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O conflito como possível catalisador de relações democráticas no trabalho da equipe de Saúde da Família

RESUMO

Objetivo:

Analisar as situações de conflito na equipe de atenção básica como possível catalisadoras de relações democráticas no trabalho, favorecendo a atuação em equipe.

Método:

Estudo qualitativo com equipe de saúde da família de um município do interior paulista. Os dados coletados incluíram observação sistemática e entrevista com trabalhadores que foram organizados e analisados a partir da confrontação com o referencial teórico do processo de trabalho em saúde. Utilizou-se da análise de conteúdo temática.

Resultados:

Participaram 16 trabalhadores. Os dados estão organizados em duas categorias temáticas: A recepção da unidade como local onde os conflitos ficam mais explícitos e O conflito como abertura para construção de relações democráticas no trabalho de equipe.

Conclusão:

O recebimento dos usuários na recepção e quem vai ou não trabalhar nesse espaço revelam valores e concepções diferentes sobre o cuidado de cada profissional, situação que gera conflito. No entanto, ideias antagônicas situadas no conflito são fecundas por serem capazes de se complementarem e propiciarem um salto qualitativo nas relações da equipe, com tendência a influenciar a diminuição das vulnerabilidades das relações entre os sujeitos. Essa é uma necessidade premente e atual na discussão envolvendo a reorganização das práticas em saúde.

DESCRITORES:
Equipe de Assistência ao Paciente; Saúde da Família; Conflito (Psicologia); Relações Interpessoais; Relações Interprofissionais

ABSTRACT

Objective:

To analyze conflict situations in the basic care team as possible catalysts of democratic relations at work, favoring team performance.

Method:

A qualitative study with a family health team from a municipality in the interior of São Paulo State. The data collected included systematic observation and interviews with workers who were organized and analyzed from the confrontation with the theoretical reference of the health work process. Thematic content analysis was used.

Results:

16 workers participated. The data are organized into two thematic categories: the reception of unity as a place where conflicts become more explicit, and the conflict as an opening for building democratic relationships in teamwork.

Conclusion:

Receiving users at the reception and who will or will not work in this space reveals different values and conceptions about the care each professional provides, and constitutes a situation that generates conflict. However, opposing ideas in the conflict are fruitful because they are able to complement each other and provide a qualitative leap in team relations, with a tendency to influence a reduction in the vulnerabilities of the relations between the subjects. This is a pressing and current need in the discussion involving the reorganization of health practices.

DESCRIPTORS:
Patient Care Team; Family Health; Conflict (Psychology); Interpersonal Relationships; Interprofessional Relations

RESUMEN

Objetivo:

Analizar las situaciones de conflicto en el equipo de atención básica como posible catalizadoras de relaciones democráticas en el trabajo, favoreciendo la actuación en equipo.

Método:

Estudio cualitativo con equipo de salud de la familia de un municipio del interior del Estado de São Paulo. Los datos recogidos incluyeron observación sistemática y entrevista con trabajadores que fueron organizados y analizados mediante la confrontación con el marco de referencia teórico del proceso laboral en salud. Se utilizó el análisis de contenido temático.

Resultados:

Participaron 16 trabajadores. Los datos están organizados en dos categorías temáticas: La recepción de la unidad como sitio donde los conflictos resultan explícitos y El conflicto como apertura para construcción de relaciones democráticas en el trabajo de equipo.

Conclusión:

El recibimiento a los usuarios en la recepción y quienes van o no van a trabajar en dicho espacio revelan valores y concepciones diferentes sobre el cuidado de cada profesional, situación que genera conflicto. Sin embargo, ideas antagónicas ubicadas en el conflicto son fecundas por ser capaces de completarse y facilitar un salto cualitativo en las relaciones del equipo, con tendencia a influenciar la disminución de las vulnerabilidades de las relaciones entre los sujetos. Esa es una necesidad apremiante y actual en la discusión involucrando la reorganización de las prácticas sanitarias.

DESCRIPTORES:
Grupo de Atención al Paciente; Salud de la Familia; Conflicto (Psicología); Relaciones Interpersonales; Relaciones Interprofisionales

INTRODUÇÃO

Com a proposta de ampliar a capacidade de cuidado dos serviços de assistência à saúde no contexto da Estratégia Saúde da Família (ESF), aposta-se no trabalho da equipe multidisciplinar11. Brasil. Ministério da Saúde; Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. PNAB - Política Nacional de Atenção Básica [Internet]. Brasília; 2017 [citado 2018 maio 28]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2017/prt2436_22_09_2017.html
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. Considera-se que esse modo de operar o trabalho em saúde traria satisfação tanto aos trabalhadores como aos usuários, por possibilitar, aos primeiros, uma rede de apoio e de partilha de saberes, e aos segundos uma diversidade de ações terapêuticas partilhadas e singulares.

