Campanha de vacinação contra COVID-19: diálogos com enfermeiros atuantes na Atenção Primária à Saúde

RESUMO

Objetivo:

Refletir sobre a percepção de enfermeiros atuantes na Atenção Primária à Saúde sobre o desenvolvimento da campanha de vacinação contra a COVID-19.

Método:

Estudo qualitativo, tipo ação participante, fundamentado nos preceitos teóricos metodológicos de Paulo Freire, que consiste em três fases interligadas: Investigação Temática, Codificação e Descodificação, Desvelamento Crítico. Realizaram-se três Círculos de Cultura virtual, entre fevereiro e março de 2021, com 11 enfermeiros da Atenção Primária à Saúde, residentes em Santa Catarina, Brasil.

Resultados:

Os enfermeiros definiram dois temas para discussão no Círculo de Cultura: 1. Encontros na campanha de vacinação COVID-19, representando as potencialidades; 2. Desencontros na campanha de vacinação COVID-19, em que desvelaram as fragilidades.

Conclusão:

Os enfermeiros apontaram potencialidades como a atuação em equipe, com esperança, motivação e alegria na operacionalização da campanha de vacinação, por meio de ações inovadoras e antigas. Também evidenciaram fragilidades como falta de formação específica e comunicação, dificuldades com os registros e a aplicação do imunobiológico, salientando o movimento antivacina e o intenso trabalho, o que carece de ajustes em prol da qualificação da assistência à população.

DESCRITORES
Infecções por Coronavírus; Pandemia; Enfermagem; Vacinas; Vacinação em Massa

ABSTRACT

Objective:

To reflect on the perception of nurses working in Primary Health Care about the development of the COVID-19 vaccination campaign.

Method:

This is a participatory action qualitative study, based on the methodological theoretical precepts by Paulo Freire, which consists of three interconnected phases: Thematic Research, Coding and Decoding, and Critical Unveiling. Three virtual Culture Circles were held between February and March 2021, with 11 nurses from Primary Health Care, residing in Santa Catarina, Brazil.

Results:

Nurses defined two themes for discussion in the Culture Circle: 1. Matches in the COVID-19 vaccination campaign, representing the potentialities; 2. Mismatches in the COVID-19 vaccination campaign, in which the weaknesses were revealed.

Conclusion:

Nurses indicated potentialities such as teamwork, with hope, motivation, and joy in the vaccination campaign operationalization, through innovative and old actions. They also highlighted weaknesses such as lack of specific training and communication, difficulties with recording and application of the immunobiological, mentioning the anti-vaccine movement and the intense work, which requires adjustments to improve assistance to the population.

DESCRIPTORS
Coronavirus Infections; Pandemic; Nursing; Vaccines; Mass Vaccination

RESUMEN

Objetivo:

Reflexionar sobre la percepción de enfermeros actuantes en la Atención Primaria de Salud sobre el desarrollo de la campaña de vacunación contra COVID-19.

Método:

Estudio cualitativo, tipo acción participante, fundamentado en los preceptos teóricos metodológicos de Paulo Freire, que consiste en tres etapas interconectadas: Investigación Temática, Codificación y Descodificación; Revelación Crítica. Se realizaron tres Encuentros de Cultura virtual, entre febrero y marzo de 2021, con 11 enfermeros de la Atención Primaria de Salud, residentes en Santa Catarina, Brasil.

Resultados:

Los enfermeros definieron dos temas para debate en el Encuentro de Cultura: 1. Logros en la campaña de vacunación contra COVID-19, en que revelaron las potencialidades; 2. Dificultades en la campaña de vacunación contra COVID-19, en que revelaron las vulnerabilidades.

Conclusión:

Los enfermeros destacaron potencialidades como el trabajo en equipo, con esperanza, motivación y alegría en la operacionalización de la campaña de vacunación, por medio de acciones innovadoras y antiguas. También destacaron vulnerabilidades como ausencia de formación específica y comunicación, dificultades con los registros y aplicación del inmunobiológico, evidenciando el movimiento antivacuna y el intenso trabajo, el que demanda más ajustes para lograr calificar la asistencia a la población.

