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Práticas emancipatórias na área de drogas: construção de projetos com trabalhadores da Atenção Primária à Saúde* * Extraído da dissertação: “Práticas emancipatórias na área de drogas: construção coletiva com trabalhadores da atenção primária em saúde”, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, 2018.

Prácticas emancipadoras en el área de las drogas: construcción de proyectos con trabajadores de la Atención Primaria de Salud

RESUMO

Objetivo:

Construir projetos para a implementação de práticas emancipatórias na área de drogas com trabalhadores da Atenção Primária à Saúde.

Método:

Pesquisa-ação emancipatória, fundamentada no materialismo histórico-dialético, desenvolvida na Supervisão Técnica de Saúde Vila Prudente/Sapopemba da cidade de São Paulo, que contou com a participação de trabalhadores da Atenção Primária à Saúde (assistência e gerência).

Resultados:

Participaram 17 trabalhadores, os quais partilharam 13 oficinas. As oficinas discutiram os seguintes temas: necessidades em saúde dos moradores dos territórios de atuação; dimensão social do consumo de droga; limitações e contradições das políticas e práticas da saúde pública na área de drogas; finalidade do trabalho na Atenção Primária à Saúde; e implementação de evidências na área de drogas. Com base em discussões crítico-políticas, foram desenhados quatro projetos intersetoriais de implementação.

Conclusão:

As oficinas emancipatórias possibilitaram aos trabalhadores se localizarem no processo de produção em saúde e se apropriarem das contradições desse processo, mostrando-se fortalecidos para o desenvolvimento e a implementação de ferramentas em resposta às necessidades em saúde, tomando por base os processos sociais que envolvem a produção, a circulação e o consumo de drogas.

DESCRITORES
Atenção Primária à Saúde; Enfermagem de Atenção Primária; Políticas Públicas de Saúde; Usuários de Drogas; Redução do Dano; Pesquisa Qualitativa

RESUMEN

Objetivo:

Construir proyectos para la implementación de prácticas emancipadoras en el área de las drogas con trabajadores de la Atención Primaria de Salud.

Método:

Investigación-acción emancipadora, fundada en el materialismo histórico y dialéctico, desarrollada en la Supervisión Técnica de Salud Vila Prudente/Sapopemba de la ciudad de São Paulo, que contó con la participación de trabajadores de la Atención Primaria de Salud (asistencia y gestión).

Resultados:

Participaron 17 trabajadores, quienes compartieron 13 talleres. En los talleres fueron discutidos los siguientes temas: necesidades en salud de los vecinos de los territorios de actuación; dimensión social de la adicción a las drogas; limitaciones y contradicciones de las políticas y prácticas de salud pública en el área de las drogas; finalidad del trabajo en la Atención Primaria de Salud; e implementación de evidencias en el área de las drogas. Según las discusiones críticas y políticas, fueron diseñados cuatro proyectos intersectoriales de implementación.

Conclusión:

Los talleres emancipadores posibilitaron a los trabajadores ubicarse en el proceso de producción sanitaria y apropiarse de las contradicciones de dicho proceso, mostrándose fortalecidos para el desarrollo y la implementación de herramientas en respuesta a las necesidades sanitarias, tomando por base los procesos sociales que involucran la producción, la circulación y el consumo de drogas.

DESCRIPTORES
Atención Primaria de Salud; Enfermería de Atención Primaria; Políticas Públicas de Salud; Consumidores de Drogas; Reducción del Daño; Investigación Cualitativa

ABSTRACT

Objective:

To build projects for implementing emancipatory drug practices with Primary Healthcare workers.

Method:

An emancipatory action research based on historical-dialectical materialism developed at the Vila Prudente/Sapopemba Health Technical Supervision of the city of São Paulo with the participation of Primary Healthcare workers (care providers and management).

Results:

Seventeen (17) health workers participated in sharing 13 workshops. The workshops discussed the following topics: the health needs of residents of the territories in which they operate; social dimension of drug use; limitations and contradictions of public healthcare policies and practices in the area of drugs; purpose of working in Primary Healthcare; and implementing drug evidence. Four intersectoral implementation projects were designed based on critical policy discussions.

Conclusion:

The emancipatory workshops enabled workers to position themselves in the health production process and capture the contradictions of this process, thereby strengthening their ability to develop and implement tools in response to health needs based on the social processes that involve the production, circulation and consumption of drugs.

DESCRIPTORS
Primary Health Care; Primary Care Nursing; Public Health Policy; Drug Users; Harm Reduction; Qualitative Research

INTRODUÇÃO

O objeto deste trabalho são as práticas da Atenção Primária à Saúde (APS) na área de drogas.

Nos últimos anos o Brasil vinha adotando diretrizes ministeriais voltadas às drogas influenciadas pelo movimento da Redução de Danos (RD), tendo alcançado diversos avanços ao longo do tempo. Tais conquistas não têm, no entanto, se mostrado estáveis e competem com retrocessos, pela influência da política de Guerra às Drogas (GD), que envolve a sociedade numa cortina de fumaça com ações repressivas e acríticas, ignorando abordagens humanizadoras de valorização de relações sociais de proteção e de crítica social(11. Santos VE, Soares CB. O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo. Saúde Transform Soc. 2013; 4(2):38-54.).