Para tal, a Política Nacional de Humanização22. Brasil. Ministério da Saúde; Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Gestão Participativa e Cogestão [Internet]. Brasília; 2009 [citado 2018, maio 9]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/gestao_participativa_cogestao.pdf
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propõe igualmente o trabalho em equipe, como possibilidade de criar serviços mais próximos das necessidades dos trabalhadores e dos usuários.

No imaginário coletivo de trabalhadores, gestores e usuários, o trabalho em equipe é algo harmônico, não é considerado como processual e dinâmico, o que exclui o conflito. É comum ouvir expressões que apagam as diferenças existentes nas relações de trabalho, tais como: falar a mesma língua, ter o mesmo objetivo, ser uma família, conviver bem com todos.

Neste artigo, consideramos que o processo de trabalho das equipes em atuação é atravessado por diversos ruídos, entre os quais a desigualdade existente entre as categorias profissionais hierarquizadas33. Silva IS, Arantes CIS. Power relations in the family health team: focus on nursing. Rev Bras Enferm [Internet]. 2017 [cited 2018 Feb 11];70(3):580-87. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672017000300580
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, embora se preserve um discurso de horizontalidade.

Tal ruído refere-se à divisão técnica e social do trabalho presente nas equipes, na qual alguns trabalhos, particularmente aqueles intelectuais, são mais valorizados em todos os sentidos: salário, reconhecimento social e poder, elementos que podem funcionar como precursores do conflito. Além destes, o conflito pode originar de relacionamentos com pessoas que possuem valores, crenças, formação e objetivos diferentes44. Lima SBS, Rabenschlag LA, Tonini TFF, Menezes FL. Lampert AN. Conflitos gerenciais e estratégias de resolução pelos enfermeiros gerentes. Rev Enferm UFSM [Internet]. 2014 [citado 2018 fev. 23];4(2):419-28. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/reufsm/article/view/11888/pdf
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“O conflito é permeado pela interação social, que se manifesta no contexto dos serviços, condicionado pela forma como o trabalho está organizado. Portanto, não são as relações humanas gerais e subjetivas que estão em conflito, mas aquelas que se conformam na concretude das interações que acontecem no processo de trabalho”55. Carvalho BG, Peduzzi M, Ayres JRC. Concepções e tipologia de conflitos entre trabalhadores e gerentes no contexto da atenção básica no Sistema Único de Saúde (SUS). Cad Saúde Pública [Internet]. 2014 [citado 2018 fev. 23];30(7):1453-62. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v30n7/0102-311X-csp-30-7-1453.pdf
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Por muito tempo, o conflito foi visto como fenômeno prejudicial às organizações, devendo ser evitado ou extirpado e, na atualidade, quando bem gerido, tem sido fundamental para o crescimento e desenvolvimento dos envolvidos, particularmente na saúde66. Torres CS, Cunha P. Gestão de conflitos em uma organização da área da saúde em Portugal Ciênc Cognição [Internet]. 2014 [citado 2018 fev. 23];19(3):384-92. Disponível em: http://www.cienciasecognicao.org/revista/index.php/cec/article/view/946/pdf_29
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O conflito pode possibilitar mudança e redefinição de estratégias de atuação que favoreçam o empoderamento individual e coletivo e o fortalecimento das relações. No entanto, se não administrado adequadamente, pode desencadear uma escalada irracional de outros conflitos, impactando negativamente a qualidade dos serviços ofertados na saúde77. Claro RFS, Cunha PFSS. Estratégias de gestão construtiva de conflitos: uma perspetiva dos profissionais de saúde. Psic Saúde Doenças [Internet]. 2017 [citado 2018 fev. 23];18(1):55-68. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/psd/v18n1/v18n1a05.pdf
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Assim, as questões norteadoras deste texto foram: como o conflito se apresenta para os profissionais da atenção básica? Há nele potencialidades para o trabalho em equipe?

O objetivo deste estudo é analisar o conflito na equipe de atenção básica como possível catalisador de relações democráticas no trabalho, favorecendo a atuação em equipe.

MÉTODO

TIPO DE ESTUDO

Trata-se de um estudo descritivo e exploratório, com abordagem qualitativa, ancorado no referencial teórico sobre o processo de trabalho em saúde88. Mendes-Gonçalves RB. Tecnologia e organização social das práticas de saúde: características tecnológicas do processo de trabalho em saúde na Rede Estadual de Centros de Saúde de São Paulo. São Paulo: Hucitec; 1994., que considera a historicidade, a socialidade e a direcionalidade do trabalho presentes na mente do trabalhador, como elemento crucial para a transformação do trabalho e de quem o opera.

CENÁRIO

Esta investigação foi desenvolvida com 16 trabalhadores de uma equipe de saúde da família em um município do interior paulista, que possui na sua Rede de Atenção Básica 24 equipes de SF, 10 equipes atuando em unidades básicas convencionais e um NASF - Núcleo de Apoio à SF. O critério para escolha da equipe considerou o tempo de atuação conjunta dos trabalhadores no mesmo espaço, por mais de 1 ano.

