários que a gente utiliza, (mas) tem uma precariedade na questão de higiene, água, banheiro, e é difícil. Então isso dificulta que a gente faça realmente um trabalho de promoção da saúde em um espaço que onde às vezes não tem nem banheiro para a gente usar (…) A gente não garante a acessibilidade para todos os pacientes, muitos lugares têm só escada (...) daí como é que vai ter acessibilidade para o paciente cadeirante, idoso, com algum tipo de limitação? (G3).

Também foi mencionada a impossibilidade de responder às solicitações vindas da gestão, pela falta de infraestrutura.

O que me estressa é não ter estrutura para coisas que são pedidas, não tem como realizar, né? Então eles cobram coisas que não têm, que fisicamente não é possível, ou as pessoas não estão preparadas para fazer, não se situam (G1).

A VIOLÊNCIA E A VULNERABILIDADE NO TERRITÓRIO

Para alguns trabalhadores, a violência e a vulnerabilidade no território influenciam a qualidade de vida profissional pela ressonância em seu papel social, embora para a maioria esse aspecto em si não seja paralisante ou gerador de sofrimento. O desgaste e o sofrimento identificados dizem respeito à responsabilidade - que na maioria das vezes é atribuída exclusivamente ao NASF-AB - de realizar notificações relativas às diversas formas de violência, negligência e abuso presentes no território aos diversos órgãos competentes, como Conselho Tutelar, Delegacia do Idoso, Ministério Público, entre outros.

(...) a responsabilidade que nos é dada de responder a uma ouvidoria, preencher uma planilha, algo que não é nosso (...). Então tem esse mesmo peso para a gente responder, ação judicial, ir a fórum, responder processo, sendo que a gente nem acompanha, né? Não é o responsável direto por aquela família... Acho que isso também gera um pouquinho de ansiedade (G1).

(...) quando você trabalha em grupo, o abuso de violência contra a criança, os casos mais extremos, por mais que você tente fazer essa divisão, você não se diferencia do seu papel social (G2).

(...) escolher trabalhar no NASF-AB significa estar nessa região mais próxima de vulnerabilidade (…) (G1).

(...) por exemplo, se eu for assistente social na Secretaria de Segurança Pública, lá a gente dá a conduta e acabou ali. Aqui não, a gente tem o acompanhamento. Então eu acho que o caso de negligência, o caso de violência se torna mais pesado por isso, né? Porque o paciente está mais próximo da gente... às vezes a gente pega um caso de violência muito pior e eu estou muito perto dele. Então isso acaba mexendo, às vezes mexe com a gente (...) (G1).

DISCUSSÃO

O trabalho em equipe é entendido como uma diretriz de grande relevância para a consolidação e a efetivação do processo de trabalho na ESF, uma vez que promove a articulação de saberes com vistas à interdisciplinaridade. Deve ocorrer “por meio de uma interação comunicativa e horizontal” que busca a integralidade do cuidado em saúde1010 Nascimento DDG, Oliveira MAC. Reflexões sobre as competências profissionais para o processo de trabalho nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família. Mundo Saúde. 2010;34(1):92-6.. Todavia, as relações interpessoais e o trabalho em equipe podem ser vistos sob uma perspectiva agregadora de valor, prazer e novos conhecimentos à prática profissional, ou outra, negativa, e geradora de estresse e sofrimento.

Dificuldades relacionais no trabalho em equipe estão presentes entre os trabalhadores do NASF-AB, e entre estes e as equipes da ESF e variam de acordo com a UBS e o perfil da equipe apoiada. Neste estudo, assim como em outros relativos ao NASF-AB, o trabalho em equipe vivenciado no cotidiano do trabalho apresentou obstáculos, como falta de envolvimento, cooperação, comprometimento e comunicação, afetando a qualidade e a resolutividade das ações1111 Leite DF, Nascimento DDG, Oliveira MAC. Qualidade de vida no trabalho de profissionais do NASF no município de São Paulo. Physis [Internet]. 2014 [citado 2014 dez. 06];24(2):507-25. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v24n2/0103-7331-physis-24-02 00507.pdf
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)-(1212 Lima L, Pires DEP, Forte ECN, Medeiros F. Satisfac¸a~o e insatisfac¸a~o no trabalho de profissionais de sau´de da atenc¸a~o ba´sica. Esc Ana Nery. 2014;18(1):17-24. DOI: http://dx.doi.org/10.5935/1414-8145.20140003
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Em que pesem as diferenças entre as equipes da ESF e do NASF-AB, a dinâmica de interdependência exige o desenvolvimento de habilidades e a incorporação de novas ferramentas como a negociação, articulação, facilitação, observação e escuta para a realização do trabalho na perspectiva do apoio matricial.

