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O cuidado experienciado por pessoas com obesidade mórbida nos Serviços Públicos de Saúde* * Extraído da tese:: “A busca pela cirurgia bariátrica: itinerário terapêutico vivido no Serviço Público de Saúde”, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, 2019.

Resumo

Objetivo:

Compreender o cuidado experienciado por pessoas com obesidade mórbida nos Serviços Públicos de Saúde.

Método:

Pesquisa qualitativa ancorada no referencial da fenomenologia social de Alfred Schütz, realizada na clínica médico-cirúrgica de um hospital público de São Paulo. Realizaram-se entrevistas com questões abertas entre janeiro e abril de 2017.

Resultados:

Participaram do estudo 17 pessoas com obesidade mórbida. Os achados mostraram experiências de (des)cuidado para com pessoas obesas nos caminhos percorridos no sistema de saúde, tanto no quesito estrutural quanto no tocante aos recursos humanos no Sistema Único de Saúde. Diante disso, estas pessoas lançam expectativas de cuidado envolvendo a gestão e os profissionais de saúde, tendo sido a Atenção Primária à Saúde o cenário de potência eleito pelos participantes para dar respostas às necessidades de saúde implicadas na obesidade.

Conclusão:

Os resultados desta investigação carecem de ser criteriosamente (re)avaliados pela micro e macrogestão do sistema, bem como pelo ensino e pesquisa na saúde, no sentido de integralizar, longitudinalizar e qualificar as ações cuidativas para a prevenção e o controle da obesidade nos serviços públicos de saúde.

Descritores:
Obesidade; Serviços de Saúde; Assistência Integral à Saúde; Cuidados de Enfermagem; Pesquisa Qualitativa

Abstract

Objective:

To understand the health care experience of individuals with morbid obesity assisted in public healthcare services.

Method:

This was a qualitative study based on Alfred Schütz’s social phenomenology, carried out in the medical-surgical clinic of a public hospital in São Paulo, Brazil. Interviews with open questions were conducted between January and April 2017.

Results:

Seventeen individuals with morbid obesity participated in the study. The findings revealed care(lessness) experiences of obese individuals in the Brazilian Healthcare System in terms of structure/logistics and human resources. Study participants shared care expectations about health care management and staff, and further considered the Primary Health Care service as a scenario of power to have their obesity-related care needs met.

Conclusion:

The findings need to be carefully (re)examined by the healthcare system’s micro- and macro management, as well as by health teaching and research personnel, in order to integrate, follow up and qualify care actions towards the prevention and control of obesity in public healthcare services.

Descriptors:
Obesity; Health Services; Comprehensive Health Care; Nursing Care; Qualitative Research

Resumen

Objetivo:

Comprender el cuidado experimentado por personas obesas mórbidas en los Servicios Públicos de Salud.

Método:

Investigación cualitativa anclada en el marco de referencia de la fenomenología social de Alfred Schütz, llevada a cabo en la clínica médico-quirúrgica de un hospital público de São Paulo. Se realizaron entrevistas con preguntas abiertas entre enero y abril de 2017.

Resultados:

Participaron en el estudio 17 personas obesas mórbidas. Los hallazgos mostraron experiencias de (des)cuidado a las personas obesas en los caminos recurridos en el sistema sanitario, tanto en el marco estructural como en lo que se refiere a los recursos humanos en el Sistema Único de Salud. Frente a eso, dichas personas lanzan expectativas de cuidado que abarcan la gestión y a los profesionales sanitarios, habiendo sido la Atención Primaria de Salud el escenario de potencia elegido por los participantes para dar respuestas a las necesidades sanitarias implicadas en la obesidad.

Conclusión:

Los resultados de esa investigación carecen de (re)evaluarse con juicio por la micro y macrogestión del sistema, así como por la enseñanza e investigación sanitarias, a fin de integrar, longitudinalizar y cualificar las acciones cuidadoras para la prevención y el control de la obesidad en los servicios públicos sanitarios.

Descriptores:
Obesidad; Servicios de Salud; Atención Integral de Salud; Atención de Enfermería; Investigación Cualitativa

INTRODUÇÃO

A obesidade é uma doença crônica de caráter multifatorial, que tem sido alvo de preocupação em nível mundial. Os múltiplos fatores que contribuem para o desencadeamento da doença requerem intervenções políticas e estratégias de saúde que envolvam um cuidado qualificado às pessoas com obesidade, agenciado por equipe multiprofissional preparada(11. Jones JL, Sundwall D. Health care systems and national policy role of leadership in the obesity crisis. Prim Care. 2016;43(1):19-37. DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.pop.2015.08.008
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Algumas ações voltadas para a prevenção e o controle da obesidade vêm sendo realizadas pelo Ministério da Saúde brasileiro e são reconhecidas mundialmente, com destaque para a definição da obesidade como linha de cuidado prioritária da Rede de Atenção à Saúde (RAS) de pessoas com doenças crônicas e o “Caderno de Atenção Básica”, que enfoca a obesidade como doença crônica(22. Dias PC, Henriques P, Anjos LA, Burlandy L. Obesity and public policies: the Brazilian government's definitions and strategies. Cad Saúde Publica. 2017;33(7):e00006016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00006016
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.

