Acessibilidade / Reportar erro

Atenção psicossocial às pessoas com comportamento suicida na perspectiva de usuários e profissionais de saúde* * Extraído da tese: “Cuidado às pessoas com comportamento suicida na RAPS: modelo teórico fundamentado na GT”, Universidade Federal da Bahia, 2018.

Atención psicosocial para personas con conducta suicida desde la perspectiva de usuarios y profesionales de la salud

RESUMO

Objetivo

Compreender as implicações da assistência prestada às pessoas com comportamento suicida no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial, na perspectiva de usuários e profissionais de saúde.

Método

Pesquisa qualitativa, sob o referencial teórico do pensamento complexo e metodológico na Grounded Theory. Foram realizadas entrevistas, no período de maio a dezembro de 2017, com usuários assistidos por comportamento suicida e com profissionais de saúde em cenários da atenção psicossocial. Utilizou-se a técnica de análise comparativa dos dados.

Resultados

Participaram 18 usuários e 15 profissionais de saúde. O não acolhimento intensifica a introspecção, desmotivação e desesperança nos usuários, aumentando a dificuldade de exporem seus anseios. Em situações de acolhimento, disponibilidade e vinculação com os profissionais, os mesmos sentem-se mais abertos, a ponto de darem novos sentidos à vida e reduzirem os pensamentos de morte.

Conclusão

Foram identificadas fragilidades e potencialidades no atendimento prestado por profissionais de saúde aos usuários com comportamento suicida, no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial. Ressalta-se a necessidade de uma gestão comprometida com a qualidade da assistência em face do risco de suicídio.

Suicídio; Tentativa de Suicídio; Comportamento Autodestrutivo; Enfermagem Psiquiátrica; Sistemas de Apoio Psicossocial; Assistência à Saúde Mental

RESUMEN

Objetivo

Comprender las implicaciones de la asistencia brindada a las personas con conducta suicida dentro del alcance de la Red de Atención Psicosocial, desde la perspectiva de los usuarios y profesionales de la salud.

Método

Investigación cualitativa, bajo el marco teórico del pensamiento complejo y metodológico en la Grounded Theory. Se realizaron entrevistas, de mayo a diciembre de 2017, com usuarios asistidos por conducta suicida y con profesionales de la salud en entornos de atención psicosocial. Se utilizó la técnica de análisis de datos comparativos.

Resultados

Participaron 18 usuarios y 15 profesionales de La salud. La no recepción intensifica la introspección, la desmotivación y la desesperanza de los usuarios, lo que aumenta la dificultad de exponer sus deseos. En situaciones de recepción, la disponibilidad y la vinculación con profesionales, se sienten más abiertos, hasta el punto de dar nuevos significados a la vida y reducir los pensamientos de muerte.

Conclusión

Se notaron debilidades y potencialidades en la atención brindada por profesionales de la salud a usuarios con conducta suicida, dentro del alcance de la Red de Atención Psicosocial. Destaca la necesidad de una gestión comprometida con la calidad de la atención ante el riesgo de suicidio.

Suicidio; Intento de Sucidio; Conducta Autodestructiva; Enfermería Psiquiátrica; Sistemas de Apoyo Psicosocial; Atención a la Salud Mental

ABSTRACT

Objective

To understand the implications of the assistance provided to people with suicidal behavior within the scope of the Psychosocial Care Network, from the perspective of users and health professionals.

Method

A qualitative research, under the theoretical framework of complex and methodological thinking in Grounded Theory. Interviews were conducted from May to December 2017, with users assisted due to suicidal behavior and with health professionals in psychosocial care settings. The comparative data analysis technique was used

Results

18 users and health professionals participated. Non-acceptance intensifies users’ introspection, demotivation and hopelessness, increasing the difficulty of exposing their desires. In situations of embracement, availability and bonding with professionals, patients feel more open, to the point of giving new meanings to life and reducing thoughts of death.

Conclusion

Weaknesses and potentialities were noticed in the care provided by health professionals to users with suicidal behavior, within the scope of the Psychosocial Care Network. The need for management committed to the quality of care in the face of the risk of suicide stands out.

Suicide; Suicide, Attempted; Self-Injurious Behavior; Psychiatric Nursing; Psychosocial Support Systems; Mental Health Assistance

INTRODUÇÃO

O comportamento suicida expressa um ato repleto de ambivalência, pois a morte é anunciada não como um querer morrer, mas como o desejo de uma vida livre da dor insuportável que tanto adoece. A complexidade que permeia o ato suicida requer serviços preparados e organizados em rede com fins no cuidado à saúde mental das pessoas, sendo este sine qua non para a redução dos índices de morbimortalidade do agravo.

Em todo o mundo, os números relacionados ao suicídio são crescentes e alarmantes, tendo-se mais de 800 mil mortes autoprovocadas por ano. Nos Estados Unidos da América, as taxas de suicídio aumentaram em cerca de 16% entre os anos de 2006 e 2014(11. Curtin SC, Warner M, Hedegaard H. Increase in suicide in the United States, 1999-2014. NCHS Data Brief [Internet]. 2016 [cited 28 Jan 2018];(241):1-8. Available from: https://www.cdc.gov/nchs/data/databriefs/db241.pdf
https://www.cdc.gov/nchs/data/databriefs...
). No Brasil, os números de mortes por suicídio não diferem tanto, tendo aumentado 12% entre os anos de 2011 e 2015, colocando o país na 8ª posição no ranking mundial dos maiores índices de suicídio(22. Machado DB, Santos DN. Suicídio no Brasil, de 2000 to 2012. J Bras Psiquiatr. 2015;64(1):45-54. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0047-2085000000056
http://dx.doi.org/10.1590/0047-208500000...
).

Estima-se que, em 2020, o ônus das tentativas de suicídio e a morbidade que essas trazem alcance, aproximadamente 2,4% em todo o mundo(33. Silveira RE, Santos AS, Ferreira LA. Impact of morbi-mortality and expenses with suicide in Brazil from 1998 to 2007. Rev Online Pesqui Cuid Fundam. 2012;4(4):33-42. doi: http://dx.doi.org/10.9789/2175-5361.2012.v4i4.3033-3042
http://dx.doi.org/10.9789/2175-5361.2012...
). No cenário nacional, no período de 2011 a 2016, cerca de 1.173.418 casos de violências interpessoais ou autoprovocadas foram notificados no sistema de informação de agravos, das quais 42% tiveram relação com a automutilação e as tentativas de suicídio(44. Fraga WS, Massuquetti A, Godoy MR. Os determinantes socioeconômicos do suicídio: um estudo para os municípios do Brasil e do Rio Grande do Sul. Rev Econ. 2016;18(2):1-37. doi: https://doi.org/10.22409/economica.18i2.p300
https://doi.org/10.22409/economica.18i2....
).