Na presente investigação, as reuniões de equipe foram consideradas difíceis e geradoras de grande sofrimento devido ao embate entre os profissionais, algo que chega a comprometer a construção de consensos e pactuações para a formulação dos projetos terapêuticos individuais e coletivos comuns entre as equipes. Entretanto, esses espaços foram valorizados como potentes para o aprendizado, a troca, o planejamento das ações e a discussão dos casos1313 Silva ATC, Aguiar ME, Winck K, Rodrigues KGW, Sato ME, Grisi SJFE, et al. Núcleos de Apoio à Saúde da Família: desa?os e potencialidades na visão dos pro?ssionais da Atenção Primária do Município de São Paulo, Brasil. Cad Saúde Pública [Internet]. 2012 [citado 2013 nov. 15];28(11):2076-84. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v28n11/07.pdf
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)-(1414 Matuda CG, Pinto NRS, Martins CL, Frazão P. Colaboração interprofissional na Estratégia Saúde da Família: implicações para a produção do cuidado e a gestão do trabalho. Cinc Saúde Coletiva [Internet]. 2015 [citado 2016 mar.12];20(8):2511-21. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v20n8/1413-8123-csc-20-08-2511.pdf
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O trabalho em equipe precisa ser organizado com base na integralidade do cuidado, a partir das necessidades do usuário. Para isso, faz-se necessário o reconhecimento da multiplicidade de condições que envolvem o cuidado em saúde realizado por todos os membros da equipe1515 Arce VAR, Sousa MF. Integralidade do cuidado: representações sociais das equipes de Saúde da Família do Distrito Federal. Saúde Soc [Internet]. 2013 [citado 2014 jan. 15];22(1):109-23. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v22n1/11.pdf
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Um estudo sobre o campo comum de atuação dos profissionais na ESF destaca o desafio de construir práticas colaborativas e interdisciplinares frente às contradições existentes entre a lógica da profissionalização advinda da formação específica e especializada e a lógica da interprofissionalidade, focada nas necessidades do serviço e na saúde da população1616 Ellery AEL, Pontes RJS, Loiola FA. Campo comum de atuação dos profissionais da Estratégia Saúde da Família no Brasil: um cenário em construção. Physis [Internet]. 2013 [citado 2014 out. 20];23(2):415-37. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v23n2/v23n2a06.pdf.

Essas contradições materializam-se no cotidiano da prática diante de um fazer mais individual e específico do que compartilhado, do embate e da disputa de poder existente entre os diversos profissionais, influenciados pela construção das identidades social e histórica das profissões e suas formas de atuação, que ainda precisam avançar para que a interprofissionalidade consolide-se no dia a dia do NASF-AB e da ESF.

Embora haja uma aparente integração, a rotina de trabalho de cada profissional na ESF mantém-se segmentada, e as relações de poder são evidenciadas na medida em que os trabalhadores do NASF-AB consideram que os profissionais da ESF são os “ordenadores das tarefas no cotidiano do trabalho”1717 Oliveira PRS, Reis F, Arruda CAM, Vieira ACVC, Tófoli LF, et al. Novos olhares, novos desafios: vivências dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família em Fortaleza-CE. Cad ESP [Internet]. 2012 [citado 2013 maio 04];6(1):54-64. Disponível em: http://www.esp.ce.gov.br/cadernosesp/index.php/cadernosesp/article/view/74
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A diversidade de formação, perfil e características dos profissionais com quem os trabalhadores do NASF-AB relacionam-se em seu dia a dia exige resiliência, paciência, flexibilidade e proatividade, tanto nas reuniões de equipe como no desenvolvimento do trabalho como um todo. No entanto, a flexibilidade do trabalhador muitas vezes pode ganhar outra conotação na dinâmica das equipes, no tocante às disputas de poder, o que afeta a integração e a cooperação entre elas. Mesmo sem essa intencionalidade aparente, a desvalorização da equipe do NASF-AB, a partir da priorização das ações e intervenções da ESF, é percebida pelos trabalhadores, o que reforça a sensação de não pertencimento à UBS.