Foi realizada a observação sistemática direcionada por um roteiro básico, com enfoque nas interações da equipe, totalizando aproximadamente 40 horas. Procedeu-se ao registro das informações em diário de campo (DC), em seguida realizou-se a entrevista semiestruturada com os trabalhadores da equipe de SF: um enfermeiro, um médico, cinco agentes comunitários de saúde, três técnicos em enfermagem, um agente administrativo, dois dentistas, dois auxiliares de saúde bucal (ASB) e uma gestora de território de saúde (GTS).

COLETA DE DADOS

A coleta dos dados aconteceu entre os meses de setembro e outubro de 2012. O roteiro de entrevista foi norteado por questões que abordavam as relações entre os trabalhadores. As entrevistas duraram em média 50 minutos, cada uma, foram gravadas em áudio e transcritas integralmente, preservando-se o anonimato dos participantes.

ANÁLISE E TRATAMENTO DOS DADOS

Os dados foram tratados a partir do método de análise de conteúdo, com a técnica de análise categorial temática.

A análise se fez a partir da confrontação dos dados com o referencial teórico do processo de trabalho em saúde88. Mendes-Gonçalves RB. Tecnologia e organização social das práticas de saúde: características tecnológicas do processo de trabalho em saúde na Rede Estadual de Centros de Saúde de São Paulo. São Paulo: Hucitec; 1994.. Eles foram organizados, após a transcrição das entrevistas e digitação do diário, em temas que agrupavam ideias semelhantes em resposta ao objetivo.

ASPECTOS ÉTICOS

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos, sob o número 72132/2012.

O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi explicado para os participantes, os quais o aceitaram e o assinaram, concordando em participar da pesquisa, atendendo à resolução do CNS 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. Os participantes do estudo foram identificados por meio da letra inicial da categoria profissional a qual o entrevistado pertence ou da função que exerce pelas seguintes abreviaturas: Enfermeiro (E); Técnico em enfermagem (TE); Médico (M); Dentista (D) e Agente Comunitário de Saúde (ACS). Nas categorias profissionais nas quais havia mais de um trabalhador, foi acrescentado numerais ordinais seguindo a sequência de realização das entrevistas.

RESULTADOS

Participaram do estudo 16 trabalhadores. Os resultados mostram que o trabalho enquanto processo é operado e opera sobre as relações que se estabelecem como relações sociais, abarcadas por uma diversidade de atores, com diferentes propósitos favorecendo o conflito, elemento que tem suas matrizes nas relações de poder. Para a análise dos dados, foram constituídas duas categorias temáticas: A recepção da unidade como local onde os conflitos ficam mais explícitos, e O conflito como abertura para construção de relações democráticas no trabalho de equipe.

A RECEPÇÃO DA UNIDADE COMO LOCAL ONDE OS CONFLITOS FICAM MAIS EXPLÍCITOS

A forma como o serviço de saúde se organiza para atender a população recebe importância nessa categoria, que aponta a recepção da unidade como um fator desencadeante de situações conflitantes no cotidiano dos trabalhadores dessa equipe:

Em muitos momentos não havia nenhum profissional na recepção. Havia sempre um apelo entre os membros, para que um deles ficasse na recepção (DC).

A enfermeira falou para a gestora de território que a situação da recepção tem se constituído problema para a equipe e que estava refletindo mal em todo o atendimento. Do total de quatro reuniões observadas pela pesquisadora, em três delas a recepção foi apontada pela equipe como um nó crítico a ser resolvido (DC).

A incumbência da recepção é apontada como sobrecarga para a equipe, de tal modo que alguns alegam negligenciar seu núcleo de atuação por ocupar maior parte do tempo na recepção:

Tenho as minhas coisas pra fazer como enfermeira, não posso ficar na recepção, acho que não é minha função (E).

E as visitas, como faço se tenho que ficar na recepção? (ACS 2).

O extravio de um prontuário de uso comum, disponível no espaço físico da recepção, envolvia todos os profissionais e resultou em conflito que afetou todos da equipe:

Você viu as discussões que a gente tem, por conta da recepção, por ter “sumido” um prontuário de paciente agendado para hoje, a equipe toda se mobilizou para encontrar (...) se tivesse alguém responsável pela recepção, isso não teria acontecido (...) não estaríamos tão cansados e estressados (TE 2).

A recepção é apontada como etapa do processo de trabalho capaz de influenciar sobremaneira os processos seguintes, podendo determinar o desfecho do atendimento prestado, a quem procura a unidade:

A recepção tá abandonada (...) se eu chegar num lugar e não tiver uma recepção pra me acolher, o resto não interessa (E).

Tudo que acontece na recepção respinga no que segue o dia inteiro (TE3).

A demanda espontânea aparece como um desafio para a equipe como forma de organizar o serviço:

Já falei em reunião, que a equipe precisa ajustar a agenda, tem dia que são 2 horas da tarde e continua chegando acolhimento no balcão. Tem que educar a população (...) senão não vence (GTS).