Apesar do incremento de publicações que visem orientar a população e os profissionais de saúde para o controle da doença, o que se evidencia é que a obesidade vem crescendo exponencialmente no Brasil e no mundo. Em países como Austrália, Canadá, Chile, África do Sul e Reino Unido mais de um em cada quatro adultos são obesos(33. Organization for Economic Co-operation and Development. OECD Obesity Update Internet . Paris; 2017 cited 2019 Mar 27 . Available from: http://www.oecd.org/health/health-systems/Obesity-Update-2017.pdf
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)
. Nos Estados Unidos, segundo dados do Sistema de Vigilância de Fatores de Risco Comportamentais, as taxas de obesidade adulta ultrapassam 35% em sete estados, 30% em 29 estados e 25% em 48 estados. A região da Virgínia Ocidental tem a maior taxa de obesidade adulta (38,1%), e o Estado do Colorado tem a menor (22,6%). Entre 2016 e 2017, a taxa de obesidade em adultos aumentou em Iowa, Massachusetts, Ohio, Oklahoma, Rhode Island e Carolina do Sul, e permaneceu estável no restante dos estados(44. Center for Disease Control and Prevention. Prevalence of self-reported obesity among U.S. adults by State and Territory, BRFSS, 2017 Internet . New York: CDC; 2019 cited 2019 Mar 19 . Available from: https://www.cdc.gov/obesity/data/prevalence-maps.html
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)
.

No Brasil, o sistema de vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico (Vigitel) mostrou que a frequência de adultos obesos variou entre 15% em Florianópolis e 23,8% em Manaus. Considerando o conjunto de capitais, a frequência de adultos obesos em 2017 era de 18,9%, sem diferença entre os sexos(55. Brasil. Ministério da Saúde, Departamento de Vigilância de Doenças e Agravos não Transmissíveis e Promoção da Saúde. Vigitel Brasil 2017: vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por inquérito telefônico. Estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2017 Internet . Brasília; 2018 citado 2019 mar. 19 . Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/vigitel_brasil_2017_vigilancia_fatores_riscos.pdf
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)
.

A elevada prevalência da doença em todo o mundo faz da obesidade um problema global de saúde pública, exigindo ações de cuidado longitudinal que se orientem pela vigilância em saúde, na medida em que o contexto em que as pessoas vivem e o estilo de vida que levam sinalizam a possibilidade do aparecimento ou do agravamento da doença, quando já manifestada(11. Jones JL, Sundwall D. Health care systems and national policy role of leadership in the obesity crisis. Prim Care. 2016;43(1):19-37. DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.pop.2015.08.008
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)
. Desse modo, os planos de ação para o combate à obesidade devem ser pautados nas prioridades identificadas no contexto em que essas pessoas estão inseridas, envolvendo-as de modo a possibilitar a incorporação das ações planejadas(66. Rego ALC, Cruz GKP, Carvalho DPSRP, Azevedo IC, Vitor AF, Ferreira Júnior MA. Waiting time of patients in the queue to carry out bariatric surgery and related complications. J Nurs UFPE on line. 2017;11 Supl. 2:1025-31. DOI: http://dx.doi.org/10.5205/reuol.10263-91568-1-RV.1102sup201719
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)
. Tal incorporação passa necessariamente pela compreensão da pessoa com relação a essa doença crônica que a acomete, exigindo um plano de cuidados de cunho educativo e motivacional para o alcance do peso desejado.

Entretanto, evidencia-se ainda uma lacuna neste campo, tanto em relação aos serviços de saúde como em relação ao obeso, o que pode dificultar sobremaneira a gestão do cuidado na obesidade. Investigação realizada nos Estados Unidos com pessoas com obesidade, profissionais da saúde e gestores apontou que 54% das pessoas com obesidade temiam que seu peso afetasse a sua saúde futura, 50% se consideravam obesas, 55% relataram receber um diagnóstico formal de obesidade e 24% tiveram um acompanhamento agendado para tratar questões relacionadas ao peso. Por sua vez, nem todos os profissionais de saúde se sentiam responsáveis por contribuir para incentivar esforços de perda de peso, e apenas 18% dos gestores se sentiam parcialmente responsáveis pelo controle da doença(77. Kaplan LM, Golden A, Jinnett K, Kolotkin RL, Kyle TK, Look M. Perceptions of barriers to effective obesity care: results from the national action study. Obesity. 2018;26(1):61-9. DOI: http://dx.doi.org/10.1002/oby.22054
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.