O sentimento de menos valia fica evidente nos excertos e revela o quão frágeis são os mecanismos de reconhecimento no e pelo trabalho pelas equipes da ESF e pela gestão dos serviços e o quanto os trabalhadores são susceptíveis à desmotivação, ao sofrimento, à alienação e, consequentemente, ao adoecimento ou ao abandono do trabalho.

Na perspectiva Dejouriana33 Dejours C. Trajetória teórico conceitual: a clínica do trabalho: perspectivas. In: Lancman S, Sznelwar LI, organizadores. Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. 3a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. Partes I-III., o reconhecimento que advém da realização do trabalho é uma condição indispensável para a manutenção da mobilização criativa e subjetiva dos trabalhadores. Esse reconhecimento é fundamental para prevenir uma possível alienação em virtude do desprezo e da desvalorização, pois sem ele o trabalhador perde a noção de utilidade social, com consequente desmotivação, comprometimento da identidade profissional e do sentido do trabalho para a realização de si próprio. Sobre essa condição do trabalhador do NASF-AB, um estudo1818 Lancman S, Gonçalves RMA, Cordone NG, Barros JO. Estudo do trabalho e do trabalhar no Nu´cleo de Apoio a` Sau´de da Fami´lia. Rev Saúde Pública. 2013;47(5):968-75. DOI: http:// dx.doi.org/10.1590/S0034-8910.2013047004770
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) identificou que “Dessa ambiguidade de relações, da invisibilidade do seu trabalho, da sensação de não lugar e de não pertencimento, decorria a dificuldade de serem reconhecidos pelas suas ações e contribuições. Tais condições dificultavam a construção de sua própria identidade”.

Apesar da solidariedade e cooperação estarem evidenciadas no contexto de trabalho da enfermagem1919 Campos JF, David HMSL, Souza NVDO. Pleasure and suffering: assessment of intensivist nurses in the perspective of work psychodynamics. Esc Anna Nery [Internet]. 2014 [cited 2014 Dec 06];18 (1):90-95. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ean/v18n1/en_1414-8145-ean-18-01-0090.pdf
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, foi possível observar que esses mecanismos estão mais presentes entre os trabalhadores do NASF-AB do que entre estes e os integrantes das equipes da ESF, os quais parecem não compreender o trabalho desenvolvido por aqueles trabalhadores e a necessidade de compartilhar os espaços e as ações de forma colaborativa. O mesmo também foi observado em outro estudo com fonoaudiólogos do NASF-AB2020 Soleman C, Martins CL. O trabalho do fonoaudiólogo no Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF): especificidades do trabalho em equipe na Atenção Básica. Rev CEFAC. 2015;17(4):1241-53. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-0216201517417114.
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As falas também demonstram a precariedade das condições de trabalho pela falta de infraestrutura. A escassez de salas e outros recursos necessários para o desenvolvimento do trabalho e a necessidade de improvisar foram identificadas como elementos geradores de desgaste e sofrimento, corroborando outros achados que também constataram sua influência na qualidade de vida profissional dos trabalhadores do NASF-AB1111 Leite DF, Nascimento DDG, Oliveira MAC. Qualidade de vida no trabalho de profissionais do NASF no município de São Paulo. Physis [Internet]. 2014 [citado 2014 dez. 06];24(2):507-25. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v24n2/0103-7331-physis-24-02 00507.pdf
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Diversos estudos ligados ao NASF-AB e a AB também relataram a falta de infraestrutura, relacionada principalmente à área física e também de instrumentos e insumos necessários ao trabalho1111 Leite DF, Nascimento DDG, Oliveira MAC. Qualidade de vida no trabalho de profissionais do NASF no município de São Paulo. Physis [Internet]. 2014 [citado 2014 dez. 06];24(2):507-25. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v24n2/0103-7331-physis-24-02 00507.pdf
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),(1717 Oliveira PRS, Reis F, Arruda CAM, Vieira ACVC, Tófoli LF, et al. Novos olhares, novos desafios: vivências dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família em Fortaleza-CE. Cad ESP [Internet]. 2012 [citado 2013 maio 04];6(1):54-64. Disponível em: http://www.esp.ce.gov.br/cadernosesp/index.php/cadernosesp/article/view/74
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),(2121 Trindade LL, Pires DEP, Amestoy SC, Forte ECN, Machado FL, Bordignon M. Working in the family health strategy: implications in professionals workloads. Cogitare Enferm [Internet]. 2014 [cited 2014 Dec 06];19(3):485-92. Available from: http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/cogitare/article/viewFile/35492/23237
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)-(2222 Katsurayama M, Parente RCP, Moraes RD, Moreti-Pires RO. Trabalho e sofrimento psíquico na Estratégia Saúde da Família: uma perspectiva Dejouriana. Cad Saúde Coletiva [Internet]. 2013 [citado 2014 out. 20];21(4):414-19. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cadsc/v21n4/v21n4a09.pdf
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. Houve ocasiões em que os profissionais adquiriam com recursos próprios materiais para utilizar em sua prática, como uma saída para realizarem o trabalho, tendo em vista a falta de infraestrutura2323 Cunha MS, Sá MC. A cooperação prescrita e a cooperação possível: vicissitudes do trabalho em equipe em uma unidade de saúde da família. In: Azevedo MC, Sá MC, organizadores. Subjetividade, gestão e cuidado em saúde: abordagens da psicossociologia. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2013. p. 301-26..