Em face às demandas de saúde relacionadas às tentativas de suicídio, dois estudos mostram que os serviços, independentemente da especificidade para a saúde mental, constituem-se como portas de entrada para as ações relativas à atenção psicossocial, o que faz com que esses se tornem lócus privilegiados para o cuidado diante do comportamento suicida. Estudo mexicano mostra a necessidade de avaliação psicológica e psiquiátrica em todos os casos atendidos por tentativas de suicídio em um hospital geral de alta complexidade, a fim de se determinar possíveis fatores de risco(55. Reyes-Tovilla JE, Hernández-Yánez HD, Juárez-Rojop I, Tovilla-Zárate CA, López-Narváez L, Villar-Soto M, et al. Psychological evaluation of impulsive/premeditated aggression and associated factors: a cross-sectional study in users of health services in Tabasco, Mexico. Psiquiatr Salud Ment. 2016;39(1):19-24. doi: https://doi.org/10.17711/SM.0185-3325.2015.064
https://doi.org/10.17711/SM.0185-3325.20...
). Pesquisa semelhante realizada em Fortaleza, Ceará, Brasil, com 360 vítimas de tentativa de suicídio atendidas em diversos serviços que compõem a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), fomenta a importância de profissionais atentos ao comportamento suicida em todos os níveis de assistência como estratégia de prevenção do suicídio(66. Oliveira MIV, Bezerra Filho JG, Gonçalves-Feitosa RF. Tentativas de suicídio atendidas em unidades públicas de saúde de Fortaleza-Ceará, Brasil. Rev Salud Pública. 2014;16(5):683-96. doi: http://dx.doi.org/10.15446/rsap.v16n5.40138
http://dx.doi.org/10.15446/rsap.v16n5.40...
).

A RAPS agrega o Sistema Único de Saúde (SUS) e estabelece os pontos de atenção para o atendimento de pessoas com problemas de saúde mental, com o objetivo de articular ações e serviços de saúde em diferentes níveis de complexidade, a partir do acesso e da promoção de direitos das pessoas, baseado na convivência dentro da sociedade(77. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n. 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde [Internet]. Brasília; 2011 [citado 27 dez. 2019]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
). A Rede é composta por serviços e equipamentos variados, tais como os CAPS; os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT); os Centros de Convivência e Cultura; as Unidade de Acolhimento (UA) e os Leitos de Atenção Integral (em hospitais gerais, nos CAPS III)(77. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n. 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde [Internet]. Brasília; 2011 [citado 27 dez. 2019]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
).

Todavia, apesar de toda a estrutura de atendimento da RAPS, estudo brasileiro realizado em um hospital psiquiátrico do Rio Grande do Norte sinaliza as dificuldades de acesso e funcionamento inadequado dos serviços da RAPS, especialmente nos CAPS. Esses serviços passam por problemas frequentes relativos à alta demanda de usuários e à falta de psiquiatras, o que compromete o cuidado quanto à continuidade do tratamento, aumentando as chances de sucessivas internações dos usuários(88. Ramos DKR, Guimarães J, Mesquita SKC. Difficulties in the mental health network and psychiatric readmissions: discussing possible relationships. Cogitare Enferm. [Internet]. 2014 [cited 30 Jan 2018];19(3):553-60. Available from: https://revistas.ufpr.br/cogitare/article/view/35382/23243
https://revistas.ufpr.br/cogitare/articl...
), bem como de atos suicidas.

Para além das dificuldades estruturais enfrentadas nos serviços da RAPS, ainda é possível se deparar com posturas estigmatizantes, expressas pelo não acolhimento e descrédito dos profissionais em torno do sofrimento que culmina em condutas suicidas, a exemplo do que foi revelado em um estudo realizado em Unidades de Pronto Atendimento (UPA) e emergências hospitalares no Sul do Brasil(99. Freitas APA, Borges LM. Do acolhimento ao encaminhamento: o atendimento às tentativas de suicídio nos contextos hospitalares. Estud Psicol (Natal). 2017;22(1):50-60. doi: https://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20170006
https://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20...
).

Ao considerar a relevância da qualidade do atendimento prestado em face do comportamento suicida, com vistas ao bem-estar e prevenção do suicídio, torna-se necessária a compreensão acerca das implicações da assistência prestada às pessoas com comportamento suicida no âmbito da RAPS, na perspectiva de usuários e profissionais de saúde. Isso contribui para dar visibilidade aos impactos dessas implicações para a saúde mental dos usuários, e, consequentemente, para a redução de pensamentos e atos de suicídio. Neste contexto, delineia-se como objetivo desta pesquisa: compreender as implicações da assistência prestada às pessoas com comportamento suicida no âmbito da RAPS, na perspectiva de usuários e profissionais de saúde.

MÉTODO

TIPO DE ESTUDO

Trata-se de um estudo qualitativo ancorado no referencial teórico do pensamento complexo e metodológico da Grounded Theory (GT). A GT busca a compreensão dos fenômenos sociais a partir das percepções ou significados das relações e interações entre as pessoas(1010. Cunha KS, Andrade SR, Erdmann AL. University management nurse: a grounded theory. Rev Latino Am Enfermagem. 2018;26:e2980. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1518-8345.2199.2980
http://dx.doi.org/10.1590/1518-8345.2199...
). O pensamento complexo(1111. Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5ª ed. Porto Alegre: Sulina; 2015.)mostra-se relevante por permitir, através de uma realidade vivenciada, a identificação das partes que envolve as pessoas em risco para o suicídio, bem como a compreensão do todo que se associa e repercute na atenção à saúde.

POPULAÇÃO

Participaram desta pesquisa 33 pessoas. Dentre essas, 18 usuários, 15 mulheres e três homens, em acompanhamento terapêutico por comportamento suicida em um serviço ambulatorial especializado na assistência às pessoas em risco de suicídio e 15 profissionais de saúde atuantes na prestação da assistência a esses usuários em diferentes serviços da RAPS. Esses participantes foram escolhidos intencionalmente.

Os profissionais atuavam nas áreas de enfermagem, serviço social, psicologia, psiquiatria e terapia ocupacional, em um dos cenários componentes da RAPS: emergência de um hospital geral, na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), no Pronto Atendimento Psiquiátrico (PAP) e no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Eles foram entrevistados em seus locais de trabalho, em ambiente privativo, enquanto que os usuários foram entrevistados no Núcleo de Estudo e Prevenção do Suicídio (NEPS).