Com base no depoimento que segue, ficar na recepção representa exposição do trabalhador às situações nem sempre conhecidas, nem sempre possíveis de resposta. Além disso, é o local da unidade que apresenta alto grau de complexidade, demandando da equipe grande empreendimento de esforços:

Acho que elas (ACS) têm dificuldade em ficar na recepção, são inseguras (E).

Depois que fiz o curso introdutório (...) me acho mais preparada para atender às queixas que chegam lá na frente (ACS 3).

Parece que, no entendimento desse trabalhador, o espaço da recepção não está à altura do saber conferido a um profissional graduado, sendo assim torna-se um lugar menos prestigiado do ponto de vista dos saberes e poderes:

Não vejo o ficar na recepção como uma posição de desprestígio (...), mas temo que ficar lá possa significar para a equipe que o atendimento odontológico seja menos importante que a recepção, temo que isso tire a importância do meu trabalho (D2).

O CONFLITO COMO ABERTURA PARA CONSTRUÇÃO DE RELAÇÕES DEMOCRÁTICAS NO TRABALHO DE EQUIPE

A análise dos dados conduziu à ideia de que no encontro entre os trabalhadores da equipe o conflito aparece como expressão viva das relações, e é necessário o reconhecimento da sua existência:

Em relação à equipe é aquele negócio, é lidar com o ser humano (...) porque onde tem as discussões, aí flui, onde isso não acontece, onde todo mundo só se abraça e beija, não tem bons resultados (TE 1).

O conflito pode ser considerado como elemento produtor de relações de poder mais democráticas, podendo abrir espaço para manifestações dos trabalhadores:

(...) então é uma briga de espaço, de opiniões, mas tudo contribui (...) e gente “se pega” aqui, mas (as coisas) andam (E).

Tem que existir o conflito, porque nem tudo que eu falo e ouço também é verdade. A gente discute, questiona (...) todo dia a gente senta pra resolver (...), pra estudar caso (TE 1).

A ausência de uma queixa físico-biológica trazida pelo ACS não é entendida pela equipe como necessidade de saúde, e isso dá origem a conflitos, visto que esse reivindica o reconhecimento do seu trabalho:

Muitas vezes não tenho o mesmo ponto de vista que o profissional que está aqui na unidade. Tento mostrar para ele o outro lado (...) me sinto uma peça importante (...) embora às vezes é meio difícil, mas a gente se preocupa em tá olhando mais pelo lado da comunidade (ACS 5).

A gente “bate de frente” com a equipe, mas faz (ACS 2).

O projeto de dança (...) quanto que eu briguei, chorei por isso! Quantas horas que eu perdi. Perdi não, ganhei (...) vejo adolescentes que estão até hoje dançando. Estão no caminho que eu gostaria que eles estivessem (ACS 1).

O conflito é projetado como possibilidade do exercício de liberdade, podendo o trabalhador optar por torná-lo latente ou por querer resolvê-lo:

Tem dia que a gente sai triste, chorando e magoada, no outro já passou, a gente vai para casa, pensa, avalia. Um dia eu errei, no outro acertei, se tiver de pôr em pauta na reunião do outro dia (...) já não está com tanta ira, sem tanto conflito, até com a gente mesma, o conflito mental, quando a gente volta já tem outra concepção, ou pede desculpa, ocorre diálogo (E).

(...) se tiver um conflito de relacionamento, por exemplo, a gente já põe na mesa, briga, discute, vai embora com cara feia, mas no outro dia a gente sabe que aquela pauta já tá resolvida, não deixa fomentar fofoca (TE3).

Quando eu tenho convicção de que o que eu tô fazendo é o certo, então eu brigo, (...) a gente debate com a coordenação da unidade (TE2).

Os conflitos que se apresentam podem ser conduzidos para uma proposta de caráter produtivo, em que não há ganhadores nem perdedores, e o espaço da reunião de equipe ganha importância nessa produção.

Aconteceu uma situação estranha entre a enfermeira e eu (...) não gostei, ao invés de eu levar isso embora, teve uma reunião, e eu expus. Eu falei e ela também, ficou acertado e ficou melhor, deu tudo certo (TE 2).

Ontem a ACS me respondeu de forma grosseira. Hoje na reunião expus a situação, entendi e acabou (...) aqui a gente não deixa coisa assim “sobre a mesa”, a gente vai e resolve (E).

De acordo com aquilo que o trabalhador traz, assim como as situações de conflito partem de diferentes lugares ou fontes, também as respostas para saná-las podem surgir das diferentes pessoas envolvidas. É mencionado que todos, indistintamente, possuem de certa forma, uma condição para proposições na direção do entendimento:

As pessoas têm liberdade de se expressar (...) isso já gera alguma situação de conflito, em que você vai ter que criar alguma saída para diminuir esse conflito. Isso é interessante na equipe, às vezes essa atitude não parte dos profissionais graduados, mas parte dos ACS. Você imagina que o poder de negociação está no graduado (M).