Em relação aos serviços de saúde, alguns obstáculos contribuem para que não seja efetivado um plano de cuidado abrangente e contínuo à pessoa com excesso de peso. Entre estes, destacam-se a falta de integração interprofissional e a não conceitualização e reconhecimento da obesidade como uma condição crônica por parte dos profissionais de saúde, o que contribui para a pouca proatividade no tratamento de indivíduos com excesso de peso(88. Hayes S, Wolf C, Labbé S, Peterson E, Murray S. Primary health care providers' roles and responsibilities: a qualitative exploration of 'who does what' in the treatment and management of persons affected by obesity. J Comm Healthcare. 2017;10(1):47-54. DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.pcad.2017.02.004
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Tais obstáculos dificultam o manejo da obesidade e podem fazer com que ela se agrave, elevando o grau da doença e os riscos de comorbidades. A obesidade mórbida, caracterizada pelo Índice de Massa Corporal igual ou acima de 40 kg/m2(99. Malta DC, Santos MAS, Andrade SSCA, Oliveira TP, Stopa SR, Oliveira MM, et al. Tendência temporal dos indicadores de excesso de peso em adultos nas capitais brasileiras, 2006-2013. Ciênc Saúde Coletiva. 2016;21(4):1061-9. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015214.12292015
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, é a evidência desse agravamento processual da doença, requerendo cuidado particularizado por parte dos profissionais de saúde e da Rede de Atenção à Saúde (RAS).

Na perspectiva do usuário, ressalta-se que questões relacionadas à subjetividade de pessoas com obesidade na busca por atendimento nos serviços públicos de saúde são pouco exploradas, em especial advinda de uma população que já atingiu a obesidade mórbida. Isso evidencia a importância de investigações que destaquem a ótica dessas pessoas sobre o cuidado recebido, o que pode contribuir para a melhor compreensão sobre suas necessidades e expectativas a partir da convivência longitudinal com a doença.

Diante disso, este estudo levanta as seguintes indagações: Como as pessoas com obesidade mórbida experienciam o cuidado recebido na rede pública de saúde? Como gostariam de ser cuidadas? Esta investigação se justifica, já que poderá fornecer evidências para incrementar práticas cuidativas a pessoas com obesidade, contribuindo para diminuir a lacuna existente entre o cuidado vivenciado por essas pessoas e o que é preconizado pelas políticas e programas de saúde. Desse modo, o objetivo deste estudo é compreender o cuidado experienciado por pessoas com obesidade mórbida nos serviços públicos de saúde.

MÉTODO

Tipo de estudo

Pesquisa qualitativa que utilizou a fenomenologia social de Alfred Schütz como referencial teórico-metodológico. Os passos recomendados pelos Critérios Consolidados para Relatar uma Pesquisa Qualitativa (COREQ) foram seguidos para elaborar o artigo(1010. Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health Care. 2007;19(6):349-57. DOI: https://doi.org/10.1093/intqhc/mzm042
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Referencial teórico-metodológico

A fenomenologia social de Alfred Schütz tem como base o ser humano que vive e age no mundo social. A ação é considerada o cerne da vida social, pois é a partir dela que o homem, imbuído de um propósito, é motivado a agir para a transformação de si e da sua realidade social(1111. Schütz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis: Vozes; 2012.). O conjunto de motivos existenciais (motivos para e motivos porque) traduz o fluxo intencional da experiência humana no senso comum e expressa, por meio de relações intersubjetivas, a possibilidade de as pessoas identificarem e serem identificadas em um determinado grupo social. Os “motivos para” significam a finalidade que a ação deveria promover, referindo-se, portanto, ao futuro (categoria subjetiva). Os “motivos porque” dizem respeito às experiências vividas no passado e presente, que fundamentam o projeto de ação em uma determinada realidade (categoria objetiva)(1111. Schütz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis: Vozes; 2012.).

Cenário

O estudo foi realizado na clínica médico-cirúrgica de um hospital público de São Paulo, de porte extra, que conta com cerca de 2.500 leitos. Na referida unidade, os pacientes que estão com cirurgia bariátrica agendada ficam internados em média por 7 a 10 dias antes da data do ato operatório. Nesse período, são acompanhados por equipe multiprofissional, com a finalidade de prepará-los, não só para a cirurgia em si, mas também para a reeducação alimentar e perda de peso.

Critérios de seleção

Foram incluídas no estudo pessoas com obesidade mórbida, internadas na clínica médico-cirúrgica, maiores de 18 anos, com cirurgia bariátrica agendada, que buscaram tratamento para a obesidade nos serviços públicos de saúde.

Coleta de dados

Antes de iniciar as entrevistas, a pesquisadora estabeleceu interação com os participantes, a fim de interpretar e refletir sobre o significado das expressões verbais e não verbais no momento da coleta de dados. Para tanto, foi realizada uma aproximação inicial, com esclarecimentos sobre a pesquisa e, posteriormente, o convite para dela participarem. Depois do aceite, foram agendados dia e horário de melhor conveniência para cada participante e efetuada a coleta dos dados. A seleção dos participantes foi intencional, e nenhuma pessoa se recusou a participar da investigação.

As entrevistas foram realizadas na clínica médico-cirúrgica, no período de janeiro a abril de 2017, em sala reservada, disponibilizada pela enfermeira da unidade de internação e foram norteadas pelas questões: considerando sua vivência com a obesidade e o fato de estar no pré-operatório da cirurgia bariátrica, fale sobre sua experiência na busca de atendimento e como você gostaria de ser cuidado nos serviços públicos de saúde.