O NEPS é um serviço ambulatorial especializado na assistência às pessoas em risco de suicídio, vinculado a um Centro de Informação Toxicológica (CIT) que integra a rede própria da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (SESAB), em Salvador, Bahia, Brasil. O NEPS dispõe de uma equipe multidisciplinar composta por profissionais das áreas técnicas de enfermagem, psicologia, psiquiatria e terapia ocupacional. Atua no apoio técnico à RAPS, ofertando assistência às pessoas com comportamento suicida e capacitações com abordagem multiprofissional para os profissionais de saúde da Rede. Vale salientar que o NEPS, inaugurado em agosto de 2007, apresenta-se como o único serviço público especializado exclusivamente no atendimento às pessoas com comportamento suicida no Brasil(1212. Carvalho S, organizadora. Abordagem multiprofissional na prevenção do suicídio sob a ótica dos técnicos e da avaliação dos usuários do Núcleo de Estudo e Prevenção do Suicídio – NEPS [Internet]. Salvador: Sanar; 2019 [citado 2018 jan. 17]. Disponível em: https://www.editorasanar.com.br/images/d/EBOOK_setembro-amarelo-abordagem-multiprofissional-na-prevencao-do-suicidio.pdf
https://www.editorasanar.com.br/images/d...
) .

CRITÉRIOS DE SELEÇÃO

Como critérios de inclusão para os usuários foram considerados: idade igual e/ou maior de 18 anos, em qualquer período de acompanhamento no NEPS, com estabilidade emocional e psíquica após avaliação e indicação de profissionais do NEPS. Como critérios de exclusão para esses participantes foram: tentativa de suicídio e/ou internação psiquiátrica nos últimos 90 dias (pela possibilidade de instabilidade emocional); dificuldades para expressar ideias e/ou sentimentos e propensão à labilidade emocional independente da associação com transtornos psicológicos.

Para os profissionais de saúde foram definidos como critérios de inclusão: ter formação técnica ou superior na área de saúde; atuar em níveis de assistência e/ou gerencial em, pelo menos, um dos serviços que compõem a RAPS e ter prestado assistência a pessoas com comportamento suicida no âmbito da RAPS, sem delimitação do período. E como critérios de exclusão foram considerados os profissionais afastados do trabalho, por quaisquer motivos, durante o período de coleta.

COLETA DE DADOS

Inicialmente foi realizado contato com os participantes, por telefone ou e-mail, para realizar o convite e agendar um encontro para apresentar o objetivo da pesquisa e realizar a entrevista. Os dados foram coletados pela pesquisadora principal por meio de entrevista aberta e individual, em local privativo, no período de maio a dezembro de 2017. As entrevistas foram registradas por gravação áudio-digital no intuito de preservar, na íntegra, as falas para posterior transcrição. Foi utilizada como questão norteadora para os usuários, a seguinte pergunta: como você se sentiu após o atendimento dos profissionais de saúde nos serviços que já recebeu assistência por conta de pensamentos de suicídio ou tentativas de suicídio? E para os profissionais de saúde: como você acredita que as pessoas assistidas por comportamento suicida se sentem após situações de (não) acolhimento evidenciadas no atendimento prestado por profissionais da RAPS?

As entrevistas foram interrompidas quando as informações ofertadas pelos usuários e profissionais se tornaram repetidas, confirmando a ausência de novos elementos para agregar à análise.

ANÁLISE E TRATAMENTO DOS DADOS

De acordo com os preceitos teóricos da GT, as etapas de coleta, análise e categorização dos dados ocorrem simultaneamente, por meio da comparação constante dos dados(1010. Cunha KS, Andrade SR, Erdmann AL. University management nurse: a grounded theory. Rev Latino Am Enfermagem. 2018;26:e2980. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1518-8345.2199.2980
http://dx.doi.org/10.1590/1518-8345.2199...
). Assim, cada entrevista após coletada, transcrita e analisada gerou núcleos conceituais que direcionaram as entrevistas seguintes.

A análise das entrevistas dos usuários fez emergir o seguinte pressuposto: as pessoas com comportamento suicida percebem-se mais vulneráveis para o risco de suicídio ou mais fortalecidas para a continuidade da vida, a depender das situações de (não) acolhimento decorrentes da assistência prestada por profissionais que atuam na RAPS. O processo de codificação respeitou as três etapas apresentadas pelo método de codificação aberta, codificação axial e integração, seguindo o modelo paradigmático, constituído pelos componentes: condição, que responde sobre o porque, quando e como o fenômeno se dá; ação-interação, que consiste na resposta expressa pelas pessoas aos eventos ocorridos; e consequência, que expressa os desfechos e resultados previstos ou reais(1313. Corbin J, Strauss A. Basics of qualitative research: techniques and procedures for developing Grounded Theory. 4th ed. Los Angeles: Sage; 2015).

Os agrupamentos dos códigos deram origem às categorias e subcategorias definidas e desenvolvidas em suas propriedades e dimensões, permitindo desvelar o fenômeno, revelando que o cuidado pautado na integralidade e no acolhimento às pessoas com comportamento suicida perpassa por profissionais qualificados e serviços estruturados no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial. Nesse contexto, optou-se por ampliar e aprofundar a discussão do componente Consequência intitulado: reconhecendo o lugar da RAPS na fragilização ou fortalecimento da pessoa com comportamento suicida, a partir da assistência prestada por profissionais de saúde.

ASPECTOS ÉTICOS

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o Parecer n. 1.813.544/2016. Foram atendidos os preceitos éticos da Resolução n. 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde, sendo os participantes esclarecidos sobre o objetivo da pesquisa. Eles assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), após o aceite para participação.

Para garantir o anonimato dos participantes, foram utilizadas as letras U (usuários) e P (profissionais de saúde) seguidas de numeral de ordem de realização da entrevista, tendo-se como exemplos: U1, U2, P1, P2.

RESULTADOS

O componente Consequência emergiu de duas categorias e seis subcategorias relacionadas à fragilização e ao fortalecimento das pessoas com comportamento suicida, a partir de experiências vivenciadas na assistência prestada por profissionais de saúde no âmbito da RAPS.