Ainda que os governos democráticos tenham se posicionado favoravelmente à RD notadamente a partir de 2003, verifica-se na prática a persistência de ações pontuais, que não dão conta de fortalecer o trabalhador que precisa lidar com a demanda da APS, e que, ora tendem à abordagem do comportamento de risco, ora à crítica aos fatores sociais, apresentando múltiplas visões na relação objeto-sujeito da RD(11. Santos VE, Soares CB. O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo. Saúde Transform Soc. 2013; 4(2):38-54.).

Para o fortalecimento dos trabalhadores que lidam no cotidiano com esse fenômeno, a saúde coletiva adota um referencial crítico, que explica o processo de mercantilização da droga partindo das mudanças dos regimes de acumulação e dos valores sociais que fomentam a demanda pela mercadoria droga, podendo ocasionar formas de consumo problemático(11. Santos VE, Soares CB. O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo. Saúde Transform Soc. 2013; 4(2):38-54.).

Para melhor entendimento, parte-se do conhecimento de que as substâncias psicoativas fazem parte da história da humanidade, sendo usadas em muitas culturas, como parte da sociabilidade e como forma de fortalecimento(11. Santos VE, Soares CB. O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo. Saúde Transform Soc. 2013; 4(2):38-54.). No entanto, é a partir do modo de produção capitalista que se observa o processo de fetichização da droga, decorrente das formas mais contraditórias do processo de produção social. São as relações sociais capitalistas que ditam o consumo de drogas na atualidade e, por isso, não se pode compreender esse consumo sem compreender as contradições que são inerentes à estrutura de classes e às dinâmicas sociais atuais(11. Santos VE, Soares CB. O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo. Saúde Transform Soc. 2013; 4(2):38-54.).

Atualmente, vive-se sob o regime de acumulação integral, caracterizado pela reestruturação produtiva, bem como pela configuração neoliberal de Estado, legitimado por condições políticas e ideológicas. Como consequência desse regime de acumulação, observam-se muitas mudanças na vida social, ressaltando-se aquelas referentes à organização do trabalho, com vistas a aumentar a geração de lucro pela hiperexploração do trabalhador(22. Campos CMS, Viana N, Soares CB. Mudanças no capitalismo contemporâneo e seu impacto sobre as políticas estatais: o SUS em debate. Saúde Soc. 2015;24(1 Suppl):82-91.).

Em tese, a inserção do indivíduo na divisão social do trabalho determina seu pertencimento de classe, e este pertencimento determina o modo de vida dos indivíduos(22. Campos CMS, Viana N, Soares CB. Mudanças no capitalismo contemporâneo e seu impacto sobre as políticas estatais: o SUS em debate. Saúde Soc. 2015;24(1 Suppl):82-91.). É neste regime de acumulação capitalista integral que a dicotomia explorador-explorado se agrava, sendo o explorado (trabalhador) a parte mais frágil desta relação, sujeito à fragmentação das condições de trabalho e vida: fragilização dos direitos trabalhistas (contratos temporários; procrastinação da aposentadoria, etc.) e desestruturação de políticas sociais adquiridas ou em andamento (previdência social e Sistema Único de Saúde). Com o agravamento das condições de reprodução social da classe trabalhadora, há aumento de setores marginalizados(11. Santos VE, Soares CB. O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo. Saúde Transform Soc. 2013; 4(2):38-54.22. Campos CMS, Viana N, Soares CB. Mudanças no capitalismo contemporâneo e seu impacto sobre as políticas estatais: o SUS em debate. Saúde Soc. 2015;24(1 Suppl):82-91.), a agenda neoliberal favorece perda de direitos, provocando insegurança e medo, expondo o trabalhador à perda da dignidade humana(11. Santos VE, Soares CB. O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo. Saúde Transform Soc. 2013; 4(2):38-54.).

As contradições sociais oriundas deste modo de produção agravam as tensões entre as diferentes classes sociais, devendo o Estado munir-se de ferramentas e estratégias que amorteçam a luta de classes. Porém, sendo essencialmente burguês, o Estado capitalista prioriza os interesses das classes dominantes, utilizando-se de tais estratégias para manter o status quo, de modo a fortalecer a reprodução das relações capitalistas(33. Boschetti I. Assistência social e trabalho no capitalismo. São Paulo: Cortez; 2016. O sentido de estado social capitalista; p.23-59.).

Dessa maneira, as políticas estatais voltadas ao consumo de drogas adotam a vertente da patologização do usuário, promovendo ações centradas na promoção de internação de usuários, por vezes de forma compulsória e reforçando a estrutura proibicionista ao uso de drogas, pautadas no combate às drogas ilícitas(44. Tófoli LF. Políticas de drogas e saúde pública. Int J Human Rights. 2015;12(21):1-5.). Essas políticas são divergentes e muitas vezes contraditórias com outras áreas do conhecimento, como a saúde coletiva e os direitos humanos(44. Tófoli LF. Políticas de drogas e saúde pública. Int J Human Rights. 2015;12(21):1-5.).

Há que se considerar a falta de compromisso com os princípios do SUS, a existência de disputas de poder em âmbito municipal, o predomínio da dimensão técnica e operativa no trabalho e o aumento da concorrência do setor privado por recursos públicos, especialmente com a implementação de comunidades terapêuticas, mecanismos de atenção à saúde contrários ao movimento de RD e que são financiados pelo Estado brasileiro(55. Dimenstein M, Vecchia MD, Macedo JP, Bastos FI. Occupation of urban and rural spaces, gentrification and drug use. In: Ronzani T, editor. Drugs and social context. Cham: Springer; 2018. p. 89-109.).

