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O acesso à saúde pela população em situação de rua da Avenida Paulista: barreiras e percepções

Acceso a la atención médica para las personas sin hogar en la Avenida Paulista: barreras y percepciones

RESUMO

Objetivo

Descrever a percepção de pessoas em situação de rua que permanecem na Avenida Paulista da cidade de São Paulo em relação ao acesso aos dispositivos de saúde da região.

Método

Pesquisa de abordagem qualitativa, realizada com 10 pessoas que se encontravam em situação de rua na Avenida Paulista em janeiro de 2019. Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada, e a análise dos achados se deu pela hermenêutica–dialética. Criaram-se duas categorias de resultados: Serviços de saúde acessados na região pela população em situação de rua; Barreiras de acesso à saúde pela PSR da Avenida Paulista de São Paulo. Este estudo obteve aprovação ética.

Resultados

A procura por serviços de emergência se dá como a principal porta de entrada para as pessoas em situação de rua da região, e entre as barreiras enfrentadas, o preconceito é colocado como o principal fenômeno.

Conclusão

É preciso considerar as especificidades dessa população, compreender suas concepções do processo de saúde-doença e suas trajetórias, para que, dessa forma, possa-se aprimorar os serviços e garantir o acesso à saúde deste grupo vulnerável e em crescimento.

Pessoas em Situação de Rua; Acesso aos Serviços de Saúde; Barreiras ao Acesso aos Cuidados de Saúde; Vulnerabilidade Social

RESUMEN

Objetivo

Describir la percepción de las personas sin hogar que permanecen en la Avenida Paulista de la ciudad de São Paulo con relación al acceso a dispositivos de salud en la región.

Método

Investigación cualitativa, realizada con 10 personas sin hogar en la Avenida Paulista en enero de 2019. Los datos se recolectaron a través de entrevistas semiestructuradas, y el análisis de los hallazgos se realizó mediante hermenéutica-dialéctica. Se crearon dos categorías de resultados: Servicios de salud a los que accede en la región la población sin hogar; Barreras al acceso a la salud. Este estudio obtuvo la aprobación ética.

Resultados

La búsqueda de servicios de emergencia se presenta como la principal puerta de entrada para las personas sin hogar en la región, y entre las barreras enfrentadas, el prejuicio se ubica como el fenómeno principal.

Conclusión

Es necesario considerar las especificidades de esta población, comprender sus concepciones del proceso salud-enfermedad y sus trayectorias, para que, de esta manera, se pueda mejorar los servicios y garantizar el acceso a la salud de este grupo vulnerable y en crecimiento.

Personas sin Hogar; Accesibilidad a los Servicios de Salud; Barreras de Acceso a los Servicios de Salud; Vulnerabilidad Social

ABSTRACT

Objective

To describe the perceptions of homeless people on Avenida Paulista in the city of São Paulo regarding access to health devices in the region.

Method

This is a qualitative research conducted with 10 people who were homeless on Avenida Paulista in January 2019. Data were collected through semi-structured interviews, and analysis of the findings was made using hermeneutics-dialectics. Two categories of results were created: Health services accessed in the region by homeless people; Barriers to health access faced by homeless people on Avenida Paulista, São Paulo. This study obtained ethical approval.

Results

Seeking emergency services occurs as the main gateway for homeless people in the region, and among the barriers faced, prejudice is placed as the main phenomenon.

Conclusion

It is necessary to consider the specificities of this population, understand their conceptions of health-disease and their trajectories so that services can be improved and access to health for this vulnerable and growing group can be guaranteed.

Homeless Persons; Health Services Accessibility; Barriers to Access of Health Services; Social Vulnerability

INTRODUÇÃO

Tomar o espaço das ruas como morada não é caso recente; desde as cidades pré-industriais, constatava-se a existência da população em situação de rua (PSR). “Após a Revolução Industrial, no entanto, esse fenômeno vem aumentando, relacionado ao processo de ruptura social decorrente das mudanças no mundo da produção econômica, desde o crescimento do capitalismo – sobretudo da mudança do capitalismo financeiro e do neoliberalismo – e as agudas desigualdades sociais produzidas nesse processo”11. Bursztyn M. Da pobreza à miséria, da miséria à exclusão: o caso das populações de rua. In: Bursztyn M, organizador. No meio da rua: nômades, excluídos e viradores. Rio de Janeiro: Garamond; 2000. p. 27-52..

“O rebaixamento social imposto pelas novas formas de produção econômica modificou o perfil das populações de rua. Aos grupos de moradores de rua de décadas atrás, compostos de pedintes, hippies e egressos de hospitais psiquiátricos, somam-se hoje novos integrantes: desempregados e subempregados, adultos desocupados”11. Bursztyn M. Da pobreza à miséria, da miséria à exclusão: o caso das populações de rua. In: Bursztyn M, organizador. No meio da rua: nômades, excluídos e viradores. Rio de Janeiro: Garamond; 2000. p. 27-52., consequências do desemprego em massa que passou a aumentar o número de pessoas “invisíveis” nos grandes centros.