A primeira categoria, sentindo-se mais vulnerável ao comportamento suicida, sustenta-se por duas subcategorias que expressam as consequências diante do não acolhimento por parte dos profissionais da RAPS. Esse evento repercute negativamente, deixando os usuários ainda mais fragilizados em suas condições de sofrimento. A subcategoria, percebendo-se introspectivos, desmotivados e desesperançosos, mostra que os usuários, ao buscarem os serviços de saúde e não se perceberem cuidados, tornam-se mais retraídos, sem motivação e/ou esperança perante a vida, o que os vulnerabiliza para o isolamento e o silêncio de seus pensamentos, bem como a intensificação de suas dores:

Eu não falava mais sobre o que sentia ou pensava para não incomodar as pessoas (...) não conseguia mais expor as minhas dores e já não sabia mais como fazer (U1).

Não ter sido cuidada deixou marcas muito profundas (...) não acreditavam no meu sofrimento e a minha dor ficou muito maior (...) me abatia e me trancava cada vez mais (...) nada valia mais a pena e eu não tinha mais coragem para seguir (U4).

O não acolhimento causa mais sofrimento, intensificando as fragilidades, a descrença em si mesmo, os sinais de isolamento e a sensação de solidão (...) deixa-se de realizar pequenas coisas, como não tomar banho ou pentear os cabelos (...) (P7).

O não acolhimento diante do comportamento suicida pode fazer com que as pessoas percam ainda mais o sentido de existir, passando a acreditar que não são dignas de ter algo melhor na vida (P4).

Na segunda subcategoria, notando-se mais susceptível para a recorrência das tentativas de suicídio, o não existir surge para os usuários como uma possibilidade de livrar-se do sofrimento intenso, quando não cuidados e acolhidos em suas dores. Assim, os pensamentos de morte tornam-se mais frequentes, podendo contribuir para a recorrência das tentativas de suicídio e o desfecho efetivo da autodestruição. Nesse sentido, os participantes expressaram que após a busca pelo serviço de saúde como tática de proteção e cuidado, e o não recebimento do apoio esperado, os usuários passam a apresentar o suicídio como a única saída:

O não cuidado intensifica a dor e retarda o processo de mudança (...) fragiliza, aumenta os pensamentos de morte e a vontade de não existir, de cometer o suicídio (U13).

Quando existe um local onde o cuidado não é dado adequadamente e os profissionais não são capacitadas para atender, o que era fator protetor passa a ser de risco. O não cuidado pode precipitar novas e mais efetivas tentativas de suicídio (P8).

Quando a pessoa não recebe o cuidado e não se sente acolhida torna-se ainda mais fragilizada (...) a sensação é de desmoronar, sendo muito mais fácil que tente suicídio de novo (P9).

A segunda categoria, sentindo-se mais fortalecidos com o cuidado na RAPS traduz os resultados do cuidado respeitoso e sensível recebido pelos usuários com comportamento suicida nos serviços de saúde pelos quais percorreram, sustentando-se em quatro subcategorias. A primeira subcategoria, motivando-se com o acolhimento e o vínculo desvela que os usuários percebem-se valorizados em suas queixas, o que contribui para o compartilhamento de vínculos e favorece a adesão e assiduidade nos serviços, bem como a continuidade do tratamento:

Quando a pessoa que tenta suicídio não é humilhada, sempre volta para conversar. Quando os profissionais tratam de forma humanizada, a pessoa continua o tratamento porque sabe que pode falar sobre o que sente, sem qualquer tipo de problema (U2).

Eu sou usuária assídua do neps, porque eu me sinto cuidada e respeitada: os profissionais me escutam, acreditam em mim e fazem com que eu me sinta valorizada (U9).

Quando conseguimos cuidar, estabelecendo até mesmo articulação com outros serviços, observamos que o paciente adere mais rápido à terapêutica e participa mais assiduamente das consultas e reuniões, facilitando o êxito no tratamento (P2).

Quando as pessoas recebem uma assistência mais humanizada, sendo ouvidas e acolhidas, sentem-se mais estimuladas, favorecendo o fortalecimento de vínculos (P5).

Na segunda subcategoria, dando novos sentidos à vida, os dados sinalizaram, na percepção dos participantes deste estudo, que os usuários se sentem mais fortalecidos e encorajados a pensar no futuro e a empreender mudanças na forma de enxergar e viver a vida, vislumbrando assim, outras perspectivas diante do sofrimento:

Quando senti que estava sendo cuidada por pessoas que se preocupam comigo, comecei a me sentir capaz de fazer mudanças em minha vida (...) sei que existe uma forma de sair do sofrimento e ser feliz (...) tenho esperança que tudo pode ser diferente (U4).

Hoje eu me sinto super fortalecida (...) meu modo de enxergar e viver a vida mudou muito (...) a minha prioridade é comigo mesma, em ser feliz (U8).

O cuidado amplia a rede de relações e faz as pessoas sentirem que podem realizar coisas que nem percebiam antes (...) começam a acreditar na mudança de perspectivas e vão surgindo outras possibilidades, bem como a capacidade de ter sonhos novamente e de aprender coisas que antes achavam impossíveis de realizar (P7).

Com o cuidado, as pessoas começam a projetar outras perspectivas para a vida: despertam para o desejo de trabalhar, estudar e, sobretudo, de se manterem na vida (P1).

Na terceira subcategoria, despertando para o cuidar de si e de outrem, desvela que os usuários se percebem mais motivados para cuidar de si e ainda despertam para o cuidado a outras pessoas. Acreditam que, ao compartilhar suas experiências, podem diminuir o sofrimento por suas dores e ajudar os que vivenciam situações semelhantes:

O cuidado me ensinou a cuidar de mim e a ajudar outras pessoas, falando sobre as minhas experiências (...) cuidar do outro nos faz um grande bem (...) falar sobre o que passamos pode ajudar a diminuir o sofrimento de quem ainda sente muita dor (U7).

O cuidado fez com que eu quisesse ter mais informações sobre o que acontece comigo e me direciona a falar sobre o que sinto (...) sei que posso ajudar outras pessoas a lidarem com a dor (U6).

Muitos que já se sentem melhor, mais aptos a seguir com o tratamento, buscam ajudar outros. Fazendo isso, eles também estarão se ajudando (P10).

Com o tempo, o cuidado vai se tornando mais efetivo e as pessoas começam a perceber que cuidar do corpo é importante, que precisam se arrumar, tomar banho, ter uma boa alimentação, estar atentas aos exames periódicos (P6).

A quarta subcategoria, percebendo a diminuição de pensamentos e/ou tentativas de suicídio, evidencia que o acolhimento recebido pelos usuários nos dispositivos da RAPS interfere positivamente em suas vidas, fortalecendo-os e produzindo maior estabilidade emocional, de modo que os pensamentos e/ou tentativas suicidas diminuem ou até mesmo cessam:

Hoje não penso mais em morrer, como antes (...) sinto-me uma pessoa muito feliz porque sei que recebo o apoio e o cuidado de todos (U16).