A recém-aprovada Lei 13.840, de 05 de junho de 2019, retrocede ainda mais, deixando claros os interesses do Estado de garantir rentabilidade ao setor privado, com o incentivo às internações em comunidades terapêuticas privadas, além de reforçar a perspectiva conservadora proibicionista, que permite a internação involuntária.

Revisão da literatura mostra que a institucionalização da RD é fundamental para superar as barreiras políticas que obstaculizam a implementação de estratégias. Essas estratégias produzem transformações que, embora limitadas, colaboram para a melhoria das condições de vida e saúde e para a sobrevivência, mantendo usuários na rede de atenção à saúde e de assistência social, e evitando a marginalização(66. Gomes TB, Vecchia MD. Harm reduction strategies regarding the misuse of alcohol and other drugs: a review of the literature. Ciênc Saúde Coletiva; 2018;23(7):2327-38. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232018000702327&lng=en
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

Tais estratégias e políticas permanecem sob a égide do modo de produção capitalista, fazendo com que nenhuma mudança na estrutura social seja feita. Desta forma, os usuários continuam a ocupar a mesma posição social que antes e continuam a depender dos benefícios oferecidos pelo governo, mostrando-se uma política assistencialista que não promove mudanças na cadeia de reprodução social.

Contrariamente às práticas proibicionistas e com a finalidade de superar objetivos pragmáticos da RD, incentiva-se a criação e implementação de práticas emancipatórias de RD. Redução de Danos Emancipatória (RDE) é aquela que promove processos de crítica à realidade que cerca os que consomem drogas de forma problemática, na sua interdependência com a totalidade social, de forma a orientar práticas solidárias e críticas(77. Cordeiro L, Godoy A, Soares CB. A supervisão como processo educativo: Construindo o paradigma de redução de danos emancipatória com uma equipe de CAPS-AD. Cad Ter Ocup UFSCar. 2014;22(Supl esp.):153-59.). Para a implementação de ações de RDE, a educação mostra-se como um recurso fundamental, propondo abordagens pautadas em práticas menos instrumentais e mais formadoras de consciência crítica, visando à compreensão estrutural do sistema de produção, distribuição e consumo de substâncias psicoativas(88. Santos VE, Soares CB, Campos CMS. Redução de danos: análise das concepções que orientam as práticas no Brasil. Physis. 2010;20(3):995-1015.).

Desta maneira, a saúde coletiva utiliza um potente instrumento – a educação emancipatória. Com base na concepção freireana de educação popular, cuja base é a de promover a participação do educando no processo educativo, em união e coparticipação com o educador, de modo que sejam desenvolvidas ferramentas capazes de ajudá-lo a fazer a releitura do mundo em que está inserido, entende-se como imprescindível considerar a estrutura social, política e histórica, a fim de que neste processo, refletindo sobre a realidade de que faz parte, se torne um sujeito questionador deste mundo e possa ser agente de mudanças(99. Stotz EN, David HMSL. Educação popular e saúde. In: Soares CB, Campos CMS, editoras. Fundamentos de saúde coletiva e o cuidado de enfermagem. São Paulo: Manole; 2013. p.75-103.).

Defende-se que as práticas sejam construídas considerando-se a cadeia de determinação social, moldada pela estrutura da sociedade e pelo momento histórico e político(11. Santos VE, Soares CB. O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo. Saúde Transform Soc. 2013; 4(2):38-54.). Sendo assim, recomenda-se que a APS, para fazer valer o caráter integral de atenção à saúde do consumidor que está fazendo uso prejudicial de drogas, deve adotar abordagens que ampliem a compreensão do processo saúde-doença como socialmente determinado, utilizando-se da perspectiva da RDE e da intersetorialidade para a construção de trabalho crítico e produtivo, que amplie as potencialidades humanas e que norteie as práticas dos trabalhadores(77. Cordeiro L, Godoy A, Soares CB. A supervisão como processo educativo: Construindo o paradigma de redução de danos emancipatória com uma equipe de CAPS-AD. Cad Ter Ocup UFSCar. 2014;22(Supl esp.):153-59.).

Desta maneira, esta investigação objetivou construir projetos para a implementação de práticas emancipatórias na área de drogas com trabalhadores da APS.

MÉTODO

Tipo do estudo

Trata-se de uma pesquisa qualitativa. Adotou-se como referencial o Materialismo Histórico-Dialético, que compreende as relações sociais como sendo dinâmicas, ou seja, é um movimento dialético, que expõe as relações dominantes de produção no sistema capitalista, revelando as constantes desigualdades sociais(11. Santos VE, Soares CB. O consumo de substâncias psicoativas na perspectiva da saúde coletiva: uma reflexão sobre valores sociais e fetichismo. Saúde Transform Soc. 2013; 4(2):38-54.).

Como instrumento metodológico, seguiu-se, nesta pesquisa, os princípios da pesquisa-ação emancipatória (PAE), metodologia participativa que tem sido extensivamente utilizada em pesquisa de implementação(1010. Cordeiro L, Soares C. B. Implementation of evidence-based health care using action research: an emancipatory approach. Int J Nurs Pract. 2016;22(4):333-8.).