O Ministério do Desenvolvimento Social e de Combate a Fome publicou, em 2008, a Pesquisa Nacional sobre a PSR, que identificou, nas 71 cidades em que foi realizada, 31.922 pessoas adultas em situação de rua22. Brasil. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação, Secretaria Nacional de Assistência Social. Rua: aprendendo a contar: pesquisa nacional sobre a população em situação de rua. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; 2009 [cited 2019 Feb 12]. Available from: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Livros/Rua_aprendendo_a_contar.pdf
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. Somando esse valor com os números encontrados em pesquisas municipais realizadas em São Paulo, Recife, Porto Alegre e Belo Horizonte, chegamos a aproximadamente 50 mil pessoas que se encontram nessa condição, sobretudo nas metrópoles33. Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas. Pesquisa censitária da população em situação de rua, caracterização socioeconômica da população adulta em situação de rua e relatório temático de identificação das necessidades desta população na cidade de São Paulo: sumário executivo. São Paulo: Secretaria Municipal de Assistência Social e Desenvolvimento; 2015 [cited 2019 Feb 12 [. Available from: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/00-publicacao_de_editais/0003.pdf
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Especificamente com relação a São Paulo, publicações recentes, jornais de grande circulação alertam sobre esse crescente fato sendo observado na cidade. Segundo dados municipais, das 15.905 pessoas vivendo nas ruas na cidade, 3.864 encontram-se na subprefeitura da Sé, região que abrange a Avenida Paulista, a qual possui aproximadamente 206 pessoas nesta condição33. Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas. Pesquisa censitária da população em situação de rua, caracterização socioeconômica da população adulta em situação de rua e relatório temático de identificação das necessidades desta população na cidade de São Paulo: sumário executivo. São Paulo: Secretaria Municipal de Assistência Social e Desenvolvimento; 2015 [cited 2019 Feb 12 [. Available from: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/00-publicacao_de_editais/0003.pdf
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, considerada uma das vias mais importantes da cidade, notável centro financeiro, cultural e também um dos pontos turísticos mais visitados, evidenciando a pobreza, a exclusão social e demais problemas inerentes às grandes metrópoles44. Cordeiro AT, Mello SCB, Bastos AFS. [This is our beach! Appropriation and use of paulista avenue in the context of urban development policies]. urbe. Rev Bras Gest. Urbana. 2019;11:e20180104. Portuguese. https://doi.org/10.1590/2175-3369.011.e20180104
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A Política Nacional para a PSR, instituída no Brasil por meio do Decreto no 7.053 de 2009, define tal segmento como o grupo de indivíduos que compartilha a vivência da pobreza extrema, relações familiares interrompidas ou fragilizadas e a falta de moradia habitual e que, devido a essa condição, utilizam os logradouros públicos como forma de moradia e subsistência, de forma provisória ou definitiva, assim como os serviços da assistência social que ofertam vagas de pernoite ou como habitação transitória55. Brasil. Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial União, Brasília, DF, 2009 Dec 24..

Com relação à saúde, uma das preocupações é o baixo índice da procura e de acesso aos serviços da rede pública, sobretudo pelas pessoas que usam álcool e outras drogas em situação de extrema vulnerabilidade e riscos66. Brasil. Ministério da Saúde. Coordenação Nacional de Saúde Mental,. Consultórios de Rua do SUS: material de trabalho para a II Oficina Nacional de Consultórios de Rua do SUS. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2010 [cited 2019 Feb 12 [. Available from: http://prattein.com.br/home/images/stories/PDFs/consultorio_rua.pdf
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. Para abordar esta questão, o Consultório na Rua (CnaR), implementado na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), realiza a ponte entre a rua e os serviços de saúde, buscando atuar frente aos diferentes problemas e necessidades de saúde da PSR, inclusive na busca ativa e cuidado aos usuários de álcool, crack e outras drogas. Os CnaR são formados por equipes multiprofissionais, desenvolvendo ações compartilhadas e integradas também com as equipes dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços de Urgência e Emergência e de outros pontos de atenção, de acordo com a necessidade do sujeito77. Brasil. Ministério da Saúde. Manual sobre o cuidado à saúde junto à população em situação de rua. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2012[cited 2019 Feb 12 [. Available from: http://189.28.128.100/dab/docs/publicacoes/geral/manual_cuidado_populalcao_rua.pdf
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O que outrora era tido como invisibilidade, devido à inexistência de políticas públicas que garantissem o acesso aos direitos fundamentais pela PSR, transforma-se em matéria de exigência para que seja cumprida o texto da legislação vigente por meio da implementação de serviços e ações e a garantia de acesso dos usuários aos serviços de saúde88. Hino P, Santos JO, Rosa AS. People living on the street from the health point of view. Rev Bras Enferm. 2018;71(supp 1):684-92. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0547
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Acesso é um conceito complexo, variando entre autores e se transformando ao longo do tempo e de acordo com o contexto, usado de forma imprecisa e muito pouco claro quando se trata do acesso à utilização de dispositivos de saúde. Até mesmo a terminologia adotada varia. Alguns autores empregam o substantivo acessibilidade, condição do que é acessível, enquanto outros elegem a palavra acesso, como feito de entrada e ingresso, ambas as expressões sugerem o nível de facilidade com que as pessoas conseguem atendimento de saúde99. Donabedian A. An introduction to quality assurance in health care. New York: Oxford University Press; 2003.