Os depoimentos foram gravados em áudio após permissão dos participantes. As entrevistas, as transcrições e a análise foram feitas pela própria pesquisadora, em processo de doutoramento na época. O tempo médio de duração das entrevistas foi de 45 minutos, resguardando-se o sigilo e o anonimato dos participantes. Para tanto, os entrevistados foram identificados pela letra P, inicial da palavra “Participante”, seguida de numeração arábica correspondente à ordem dos depoimentos (P1 a P17). A coleta foi encerrada quando se percebeu a convergência de sentido nos depoimentos e a repetição dos conteúdos, que indicaram que o objetivo do estudo foi atingido, e as indagações da pesquisa, respondidas, conforme preconizam os princípios da pesquisa qualitativa(1212. Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Rev Pesq Qualitat Internet . 2017 citado 2019 mar. 28 ;5(7):1-12. Disponível em: https://editora.sepq.org.br/index.php/rpq/article/view/82/59
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)
. Nenhum depoimento cedido foi excluído.

Análise e tratamento dos dados

Para a organização, a categorização e a análise dos significados dos depoimentos, adotaram-se os passos propostos em estudo fundamentado na Fenomenologia Social(1313. Kortchmar E, Merighi MAB, Conz CA, Jesus MCP, Oliveira DM. Weight regain after bariatric surgery: a phenomenological approach. Acta Paul Enferm. 2018;31(4):417-22. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1982-0194201800058
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)
. Depois da leitura na íntegra dos depoimentos, realizou-se a transcrição e agruparam-se em categorias temáticas os trechos que apresentavam os aspectos comuns de significados relacionados aos motivos porque e motivos para do cuidado experienciado por pessoas com obesidade nos serviços públicos de saúde. O conjunto de categorias foi discutido com base nos conceitos da fenomenologia social de Alfred Schütz e literatura temática.

Aspectos éticos

O estudo seguiu o disposto na Resolução n.º 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde(1414. Brasil. Ministério da Saúde. Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012. Dispõe sobre diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Internet . Brasília; 2012 citado 2019 mar. 28 . Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/reso466.pdf
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)
. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), e a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de São Paulo e do hospital público, sob os números 1.915.867/2017 e 1.956.427/2017, respectivamente.

RESULTADOS

Participaram desta pesquisa 17 pessoas com obesidade mórbida, sendo quatro homens e 13 mulheres, com idade entre 18 e 70 anos, com grau de instrução desde o 1º grau completo até o curso superior. A variação do Índice de Massa Corporal foi de 40,44 a 80,89 kg/m2.

A fenomenologia social de Alfred Schütz possibilitou o desvelamento de três categorias. A primeira se refere ao passado e ao presente da experiência vivida e está relacionada aos “motivos porque” da ação de pessoas com obesidade mórbida na busca pelo cuidado na RAS: “Entraves vivenciados pela pessoa no cuidado à obesidade nos serviços públicos de saúde”. A segunda e a terceira categorias revelam a expectativa dessas pessoas em relação ao cuidado na Rede de Atenção à Saúde (motivos para): “Anseio por cuidado integral e qualificado por profissionais da rede de atenção à saúde” e “Ações no âmbito da gestão e dos serviços de saúde”.

Entraves vivenciados pela pessoa no cuidado à obesidade nos serviços públicos de saúde

Os participantes relataram que, no cuidado à obesidade, enfrentaram escassez de recursos nos serviços públicos de saúde:

(...) não tem dinheiro, falta recurso do governo. (...) eu esperava um pouco mais da prefeitura, porque, se tivesse união entre os governos, não teria fila, espera. Tem gente que fica por mais de 12 anos na fila (P2).

(...) no sistema de saúde, sem ser aqui, não há recurso (...) passei por muitos serviços, posto de saúde e não percebi condições para que me atendessem (P4).

(...) como há poucas vagas em hospitais públicos, o governo poderia investir em convênios com hospitais particulares, porque assim atenderia mais pessoas (P10).

De acordo com os entrevistados, a falta de um olhar profissional diferenciado para a pessoa com obesidade no âmbito da Atenção Primária à Saúde (APS) impactou negativamente o cuidado:

(...) no posto de saúde, diziam que eu estava obesa e me mandavam não comer, nunca fizeram nada por mim, me diziam para fazer regime; eu fiz a vida toda e de nada adiantou (P1).

No posto, nunca olharam para a minha obesidade. (...) ninguém me indicou onde e a quem procurar para me ajudar a emagrecer (P7).

(...) faltou um profissional que me olhasse, orientasse. Isso sim teria me ajudado e muito (P13). (...) não vou continuar fazendo acompanhamento no posto porque eu me senti largada. (...) a psicóloga que entrou agora me deu alta, ela não quis conversar comigo (P15).

A dificuldade de atendimento da obesidade nos serviços públicos de saúde levou os participantes a procurarem os serviços privados:

(...) procurei ajuda nos postos de saúde, passei por médicos particulares, tomei remédio e nada resolveu (P1).

(...) eu comecei a ir aos postos de saúde (...) o endócrino me dava remédio para emagrecer, mas não conseguia manter. (...) minha mãe me levou a uma clínica particular, dessas que fazem aplicação de carboxi (P13).