O cuidado que recebo faz com que eu me sinta bem e acolhida (...) apesar de ter recaídas e ainda pensar em suicídio, posso dizer que me sinto mais forte e com menos pensamentos de morte (U15).

O cuidado não faz desaparecer os pensamentos de suicídio, mas, com certeza, diminui a ideação e faz com que se tenha estabilidade por um tempo maior. (...) ajuda a fortalecer, a pensar em estratégias e a ter mais recursos diante os pensamentos de suicídio para que pessoa se erga, se sustente e siga em frente (P3).

DISCUSSÃO

Os achados sugerem que nos diversos atendimentos prestados pelos profissionais de saúde em serviços da RAPS, as pessoas com comportamento suicida podem tornar-se fortalecidas ou ainda mais vulneráveis às tentativas de suicídio. A primeira categoria aponta que diante de entraves no acesso à RAPS e/ou de atendimento inadequado por parte dos profissionais, os usuários percebem-se mais introspectivos, desmotivados e desesperançosos. Esses sentimentos contribuem para que se sintam solitários e reflexivos em relação às situações que causaram sofrimento, aumentando as dificuldades em expor suas dores, a exemplo da introspecção.

No processo de introspecção é comum que as pessoas se tornem mais retraídas. Isso faz com que não expressem o que sentem, abstendo-se do ambiente externo e depauperando relações mais fecundas que se dão no complexus(1111. Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5ª ed. Porto Alegre: Sulina; 2015.), a partir de suas próprias experiências. A introspecção, no que diz respeito ao trancar-se em si mesmo como forma de lidar com a doença, também foi evidenciada em pesquisa realizada com 20 pacientes por complicações da anemia falciforme, procedentes da América do Norte, América Central e da África(1414. Umeh NI, Ajegba B, Buscetta AJ, Abdallah KE, Minniti CP, Bonham VL. The psychosocial impact of leg ulcers in patients with sickle cell disease: I don’t want them to know my little secret. PLoS One. 2017;12(10):1-13. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0186270
https://doi.org/10.1371/journal.pone.018...
).

Na nossa pesquisa, a introspecção apresentada por pessoas com comportamento suicida surge em face do sofrimento, intensificando as fragilidades, reforçando o isolamento por não se sentirem acolhidas, além da desmotivação e da descrença em si mesmas, tornando-as ainda mais silenciosas e abatidas diante da vida. Situações semelhantes foram narradas por 80 pacientes internados por tentativa de suicídio em um hospital sul-africano, os quais relataram a introspecção pelo sofrimento psíquico relacionado ao desejo de morte, e ainda a intensificação desse isolamento perante a ausência de cuidados adequados de saúde(1515. Bantjes J. Don’t push me aside, doctor: suicide attempters talk about their support needs, service delivery and suicide prevention in South Africa. Health Psychol. 2017;4(2):1-9. doi: https://doi.org/10.1177/2055102917726202
https://doi.org/10.1177/2055102917726202...
).

Sob a ótica do pensamento complexo(1111. Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5ª ed. Porto Alegre: Sulina; 2015.), no processo de introspecção tem-se um sistema fechado como em qualquer objeto inanimado, no qual a ausência de fluxo energético provocaria desregulação e rápido enfraquecimento. Assim, em analogia a tal sistema, o sofrimento, acentuado pelo não cuidado, coopera para que os usuários aumentem a desvalorização diante da sua própria existência e potencializem os pensamentos de morte. Estes podem se tornar cada vez mais recorrentes e se manifestam, através das falas, pelo desejo de não mais existir e como possibilidade de livrar-se da angústia e dores intensas. A intenção suicida em decorrência do sentimento de desvalorização também foi sinalizada por um estudo mexicano, realizado com 13.198 adolescentes, cujos achados apontaram a falta de sentido para a continuidade da vida e a ideação suicida relacionada à baixa autoestima por 25.6% da amostra(1616. Chavez-Ayala R, Orozco-Núñez E, Sánchez-Estrada M, Hernández-Girón C. Violencia y salud mental asociados a pensar o haber intentado emigrar internacionalmente por adolescentes mexicanos. Cad Saúde Pública. 2017;33(6):1-14. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00119516
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00119...
).

O desequilíbrio instigado pelo não cuidado pode agir enquanto fator de risco para o suicídio. A partir do momento em que o cuidado não ocorre adequadamente, tende-se a precipitar novas e mais efetivas tentativas de suicídio, o que pode culminar no suicídio propriamente dito. Essa situação reforça que, devido à incompreensão e à rejeição em torno da morte há necessidade de treinamentos especializados nos serviços de saúde. Os dados desta pesquisa corroboram estudo francês realizado com jovens que tentaram suicídio, quando revela o despreparo profissional, bem como os sentimentos de angústia e impotência ante ao ato suicida(1717. Lachal J, Sibeoni MOJ, Moro MR, Revah-Levy A. Metasynthesis of youth suicidal behaviours: perspectives of youth, parents, and health care professionals. PLoS One. 2015;10(5):1-25. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0127359
https://doi.org/10.1371/journal.pone.012...
).

Em relação à segunda categoria, os relatos que expressam as vulnerabilidades das pessoas com comportamento suicida revelaram que, quando essas vulnerabilidades são acolhidas pelos profissionais de saúde, os usuários se percebem mais respeitados e valorizados em suas dores e, assim, mais fortalecidos. Esse acolhimento se dá pela disponibilidade do profissional para ouvir e acreditar no sofrimento alheio. Tal evidência também foi apreendida em pesquisa brasileira, realizada no Hospital das Clínicas do Triângulo Mineiro, que relaciona o acolhimento, o respeito e o interesse pelo cuidado por parte dos profissionais, refletindo-se na confiança depositada pelos pacientes na equipe de saúde e consequentemente na adesão ao tratamento(1818. Silva PL, Paiva L, Faria VB, Ohl RIB, Chavaglia SRR. Triage in an adult emergency service: patient satisfaction. Rev Esc Enferm USP. 2016;50(3):427-33. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420160000400008
http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342016...
).