10. Barata RB. Acesso e uso de serviços de saúde. Sao Paulo Perspec. [Internet]. 2008 [cited 2019 Feb 12];22(2):19-29. Available from: http://produtos.seade.gov.br/produtos/spp/v22n02/v22n02_02.pdf
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-1111. McIntyre D, Thiede M, Birch S. Access as a policy-relevant concept in low- and middle-income countries. Health Econ Policy Law. 2009;4(Pt 2):179-93. https://doi.org/10.1017/S1744133109004836
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O acesso à saúde e o uso de dispositivos de saúde dependem de uma série de aspectos que podem ser divididos em determinantes da oferta e determinantes da demanda1010. Barata RB. Acesso e uso de serviços de saúde. Sao Paulo Perspec. [Internet]. 2008 [cited 2019 Feb 12];22(2):19-29. Available from: http://produtos.seade.gov.br/produtos/spp/v22n02/v22n02_02.pdf
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. Enquanto, do lado da oferta, o mais importante é a existências dos serviços, do lado da demanda, o principal fator do uso dos dispositivos de saúde é o estado ou a necessidade de saúde. Ou seja, o acesso é determinado pela interação entre os domínios: disponibilidade definida pela prestação de serviços no local e horário certos para atender às necessidades prevalecentes da população; a acessibilidade sendo as taxas, custos de transporte e perda de produtividade; a aceitabilidade apresentada como a ligação entre as atitudes do profissional e do usuário do serviço e as expectativas um do outro1010. Barata RB. Acesso e uso de serviços de saúde. Sao Paulo Perspec. [Internet]. 2008 [cited 2019 Feb 12];22(2):19-29. Available from: http://produtos.seade.gov.br/produtos/spp/v22n02/v22n02_02.pdf
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-1111. McIntyre D, Thiede M, Birch S. Access as a policy-relevant concept in low- and middle-income countries. Health Econ Policy Law. 2009;4(Pt 2):179-93. https://doi.org/10.1017/S1744133109004836
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Devido a essa problemática, este estudo se coloca como um importante meio de entender a dinâmica da PSR e as características dessas pessoas em relação às suas experiências com a saúde, em uma região tão populosa e relevante como a Avenida Paulista, a fim de oferecer aparato para aprimoramento tanto das políticas públicas existentes quanto para a produção científica, ainda escassa neste contexto.

Sendo assim, o presente artigo tem como objetivo descrever a percepção das pessoas em situação de rua que permanecem na Avenida Paulista no município de São Paulo em relação ao acesso aos dispositivos de saúde.

MÉTODO

TIPO DE ESTUDO

Pesquisa de abordagem qualitativa, com análise pelo referencial teórico da hermenêutica-dialética. A configuração qualitativa nesta pesquisa se justifica pela necessidade de uma metodologia que incorpora os aspectos históricos, culturais e ideológicos trazidos pelo tema em questão, o que, segundo Minayo1212. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12th ed. São Paulo: Hucitec; 2010., não pode ser contido apenas em uma fórmula numérica ou em um dado estatístico. O método qualitativo é o que se aplica ao estudo da história, das relações, das representações, das crenças, das percepções e das opiniões, produtos das interpretações que os humanos fazem a respeito de como vivem, constroem seus artefatos e a si mesmos, sentem e pensam1212. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12th ed. São Paulo: Hucitec; 2010..

A abordagem hermenêutica se desenvolve na busca de diferenças e semelhanças entre o contexto dos autores e o contexto do investigado. Explora as definições de situação do ator, supõe o compartilhamento entre o mundo observado e os sujeitos, com o mundo da vida do investigador. Apoia a reflexão sobre o contexto histórico e produz um relato dos fatos em que os diferentes atores se sintam contemplados. Já a dialética busca nos fatos, na linguagem, nos símbolos e na cultura os núcleos obscuros e contraditórios para realizar uma crítica sobre eles. O pensamento dialético cria instrumentos e compreende que a análise dos significados deve ser colocada no chão das práticas sociais e ressaltar o condicionamento histórico das falas, relações e ações1212. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12th ed. São Paulo: Hucitec; 2010..

A articulação da hermenêutica com a dialética é, portanto, um importante caminho para fundamentar pesquisas qualitativas, pois ambas trazem a ideia do condicionamento histórico da linguagem, das relações e das práticas, partem do pressuposto de que não há observador imparcial e reúnem o poder para “aproximação da verdade” investigada. No entanto, enquanto a hermenêutica enfatiza o consenso, a mediação e o acordo, a dialética se orienta para a diferença, o contraste, o dissenso e a crítica1212. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12th ed. São Paulo: Hucitec; 2010..