Na PAE são incorporados os quatro princípios norteadores da PA: 1) participação – considera a existência de diferentes níveis de participação; 2) processo de ciclo reflexivo realizado em forma de espiral – constante processo de aprendizagem que busca a implicação dos participantes da ação; 3) produção de conhecimento; e 4) transformação de práticas. Estes dois últimos estão em relação dialética, propiciando mudanças nas duas esferas, as do conhecimento e da prática(1010. Cordeiro L, Soares C. B. Implementation of evidence-based health care using action research: an emancipatory approach. Int J Nurs Pract. 2016;22(4):333-8.).

População

A pesquisa contou com a participação de 17 trabalhadores da APS de unidades de saúde distintas, que se prontificaram a participar da pesquisa a partir da afinidade com o tema, sem obrigatoriedade de participação, entre os quais enfermeiros (10), psicólogos (03), terapeutas ocupacionais (02), dentista (01) e assistente social (01). Estes profissionais atuam para além das ações assistenciais, desenvolvendo atividades educativas com colegas de trabalho e/ou com a população da sua área de abrangência. Há que se destacar que, entre eles, cinco também realizam tarefas de gestão da Unidade Básica de Saúde (UBS).

Cenário

As oficinas emancipatórias foram desenvolvidas na Supervisão Técnica de Saúde Vila Prudente/Sapopemba da cidade de São Paulo, em sala de reunião que fora destinada para a realização da atividade. O processo contou com a realização de 13 oficinas, pré-agendadas e acordadas com os gestores de cada unidade na qual os trabalhadores eram vinculados, com duração média de 3 horas, com pausa de 30 minutos para lanche, realizadas 2 vezes por mês ao longo do ano de 2017.

A estratégia escolhida para o andamento das oficinas foi a roda de conversa, dispondo os participantes um ao lado do outro em forma de círculo para melhor interatividade durante o processo. Os temas foram selecionados com base em experiências anteriores na área, havendo adaptação a cada oficina, a partir das necessidades trazidas pelos participantes: origem dos problemas sociais existentes no território de atuação; questões sociais que envolvem o consumo de droga; limitações e contradições das diretrizes, políticas públicas e práticas em saúde na área de drogas; finalidade do trabalho da Estratégia Saúde da Família (ESF) e das unidades de saúde tradicionais; instrumentalização dos trabalhadores para a implementação de evidências, a partir da crítica da saúde coletiva, temas considerados pertinentes para a construção da proposta educativa. Estas reuniões foram conduzidas por cinco pesquisadores e docentes da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP).

Análise e tratamento dos dados

O processo de PA acontece num ciclo em espiral de planejamento, ação, observação e reflexão, sendo que essas etapas são fluidas e, com frequência, se sobrepõem. A pesquisa-ação considera que todos os participantes envolvidos no processo são pesquisadores – internos (que vivenciam a experiência) e externos (acadêmicos, com conhecimento científico). Ambos são detentores de conhecimentos diversos e igualmente importantes(1010. Cordeiro L, Soares C. B. Implementation of evidence-based health care using action research: an emancipatory approach. Int J Nurs Pract. 2016;22(4):333-8.1111. Soares CB, Cordeiro L, Campos CMS, Oliveira LC. Pesquisa-ação Emancipatória: metodologia coerente com o materialismo histórico e dialético. In: Toledo RF, Eosa TEC, Keinert TM, Cortizo CT, organizadores. Pesquisa participativa em saúde: vertentes e veredas. São Paulo: Instituto de Saúde, 2018. p. 153-65.).

As 13 oficinas tiveram temas, objetivos e estratégias previstos, no entanto, reitera-se que estes sofreram alterações, uma vez que o processo participativo da pesquisa-ação demanda a construção coletiva de conhecimento de acordo com as necessidades apresentadas pelos participantes. Sendo assim, as oficinas foram sendo avaliadas e reelaboradas conforme o andamento dos encontros.

Todo o material gravado dos encontros foi transcrito, e em cada encontro verificou-se se os objetivos traçados foram alcançados para que se pudesse seguir para o próximo encontro, foram eles: 1) Propor a pesquisa, conhecer os participantes e suas expectativas aos encontros e Apresentação do conceito de implementação de evidências; 2) Discutir os problemas sociais dos territórios e particularmente os relacionados ao consumo de drogas; 3) Analisar as políticas públicas voltadas a usuários de drogas, compreendendo suas limitações e contradições; 4) Levantar e analisar as contradições e a finalidade do trabalho na ESF; 5) Discutir as potencialidades e limitações das práticas dos trabalhadores da ESF; 6) Refletir sobre os fundamentos da educação emancipatória; 7) Refletir sobre os fundamentos da educação emancipatória: desenvolvimento de práticas baseadas em evidências; 8) Discutir sobre a elaboração de projetos de implementação de evidência; 9) Instrumentalizar os trabalhadores para o uso de evidências para a formulação de práticas na APS; 10 e 11) Avaliar o roteiro do projeto de implementação e respostas; 12) Discutir sobre as necessidades em saúde relativas ao fenômeno das drogas e 13) Validar material educativo construído ao longo do processo. Cada encontro foi transcrito e analisado separadamente, e as falas analisadas conforme referencial teórico adotado.