DESCRIPTORES
Infecciones por Coronavirus; Pandemia; Enfermería; Vacunas; Vacunación Masiva

INTRODUÇÃO

A pandemia causada pela Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) impactou o mundo, apresentando alta mortalidade e transmissibilidade. Diante de sua gravidade e rápida evolução, medicamentos foram utilizados, mas nenhum deles específico para a doença(¹). Nesse cenário, a vacina surgiu como uma possibilidade real de deter o avanço da COVID-19 no mundo, na perspectiva de reduzir os casos de agravamento com consequente diminuição de mortes.

A corrida pela vacina contra a COVID-19 é ainda um desafio, mas já está sendo viável em razão dos investimentos e parcerias realizados pelos governos dos países desenvolvidos, empresas farmacêuticas e instituições não governamentais que buscam vacinas seguras e eficazes(²). No Brasil, a Fiocruz e o Instituto Butantan destacaram-se na pesquisa de vacinas contra COVID 19, em parceria com laboratórios internacionais. Finalmente, em janeiro de 2021, diante da urgência em salvar vidas e evitar o colapso do sistema de saúde, parte da população brasileira começou a ser vacinada por meio do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a COVID-19(³).

A oferta de vacinas no Brasil é feita pelo Sistema Único de Saúde (SUS), por meio do Programa Nacional de Imunizações (PNI), que é reconhecido internacionalmente por seu êxito nesse território. Entretanto, garantir o acesso às doses demanda amplo planejamento de produção, armazenamento, distribuição e campanhas de vacinação. No país, há 36 mil salas de imunizações cadastradas no SUS(⁴). Mas na conjuntura pandêmica, esse número apresenta um expressivo aumento, dada a premência em garantir imunização ao maior número de pessoas, no menor prazo possível, de acordo com a disponibilidade de imunobiológicos.

Ao considerar o número reduzido de doses de vacina contra COVID-19 adquiridas pelo Ministério da Saúde (MS), o PNI precisou estabelecer grupos prioritários, a fim de definir a população a ser primeiramente imunizada, conforme o maior potencial de risco à saúde(⁴). De acordo com dados disponibilizados pelo MS, cerca de 13 milhões de doses já haviam sido aplicadas na população brasileira até meados de março de 2021(⁵). Ressalta-se que os dois imunobiológicos disponíveis até então necessitam de duas doses para completar o esquema vacinal. Portanto, o número de doses aplicadas ainda não corresponde ao número de pessoas imunizadas.

Cabe salientar que, desde o lançamento do PNI, a organização de todo o processo que envolve a vacinação é de responsabilidade do enfermeiro e da equipe de enfermagem(⁶). No enfrentamento à COVID-19, em diversos setores de saúde, a enfermagem evidenciou a força do seu trabalho como protagonista no cuidado. Dessa maneira, na campanha de vacinação contra a COVID-19, esses profissionais continuaram assumindo o seu protagonismo, configurando-se como indispensáveis para o alcance da cobertura vacinal desejável.

Diante de tamanha complexidade e responsabilidade impostas pelo cenário pandêmico, questiona-se: como está ocorrendo o desenvolvimento da campanha de vacinação contra a COVID-19, na percepção dos enfermeiros? Trata-se de um fenômeno novo, com escassos estudos publicados sobre a temática, o que justifica a realização dessa investigação, que teve como objetivo refletir sobre a percepção de enfermeiros atuantes na Atenção Primária à Saúde (APS) sobre o desenvolvimento da campanha de vacinação contra a COVID-19.

MÉTODO

Tipo de Estudo

Estudo qualitativo, do tipo pesquisa ação participante(⁷), fundamentado nos preceitos do educador Paulo Freire. Para tanto, percorreu-se o Itinerário de Pesquisa, construído a partir do seu referencial teórico e filosófico, uma vez que Freire não deixa explícito estruturas conceituais formais como uma estratégia de pesquisa, mas como uma produção de método de conscientização, de aprendizagem. Assim o Itinerário integra três etapas dialéticas e interligadas entre si: I) Investigação Temática; II) Codificação e Descodificação; III) Desvelamento Crítico(⁸).

A Investigação Temática é o primeiro momento em que se instiga o diálogo, fazendo emergir os temas geradores, que são discutidos e compartilhados de maneira ampliada pelos participantes no Círculo de Cultura. A Codificação dos temas traduz-se nas contradições e nas significações das situações vividas pelos participantes, sendo que a Descodificação ocorre quando, por meio do diálogo, é possível reconhecer a realidade, tomando-se consciência dela a partir da reflexão sobre as ações. No Desvelamento Crítico, supera-se a visão mágica, com reflexão crítica sobre a realidade em busca de uma ação transformadora, num processo de ação-reflexão(⁸).