CENÁRIO

O cenário da pesquisa foi a Avenida Paulista, São Paulo, SP, Brasil, e arredores, com pessoas em situação de rua que circulam nessa região. Inaugurada em 1981, a Avenida Paulista vem acompanhando o processo de mudança e desenvolvimento industrial, comercial e cultural durante mais de um século, possuindo grande visibilidade no âmbito internacional44. Cordeiro AT, Mello SCB, Bastos AFS. [This is our beach! Appropriation and use of paulista avenue in the context of urban development policies]. urbe. Rev Bras Gest. Urbana. 2019;11:e20180104. Portuguese. https://doi.org/10.1590/2175-3369.011.e20180104
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POPULAÇÃO

A população foi de 10 pessoas em situação de rua que circulam na Avenida Paulista. Os critérios de inclusão consistiram em pessoas em situação de rua, maiores de 18 anos, que foram identificadas como tal e abordadas no momento da coleta de dados e que aceitaram participar da pesquisa mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Foram excluídos aqueles que não apresentaram condições de entendimento das questões e ou não concluíram as respostas.

A amostragem se deu pela técnica de seleção em bola de neve de forma linear, em que o primeiro entrevistado indicou outro participante com o mesmo perfil para compor a amostra, assim sucessivamente. No total de 11 pessoas entrevistadas, uma delas foi excluída devido à incapacidade de concluir as respostas e entender o questionário, totalizando 10 participantes.

COLETA DE DADOS

Os dados foram coletados em janeiro de 2019 por meio de entrevista semiestrutrada, a qual, segundo Minayo1212. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12th ed. São Paulo: Hucitec; 2010., facilita a abordagem e assegura que os pressupostos da pesquisa serão cobertos na conversa.

O instrumento de pesquisa foi desenvolvido pelo próprio pesquisador e composto por 10 questões abertas que responderam aos objetivos da pesquisa: quando você se sente mal, o que você procura fazer? Em que ocasião você procura um dispositivo de saúde? Você conhece algum serviço de saúde aqui perto? Qual(is) dispositivo(s) de saúde você costuma acessar? Esse(s) dispositivo(s) costuma(m) atender as suas necessidades? O que faz com que você procure esse dispositivo? Você tem alguma dificuldade em acessar um dispositivo de saúde? Se sim, quais são as dificuldades? Você já foi abordado por algum técnico de alguma equipe de CnaR estando aqui? Como você acha que ter uma moradia, influenciaria no seu acesso à saúde?

Em conjunto, aplicou-se um questionário sociodemográfico, seguindo as três dimensões complementares de vulnerabilidade (vulnerabilidade individual, vulnerabilidade social e vulnerabilidade programática), determinantes para a produção do processo saúde/doença de forma coletiva1010. Barata RB. Acesso e uso de serviços de saúde. Sao Paulo Perspec. [Internet]. 2008 [cited 2019 Feb 12];22(2):19-29. Available from: http://produtos.seade.gov.br/produtos/spp/v22n02/v22n02_02.pdf
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As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas pelo pesquisador.

ANÁLISE E TRATAMENTO DOS DADOS

A análise dos dados se deu por meio da hermenêutica dialética, seguindo as fases propostas por Minayo1212. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12th ed. São Paulo: Hucitec; 2010., em que, por meio da ordenação e da classificação dos dados, foi possível agrupar tudo em número menor de unidade de sentido e buscar compreender e interpretar o que foi exposto como mais relevante e representativo pelo grupo estudado.

Criaram-se duas categorias principais de resultado: Serviços de saúde acessados na região pela PSR; Barreiras de acesso à saúde pela PSR da Avenida Paulista de São Paulo. Os depoimentos dos indivíduos entrevistados são apresentados nos resultados pela letra E, seguida do número de suas respectivas entrevistas (E001, E002), a fim de manter o anonimato deles. Para o tratamento e discussão dos achados, nos embasamos em políticas nacionais para a PSR, bem como na literatura científica.

ASPECTOS ÉTICOS

Este estudo foi conduzido com base na Resolução no 466/12 e aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP), sob o Parecer no 2.969.796/2019.

RESULTADOS

PARTICIPANTES

Dos 10 indivíduos entrevistados, nove eram do sexo masculino e apenas uma era do sexo feminino, sendo que cinco possuíam idade entre 20 e 40 anos, e os outros cinco, idades entre 40 e 60 anos; destes, quatro se autodeclararam brancos e seis como negros. Com relação à naturalidade, três eram naturais da grande São Paulo, três do interior do estado homônimo, três da Região Nordeste e uma pessoa da Região Norte. Em relação à escolaridade, uma pessoa referiu ter concluído o ensino superior, três pessoas declararam ter completado o ensino médio, duas relatam ter o ensino médio incompleto e quatro declaram possuir o ensino fundamental incompleto. Quanto ao estado civil, sete deles relatam ser solteiros, dois referiram ser separados e apenas um ser casado. No que diz respeito ao uso de substâncias psicoativas, três dos entrevistados referem ao uso apenas de álcool, seis referem ao uso de múltiplas substâncias como maconha, cocaína, crack e solventes e apenas um relata estar abstêmio.

SERVIÇOS DE SAÚDE ACESSADOS NA REGIÃO PELA PSR

Quando questionados sobre o que fazem quando se sentem mal fisicamente estando na rua, os entrevistados apresentam uma variedade de respostas que vai, desde procurar um serviço de saúde, intensificar o uso de substância, procurar um albergue e até mesmo não fazer coisa alguma. A resposta mais frequente é a procura por um serviço de emergência. Há, também, um desconhecimento sobre os serviços existentes na região e uma procura por serviços na região central da cidade, em que alguns referem que foram mais bem atendidos.