A utilização de espaços da comunidade para o desenvolvimento de ações coletivas é bastante frequente, na tentativa de minimizar as dificuldades relativas à infraestrutura. No entanto, tais locais muitas vezes são pouco adequados e até mesmo insalubres, não apresentam condições de segurança ou higiene, o que compromete a qualidade da assistência.

A impossibilidade de realizar o trabalho cotidiano, tal como solicitado pela gestão, devido à falta de espaço e à sensação de não ser aceito, mobiliza sentimentos e manifestações psíquicas geradores de estresse e sofrimento. Além disso, o trabalhador do NASF-AB muitas vezes se vê obrigado a ceder e aceitar condições que não se enquadram em sua forma de ver e realizar o trabalho, o que resulta em sofrimento moral2424 Dejours C. A sublimação, entre sofrimento e prazer no trabalho. Rev Port. Psicanál. 2013;33(2):9-28..

Outro aspecto gerador de sofrimento evidenciado nos discursos diz respeito à violência e à vulnerabilidade do território, a que todo profissional da AB está exposto. A violência é entendida como externa e indireta ao serviço de saúde, uma vez que a dinâmica da violência do território faz parte da rotina dos trabalhadores, assim como o cuidado às vítimas e agressores, mas pode se tornar direta quando os trabalhadores sofrem algum dano2525 Lancman S, Ghirardi MIG, Castro E, Tuacek TA. Repercussões da violência na saúde mental de trabalhadores do Programa Saúde da Família. Rev Saúde Pública. 2009;43(4):682-8.. Apesar de não haver consenso entre os trabalhadores do NASF-AB, verificou-se que para alguns deles a violência e a vulnerabilidade no território podem gerar estresse e impacto na qualidade de vida profissional pela constância da exposição, o que também foi identificado em outro estudo1111 Leite DF, Nascimento DDG, Oliveira MAC. Qualidade de vida no trabalho de profissionais do NASF no município de São Paulo. Physis [Internet]. 2014 [citado 2014 dez. 06];24(2):507-25. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v24n2/0103-7331-physis-24-02 00507.pdf
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No contexto desta investigação, o maior impacto na qualidade de vida profissional dos trabalhadores decorreu da convivência com as precárias condições sociais e de vida da população, exposta a riscos e vulnerabilidades de diversas ordens. Embora alguns trabalhadores já tenham sido alvo de furtos e assaltos na própria UBS e em sua área de abrangência, isso não os paralisa e nem os impede de se manterem no trabalho.

O sofrimento relacionado à violência associou-se muito mais frequentemente às notificações realizadas em defesa de crianças, mulheres e idosos, vítimas de violência, abuso ou negligência, que na maioria das vezes são consideradas pelas equipes da ESF como de responsabilidade do NASF-AB.

Quanto às repercussões da violência na saúde mental dos trabalhadores, os resultados revelaram sentimento de impotência frente a situações de precariedade, medo do risco de exposição e de ter sua integridade ameaçada, além de contaminação dos espaços pessoais, tal como encontrado em outro estudo2525 Lancman S, Ghirardi MIG, Castro E, Tuacek TA. Repercussões da violência na saúde mental de trabalhadores do Programa Saúde da Família. Rev Saúde Pública. 2009;43(4):682-8..