Para percorrer as etapas do Itinerário de Pesquisa, desenvolveram-se três Círculos de Cultura, espaço formado por um grupo de pessoas que discutem temas em comum pela práxis dialógica, de maneira horizontal e participativa, em busca de promover o conhecimento coletivo e alcançar a transformação da realidade(⁸–⁹). Cabe destacar que nos dois primeiros Círculos de Cultura, os enfermeiros discutiram sobre os significados da vacina contra COVID-19. No terceiro, refletiram sobre o desenvolvimento da campanha de vacinação, sendo que neste artigo serão abordadas essas reflexões que emergiram do último encontro.

População e Local do Estudo

O estudo teve a participação de enfermeiros que atuavam na APS, em diferentes locais de Santa Catarina, Brasil. Para organizar os integrantes da pesquisa, primeiramente um enfermeiro da rede social das pesquisadoras foi convidado, via telefone. Por meio do método de amostragem snowball(¹⁰), esse enfermeiro convidou outro participante para integrar o Círculo de Cultura e assim sucessivamente, sendo que doze profissionais foram convidados e onze aceitaram compartilhar do estudo, havendo uma recusa.

Como critérios de inclusão, consideraram-se: enfermeiros que atuavam na APS e que estavam trabalhando na campanha de vacinação contra a COVID-19. Como critérios de exclusão: não ter acesso à internet e a dispositivos eletrônicos para participar e estar em licença no período da realização do estudo.

Diante do cenário pandêmico, as pesquisadoras optaram por realizar os Círculos de Cultura de maneira virtual(⁹), com utilização da plataforma digital Google Meet. Contou-se com o apoio da câmera dos dispositivos eletrônicos (computador ou celular), que possibilitaram interação entre os participantes, mesmo distantes geograficamente.

Coleta de Dados

Realizaram-se três Círculos de Cultura virtuais (CCV), entre fevereiro e março de 2021, com duração aproximada de duas horas cada um, tendo como mediadora uma das autoras, enfermeira, doutora, com experiência nesse tipo de abordagem.

As pesquisadoras entraram em contato telefônico com todos os participantes do estudo, explicando os objetivos da pesquisa, ocasião em que definiram dia e horário para o primeiro encontro. A partir disso, o segundo e o terceiro encontros foram agendados com o próprio grupo que decidiu em conjunto o melhor dia e horário para realização desses.

Para incentivar o diálogo e percorrer o Itinerário de Pesquisa Freireano de maneira interativa, a mediadora questionou os enfermeiros sobre algo simbólico que representasse o momento que estavam vivenciando e optaram pela própria aplicação da vacina contra a COVID-19. Assim, realizou-se uma analogia entre a aplicação da vacina e as fases do Itinerário de Pesquisa Freireano, através de algo concreto e atual na vivência dos enfermeiros, conforme ilustração da Figura 1.

Figura 1.
Itinerário de pesquisa de Paulo Freire: analogia com a aplicação da vacina contra COVID-19.

Para a Investigação Temática, primeira etapa do Itinerário Freireano, a mediadora apontou as diversas investigações que os enfermeiros realizaram para o desenvolvimento da campanha de vacinação contra a COVID-19. Assim, com uma seringa em suas mãos, contendo simbolicamente a vacina contra a COVID-19, instigou os enfermeiros a investigar e refletir, disparando o seguinte questionamento: como está o desenvolvimento da campanha de vacinação contra a COVID-19?

Para responder ao questionamento, os enfermeiros foram convidados a escrever um termo ou frase na tela compartilhada do computador. Todos os participantes apresentaram suas perspectivas ao grupo. Após amplo diálogo, a mediadora releu todos os termos descritos e instigou os enfermeiros a organizá-los, conforme as reflexões que emergiram. Assim, o grupo definiu dois temas geradores para discussão no terceiro CCV: 1.Encontros durante a campanha de vacinação COVID-19; 2. Desencontros durante a campanha de vacinação COVID-19.