Eu só conheço o Redenção, inclusive eu vou lá semana que vem pra ser internado. Sei que eu fico um mês e saindo de lá eu consigo uma vaga fixa em um albergue (E001).

Já cheguei a passar mal, mas esperei passar (E001).

É que, na rua, você tem outras preocupações além da saúde, você tem fome e tem horário pra você ficar na porta de restaurante pra você comer, você tem que pedir. Aí, às vezes, você não tem tempo também, né? Aí você já se cansa, quer ficar ali deitado (E002).

Se eu ver que eu estou num estado bem mal, mal mesmo eu vou procurar o SAMU [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência], né (E002).

Eu costumo ir lá no AMA [Assistência Médica Ambulatorial] perto da cracolândia, lá é o melhor lugar pra você ir quando você está ruim, pra morador de rua assim. Vários médicos te atendem rápido (E004).

A gente só vai nas últimas, quando vê que não tem mais jeito. A gente nem lembra de ir no médico (E005).

Quando eu me sinto mal, eu vou pro centro de acolhida (E006).

Eu, quando quero atendimento de saúde, sabe onde eu vou? Eu vou no AMA e UBS [Unidades Básicas de Saúde] da Sé, pra mim, é o melhor atendimento que tem aqui desse grande centro, quando eu quero ser bem atendido, eu vou lá. Todas as vezes que eu fui, eu fui bem atendido (E007).

Eu sei que tem um serviço de saúde lá na Praça Princesa Isabel, aqui perto, eu não conheço (E008).

BARREIRAS DE ACESSO À SAÚDE PELA PSR DA AVENIDA PAULISTA DE SÃO PAULO

Em relação às barreiras apresentadas ao acessar ou tentar o acesso a um dispositivo de saúde, o preconceito é uma palavra que marca as respostas quanto a esse questionamento. Os encaminhamentos e a burocratização surgem como dado importante, assim como a demora em agendar um exame ou mesmo pela chegada de um serviço móvel de urgência. Quanto ao tratamento por conta de problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas, dois entrevistados trazem as suas experiências.

Querendo ou não, tem um preconceito. Tipo, esse aqui a gente chama ele de pai, porque ele é o mais velho aqui, ele é o nosso xodó, esses dias ele passou mal, teve uma convulsão às 10 da manhã, a gente ligou pro serviço de resgate, ambulância, ninguém veio. Nós é o quê? Morador de rua, não veio. Atravessamos pro outro lado porque começou a chover, aí ele teve outra convulsão, ligamos de novo, ninguém veio. Chegou a ambulância era quase 7 horas da noite, quase morreu (E003).

Você liga pra um atendimento público, e não querem te atender porque você é uma pessoa em situação de rua. Porque, se não pode dar o suporte básico pro morador de rua, de calçada, que a gente fala, então fecha tudo, eu penso assim. Agora se falasse que eu morava no prédio na Paulista, duvido que não vinha uns 3, 4 ou 5 resgate. Independente se é aqui na Paulista, se é em qualquer outro lugar, falou que é morador de rua, os caras somem (E003).

Eu fiquei um dia e uma noite em uma comunidade terapêutica, tinha um amigo comigo e eu disse “alemão, não gostei não. Vi uns percevejos descendo pela parede, de manhã fui tomar café e não era café, era chá”. O pão era de anteontem, aí eu disse “pronto, tô na cadeia”. Perguntei ao alemão se ele tinha gostado, e ele disse que não. Um muro do tamanho daquele prédio. Nunca fui preso, ia ficar agora? Nunca mais hei de botar o pé lá (E005).

A pessoa me aborda aqui, pega algumas informações minhas e depois fala que eu tenho que ir num postinho lá na Barra Funda ou proximidades, a pessoa tá em situação de rua aqui na Paulista e tem que ir andando até lá, aí chega e não tem ficha, perdeu ficha, não chegou, eu mesmo já passei raiva várias vezes (E007).

Aqui, em São Paulo, eu fui uma vez lá no [Complexo] Prates. Eu liguei naquele 156, aí dormi lá no albergue, minha perna tava vazando muito por causa da osteomielite, e eu esperei até de manhã pra passar no médico, mas eles não tiraram raio-x, não fizeram nada, nem exame de sangue. E eu sei mais ou menos o que tem que ser feito, e não foi feito nada. Então, eu também não fui mais (E008).

Em clínicas de recuperação evangélica, pelo amor de Deus, eles fazem da gente um escravo (...) eles querem que a gente trabalha, eles não dão uma atividade, uma conversa. Tem piscina, quadra, campo e eles não deixam por que acreditam que é pecado (E009).

Não tô fazendo tratamento, porque onde eu faço é do lado da cracolândia, e como é nessa região, eu sei que se eu for eu não vou voltar (...) são lugares que eu prefiro evitar (E009).

Pra eu fazer um exame de imagem, vai demorar um ano, pra eu fazer uma ressonância magnética da cabeça, até lá ela, já explodiu (E10).