Aspectos éticos

O estudo foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da USP, e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Prefeitura do Município de São Paulo, sob Parecer n.° 001/16-CEP/SMS. Foram respeitadas as normas e as diretrizes de realização das pesquisas envolvendo humanos, em observância às determinações presentes na resolução 466/12, do Conselho Nacional de Saúde. Em sua execução, os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que estipula o direito à confiabilidade e à liberdade de participarem ou não da pesquisa e de retirar-se a qualquer momento. Para expor os depoimentos de forma a manter o anonimato dos participantes da pesquisa, utilizou-se da letra “P”, qualificada como participante, seguida do número de ordem da sua ocorrência, como forma de identificação dos trabalhadores da ESF participantes do estudo.

RESULTADOS

A primeira oficina primou pela apresentação do conceito de implementação de evidências, com objetivo de adensar a crítica sobre a importância de desenvolver práticas na APS, com base nas características da população da área de abrangência e fundamentadas em evidências científicas, para, com isso, oferecer base para as práticas pretendidas. Para estimular o debate, os participantes procuraram evidenciar a contradição entre esse ideal e espaço e tempo oferecidos no trabalho para a busca de evidências em base de dados ou a leitura de documentos científicos.

Os participantes logo expuseram as dificuldades vividas nos serviços, como: motivação de profissionais para além da realização das metas quantitativas, exigidas pelos planos diretores municipais; alta rotatividade dos trabalhadores nos serviços primários; e preferência pelo atendimento hospitalar/médico.

Um grupo que se apropriou de como funciona e do que eu posso fazer para mudar, só que o problema é a rotatividade dos profissionais. Então, o profissional entendeu, se apropriou, mas você tem rotatividade de profissionais que acaba dificultando a implementação, de realmente modificar esta realidade (P12).

A segunda e a terceira oficinas abordaram elementos que estão na reprodução social das populações moradoras das áreas de abrangência das unidades básicas de saúde, considerando que seu entendimento é fundamental para compreender o fenômeno das drogas, as realidades concretas dos territórios sociais e suas necessidades de saúde. Foi solicitado que os participantes de dividissem em grupos e levantassem as características dos territórios, levando em consideração a estrutura física, trabalho e lazer possíveis nas comunidades em que trabalham.

A região tem um comércio formal bastante presente, mas muito maior ainda o comércio informal, lá existe a feirinha da madrugada, que é um comércio bastante informal e que demanda uma quantidade de pessoas que trabalham, que frequentam a feira e que vivem à margem da economia informal, lá, por exemplo, tem muitas oficinas de costuras (P6).

Tem a questão do narcotráfico, das vielas, a gente tem uma área que não tem água encanada mesmo, não tem água e nem esgoto e agora chegou rede elétrica (P9).

Este momento foi importante para que os trabalhadores relacionassem a inserção do trabalho no sistema capitalista com as possibilidades de reprodução social, ao analisarem as condições de moradia e trabalho. Foi possível identificar a forte presença do desemprego e do trabalho informal explorado, situação que impossibilita a melhoria na reprodução social, restando apenas a esta população residir em regiões periféricas, em albergues ou cortiços, lugares insalubres e marcados pela desproteção social.

A quarta e a quinta oficinas tiveram como tema as contradições do trabalho na APS, e se objetivou levantar e analisar as contradições e a finalidade do trabalho na ESF, revelando um trabalho produtivista e inflexível pelo relato dos trabalhadores.

A oficina começou com uma exposição dialogada sobre o processo de produção em saúde e partiu do entendimento de que como estamos em um sistema capitalista de acumulação, nossos processos de trabalho respondem às necessidades do capital, que por sua vez se preocupa com a geração de lucro. Para tanto, é imprescindível um nível de organização e divisão do trabalho subordinado a um modelo assistencial.

Nosso dia a dia não tem liberdade e nem criatividade, é engessado (…), os protocolos que acabam impedindo a gente de ter essa liberdade e criatividade de produção (P12).

Trabalhar nesta lógica (re) produtiva implica a exploração dos profissionais por meio de conceitos como resiliência e polivalência, os quais imprimem culpa e forçam o trabalhador a um trabalho exaustivo, assumindo tarefas que vão além das atribuições profissionais.

A pessoa é responsável pelo sujeito do seu território, mas até onde a responsabilidade é nossa só ou a gente entendendo que o processo de produção é o mesmo processo que a gente também está. Os nossos pacientes também são sujeitos do mecanismo social que a gente está. Eu fico pensando isso, que talvez reconhecendo isso a gente diminua um pouco a carga, eu não sei se na prática alivia pra gente enquanto trabalhador (P5).

A sexta e sétima oficinas tomaram como objetivo refletir sobre os fundamentos da educação emancipatória e, em um segundo momento, sobre a educação na área da saúde como ferramenta de transformação de práticas e problematização da realidade.

Iniciamos nossa conversa evidenciando elementos que constituem o processo educativo postos por educadores da vertente teórica da educação histórico crítica: Demerval Saviani e Vitor Paro, com contribuição de Paulo Freire, compreendido como intrínseco ao processo de trabalho em saúde. Os elementos trabalhados foram: sujeito; objeto; método; objetivo e, inclusive, a intencionalidade, elemento essencial do processo de trabalho(1212. Almeida AH, Trapé CA, Soares CB. Educação em Saúde no trabalho de enfermagem. In: Soares CB, Campos CMS, editoras. Fundamentos de saúde coletiva e o cuidado de enfermagem. São Paulo: Manole; 2013. p. 293-322.).