Anseio por cuidado integral e qualificado por profissionais da Rede de Atenção à Saúde

No pré-operatório da cirurgia bariátrica, os participantes têm a expectativa de serem atendidos por profissionais preparados para responder às suas necessidades nos diferentes pontos da RAS:

(...) depois da cirurgia, quando me derem alta, vou continuar no posto de saúde, mas eu espero que o posto tenha estrutura física e profissionais preparados para me receber, atender com respeito e me acompanhar. (...) precisa ter mais profissionais qualificados nos orientando para fazer este intercâmbio entre médico e paciente (P1).

(...) eu gostaria que tivesse um profissional que fosse referência, que eu visse que posso confiar e seguir para tudo dar certo, pode ser até alguém lá do posto de saúde, que me acompanhasse, para me ajudar a continuar o tratamento, isto faria a diferença na minha vida (P7).

(...) seria muito bom se tivesse acompanhamento com a nutricionista, associado com a psicóloga, para me ajudar não só com a cirurgia, mas com acompanhamento pelo menos nos próximos anos e, se possível, para o resto da vida (P9).

(...) depois que eu fizer a cirurgia, eu espero continuar sendo atendida por todos os profissionais que me atenderam no HC (...) comecei na UBS, vim pra cá, continuei o tratamento (P11).

(...) eu espero poder voltar para a unidade básica de perto da minha casa e ser acompanhada pelos profissionais de lá, acho importante (P12).

Os pacientes almejam que as ações de saúde com ênfase na APS possam ajudá-los no cuidado com a obesidade:

(...) poderia ter muitas palestras para os obesos e ser dito o porquê é importante perder peso. (...) uma equipe multidisciplinar para cuidar da pessoa obesa, que nos olhe como seres humanos, sem críticas (P3).

(...) seria muito bom se tivéssemos um Programa de Saúde da Família atuante, com profissionais preparados, que fossem visitar na casa pelo menos uma vez por semana, uma vez por mês (P5).

(...) os postos de saúde têm que estar preparados, fazer reuniões, amparar os pacientes, com enfermeiros, psicólogos, preparador físico (...) ter horários de atendimento diferentes para acolher as pessoas, para que não cheguem ao estágio de obesidade maior como eu cheguei (P8).

(...) gostaria que houvesse grupos de tratamento para pessoas obesas nos postos de saúde. (...) esclarecer dúvidas, para falar sobre as dietas, exercício físico (...) todo posto de saúde poderia fazer um censo no bairro para saber quantos são obesos (P9).

Ações no âmbito da gestão e do serviço de saúde

Os participantes esperam ações concretas por parte dos gestores em relação ao cuidado às pessoas com obesidade, assim como uma assistência profissional integralizada e melhorias na estrutura dos serviços públicos que compõem a RAS:

(...) a prefeitura poderia fazer um hospital melhor, que atendesse pacientes com obesidade grave, e o posto de saúde poderia contar com uma equipe profissional que nos ajudasse em todos os momentos da busca pelo tratamento (P2).

(...) que as unidades básicas tenham estrutura física, porque, quando vamos sentar, é muito desconfortável. Todo lugar é adaptado para o magro e não para o gordinho, não há nem balança para pesar os gordinhos (P4).

(...) o posto de saúde poderia ter uma cópia do meu prontuário e saber do meu caso para me dar um suporte (...) se houvesse este intercâmbio, eu não precisaria me deslocar para consultar (P5).

(...) o posto de saúde deveria encaminhar as pessoas obesas para os hospitais de referência, isso ajudaria a diminuir o tempo tanto na marcação da consulta quanto no agendamento da cirurgia. (...) agilizaria o processo (P6).

(...) fazer convênios com hospitais particulares, porque chamaria mais pessoas para a cirurgia bariátrica, isto deve ser incentivado (P10).

Poderia ter maior empenho dos gestores da saúde (...) precisa sair do papel, não apenas escrever as políticas, mas colocar em prática. (...) ter mais ação, investir na prevenção e no tratamento (...) investir na saúde e não na doença (P14).

(...) alguns pontos do sistema de saúde poderiam melhorar o atendimento, por exemplo, neste intervalo que esperei na fila para a cirurgia bariátrica, poderia ter continuado a fazer o tratamento na UBS com o endócrino e outros profissionais. Porque, aqui, no hospital, não dão conta. (...) poderia haver uma articulação entre o hospital e a UBS durante a espera na fila para operar (P16).

Um entrevistado declarou que a enfermeira da APS poderia ser um profissional de referência no serviço:

(...) deveria ter um profissional que fosse referência para mim, que eu pudesse confiar e seguir para tudo dar certo, podia ser alguém lá do posto de saúde, uma enfermeira, que me acompanhasse para me ajudar a continuar. Isto faria a diferença na minha vida (P7).

DISCUSSÃO

A percepção da pessoa com obesidade em relação ao cuidado recebido nos serviços públicos de saúde pauta-se no seu mundo social e retrata relações intersubjetivas com as pessoas do seu convívio diário e com os profissionais que fazem parte da sua trajetória na busca por atendimento. A falta de recursos nos serviços de saúde e de um olhar particularizado do profissional para o cuidado à pessoa obesa, somada à necessidade de recorrer ao serviço privado de saúde para obter resolubilidade da condição de saúde vivenciada, remete às experiências passadas e presentes, denominadas pela fenomenologia social de Alfred Schütz de “motivos porque”(1111. Schütz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis: Vozes; 2012.).