DISCUSSÃO

Os resultados obtidos com base no questionário sociodemográfico são semelhantes aos dados do censo da PSR de São Paulo, que demonstram que a maioria desses indivíduos é do sexo masculino, migrantes, com uma idade média de 40 anos, vivem sozinhos e que fazem uso de substâncias psicoativas33. Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas. Pesquisa censitária da população em situação de rua, caracterização socioeconômica da população adulta em situação de rua e relatório temático de identificação das necessidades desta população na cidade de São Paulo: sumário executivo. São Paulo: Secretaria Municipal de Assistência Social e Desenvolvimento; 2015 [cited 2019 Feb 12 [. Available from: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/00-publicacao_de_editais/0003.pdf
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Já com relação à problemática do estudo, discutiremos os achados com base em três dimensões complementares a serem analisadas como determinantes para o acesso à saúde, sendo elas: vulnerabilidade individual, vulnerabilidade coletiva e vulnerabilidade programática. A primeira diz respeito às características demográficas e sociobiológicas dos indivíduos, a segunda, como as condições de inserção social dos indivíduos ou grupos no processo produtivo e reprodutivo da sociedade e a última, decorrente de características das políticas públicas e das respostas sociais aos problemas de saúde1010. Barata RB. Acesso e uso de serviços de saúde. Sao Paulo Perspec. [Internet]. 2008 [cited 2019 Feb 12];22(2):19-29. Available from: http://produtos.seade.gov.br/produtos/spp/v22n02/v22n02_02.pdf
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Frente ao que é exposto pela autora citada acima e os dados obtidos por meio da presente investigação, é percebido que a PSR se encontra em condição que a sujeita, de certa forma, a ter desvantagem nessas três dimensões: desde a situação de rua, o local onde permanecem ou circulam e as mazelas que os afetam por essa posição uma condição individual, o desemprego como marca de uma dimensão coletiva, até uma política pública que, apesar da existência de serviços específicos de atendimento a PSR, não consegue atingir a todos.

Um estudo aponta que, sobretudo, os grupos socioeconômicos mais baixos com frequência apresentam problemas com a qualidade da assistência recebida nos serviços de saúde1313. Monteiro CN, Beenackers M, Goldbaum M, Oldbaum M, Barros MBA, Gianini RJ, Cesar CLG, Mackenbach JP. Use, access, and equity in health care services in São Paulo, Brazil. Cad Saúde Pública. 2017;33(4):e00078015. https://doi.org/10.1590/0102-311x00078015
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. Neste sentido, podemos relacionar essas questões ao aumento significativo dessas pessoas e o despreparo dos profissionais em atender às demandas e especificidades desses indivíduos, além da descriminação ao qual são expostos, que abrange a dimensão da vulnerabilidade programática1414. Neves-Silva P, Martins GI, Heller L. “We only have access as a favor, don’t we?” The perception of homeless population on the human rights to water and sanitation. Cad Saúde Pública. 2018;34(3):e00024017. https://doi.org/10.1590/0102-311x00024017
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Em busca de permanecer longe das grandes cenas de uso e das ações truculentas realizadas por agentes do estado, a PSR que permanece na Avenida Paulista e região fica em um território onde prevalece à existência de serviços de saúde terciários e quaternários, que marca a fronteira entre as coordenadorias regionais de saúde e as áreas de abrangência de serviços da atenção primária como UBS que possuem equipes de CnaR, assim como de serviços de atenção especializada como os CAPS.

A partir da análise da categoria de percepção quanto ao acesso à saúde, é visto que cada pessoa em situação de rua estabelece seu próprio itinerário terapêutico. É entendido como itinerário terapêutico a busca por cuidados terapêuticos e as práticas individuais e socioculturais de saúde em relação aos caminhos percorridos por esses indivíduos na tentativa de solucionarem seus problemas de saúde1515. Hallais JADS, Barros NFD. [Street Outreach Offices: visibility, invisibility, and enhanced visibility]. Cad Saúde Pública. 2015;31(7):1497-504. Portuguese. https://doi.org/10.1590/0102-311X00143114
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Por meio da narrativa dos entrevistados, é decorrente surgir a procura por um serviço de urgência e emergência, relato que aparece em sete das 10 entrevistas, demonstrando que a procura por um serviço de saúde é feita como última alternativa. Também é relatada a procura de serviços na região central de São Paulo, onde alguns referem ser mais bem atendidos. Procurar um centro de acolhida e intensificar o uso de substâncias também aparece como uma forma de lidar com uma questão de saúde, assim como não fazer nada e o admitir de um funcionamento de não procurar ajuda mesmo em qualquer situação.

Cinco dos 10 entrevistados referem desconhecer a existência de serviços de saúde nas proximidades ou mencionam serviços que ficam no centro de São Paulo. Quando relatam conhecer um serviço na região, mencionam a UBS Nossa Senhora do Brasil, sendo a que mais aparece nas falas dos inqueridos. O CAPS Adulto II Professor Luís da Rocha Cerqueira, um serviço próximo à Avenida Paulista, é citado apenas por um dos entrevistados.