Não tenho medo de fazer o meu trabalho, mesmo que tenha que enfrentar e “bater de frente”, como fiz muitas vezes, para defender questões de saúde de famílias e pacientes, pus “minha cara para bater” (…) daí as coisas se resolvem (ACS 4).

A sobrecarga de trabalho foi vinculada a uma das causas de conflito na equipe:

Não temos um quadro de funcionários adequado (...) no momento eu acho que tá muito conflitante. Você viu as discussões que a gente tá tendo, o técnico tá cansado, o outro tá cansado (E).

Por outro lado, a redistribuição de papéis entre os seus membros, objetivando a corresponsabilização, surgiu como modo de solucionar conflitos:

O trabalho em equipe é um compartilhamento. Temos discutido e feito isso na equipe (...). Cada um se esforça para fazer algumas coisas além das atribuições: um vê a conta telefônica, outro estoque e outras coisas de vacina, outro faz encaminhamentos para colposcopia (...). Além de lançar minha produção, também faço o controle dos programas da vigilância epidemiológica semanal e requisição de material mensal (M).

Se cada um for contestar: - “Ah, isso não é minha atribuição” (...) realmente não tem trabalho em equipe, porque você tem que extrapolar um pouco as suas atribuições (D1).

Cada um fazendo um pouco, não sobrecarrega, nem estressa a equipe (GTS).

DISCUSSÃO

Os dados mostram que os trabalhadores vivenciam os conflitos no cotidiano das práticas profissionais e que vão encontrando modos de enfrentá-los, como deixar o “calor” do incômodo passar e trazê-los na reunião de equipe. A visão sobre o que deva ser o cuidado, os casos prioritários e os tipos de atividades a serem ofertadas fazem a equipe ora “bater de frente”, ora se entender.

Chama atenção o fato de que a recepção é um ponto de conflito que ainda não aparece como algo a ser problematizado pela equipe. Revela-se como local desencadeante dos conflitos nas etapas do processo de trabalho da equipe, os quais tendem a afetar a produção do cuidado em saúde. É ali que os usuários se apresentam espontaneamente, sem consulta agendada e que deveriam ser acolhidos e receber uma resposta para sua demanda.

Ao delegar esse trabalho para apenas alguns trabalhadores e atribuir um valor inferior a essa função, a equipe de saúde culpabiliza a população que não está “educada” para vir em horários preestabelecidos e tem seus membros fugindo desse espaço.

A recepção da unidade é entendida aqui como o acolhimento inicial do usuário no serviço, que aparece nos resultados, associada a situações geradoras de desconforto e como ponto de colisão entre a equipe de trabalho.

Tal função se constitui em um lugar privilegiado, pois nela se expressam as diferenças sobre o que deve, quando e como ser atendida uma pessoa que procura o serviço de saúde. Assim, permite a produção e visibilidade de diferentes posições na equipe, marcadas pela intencionalidade de cada trabalhador, pautada no plano institucional e principalmente em sua liberdade de atuação.

Ficou evidenciado que, quando as demandas apresentadas na recepção fogem das regras estabelecidas pelo serviço (horário de chegada do usuário para ser atendido e ausência de agendamento prévio, por exemplo), o trabalhador tem de recorrer à sua liberdade de pensar em outras escolhas, e instauram-se os conflitos.

Aquilo que extrapola o que está previsto soa para o trabalhador da recepção como algo difícil de resolver. Nesse caso, atender na recepção pode corresponder a lidar com estranhamentos, reservas e resultar em sensação de impotência, medo e conflito no trabalho da equipe.

Talvez seja pertinente dizer que, nesta investigação, a recepção se apresenta como o lócus de expressão da tensão entre a oferta e a demanda que envolvem os modelos de agenda e a demanda espontânea que batem à porta da unidade. Percebe-se que existe um descompasso entre a necessidade real sentida pelo usuário e o modelo programado para o atendimento, impactando sobremaneira a forma como a equipe operacionaliza e significa o trabalho, fertilizando o conflito.

“As tensões na recepção podem ser maiores, em função das expectativas da população quanto à demanda por atendimento em saúde. Considerando que legalmente existe um compromisso firmado para oferta de serviços pela unidade, que supera o papel de prestador, o primeiro impacto relacional negativo pode comprometer o desenvolvimento do trabalho do conjunto de profissionais. Assim, o acolhimento como reorganização do serviço inclui o bom funcionamento da recepção como canal efetivo de comunicação”99. Guerrero P, Mello ALSF, Andrade SR, Erdmann AL. User embracement as a good practice in primary health care. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2013 [cited 2018 Feb 11];22(1):132-40. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n1/16.pdf
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Cabe ainda discutir, entre outros aspectos, a quem é atribuída a recepção ao usuário na unidade de saúde da família (USF), revelada neste estudo, como situação-problema para a equipe. Ao mesmo tempo que a recepção é tida como algo estratégico, capaz de determinar os demais processos no atendimento, também se apresentou como papel menos valorado na perspectiva dos saberes e poderes, por conferir pouca visibilidade a quem realiza o primeiro contato com o usuário.