As discussões sobre esse tema levaram à formulação de várias críticas ao trabalho na APS, como as práticas pragmáticas e os programas implementados, que muitas vezes não abrangem necessidades específicas do território de atuação da UBS, acabando por atender apenas uma população predeterminada, como: gestantes, hipertensos, diabéticos, crianças entre outros.

A questão do tabagismo, acho que é muito mais ampla. A cultura de resolver com queixa/conduta, isso aí acho que é um dos principais desafios que a gente enfrenta, a gente percebe que é difícil a gente trabalhar, não sei nem se a gente tem condições de dar resposta para estas questões, principalmente também porque os problemas não se resumem só na Atenção Básica, tem questões sociais, econômicas, segurança, educação. É por isso que se subespecializa tanto, porque é mais fácil cuidar de um fragmento do que integral (P6).

A oitava, nona e décima oficinas ofereceram espaço para que os trabalhadores discutissem quais seriam as práticas inovadoras na ESF voltadas ao problema das drogas e baseadas em evidência, visando à construção de projetos de implementação.

Iniciou-se a discussão retomando as políticas e práticas na área de drogas no mundo, notadamente as brasileiras. Posteriormente procurou-se analisar se as práticas encontradas eram plausíveis e pertinentes para a realidade das UBS e como poderiam ser adaptadas para a realidade de cada área.

Como resultado, se obtiveram quatro proposições de projetos de implementação: 1) formação de professoras do ensino fundamental de um CEU; 2) formação de trabalhadores da UBS para atendimento de pessoas em situação de rua; 3) fortalecimento de jovens escolares na identificação e resposta às suas necessidades; 4) instrumentalização de jovens em medida socioeducativa sobre seus direitos sociais.

As quatro propostas de projetos foram tema das três oficinas posteriores, considerando que na décima segunda oficina viu-se que era necessário ampliar a discussão sobre necessidades em saúde. Este momento não estava previsto no cronograma inicial, porém, conforme os trabalhadores foram discutindo os problemas dos territórios, verificou-se a dificuldade de definir necessidades em saúde, ou seja, de responder à indagação sobre quais necessidades estariam na raiz dos problemas levantados. Dessa forma, as práticas pretendidas poderiam ir além das carências de serviços de saúde.

A última oficina teve o propósito de esclarecer dúvidas e apoiar os trabalhadores na finalização dos projetos.

Os projetos foram construídos seguindo quatro etapas: 1) avaliação das necessidades em saúde dos grupos sociais do território de abrangência da UBS (diagnóstico); 2) planejamento da abordagem e como implementá-la (planejamento estratégico-situacional); 3) implementação propriamente dita (processo em si); 4) desenvolvimento de um quadro abrangente para avaliação e reflexão (revisão do processo).

A primeira etapa primou pelo levantamento de problemas sociais e por interpretar, a partir da teoria da determinação social da saúde, quais são as necessidades em saúde dos grupos sociais que estão na raiz desses problemas. Para o levantamento destas necessidades, solicitou-se que os participantes se articulassem com os colegas nas unidades em que trabalham, a fim de que fossem eleitos os problemas dos grupos que vivem nos territórios de atuação da unidade. Os projetos possibilitaram identificar as seguintes necessidades em saúde que estão na base do consumo problemático de drogas: melhorias da sociabilidade dos grupos sociais, ampliação dos espaços de lazer e cultura nos territórios; ampliação e melhoria das diretrizes, políticas públicas e práticas em saúde; ampliação da participação do Estado e fortalecimento das redes de suporte social no território.

No que tange à segunda etapa, a de planejamento estratégico, identificaram-se os grupos sociais dos territórios que estão diretamente envolvidos nas necessidades detectadas: jovens em idade escolar, homens em situação de rua e professores da rede pública de educação. Cada grupo escolheu a população com que de fato tem contato no cotidiano do trabalho, o que tornava os projetos plausíveis de serem efetivados. Esta etapa foi importante para determinar os objetivos e finalidades das práticas. Em geral, as práticas propunham promoção da emancipação e fortalecimento dos sujeitos envolvidos na ação.

Na terceira fase do processo, referente às estratégias de implementação da ação, em se tratando de estratégias de implementação do programa os participantes utilizaram várias referências apresentadas durante os 13 encontros, como: oficinas emancipatórias e jogos educativos sobre drogas, com base na saúde coletiva, mas também outras estratégias, como: sarau; teatro do oprimido; oficinas de expressão, entre outras. Primou-se pela utilização de estratégias que incentivassem a plena participação de todos os envolvidos na ação, para que estes pudessem, com maior facilidade, expor suas ideias e aflições sem julgamento moral ou restrição à expressão.

A última etapa do projeto compreendeu a revisão e avaliação do processo. A intenção era a de ressaltar a necessidade de um processo avaliativo que conte com a participação efetiva daqueles a quem a prática se dirige para promover melhorias em direção à efetiva resposta das necessidades levantadas.

DISCUSSÃO

A construção de práticas de RD, como afirmação do movimento social antiproibicionista, que busca a crítica e a transformação das desigualdades sociais e em saúde, ainda se mostra um enorme desafio na saúde e particularmente na APS, pois requer que os envolvidos nas práticas estejam familiarizados com referenciais críticos, progressistas e humanistas, capazes de incentivar o resgate de dimensões extraclínicas, geralmente apartadas da atenção à saúde. Nota-se, no entanto, a ampliação progressiva dos campos de saber que tomam a RD como objeto das práticas; para além da saúde pública e da psiquiatria, é crescente a presença da psicologia, da saúde coletiva, das ciências sociais, da antropologia, do serviço social e da criminologia crítica, o que favorece a ampliação do alcance da RD em direção às questões que estão na base do consumo de drogas(88. Santos VE, Soares CB, Campos CMS. Redução de danos: análise das concepções que orientam as práticas no Brasil. Physis. 2010;20(3):995-1015.).