Pelas falas, fica nítido o preconceito que os mesmos vivenciam diariamente. Tal fato é relatado por autores, que dizem que a PSR assinala como principal motivo para a discriminação, a sua própria condição. Características “como a sujeira, o mau cheiro e o efeito de drogas lícitas e ilícitas são, muitas vezes, determinantes para a precariedade no acolhimento ao PSR nos serviços de saúde”1515. Hallais JADS, Barros NFD. [Street Outreach Offices: visibility, invisibility, and enhanced visibility]. Cad Saúde Pública. 2015;31(7):1497-504. Portuguese. https://doi.org/10.1590/0102-311X00143114
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. Esse é o motivo sobreposto pela discriminação racial, geracional e de orientação sexual. Esse preconceito seguido de discriminação é sentido até mesmo dentro dos serviços de saúde, como é referido e sentido pelos entrevistados, e que é confirmado pela literatura científica1616. Varanda W, Adorno RDCF. Urbans discarded: discussing the homeless population complexity and the challenge for public health policies. Saúde Soc. 2004;13(1):56-69. Portuguese. https://doi.org/10.1590/S0104-12902004000100007
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17. Barata RB, Carneiro Junior N, Ribeiro, MCSDA, Silveira C. Health social inequality of the homeless in the city of São Paulo. Saúde Soc. 2015;24(suppl 1):215-17. https://doi.org/10.1590/s0104-12902015s01019
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-1818. Ramsay N, Hossain R, Moore M, Milo M, Brown A. Health care while homeless: barriers, facilitators, and the lived experiences of homeless individuals accessing health care in a Canadian regional municipality. Qual Health Res. 2019;29(13):1839-49. https://doi.org/10.1177/1049732319829434
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Os entrevistados apontam a burocracia no atendimento como um fator que dificulta o acesso, os encaminhamentos, a demora em conseguir realizar exames, distância de certos dispositivos e o ignorar do relato dos indivíduos quanto a seu estado de saúde. Isso faz com que muitos não voltem a procurar um serviço de saúde, recorrendo, apenas quando necessário, a um serviço de urgência e emergência.

Um estudo realizado no Canadá aponta como barreiras de acesso aos serviços de saúde à PSR a perda e ou falta de confiança dessa população perante aos profissionais de saúde, as condutas profissionais inadequadas, a baixa escuta profissional, as dificuldades em transporte e acessibilidade, a falta de compreensão e empatia e os julgamentos inadequados1919. Souza SEFD, Mesquita CFB, Sousa FSPD. Street approach to people who use psychoactive substances: an experience report. Saúde Debate. 2017;41(112):331-9. https://doi.org/10.1590/0103-1104201711226
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A condição de exclusão desses indivíduos é corroborada institucionalmente pela falta de flexibilidade dos horários de atendimento, da dificuldade em agendamento de exames e consultas, assim como da exigência de comprovante de endereço, documentos de identidade e do Cartão do Sistema Único de Saúde (SUS)1515. Hallais JADS, Barros NFD. [Street Outreach Offices: visibility, invisibility, and enhanced visibility]. Cad Saúde Pública. 2015;31(7):1497-504. Portuguese. https://doi.org/10.1590/0102-311X00143114
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Alguns dos entrevistados trazem a dificuldade de acesso ao tratamento relacionado a problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas, desde as condições que um serviço oferece de permanência, como alimentação, infraestrutura, viés religioso, laborterapia e até mesmo a exigência da abstinência. Isso demonstra que esses serviços não funcionam a partir das diretrizes da política nacional de álcool e outras drogas, como a redução de danos e a baixa exigência.