O modo desigual com que os diversos trabalhadores são inseridos socialmente nas etapas do processo de trabalho, e, neste caso, na recepção da unidade, ficou evidenciado, considerando que os profissionais de nível universitário reivindicam suas posições mais nucleares, com alegações que, nesse papel, aquilo que é próprio do seu fazer e do seu saber sofreria perdas, constituindo-se motivo de recorrentes conflitos. Neste caso, parece haver também, uma aparente preocupação de zelo para proteger a profissão, estabelecendo, assim, uma relação de poder.

Nos estudos foucaultianos, saber e poder estão imbricados de tal modo que o saber pode ser manipulado para o exercício do poder, somente por meio da verdade regulamentada e institucionalizada, que se estabelece uma relação de poder. Não há relação de poder sem a constituição de um campo de saber, nem saber que não pressuponha e não constitua relações de poder1010. Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 41ª ed. Petrópolis: Vozes; 2013..

É nessa vertente das relações de poder que o lugar da recepção se apresentou pouco prospectante na interpretação das falas. Parece que a recepção não abstrai o aparato tecnológico figurado no modelo biomédico, aglutinador de reconhecimento, sobretudo social, tornando-a preterida em relação às demais atividades.

Estudo relacionado aos tipos de conflitos entre trabalhadores da atenção básica aponta que “apesar de o trabalho e de todos os envolvidos serem necessários e importantes na unidade de saúde, existe o conflito resultante do desrespeito advindo das relações assimétricas e do reconhecimento social desigual entre as categorias”55. Carvalho BG, Peduzzi M, Ayres JRC. Concepções e tipologia de conflitos entre trabalhadores e gerentes no contexto da atenção básica no Sistema Único de Saúde (SUS). Cad Saúde Pública [Internet]. 2014 [citado 2018 fev. 23];30(7):1453-62. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v30n7/0102-311X-csp-30-7-1453.pdf
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Ficar na recepção, de acordo com relatos deste estudo, poderia significar também submeter-se às opressões produzidas pela necessidade de respostas satisfatórias, do ponto de vista de quem busca o serviço. A negativa disso poderia traduzir-se em hostilidade e desrespeito frente ao envolvidos.

“As pautas da humanização e da integralidade apontam exatamente o desafio de lidar com as opressões que, conscientemente ou não, voluntariamente ou não, produzem desrespeito e não reconhecimento. Baliza-se, entretanto, que a opressão contém o germe da luta e ela é conduzida pelo princípio normativo da autorrealização, o qual se conecta à ética, tornando os conflitos vivenciados nos espaços da saúde favoráveis para os esforços reconstrutivos da humanização e da integralidade no campo da saúde”1111. Wernet M, Mello DF, Ayres JRCM. Recognition in Axel Honneth: contributions to research in health care. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2017 [cited 2018 Feb 13];26(4):e0550017. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v26n4/en_0104-0707-tce-26-04-e0550017.pdf
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Ressalta-se, também, que as falas conduziram à interpretação de que a recepção está atrelada à etapa do processo de trabalho que pode expressar a preocupação do quanto o serviço de saúde está comprometido ou não com o acesso das pessoas. Essa proposição oportuniza olhar para esse primeiro contato do usuário com o serviço como momento rico em possibilidades para rupturas de hegemonias, como a rígida hierarquização dos saberes, as quais se constituem em barreiras ao acesso.

Em relação à categoria envolvendo o conflito como abertura para construção de relações democráticas no trabalho de equipe, buscou-se olhar para os resultados de maneira a apreender como a equipe se articula para resolver os conflitos que são produzidos no ato de cuidar, numa perspectiva de produção de saúde, em que a gestão do cuidado tende a acontecer de uma forma mais participativa entre os sujeitos em atuação. Nesse cenário, anuiu-se que o conflito possui valor construtivo. Ele pode funcionar como linhas de fuga para novas formas de produzir o trabalho1212. Deleuze G, Parnet C. Diálogos. São Paulo: Escuta; 1998..

Os depoimentos e a interpretação dos dados expressam que o conflito, quando “trabalhado”, pode ser elemento agenciador de relações de poder mais horizontais, considerando que ele pode abrir espaço para manifestação de modos de pensar o cuidado, independentemente do grau de estudos que os profissionais possuem e do cargo que ocupam. A exemplo disso citam-se os movimentos de resistência evidenciados pelos ACS, quando fazem enfrentamentos na busca pela legitimação de ferramentas que consideram pertinentes ao seu processo de trabalho, com vistas ao reconhecimento.