Na presente investigação, assim como em outro estudo sobre a saúde da família2525 Lancman S, Ghirardi MIG, Castro E, Tuacek TA. Repercussões da violência na saúde mental de trabalhadores do Programa Saúde da Família. Rev Saúde Pública. 2009;43(4):682-8., ficou evidente a preocupação com a exposição dos profissionais, principalmente dos agentes comunitários de saúde (ACS) que moram no território, em relação às notificações de violência, situações dilemáticas entre as equipes. Os trabalhadores vivenciam forte tendência ao sofrimento psíquico pelo contexto em si e pelo impasse ético entre o certo e o errado, entre a denúncia e a conivência, o que também pode ser caracterizado como sofrimento moral, que, se prolongado, pode gerar sentimentos como medo, angústia, ansiedade, insegurança e diferenças de opinião que podem comprometer a eficácia dos profissionais e ocasionar sintomas físicos.

Em hospitais, a análise do sofrimento moral da enfermagem permitiu verificar que as principais situações que o geram estão ligadas à falta de competência da equipe, ao desrespeito à autonomia do paciente e às condições de trabalho inadequadas. O sofrimento moral está mais presente em ambientes em que não ocorrem reuniões de equipe, em que o diálogo com os gestores não é favorecido, e em que não se investe em Educação Permanente2626 Dalmolin GL, Lunardi VL, Lunardi GL. Nurses, nursing technicians and assistants: who experiences more moral distress? Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2014 [cited 2014 Dec 06];48(3):519-26. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v48n3/0080-6234-reeusp-48-03-521.pdf
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Os trabalhadores do NASF-AB também parecem vivenciar o sofrimento moral em alguma medida em função do desgaste nas reuniões e no trabalho em equipe, sensação de não pertencimento, violência e vulnerabilidade, vivenciadas cotidianamente, ausência de espaços formais de diálogo e pactuação com gestores e a instituição, o que os leva a reunir forças e adotar rotineiramente diversas formas de enfrentamento. Em publicação acerca do livro de Dejours, A Banalização da injustiça social2727 Martins JT, Domnansky RC, Ciampone MHT. Resenha bibliográfica: a banalização da injustiça social. Rev Latino Am Enfermagem [Internet]. 2006 [citado 2014 set. 12];14(2):292-3. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v14n2/v14n2a21.pdf
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, foi evidenciado que “os trabalhadores, com o passar do tempo, vão perdendo a esperança e acabam chegando à conclusão de que os esforços, a dedicação, a boa vontade, o bom relacionamento com os colegas e produzir o máximo para as empresas/instituições não têm contribuído para que se estabeleça um equilíbrio na relação de prazer-sofrimento”.

O número limitado de participantes, de uma única instituição, pode ser considerado um fator limitante do estudo, no entanto, dada a complexidade das necessidades sociais e de saúde dos coletivos nos diversos espaços em que atuam as equipes da ESF e do NASF-AB, é possível que mesmo com um grande investimento, estas talvez nunca consigam responder integralmente ao que delas é demandado, o que certamente resultará em algum grau de frustração e sofrimento dos trabalhadores. Assim, será sempre necessário investir em estratégias individuais e coletivas de defesa para o enfrentamento do sofrimento e sua transformação em prazer. Isso se faz necessário, uma vez que no mundo do trabalho sempre haverá imposições externas e confronto entre as pessoas, podendo gerar sofrimento. No entanto, o trabalho também pode favorecer o desenvolvimento humano, o reconhecimento social e ser fonte de satisfação e prazer33 Dejours C. Trajetória teórico conceitual: a clínica do trabalho: perspectivas. In: Lancman S, Sznelwar LI, organizadores. Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. 3a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. Partes I-III..

CONCLUSÃO

Frente ao exposto, e tendo como pano de fundo as contradições dialéticas entre o trabalho prescrito do NASF-AB, expresso em suas diretrizes, e o trabalho real, constata-se que o processo de construção e reconstrução da grupalidade e de integração horizontal, cooperativa e colaborativa entre os trabalhadores do NASF-AB e da ESF segue sendo um desafio, no sentido da minimização do sofrimento no trabalho. Esta só será possível a partir de um profundo resgate dos propósitos do trabalho de ambas as equipes, atrelado à motivação e à mútua identificação, por meio de espaços coletivos para reflexão e reelaboração contínua do sentido do trabalho e de estratégias defensivas contra o sofrimento.

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    Extraído da tese: “O cotidiano de trabalho no NASF: percepções de sofrimento e prazer na perspectiva da Psicodinâmica do Trabalho”, Programa Interunidades de Doutoramento em Enfermagem, Escola de Enfermagem de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2018
  • Aceito
    25 Set 2018
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