A partir da interação entre profissionais e usuários tem-se uma maior aproximação e reconhecimento recíproco que, ao contrário dos sistemas fechados, torna cada vez mais rico e vasto o fenômeno da auto-organização, fazendo com que os usuários retornem para conversar e participem mais assiduamente às consultas, reuniões e/ou quaisquer atividades relacionadas ao seu tratamento. Pesquisa internacional sobre vinculação em saúde, realizada com 119 respondentes, mostrou que 67% dos participantes consideraram que as interações positivas entre profissionais e usuários facilitaram a boa comunicação, a empatia e principalmente o valor do cuidado centrado no paciente, favorecendo assim o sentimento de confiança relacionado ao tratamento e adesão à terapêutica(1919. Maunder RG, Hunter JJ. Can patients be “attached” to healthcare providers? An observational study to measure attachment phenomena in patient-provider relationships. BMJ Open. 2016;6(1):1-11. doi: http://dx.doi.org/10.1136/bmjopen-2016-011068
http://dx.doi.org/10.1136/bmjopen-2016-0...
).

O acolhimento e o vínculo revelam-se como práticas de um sistema auto-eco-organizador que remonta, de complexidade em complexidade(1111. Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5ª ed. Porto Alegre: Sulina; 2015.), o cuidado em saúde. Conforme os dados, dessa forma, os usuários se sentem mais felizes, encorajados e capazes de vislumbrar novas perspectivas. De fato, estudos internacionais sobre acolhimento e interação, envolvendo pacientes psiquiátricos, profissionais de saúde e estudantes revelaram que a partir das interações positivas em saúde, os pacientes demonstraram mais felicidade e entusiasmo, incluindo o encorajamento para lidar melhor com as limitações relacionados ao adoecimento, contribuindo assim, para o direcionamento de novas expectativas diante da vida(2020. Palacios-Ceña D, Martín-Tejedor EA, Elías-Elispuru A, Garate-Samaniego A, Pérez-Corrales J, García-García E. The impact of a short-term cohousing initiative among schizophrenia patients, high school students, and their social context: a qualitative case study. PLoS One. 2018;13(1):1-20. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0190895
https://doi.org/10.1371/journal.pone.019...
-2121. Drake RE, Whitley R. Recovery and severe mental illness: description and analysis. Can J Psychiatr. 2014;59(5):236-42. doi: https://doi.org/10.1177/070674371405900502
https://doi.org/10.1177/0706743714059005...
).

Assim sendo, a desmotivação e a desesperança mencionadas como consequências do não cuidado às pessoas com comportamento suicida, dão lugar ao estímulo e ao desejo que, finalmente, ajustados a indivíduos reflexivos quanto à sua própria existência, e habilidosos para empreenderem mudanças às suas vidas, podem abrir-se a realidades diferentes. Como consequência, atividades que antes pareciam impossíveis de serem realizadas tornam-se alcançáveis, despertando, nos usuários desta pesquisa, a aspiração para o trabalho, para os estudos e para a continuidade da vida.

Implicações positivas, relacionadas à melhora na autoestima, com estímulos para compreender melhor o adoecimento e promoverem mudanças na forma de pensar e agir, sobretudo, relacionadas à discriminação quanto à doença também foram observadas em 40 pacientes diagnosticados com esquizofrenia, no Hospital Psiquiátrico Vrapče, Zagreb, Croácia. Após os cuidados recebidos na psicoterapia de grupo, esses pacientes sentiram-se mais empoderados e esperançosos diante da vida(2222. Ivezić SS, Sesar MA, Mužinić L. Effects of a group psychoeducation program on self-stigma, empowerment and perceived discrimination of persons with schizophrenia. Psychiatr Danub. 2017;29(1):66-73.-2323. Al-Harrasi A, Maqbali MA, Al-Sinawi H. Surviving a suicide attempt. Oman Med J. 2016;31(5):378-80. doi: 10.5001/omj.2016.74
https://doi.org/10.5001/omj.2016.74...
).

Os dados revelam que quando os usuários recebem um cuidado humanizado, eles se percebem mais integrados e motivados para o próprio cuidado, o qual é expresso na preocupação com a continuidade do tratamento. O autocuidado consiste em realizar exames, retomar o cuidado com a aparência e abrir-se para eventual progresso na concepção complexa da noção vibrante de sujeito, a partir das ações, interações e retroações com o meio. O desenvolvimento do autocuidado após o período de adaptação ao tratamento, bem como a motivação para a melhora da autoimagem também foram destacados em estudo realizado com 33 mulheres ostomizadas atendidas em um centro de referência no Rio Grande do Norte, Brasil(2424. Ferreira EC, Barbosa MH, Sonobe HM, Barichello E. Self-esteem and health-related quality of life in ostomized patients. Rev Bras Enferm. 2017;70(2):271-8. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0161
http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2016...
).

Na percepção dos participantes deste estudo, no decorrer do tempo e os estímulos que recebem, os usuários passam a querer mais informações sobre o que sentem e, a partir do que apreendem sobre o cuidado, também desejam compartilhar suas experiências com outras pessoas em situações semelhantes de sofrimento, como em um processo dinâmico e contínuo, a fim de ajudar a diminuir suas dores. O desejo de compreender sobre o adoecimento, com repercussões para o autocuidado, e o compartilhamento de experiências no sentido de prevenir ou evitar o sofrimento em outrem, também foi evidenciado em pesquisa brasileira sobre prevenção do pé diabético(2525. Bezerra FS, Castro FM, Cesconetto PJSS, Arruda CAM, Fernandes VO, Aragão ML, et al. Os cuidados essenciais com os pés: percepções de diabéticos ulcerados. Cad ESP [Internet]. 2014 [cited Mar 19, 2018];8(2):1-11. Disponível em: https://cadernos.esp.ce.gov.br/index.php/cadernos/article/download/109/89
https://cadernos.esp.ce.gov.br/index.php...
).

À medida que se sentiram mais fortalecidos pelo cuidado e com a noção de organização que vai além das necessidades meramente biológicas, os usuários participantes desta pesquisa referem que os pensamentos e/ou tentativas de suicídio diminuem ou cessam. O comportamento suicida pode não desaparecer, mas com o cuidado é possível reduzir a ideação suicida, tendo-se mais recursos para que a pessoa se erga, sustente e siga em frente, promovendo mudanças importantes para a manutenção da vida. Pesquisa realizada com 473 mulheres e 207 homens em um hospital dia da Cracóvia, na Polônia, mostrou a redução ou cessação da ideação suicida após 12 meses de cuidados psicoterápicos em grupo e individual, com êxito para 84,3% das mulheres e 77,5% dos homens(2626. Rodziński P, Sobański JA, Rutkowski K, Cyranka K, Murzyn A, Dembińska, et al. Effectiveness of therapy in terms of reduction of intensity and elimination of suicidal ideation in day hospital for the treatment of neurotic and behavioral disorders. Psychiatr Pol. 2015;49(3):489-502. doi: 10.12740/PP/29837
https://doi.org/10.12740/PP/29837...
).