“A ausência desse reconhecimento constitui-se a base motivacional do conflito, que não deve ser compreendido apenas como um participante operacional nas relações de poder, mas na sua ocorrência, estão subentendidas exigências de reconhecimento recíproco, seja na esfera das relações interpessoais primárias, das relações jurídicas ou da estima social”55. Carvalho BG, Peduzzi M, Ayres JRC. Concepções e tipologia de conflitos entre trabalhadores e gerentes no contexto da atenção básica no Sistema Único de Saúde (SUS). Cad Saúde Pública [Internet]. 2014 [citado 2018 fev. 23];30(7):1453-62. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csp/v30n7/0102-311X-csp-30-7-1453.pdf
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“A vivência e a expressão de conflitos e disputas de variadas ordens são intrínsecas a essa necessidade de reconhecimento e permite afirmar que as equipes comportam um espaço de luta nesse sentido. Admite-se, contudo, que a experiência constante da luta por reconhecimento pode ser profundamente desestabilizadora para a equipe, chegando a inviabilizar a capacidade de trabalho”1313. Miranda L, Rivera FJU, Artmann E. Trabalho em equipe interdisciplinar de saúde como um espaço de reconhecimento: contribuições da teoria de Axel Honneth. Physis [Internet]. 2012 [citado 2018 ago. 28];22(4):1563-83. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v22n4/a16v22n4.pdf
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Estudo aponta que o conflito se constitui em barreira para a concretização da confiança, do vínculo, do respeito mútuo e do reconhecimento do trabalho do outro, elementos estes que compõem o trabalho em equipe (1414. Souza GC, Peduzzi M, Silva JAM, Carvalho BG. Teamwork in nursing: restricted to nursing professionals or an interprofessional collaboration? Rev Esc Enferm USP. 2016;50(4):640-47. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420160000500015
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Em contraponto, a análise desta investigação leva ao entendimento de um movimento por parte de trabalhadores de categorias diferentes, que tomaram o conflito como estratégia para superação dos entraves encontrados e como forma de ressignificar o trabalho.

Esse movimento não se faz com todos os problemas encontrados, por exemplo, nesta investigação, o modo de operar a recepção, embora gere conflitos, ainda não ganhou forças para ressignificar o trabalho e as relações.

Outra causa de conflito na equipe foi figurada na sobrecarga de trabalho, que, conforme relatos levou a equipe a reorganizar o seu processo de trabalho, de modo que cada um assumisse papéis até então sob a responsabilidade de outros.

Esse compartilhamento geralmente é concebido, entretanto nem sempre é tranquilo para as equipes, considerando que exige um movimento a partir do saber de cada profissão para outros fazeres, na direção da cogestão do trabalho1515. Campos GWS. Saúde pública e saúde coletiva: campo e núcleo de saberes e práticas [debate]. Ciênc Saúde Coletiva [Internet]. 2000 [citado 2018 maio 26];5(2):219-30. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v5n2/7093.pdf
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, que demanda flexibilidade nas interações.

Seria a sobrecarga de alguns trabalhadores mais expressa e valorizada que de outros? Não estaria a recepção também sobrecarregada? Essas questões, quando discutidas, poderiam auxiliar a equipe em sua tarefa de cuidar das pessoas em um dado território.

Sustenta-se, a partir dos dados, a ideia da potência do trabalho interdisciplinar para a reinvenção de novas formas de atuação, despertadas mediante o reconhecimento da equipe de que existem escapes para a desestabilização de valores instituídos, os quais por vezes obstruem o fazer e alienam o trabalhador. Não se trata de negar a sobrecarga como um dos fatores mais influentes na difícil lida das equipes, mas de enxergar a forma como estas encontram saídas para suas dificuldades, neste particular, pelas vias do conflito, advindo da reorganização do processo de trabalho.

Na ESF estudada, a sobrecarga parece estar relacionada ao desempenho das atividades previstas no modelo que abarca um vasto cardápio a ser oferecido. Inúmeras são as implicações dessa realidade, face ao que é idealizado. “Defende-se um projeto compartilhado que requer a gestão de diferentes saberes, orientada por valores éticos que norteiam escolhas coletivas, mas dificilmente isentas de conflito”1616. Nunes EFPA, Carvalho BG, Nicoletto SCS, Cordoni JL. Trabalho gerencial em Unidades Básicas de Saúde de municípios de pequeno porte no Paraná, Brasil. Interface (Botucatu) [Internet]. 2016 [citado 2018 fev. 23];20(58):573-84. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v20n58/1807-5762-icse-1807-576220150065.pdf
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Analisa-se aqui, que, na maioria das vezes, o conflito é inevitável e necessário para criar um ambiente no qual as pessoas se sintam livres para discordarem umas das outras. É mais fácil para os trabalhadores desenvolverem confiança recíproca se acreditarem que podem se contrapor e que não serão isolados ou prejudicados por terem perspectivas diferentes1717. Mosser G, Begun JW. Compreendendo o trabalho em equipe na saúde. Porto Alegre: Artmed; 2015..

Nesta investigação, a reunião de equipe revelou-se como importante estratégia para a exposição das discrepâncias, na busca de soluções para os conflitos existentes, e ferramenta de participação do trabalhador nos processos decisórios, no cotidiano de trabalho da ESF. Observou-se que nas reuniões alguns problemas ganhavam visibilidade e diferentes análises, respaldadas pelo resgate das experiências e saberes dos trabalhadores, que face a face faziam emergir as contradições presentes na sua cotidianidade de trabalho.