No contexto dos “motivos porque” encontra-se o acervo de conhecimentos e experiências(1111. Schütz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis: Vozes; 2012.) que a pessoa com obesidade mórbida já vivenciou no decorrer da sua convivência com a doença até o momento presente, com enfoque para o cuidado recebido e/ou negligenciado pelos serviços de saúde.

Ao procurarem pelo cuidado voltado à obesidade nos serviços públicos de saúde, os participantes perceberam escassez de recursos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). A obesidade, devido a seu caráter crônico, prediz um cuidado continuado, o que, por sua vez, exige recursos e uma gestão adequada destes. Um estudo que discutiu os gastos públicos com saúde mostrou que o adequado funcionamento do sistema de saúde de um país depende de financiamento suficiente e gestão adequada dos recursos obtidos, os quais se apresentam como desafios a serem superados pelo Brasil(1515. Saldiva PHN, Veras M. Gastos públicos com saúde: breve histórico, situação atual e perspectivas futuras. Estud Av. 2018;32(92):47-61. DOI: http://dx.doi.org/10.5935/0103-4014.20180005
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)
, os quais impactam o cuidado à obesidade.

Os participantes referem também a falta de um olhar profissional direcionado para a pessoa com obesidade por parte da equipe multiprofissional, no sentido de orientá-los e de implementar estratégias voltadas para a perda de peso. Essa questão é fundamental para o controle da obesidade, considerando que esta evolui processualmente e, muitas vezes, permite aos profissionais da saúde planejar um cuidado no sentido de evitar o agravamento da doença. No caso do presente estudo, os participantes percorreram os serviços de saúde sem contar com o olhar e a atenção devidos de profissionais, o que pode ter contribuído para atingirem a obesidade mórbida.

Os profissionais de saúde devem atentar para a pessoa obesa, propondo e implementando estratégias de abordagem individual e coletiva a essa clientela, por meio de consultas, visitas domiciliares, grupos educativos, entre outros. Importante destacar que a adesão do paciente ao tratamento da obesidade exige sensibilidade do profissional em acessar o contexto em que a pessoa vive, inserindo-a e, se possível, incluindo também a família desta no plano de cuidado(1616. Oliveira DM, Merighi MAB, Jesus MCP. The decision of an obese woman to have bariatric surgery: the social phenomenology. Rev Esc Enferm USP. 2014;48(6):970-6. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420140000700002
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)
.

Pesquisa realizada com profissionais de cuidados primários que atuam com pessoas com obesidade nos Estados Unidos evidenciou que se faz necessária a implantação de um modelo de cuidado integrado com recomendações e diretrizes que propiciem trabalhar as competências dos profissionais e, consequentemente, melhorar o atendimento a esse público. A atuação competente da equipe na APS articulada à participação dos usuários foram relatadas como essenciais para os profissionais gerenciarem o controle do peso de seus pacientes(1717. Kushner RF, Kahan S. Introduction: the state of obesity in 2017. Med Clin N Am. 2018;102(1):1-11. DOI: http://dx.doi.org/10.1016/j.mcna.2017.08.003
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As dificuldades de atendimento apontadas para o cuidado da obesidade levaram os participantes deste estudo a recorrerem aos serviços de saúde privados. Resultados de um estudo que objetivou evidenciar a viabilização do acesso aos serviços de saúde no Brasil e consumo destes mostraram que as possibilidades de conexão público-privado são inúmeras, sendo uma das principais razões a demora no atendimento de especialistas no serviço público(1818. Meneses CS, Cecilio LCO, Andreazza R, Carapinheiro G, Andrade MGG, Santiago SM, et al. Lay agency and the generation of public-private mix health care maps. Ciênc Saúde Coletiva. 2017;22(6):2013-24. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017226.14822016
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Considerando o contexto marcado pela falta de recursos nos serviços públicos de saúde e por profissionais que não se dedicam a direcionar o olhar para e atuar sobre a obesidade de modo particularizado, os participantes do presente estudo trazem expectativas referentes à situação biográfica(1111. Schütz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis: Vozes; 2012.) em que se encontram. Assim, a situação biográfica “ser obeso mórbido no pré-operatório para a cirurgia bariátrica” lhes permite refletir acerca do cuidado que anseiam para si e para as pessoas obesas em geral, considerando suas próprias trajetórias de cuidado no contexto dos serviços de saúde. A fenomenologia social de Alfred Schütz afirma que a possibilidade de projetar perspectivas ocorre de modo compartilhado nas relações interpessoais, sendo produto da intersubjetividade (locus do significado da ação social)(1111. Schütz A. Sobre fenomenologia e relações sociais. Petrópolis: Vozes; 2012.).

Como expectativas, as pessoas com obesidade desejam ter suas necessidades de cuidado atendidas nos serviços públicos de saúde. Para tanto, esperam ser acompanhadas por profissionais capacitados, com desenvolvimento de ações de saúde para o controle dessa doença crônica e que essas ações específicas sejam monitoradas no âmbito da gestão e dos serviços de saúde (motivos para).