A Política Nacional sobre Drogas trouxe avanços no cuidado às pessoas com problemas de saúde mental decorrentes do uso de álcool e outras drogas, com novos dispositivos e práticas, norteados pela redução de danos que é o caso dos CAPS álcool e outras drogas. Porém, as atuais diretrizes impostas vêm em um crescente na implementação de instituições excludentes1919. Souza SEFD, Mesquita CFB, Sousa FSPD. Street approach to people who use psychoactive substances: an experience report. Saúde Debate. 2017;41(112):331-9. https://doi.org/10.1590/0103-1104201711226
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. Ressalta-se que a cultura manicomial, hoje, apresenta-se vestida com outras roupagens, e, entre elas, destaca-se um esvaziamento da dimensão subjetiva e existencial do sofrimento mental em prol de uma versão fisicalista, eliminativista e reducionista2020. Barros S, Oliveira MAF, Silva ALA. [Innovative practices for health care]. Rev Esc Eenferm USP. 2007;41(spe):815-9. Portuguese. https://doi.org/10.1590/S0080-62342007000500013
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Muitas vezes, os encaminhamentos realizados por uma equipe a outro serviço se esbarra nas burocracias institucionais, como ocorre na tentativa de internação, em que a equipe hospitalar barra sua admissão por considerar o processo de alta complicado, pois essa população não possui endereço fixo e uma rede de apoio para a plena recuperação1515. Hallais JADS, Barros NFD. [Street Outreach Offices: visibility, invisibility, and enhanced visibility]. Cad Saúde Pública. 2015;31(7):1497-504. Portuguese. https://doi.org/10.1590/0102-311X00143114
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A literatura revela falhas em atender às necessidades de saúde mental destas pessoas, havendo uma lacuna em que os sujeitos podem até preferir tratamento não medicamentoso, mas os profissionais de saúde não apresentam opções acessíveis para isso1818. Ramsay N, Hossain R, Moore M, Milo M, Brown A. Health care while homeless: barriers, facilitators, and the lived experiences of homeless individuals accessing health care in a Canadian regional municipality. Qual Health Res. 2019;29(13):1839-49. https://doi.org/10.1177/1049732319829434
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. Outro fator é que a PSR entende o cuidado em saúde ancorada no modelo biomédico e curativo da doença e consideram este inacessível devido às especificidades do contexto da rua que vivem, levando à evitação da demanda2121. Silva ICN, Santos MVS, Campos LCM, Silva DO, Porcino CA, Oliveira JF. Social representations of health care by homeless people. Rev Esc Eenferm USP. 2018;52:e03314. https://doi.org/10.1590/s1980-220x2017023703314
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. Em suma, há a necessidade imediata em investir recursos que possam ajudar a facilitar o acesso aos serviços de saúde para esta população1818. Ramsay N, Hossain R, Moore M, Milo M, Brown A. Health care while homeless: barriers, facilitators, and the lived experiences of homeless individuals accessing health care in a Canadian regional municipality. Qual Health Res. 2019;29(13):1839-49. https://doi.org/10.1177/1049732319829434
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O dispositivo de saúde que faz a ponte entre a rua e os serviços de saúde é o CnaR, pois promove a acessibilidade aos equipamentos da rede institucionalizada, o cuidado integral e a promoção de laços sociais para as pessoas em situação de exclusão e de vulnerabilidade social, construindo um espaço potente ao exercício de direitos e a cidadania66. Brasil. Ministério da Saúde. Coordenação Nacional de Saúde Mental,. Consultórios de Rua do SUS: material de trabalho para a II Oficina Nacional de Consultórios de Rua do SUS. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2010 [cited 2019 Feb 12 [. Available from: http://prattein.com.br/home/images/stories/PDFs/consultorio_rua.pdf
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,1515. Hallais JADS, Barros NFD. [Street Outreach Offices: visibility, invisibility, and enhanced visibility]. Cad Saúde Pública. 2015;31(7):1497-504. Portuguese. https://doi.org/10.1590/0102-311X00143114
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. A proposta é a clínica na rua, ofertar cuidado onde ainda não há uma demanda de ajuda explicitada66. Brasil. Ministério da Saúde. Coordenação Nacional de Saúde Mental,. Consultórios de Rua do SUS: material de trabalho para a II Oficina Nacional de Consultórios de Rua do SUS. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2010 [cited 2019 Feb 12 [. Available from: http://prattein.com.br/home/images/stories/PDFs/consultorio_rua.pdf
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e construir o cuidado no cotidiano dos sujeitos com base nas necessidades humanas básicas2121. Silva ICN, Santos MVS, Campos LCM, Silva DO, Porcino CA, Oliveira JF. Social representations of health care by homeless people. Rev Esc Eenferm USP. 2018;52:e03314. https://doi.org/10.1590/s1980-220x2017023703314
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É preciso considerar as especificidades desses sujeitos, compreender suas concepções do processo de saúde-doença, suas trajetórias, para que, dessa forma, possa-se aprimorar os serviços destinados aos mesmos. Entende-se que esses dispositivos não visam retirar essas pessoas dessa situação, nem ao menos limpar a cidade, mas sim levar cuidado em saúde e promover a autonomia do sujeito perante uma sociedade excludente e desigual. Muito mais do que implementar novos serviços é necessário promover ações em rede que articulem setores para além da saúde, como assistência social, habitação e trabalho, que constitua o vínculo e confiança e que tenha a participação ativa dessa população na formulação de políticas públicas e na avaliação desse acesso.

CONCLUSÃO

Foi possível concluir, com este estudo, que, apesar da existência de serviços específicos de saúde para a PSR que permanece ou circula na Avenida Paulista e arredores, não é garantido seu acesso. A procura por serviços de emergência se dá como a principal porta de entrada para os entrevistados e entre as barreiras enfrentadas; o preconceito e a burocratização são os principais fenômenos apontados.

É notório que houve um avanço em relação às políticas públicas destinadas a essa população no município, como também na alçada constitucional, contudo, ainda, os retrocessos estão presentes e, assim, faz-se necessário reivindicar os princípios preconizados pelo SUS em sua definição, como a universalidade, a equidade e a integralidade.

Novas abordagens são possíveis. Ações de redução de danos atrelados a projetos de moradia de baixa exigência podem ser eficazes e apresentar resultados positivos nessa problemática tão complexa que é o cuidado a PSR. A pesquisa nessa temática está longe de resolver o fenômeno da desigualdade social, mas se faz presente como propulsora para a reflexão entre acadêmicos, trabalhadores e população em geral para se refletir um novo pensar e fazer.

Sugerem-se outros estudos em diferentes regiões com grandes centros urbanos para identificar os serviços existentes e as barreiras de acesso encontradas pela PSR. Entende-se que, dessa forma, seja possível somar diferentes estratégias e abordagens de cuidado para melhorar o acesso à saúde desta população.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2020
  • Aceito
    10 Dez 2020
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