Enxerga-se, portanto, nos movimentos propiciados pelo conflito, possibilidades ruptoras, visto que neles os trabalhadores podem ser estimulados a expor suas opiniões e consequentes desconfortos, ao abrirem-se na tentativa de desocultar aquilo que lateja em suas mentes, por vezes obstruindo a criatividade e o desejo na realização do trabalho. Abrem-se, assim, espaços para a expressão de liberdades individuais, como ensaio de horizontalização das relações entre os trabalhadores.

Essa é a potência situada no conflito, a de desconstruir progressivamente relações verticalizadas de poder33. Silva IS, Arantes CIS. Power relations in the family health team: focus on nursing. Rev Bras Enferm [Internet]. 2017 [cited 2018 Feb 11];70(3):580-87. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672017000300580
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) e construir coletivamente, por meio da equipe de SF, autonomias a partir de novos modos de se relacionar, envolvendo a equipe multiprofissional. Destaca-se, ainda, a interdependência entre os envolvidos, e espera-se que isso tenha importante consequência na dinâmica entre eles. No trabalho em saúde, cada ação está entrelaçada com outra, e a interdependência, nesse sentido, poderia funcionar como foco promotor de conflitos1818. Cunha P, Meneses R, Oliveira MC. Gestão de conflitos na área da saúde: uma proposta de reflexão. Arq Med [Internet]. 2013 [citado 2018 Jan 09];27(3):132-4. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/am/v27n3/v27n3a06.pdf
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Convém salientar que as posturas defensivas, características da abordagem tradicional de conflitos, devem ser objetos de reconhecimento e de confrontação, visto que na área da saúde estas duas questões têm sido negligenciadas, dificultando uma cultura de desenvolvimento de um processo de solução de problemas, de preservação de uma cultura de paz1818. Cunha P, Meneses R, Oliveira MC. Gestão de conflitos na área da saúde: uma proposta de reflexão. Arq Med [Internet]. 2013 [citado 2018 Jan 09];27(3):132-4. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/pdf/am/v27n3/v27n3a06.pdf
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Afinal, sendo o conflito um fenômeno inevitável, é imperativo entender e discernir suas origens para administrá-lo assertivamente, suprimindo suas disfuncionalidades e potencializando os seus efeitos produtivos. A administração dos conflitos não implica necessariamente a sua solução, por vezes significa estimulá-los construtivamente para a aprendizagem da equipe.

Desse modo, “os conflitos devem ser examinados e trabalhados como matéria-prima importante para a gestão e a construção de novos pactos, que temporariamente responderiam melhor aos diferentes interesses em jogo”1919. Gomes LB, Merhy EE. Subjetividade, espiritualidade, gestão e Estado na Educação Popular em Saúde: um debate a partir da obra de Eymard Mourão Vasconcelos. Interface (Botucatu) [Internet]. 2014 [citado 2018 jan. 16];18(Suppl 2):1269-81. Available from: http://www.scielo.br/pdf/icse/v18s2/1807-5762-icse-18-s2-1269.pdf
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CONCLUSÃO

O estudo evidencia pontos de conflitos entre os trabalhadores na ESF. O recebimento dos usuários na recepção e quem vai ou não trabalhar nesse espaço revelam valores e concepções diferentes sobre o conceito de saúde e o cuidado de cada profissional.

Embora essas questões frente à recepção não tenham sido problematizadas, existiu uma fluência da equipe diante da oportunidade de discutir situações conflitantes, objetivando encontrar soluções para as dificuldades que se apresentam. Nessa direção, a reunião de equipe mostrou-se como espaço privilegiado, e o conflito nessa vertente operaria como força propulsora nesse processo.

É considerada, portanto, nesse estudo, a existência de linhas de fuga na ESF, inscritas na forma de conflitos, as quais podem agenciar a transposição de linhas hierárquicas, favorecendo respostas mais assertivas em saúde, do ponto de vista das relações estabelecidas no trabalho em equipe.

Evidenciou-se também que ideias antagônicas situadas no conflito são fecundas por serem capazes de se complementarem e propiciarem um salto qualitativo nas relações da equipe, com tendência a influenciar a diminuição das vulnerabilidades nas relações entre os sujeitos. Essa é uma necessidade premente e atual, que não pode ser prescindida quando a discussão envolve a reorganização das práticas em saúde.

Como limitações deste estudo, destaca-se a impossibilidade de alcançar generalizações, visto que analisou situações envolvendo o conflito entre trabalhadores de somente uma equipe de saúde da família. Aconselha-se que outros estudos, com diferentes contextos e equipes, sejam realizados na tentativa de compreender outros aspectos relativos ao conflito, como eles interferem na produção do cuidado, tanto negativa como positivamente, bem como o uso de outros referenciais teóricos e metodológicos que subsidiem maior exploração desse objeto.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Mar 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2018
  • Aceito
    25 Set 2018
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