A partir do olhar para os processos interacionais entre usuários e profissionais de saúde no que diz respeito à assistência prestada às pessoas com comportamento suicida no âmbito da RAPS, foi possível explicitar, na perspectiva deste estudo, fenômenos que se interconectam e se complementam. O não acolhimento, na eminência do suicídio, intensifica a introspecção, a desmotivação e a desesperança, aumentando a dificuldade para expor anseios. Por outro lado, na pluralidade do acolhimento, estabelecem-se a disponibilidade e o vínculo possibilitando a abertura para a continuidade da vida e a redução do risco de suicídio.

Diante das implicações da qualidade do cuidado no âmbito da RAPS para o bem-estar das pessoas com comportamento suicida, cabe ressaltar o papel fundamental dos profissionais que atuam nos espaços de saúde. Desta forma, urge uma gestão que prime pela implementação de práticas pautadas na integralidade, no protagonismo dos usuários e na promoção do cuidado na RAPS(2727. Zeferino MT, Cartana MHF, Fialho MB, Huber MZ, Bertoncello KCG. Health workers’ perception on crisis care in the psychosocial care network. Esc Anna Nery. 2016;20(3):1-7. doi: http://dx.doi.org/10.5935/1414-8145.20160059
http://dx.doi.org/10.5935/1414-8145.2016...
), com vistas ao desafio do pensamento complexo que recusa a simplificação dos fenômenos nos modos de fazer do humano.

Embora esta pesquisa apresente como limitação, não estabelecer relação de causa-efeito no que tange às implicações da qualidade de cuidado na RAPS, tendo-se em vista a natureza da pesquisa e a multicausalidade do comportamento suicida, disponibiliza subsídios para a sensibilização de gestores e profissionais, contribuindo para a reflexão acerca de estratégias de prevenção do suicídio no âmbito da atenção psicossocial. Além disso, alerta para a necessidade de uma gestão em saúde comprometida com o acolhimento e cuidado às pessoas em risco de suicídio.

CONCLUSÃO

As implicações da assistência prestada às pessoas com comportamento suicida no âmbito da rede de atenção psicossocial, na perspectiva de usuários e profissionais de saúde apresentam facetas negativas e positivas inerentes à complexidade das relações e interações entre os indivíduos. Dessa forma, ao não se sentirem acolhidos na RAPS, os usuários percebem-se introspectivos, desmotivados e desesperançosos, o que os torna mais fechados em si mesmos, fazendo-os, consequentemente, exporem menos ou nada sobre seus anseios e expectativas, em decorrência de uma visão reducionista de mundo que se apresenta, muitas vezes por atitudes dos profissionais de saúde.

Assistimos a condutas de negligência e desrespeito praticadas por profissionais que deveriam estar disponíveis para o cuidado, reforçando assim, a sensação de desalento, a falta de motivos para continuar a vida e, com isso, mais vulnerabilidades para o suicídio, sobretudo, considerando que tais usuários já apresentam um sofrimento psíquico evidenciado pelo comportamento suicida.

Esta pesquisa mostrou que em situações de acolhimento, disponibilidade, escuta interessada e consequente vinculação entre profissionais e usuários tem-se o sentimento de valorização e melhora da autoestima. A partir disso, as pessoas com comportamento suicida abrem-se para as infinitas possibilidades dos sistemas complexos, sentem-se mais fortalecidas, protegidas e felizes, acreditam que são capazes de pensar em novos caminhos e sentidos para a vida, despertam para o cuidado consigo mesmas e para com outros, a ponto de reduzirem os pensamentos de morte e/ou as tentativas de suicídio.