A saúde coletiva incentiva a ampliação das práticas de RDE, promovendo a articulação dos problemas oriundos do uso abusivo de drogas com a totalidade social. Buscou-se reconhecer a realidade dos serviços, a organização dos territórios e o conhecimento prévio dos envolvidos sobre o fenômeno das drogas.

Num primeiro momento os trabalhadores apresentaram estranhamento com a atividade proposta, principalmente por se sentirem pouco confortáveis ao falarem sobre as práticas diárias da APS de forma crítica. Esse desconforto se mostrou mais forte quando, no início das oficinas, se propôs a discussão sobre o processo de trabalho na ESF. Com o desenrolar das oficinas, porém, os trabalhadores se sentiram mais confortáveis, principalmente para apresentar suas aflições e angústias quanto às limitações de sua atuação, expondo um processo de trabalho fragmentado, bem como uma formação em serviço baseada na multifatorialidade.

Ao exporem as fragilidades do processo de trabalho na área das drogas, os participantes denunciaram a falta de familiaridade dos trabalhadores da APS quanto às questões que estão na cadeia de produção, distribuição e consumo de drogas. O que se pode constatar, a partir da participação da maioria dos envolvidos nas oficinas, é que os participantes tinham compreensão da complexidade das questões relativas à droga, mas não podiam arquitetar teoricamente como a totalidade social vai conformando a determinação social do consumo de drogas. Ademais, não se sabia como agir diante dessa compreensão diante do objeto de trabalho que é tomado pela APS, que em geral está direcionado para as patologias. A mesma denúncia é feita em processo de avaliação de programa de RD, da cidade de São Paulo, no qual constataram que os trabalhadores envolvidos diretamente no cuidado de pessoas que fazem uso de drogas não estavam alinhados com o modelo de RD, havendo pouca clareza quanto aos objetivos e relevâncias das atividades que exerciam(1313. Garofalo BS, Cordeiro L, Soares CB. Políticas públicas estatais de saúde na área de drogas: o caso do Programa De Braços Abertos (PDBA). Rev Sociologia em Rede. 2015; 5(5):119-42.).

No desenrolar do processo educativo desenvolvido e da construção das proposições de práticas, pôde-se observar, pela análise dos depoimentos expressos, que os trabalhadores adensaram a compreensão da perspectiva da determinação social do consumo prejudicial de drogas, bem como os conceitos de RDE e necessidades em saúde. Eles demonstraram ainda conhecer os territórios e as limitações das práticas atuais da APS e de seus serviços, assim, puderam vislumbrar mudança em suas práticas e na organização dos serviços, mesmo que com necessidade de enfrentamento de inúmeros entraves de ordem organizacional e de formação profissional.

Outra limitação levantada que muito preocupou os trabalhadores referiu-se à construção em si destas práticas. Os trabalhadores relataram grande dificuldade de articular o seu trabalho com outras instituições da rede de atenção à saúde, como o CAPS AD, relatando por vezes presença de visão pragmática sobre a área das drogas, o que dificultaria a consolidação de parcerias para a realização de projetos emancipatórios, que não patologizam o usuário ou demandam mudança de comportamento.

Cabe considerar também que os desafios da implementação de estratégias de RD no Brasil não se encontram apenas no cotidiano das práticas, eles vão além da formação e atuação dos profissionais. Considera-se que tais desafios estão principalmente nas resistências políticas, pois, mesmo com a implementação da Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas, ainda existe uma limitação por parte dos gestores políticos de se sensibilizarem para apoiar e direcionar recursos para as ações RD. Esta falta de apoio acaba por culminar na suspensão e extinção dos projetos e programas nesta área(1414. Santos VB, Miranda M. Projetos/Programas de redução de danos no Brasil: uma revisão da literatura. Rev Psicol Divers Saúde. 2016;5(1):106-18.).

Esses entraves são marcados por correntes que não reconhecem plenamente a política de RD, acusando falta de comprovações científicas que validem as práticas de RD, quando na verdade o que existe são valores morais que não permitem aceitação do uso de drogas como necessidade. Há ainda movimentos de aceitação parcial, pautados pelo “comportamento de risco”, cuja intencionalidade revela ser a diminuição da transmissão de doenças e agravos, chegando-se à abstinência da substância(1515. Machado LV, Boarini ML. Políticas sobre drogas no Brasil: a estratégia de redução de danos. Psicol Ciênc Prof. 2013;33(3):580-93.).

De forma geral, ainda é pouca a produção científica nesta área. Em especial, quando se trata de trabalhos que sigam o referencial adotado por esta pesquisa, a maioria dos estudos aborda o uso de álcool e drogas pela categoria risco, desconsiderando, dando pouca importância, ou fragmentando a dimensão social em fatores, de forma que, quando verificamos a presença do “social”, na maioria das vezes, trata-se de algo nebuloso que aparece como pano de fundo, algo que pode influenciar a acentuação da dependência ou ser considerado um dos fatores de proteção. Neste contexto, a situação de classe social não é essencial, pelo contrário, o usuário é considerado o responsável por suas escolhas e pela mudança nos hábitos para adquirir a condição de saudável.