Faz-se importante destacar que a expectativa de cuidado profissional emergida nos depoimentos dos participantes é perpassada pela ótica do cuidado em rede. Isto é, vislumbram ser cuidados integralmente nos diversos pontos de atenção à saúde que percorrerem após serem submetidos à cirurgia bariátrica. Destacam em suas verbalizações a importância do acompanhamento na APS, tanto para casos de seguimento após a cirurgia bariátrica quanto para pessoas com obesidade em geral. Isso é corroborado pela literatura, a qual afirma que a comunicação e a proximidade dos profissionais de saúde que atuam na APS com os usuários podem impactar diretamente os resultados de perda de peso da pessoa obesa. Salienta-se neste contexto a relevância do seguimento do cuidado e do vínculo de confiança construído entre cuidador e pessoa cuidada(1919. Puente JMG, Martínez-Marcos M. Sobrepeso y obesidad: eficacia de las intervenciones en adultos. Enferm Clin. 2018;28(1):65-74. DOI: https://doi.org/10.1016/j.enfcli.2017.06.005
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O cuidado almejado pelos participantes do presente estudo vai ao encontro do que se propõe no modelo de atenção à saúde voltado para as doenças e condições crônicas, no qual a APS deve assumir a coordenação do cuidado. No entanto, as evidências científicas demonstram que, na prática, tal modelo ainda enfrenta problemas para ser efetivado. Pesquisa que objetivou analisar o itinerário terapêutico de pacientes com obesidade cadastrados no serviço de assistência de alta complexidade do Hospital Universitário do Oeste do Paraná, Brasil, mostrou que, embora os serviços da APS sejam considerados ordenadores das RAS e responsáveis pela prestação de um cuidado longitudinal, existe precariedade nessa responsabilização, impactando o atendimento às necessidades de saúde das pessoas com doenças crônicas(2020. Younes S, Rizzotto MLF, Araújo ACF. Therapeutic itinerary of patients with obesity treated in high-complexity services of a university hospital. Saúde Debate. 2018;41(115):1046-60. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0103-1104201711505
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Estudo de intervenção realizado em Unidades Básicas de Saúde brasileiras reitera a problemática dos processos de cuidado à saúde em rede, ao trazer para o centro da discussão os usuários, seus direitos, deficiências e possibilidades encontradas em seus territórios. A investigação identificou uma composição deficiente da rede assistencial e a realização de um cuidado fragmentado, com pouca ênfase para a promoção da saúde, além de ter ressaltado a importância do reconhecimento do usuário e das redes de apoio construídas, que podem colaborar para as ações em saúde(2121. Maximino VS, Liberman F, Frutuoso MF, Mendes R. Professionals as networks producers: compositions and connections in health care. Saúde Soc. 2017;26(2):435-47. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/s0104-12902017170017
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A valorização do cuidado à pessoa obesa necessita estar associada à qualificação dos profissionais que cuidam dessa clientela, o que responde à necessidade emergida pelos depoentes desta investigação. A RAS não se faz somente por estruturas, mas fundamentalmente por pessoas, entre as quais os profissionais que nela atuam assumem papel fundamental para uma efetiva gestão do cuidado à obesidade.

Foi mencionada também como expectativa pelos participantes a necessidade de ações conjuntas no âmbito da gestão e dos serviços de saúde voltadas para a pessoa com obesidade, assim como melhorias na estrutura dos serviços públicos de saúde. Para que isso ocorra, faz-se necessário identificar as necessidades de cuidado das pessoas com obesidade com vistas a incrementar a atenção empreendida no seu acompanhamento, objetivando o controle de peso, o preparo para cirurgia bariátrica quando indicada, além da efetivação de práticas educativas no âmbito da prevenção dessa doença crônica(2222. Almeida LM, Campos KFC, Randow R, Guerra VA. Estratégias e desafios da gestão da atenção primária à saúde no controle e prevenção da obesidade. Rev Eletr Gestão Saúde. 2017;8(1):114-39.).

As expectativas citadas pelos participantes relacionadas à gestão e aos serviços no tocante ao cuidado que desejam receber mostram dilemas que enfrentam com relação aos princípios doutrinários do SUS. O anseio por hospitais maiores e convênios com a rede privada para atender à pessoa com obesidade desvela a experiência dos participantes na busca pela universalidade do atendimento. O acesso dificultado aos serviços públicos de saúde para o cuidado da obesidade indica que o sistema tem se mostrado insuficiente para atender à demanda de pessoas obesas. A estrutura física dos serviços, por sua vez, negligencia a equidade pelo descuido de questões elementares, como assentos apropriados para as pessoas obesas. Fere-se também a integralidade no que tange à organização dos serviços e à equipe de saúde, considerando que o cuidado à pessoa obesa não se mostra continuado e integral em todos os níveis do sistema.