Nessa perspectiva, é possível compreender a importância de profissionais bem preparados e qualificados para o acolhimento e cuidado às pessoas em risco de suicídio. Para isso, torna-se imprescindível o direcionamento de ações que instiguem, no âmbito dos serviços que integram a RAPS, práticas de cuidado éticas, respeitosas e sensíveis às dores do outro.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Curtin SC, Warner M, Hedegaard H. Increase in suicide in the United States, 1999-2014. NCHS Data Brief [Internet]. 2016 [cited 28 Jan 2018];(241):1-8. Available from: https://www.cdc.gov/nchs/data/databriefs/db241.pdf
    » https://www.cdc.gov/nchs/data/databriefs/db241.pdf
  • 2
    Machado DB, Santos DN. Suicídio no Brasil, de 2000 to 2012. J Bras Psiquiatr. 2015;64(1):45-54. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0047-2085000000056
    » http://dx.doi.org/10.1590/0047-2085000000056
  • 3
    Silveira RE, Santos AS, Ferreira LA. Impact of morbi-mortality and expenses with suicide in Brazil from 1998 to 2007. Rev Online Pesqui Cuid Fundam. 2012;4(4):33-42. doi: http://dx.doi.org/10.9789/2175-5361.2012.v4i4.3033-3042
    » http://dx.doi.org/10.9789/2175-5361.2012.v4i4.3033-3042
  • 4
    Fraga WS, Massuquetti A, Godoy MR. Os determinantes socioeconômicos do suicídio: um estudo para os municípios do Brasil e do Rio Grande do Sul. Rev Econ. 2016;18(2):1-37. doi: https://doi.org/10.22409/economica.18i2.p300
    » https://doi.org/10.22409/economica.18i2.p300
  • 5
    Reyes-Tovilla JE, Hernández-Yánez HD, Juárez-Rojop I, Tovilla-Zárate CA, López-Narváez L, Villar-Soto M, et al. Psychological evaluation of impulsive/premeditated aggression and associated factors: a cross-sectional study in users of health services in Tabasco, Mexico. Psiquiatr Salud Ment. 2016;39(1):19-24. doi: https://doi.org/10.17711/SM.0185-3325.2015.064
    » https://doi.org/10.17711/SM.0185-3325.2015.064
  • 6
    Oliveira MIV, Bezerra Filho JG, Gonçalves-Feitosa RF. Tentativas de suicídio atendidas em unidades públicas de saúde de Fortaleza-Ceará, Brasil. Rev Salud Pública. 2014;16(5):683-96. doi: http://dx.doi.org/10.15446/rsap.v16n5.40138
    » http://dx.doi.org/10.15446/rsap.v16n5.40138
  • 7
    Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n. 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde [Internet]. Brasília; 2011 [citado 27 dez. 2019]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html
    » http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html
  • 8
    Ramos DKR, Guimarães J, Mesquita SKC. Difficulties in the mental health network and psychiatric readmissions: discussing possible relationships. Cogitare Enferm. [Internet]. 2014 [cited 30 Jan 2018];19(3):553-60. Available from: https://revistas.ufpr.br/cogitare/article/view/35382/23243
    » https://revistas.ufpr.br/cogitare/article/view/35382/23243
  • 9
    Freitas APA, Borges LM. Do acolhimento ao encaminhamento: o atendimento às tentativas de suicídio nos contextos hospitalares. Estud Psicol (Natal). 2017;22(1):50-60. doi: https://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20170006
    » https://dx.doi.org/10.22491/1678-4669.20170006
  • 10
    Cunha KS, Andrade SR, Erdmann AL. University management nurse: a grounded theory. Rev Latino Am Enfermagem. 2018;26:e2980. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1518-8345.2199.2980
    » http://dx.doi.org/10.1590/1518-8345.2199.2980
  • 11
    Morin E. Introdução ao pensamento complexo. 5ª ed. Porto Alegre: Sulina; 2015.
  • 12
    Carvalho S, organizadora. Abordagem multiprofissional na prevenção do suicídio sob a ótica dos técnicos e da avaliação dos usuários do Núcleo de Estudo e Prevenção do Suicídio – NEPS [Internet]. Salvador: Sanar; 2019 [citado 2018 jan. 17]. Disponível em: https://www.editorasanar.com.br/images/d/EBOOK_setembro-amarelo-abordagem-multiprofissional-na-prevencao-do-suicidio.pdf
    » https://www.editorasanar.com.br/images/d/EBOOK_setembro-amarelo-abordagem-multiprofissional-na-prevencao-do-suicidio.pdf
  • 13
    Corbin J, Strauss A. Basics of qualitative research: techniques and procedures for developing Grounded Theory. 4th ed. Los Angeles: Sage; 2015
  • 14
    Umeh NI, Ajegba B, Buscetta AJ, Abdallah KE, Minniti CP, Bonham VL. The psychosocial impact of leg ulcers in patients with sickle cell disease: I don’t want them to know my little secret. PLoS One. 2017;12(10):1-13. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0186270
    » https://doi.org/10.1371/journal.pone.0186270
  • 15
    Bantjes J. Don’t push me aside, doctor: suicide attempters talk about their support needs, service delivery and suicide prevention in South Africa. Health Psychol. 2017;4(2):1-9. doi: https://doi.org/10.1177/2055102917726202
    » https://doi.org/10.1177/2055102917726202
  • 16
    Chavez-Ayala R, Orozco-Núñez E, Sánchez-Estrada M, Hernández-Girón C. Violencia y salud mental asociados a pensar o haber intentado emigrar internacionalmente por adolescentes mexicanos. Cad Saúde Pública. 2017;33(6):1-14. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00119516
    » http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00119516
  • 17
    Lachal J, Sibeoni MOJ, Moro MR, Revah-Levy A. Metasynthesis of youth suicidal behaviours: perspectives of youth, parents, and health care professionals. PLoS One. 2015;10(5):1-25. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0127359
    » https://doi.org/10.1371/journal.pone.0127359
  • 18
    Silva PL, Paiva L, Faria VB, Ohl RIB, Chavaglia SRR. Triage in an adult emergency service: patient satisfaction. Rev Esc Enferm USP. 2016;50(3):427-33. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420160000400008
    » http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420160000400008
  • 19
    Maunder RG, Hunter JJ. Can patients be “attached” to healthcare providers? An observational study to measure attachment phenomena in patient-provider relationships. BMJ Open. 2016;6(1):1-11. doi: http://dx.doi.org/10.1136/bmjopen-2016-011068
    » http://dx.doi.org/10.1136/bmjopen-2016-011068
  • 20
    Palacios-Ceña D, Martín-Tejedor EA, Elías-Elispuru A, Garate-Samaniego A, Pérez-Corrales J, García-García E. The impact of a short-term cohousing initiative among schizophrenia patients, high school students, and their social context: a qualitative case study. PLoS One. 2018;13(1):1-20. doi: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0190895
    » https://doi.org/10.1371/journal.pone.0190895
  • 21
    Drake RE, Whitley R. Recovery and severe mental illness: description and analysis. Can J Psychiatr. 2014;59(5):236-42. doi: https://doi.org/10.1177/070674371405900502
    » https://doi.org/10.1177/070674371405900502
  • 22
    Ivezić SS, Sesar MA, Mužinić L. Effects of a group psychoeducation program on self-stigma, empowerment and perceived discrimination of persons with schizophrenia. Psychiatr Danub. 2017;29(1):66-73.
  • 23
    Al-Harrasi A, Maqbali MA, Al-Sinawi H. Surviving a suicide attempt. Oman Med J. 2016;31(5):378-80. doi: 10.5001/omj.2016.74
    » https://doi.org/10.5001/omj.2016.74
  • 24
    Ferreira EC, Barbosa MH, Sonobe HM, Barichello E. Self-esteem and health-related quality of life in ostomized patients. Rev Bras Enferm. 2017;70(2):271-8. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0161
    » http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0161
  • 25
    Bezerra FS, Castro FM, Cesconetto PJSS, Arruda CAM, Fernandes VO, Aragão ML, et al. Os cuidados essenciais com os pés: percepções de diabéticos ulcerados. Cad ESP [Internet]. 2014 [cited Mar 19, 2018];8(2):1-11. Disponível em: https://cadernos.esp.ce.gov.br/index.php/cadernos/article/download/109/89
    » https://cadernos.esp.ce.gov.br/index.php/cadernos/article/download/109/89
  • 26
    Rodziński P, Sobański JA, Rutkowski K, Cyranka K, Murzyn A, Dembińska, et al. Effectiveness of therapy in terms of reduction of intensity and elimination of suicidal ideation in day hospital for the treatment of neurotic and behavioral disorders. Psychiatr Pol. 2015;49(3):489-502. doi: 10.12740/PP/29837
    » https://doi.org/10.12740/PP/29837
  • 27
    Zeferino MT, Cartana MHF, Fialho MB, Huber MZ, Bertoncello KCG. Health workers’ perception on crisis care in the psychosocial care network. Esc Anna Nery. 2016;20(3):1-7. doi: http://dx.doi.org/10.5935/1414-8145.20160059
    » http://dx.doi.org/10.5935/1414-8145.20160059
  • *
    Extraído da tese: “Cuidado às pessoas com comportamento suicida na RAPS: modelo teórico fundamentado na GT”, Universidade Federal da Bahia, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    16 Set 2019
  • Aceito
    23 Jan 2020
Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: reeusp@usp.br