No entanto, deve-se considerar as estratégias usadas por tais estudos para efetivar a implementação de práticas na área das drogas. Na literatura internacional é notável o uso do delineamento de intervenções baseadas na comunidade, mostrando-se potente para incorporar práticas baseadas em evidências que abordam preocupações locais de saúde pública. Ressalta-se também programas como: Communities That Care (CTC), programa que busca identificar fatores de risco elevados e fatores de proteção enfraquecidos para comportamentos tidos como problemáticos entre os adolescentes na comunidade. As etapas do programa incentivam a participação e o engajamento da comunidade e de líderes locais para a escolha do melhor programa a ser implementado para responder ao “risco” e ressaltam a importância do engajamento dos pais, escola e outros atores da comunidade (prefeito, chefe de polícia, superintendente escolar, comerciantes, religião, entre outros membros) como determinantes para o bom andamento da implementação das ações e para obter resultados positivos na diminuição dos fatores de risco(1616. Hawkins JD, Oesterle S, Brown EC, Abbott RD, Catalano RF. Youth problem behaviors 8 years after implementing the communities that care prevention system: a community-randomized trial. JAMA Pediatr. 2014;168(2):122-9.).

Quando tais ações são pensadas no âmbito da saúde coletiva, assume-se um referencial crítico que rompe com valores morais, reconhecendo as práticas de RD(88. Santos VE, Soares CB, Campos CMS. Redução de danos: análise das concepções que orientam as práticas no Brasil. Physis. 2010;20(3):995-1015.), e a perspectiva de RD pragmática agrega potencial transformador que busca a emancipação e o fortalecimento dos grupos sociais, de forma que se propõe a RDE para nortear práticas e políticas.

As práticas fundamentadas pela perspectiva de RDE, construídas por meio de processo educativo emancipatório, se configuram como práticas políticas ao proporem cuidado coletivo que busca a satisfação das necessidades em saúde dos usuários dos serviços, ou seja, vão além de cuidados individuais e pontuais, além de também proporcionarem compreensão do processo de trabalho em saúde e maior apropriação do objeto deste processo(77. Cordeiro L, Godoy A, Soares CB. A supervisão como processo educativo: Construindo o paradigma de redução de danos emancipatória com uma equipe de CAPS-AD. Cad Ter Ocup UFSCar. 2014;22(Supl esp.):153-59.).

Dessa forma, considera-se que o processo desenvolvido responde ao referencial da RDE ao primar pelo cuidado de coletividades, garantindo a criação de espaços crítico-políticos para o fortalecimento dos envolvidos nas ações.

CONCLUSÃO

O processo desenvolvido por meio das oficinas emancipatórias proporcionou a ampliação do repertório dos participantes sobre a atenção à saúde na área de drogas, culminando na proposição de práticas críticas apoiadas pelo referencial da saúde coletiva, adaptadas à realidade da APS.

Ainda que o estudo tenha limitações, como a redução da assiduidade dos trabalhadores nos encontros, devido à carga de trabalho, trabalhador inscrito em mais de uma capacitação e trabalhador envolvido em cobertura de escala de trabalho, as oficinas emancipatórias possibilitaram que os trabalhadores se localizassem no processo de produção em saúde e se apropriassem das contradições dos processos de trabalho presentes no serviço em que atuam. Dessa forma, mostraram-se fortalecidos para se engajarem na elaboração de planos de trabalho que identifiquem as necessidades em saúde do território, bem como para construir e implementar as ferramentas para responder a essas necessidades.

Foi fundamental nesse processo compreender que o problema das drogas é social e que a atuação do setor saúde envolve ferramentas que vão além das práticas clínicas individuais e das proposições da saúde pública em torno das mudanças de comportamento.

Porém, muito ainda precisa ser trabalhado e construído nesta área. Ainda são muitos os receios dos trabalhadores em relação à tomada de decisão de mudanças de práticas em saúde. São receios oriundos de processos de trabalho disciplinadores, que obstaculizam o espaço e as possibilidades de desenvolvimento de trabalho criativo e crítico. Como visto na literatura e ratificado pelos envolvidos na pesquisa, poucos são os projetos construídos que buscam identificar os problemas sociais causadores de aflições daqueles atendidos pelas unidades de saúde, quanto menos, propor ações que, de fato, reduzam danos e sofrimento e, mais ousadamente, aglutinem trabalhadores e moradores da região em torno de ações conjunta de enfrentamento das mazelas sociais que se encontram na base dos sofrimentos.

Recomenda-se como necessária a aproximação frequente com o referencial da saúde coletiva, de forma a buscar transformações na cultura dos serviços, bem como incentivo à publicação científica de trabalhos críticos do processo de trabalho na APS, para pressionar a construção de políticas públicas que promovam mudanças efetivas na forma como os serviços se organizam.

Pode-se afirmar que esta pesquisa aponta para perspectivas de trabalho emancipatório, ao mesmo tempo que auxilia profissionais a se encontrarem no processo de trabalho, possibilitando diminuição de sofrimentos.

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    Extraído da dissertação: “Práticas emancipatórias na área de drogas: construção coletiva com trabalhadores da atenção primária em saúde”, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, 2018.
  • Apoio financeiro
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2018
  • Aceito
    10 Jun 2019
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