Portanto, as expectativas de cuidado dos participantes do presente estudo reforçam que esforços devem ser despendidos no âmbito da macro e microgestão para uma maior integração e efetividade do conjunto de medidas de prevenção e controle da obesidade. No âmbito do sistema de saúde, a proposta das RAS, que inclui a linha de cuidado da obesidade, cabe ser implementada, considerando os princípios do SUS. Desse modo, deve consolidar-se em um contexto de valorização crescente das ações da APS e da organização da rede de serviços, sinalizando a importância da intrasetorialidade no sistema público de saúde brasileiro(22. Dias PC, Henriques P, Anjos LA, Burlandy L. Obesity and public policies: the Brazilian government's definitions and strategies. Cad Saúde Publica. 2017;33(7):e00006016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00006016
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Um dos participantes referiu desejar que a enfermeira fosse referência para acompanhar pessoas com obesidade na APS. Para responder aos problemas decorrentes das necessidades de saúde das populações, especialmente em função do aumento de condições crônicas, tem-se observado um crescente interesse na adoção de práticas capazes de inovar e reestruturar os sistemas de saúde, com ênfase na APS. A enfermagem, com prática avançada, tem sido considerada uma dessas inovações(2323. Miranda Neto MV, Rewa T, Leonello VM, Oliveira MAC. Advanced practice nursing: a possibility for Primary Health Care? Rev Bras Enferm. 2018;71 Suppl 1:716-21. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0672
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, potencializando sua atuação como de referência no acompanhamento das pessoas obesas nos serviços de saúde.

Cabe ressaltar que, para realizar a prática avançada, o enfermeiro deve integrar pesquisa, educação, prática assistencial e gestão, demonstrando autonomia profissional e competência para tomar decisões clínicas, realizar avaliações, diagnóstico e prescrições, fazer a gestão de casos, avaliar e implementar programas e planos de cuidado e referenciar os usuários para os serviços de saúde(2222. Almeida LM, Campos KFC, Randow R, Guerra VA. Estratégias e desafios da gestão da atenção primária à saúde no controle e prevenção da obesidade. Rev Eletr Gestão Saúde. 2017;8(1):114-39.). Essas ações permitem que ele se situe, no âmbito da equipe interdisciplinar, como profissional de referência no cuidado à obesidade, tanto na prevenção como no tratamento da doença.

Os resultados da presente investigação permitiram acessar o caminho percorrido por pessoas obesas na busca por atendimento às suas necessidades de saúde no âmbito do sistema de saúde. A Fenomenologia Social de Alfred Schütz auxiliou na compreensão dos “motivos porque” e dos “motivos para” entremeados na trajetória de cuidado percorrida pelos participantes. As respostas sociais previstas para um sistema de saúde foram visivelmente tardias para os depoentes, que evoluíram para o agravamento da obesidade, o que resultou na indicação para a cirurgia bariátrica. Importante destacar neste contexto os “motivos para”, que se referem a projeções de cuidado vislumbradas por essas pessoas e que devem ser traduzidas como respostas sociais que o sistema de saúde deve dar a partir do momento em que se submeterem ao procedimento cirúrgico.

Isso reforça a necessidade das ações continuadas que essas pessoas esperam da gestão e dos profissionais dos serviços públicos de saúde, com ênfase para a APS. Reitera também a compreensão que possuem de que a cirurgia bariátrica é a melhor opção de tratamento diante da situação biográfica em que se encontram, porém não é a garantia de sucesso no controle da obesidade. Tal êxito exige a corresponsabilização longitudinal dos atores envolvidos nas linhas de cuidado à obesidade, como os gestores (responsáveis pelo planejamento e organização das RAS) e os profissionais de saúde (responsáveis por operar o cuidado nos diversos pontos de atenção à saúde).

O presente estudo reflete a experiência de cuidado de um grupo de pessoas com obesidade mórbida que procurou tratamento nos serviços públicos de saúde e que está aguardando a cirurgia bariátrica em um hospital de grande porte da cidade de São Paulo. Portanto, a singularidade dos participantes da pesquisa impede a generalização de seus resultados.

Os resultados do presente estudo trazem como contribuição para o conhecimento na área da saúde e enfermagem a experiência intersubjetiva de pessoas com obesidade na busca pelo cuidado, demonstrando a dificuldade dos serviços públicos de saúde em proporcionar resolubilidade aos problemas de saúde enfrentados por esta clientela.

CONCLUSÃO

Os achados deste estudo mostraram experiências de (des)cuidado para com pessoas obesas nos caminhos percorridos no sistema de saúde, tanto no quesito estrutural quanto no tocante aos recursos humanos no SUS, o que pode ter contribuído para o agravamento da doença. Esta experiência pregressa, somada à condição de ser obesos mórbidos, permitiu-lhes lançar expectativas de cuidado envolvendo a gestão e os profissionais de saúde, sendo a APS o cenário de potência eleito pelos participantes para dar respostas às necessidades de saúde implicadas na obesidade.

As questões levantadas nesta investigação, ainda que advindas de um grupo social específico, carecem de ser criteriosamente (re)avaliadas pela micro e macrogestão do sistema, bem como pelo ensino e pesquisa na saúde, no sentido de integralizar, longitudinalizar e qualificar as ações cuidativas para a prevenção e o controle da obesidade nos serviços públicos de saúde.

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    Extraído da tese:: “A busca pela cirurgia bariátrica: itinerário terapêutico vivido no Serviço Público de Saúde”, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, 2019.
  • Apoio financeiro:

    Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    09 Nov 2018
  • Aceito
    01 Ago 2019
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