Para a segunda etapa do Itinerário de Freire, Codificação e Descodificação, a mediadora segurou novamente a seringa em suas mãos, evidenciando que essa era necessária e significativa na aplicação da vacina contra COVID-19. A partir de então, convidou os participantes a buscarem significados e ampliarem o conhecimento sobre os temas geradores, lançando duas questões: quais os encontros durante a campanha de vacinação COVID-19? Quais os desencontros durante a campanha de vacinação COVID-19?

Os enfermeiros dialogaram sobre os encontros e desencontros durante a campanha de vacinação, enquanto a mediadora foi registrando, por meio de uma frase, os principais significados partilhados. Tais anotações foram lidas para todos os enfermeiros, com vistas a validá-las. A mediadora instigou a continuação de ponderações acerca das temáticas propostas, num processo de ação-reflexão, incentivando-os a compreender em conjunto as possibilidades de enfrentar os desafios compartilhados e transformar a sua realidade(⁸–⁹).

No Desvelamento Crítico, última etapa do Itinerário Freireano, foi apontado que a sociedade aguarda com ansiedade os resultados da vacinação COVID-19. Nesse momento, a mediadora incentivou o grupo a refletir sobre as possibilidades de ultrapassar os desafios no processo de vacinação e os indagou: como foi ter participado desse CCV? Os enfermeiros se manifestaram sobre a participação no Círculo de Cultura, que foi encerrado com todos cantando juntos o refrão da música “O que é, o que é?”, de Gonzaguinha.

Com a devida autorização dos enfermeiros, os diálogos do CCV foram gravados, transcritos e organizados em pastas digitais, conforme os dois temas geradores eleitos para discussão.

Análise dos Dados

O desvelamento dos temas ocorreu durante todo o desenvolvimento do CCV, conforme prevê o Itinerário de Pesquisa de Paulo Freire, num processo analítico contínuo. Dessa maneira, cabe destacar que a análise dos dados no Itinerário de Pesquisa Freireano ocorre de maneira permanente, com a participação de todos os envolvidos no Círculo de Cultura(⁸–⁹).

Aspectos Éticos

A pesquisa esteve assegurada nos princípios éticos da resolução 466/12 e 510/16, sendo aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Fronteira Sul, com parecer número 4.068.387, em três de junho de 2020. Vale destacar que, no primeiro CCV, a mediadora apresentou os objetivos da pesquisa e leu o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, convidando os participantes a assiná-lo e devolvê-lo por e-mail. Para garantir o anonimato, os enfermeiros foram identificados pelo sobrenome de teóricas da enfermagem.

RESULTADOS

Participaram do estudo 11 enfermeiros que atuavam na APS, residentes em diferentes municípios do litoral de Santa Catarina, Brasil, sendo dez do sexo feminino e um do sexo masculino, com experiência profissional variando de três a 20 anos. Durante o CCV, os enfermeiros codificaram e descodificaram dois temas geradores, representados na Figura 2.

Figura 2.
Representação da Codificação e Descodificação dos dois temas geradores.

Nas discussões sobre o primeiro tema gerador, os participantes refletiram sobre os encontros durante a campanha de vacinação contra COVID-19, o que foi considerado pelos enfermeiros como potencialidades, nesse processo. Destacaram como fator positivo o trabalho em equipe da enfermagem, com a integração de várias instituições, repercutindo sentimentos de esperança, motivação e alegria:

Nessa campanha, a enfermagem tem realizado um lindo trabalho em equipe (Peplau).

Muito legal ver a união de várias instituições, clínicas e universidades, que têm trabalhado conosco na campanha (Henderson).

Surgiu esperança, um esperançar de novos tempos (Leninger).

Saio de casa motivada para trabalhar na campanha (Travelbee).

Estou sentindo alegria imensa em trabalhar nessa campanha (…) (Nightingale).

Os enfermeiros apontaram que várias ações antigas foram resgatadas e desvelaram a inserção de novas estratégias, a fim de manter o distanciamento social, principalmente do público idoso, de forma que a participação na campanha de vacinação tem repercutido em vários aprendizados, com a oportunidade de atuar em outros locais:

Resgatamos várias ações antigas, como a busca ativa, vacinação domiciliar (Horta).

Nessa campanha inovamos e foi organizado o agendamento on-line e o drive-thru, que foi uma maneira de manter o distanciamento social dos idosos (Patterson).

A gente tem aprendido muito: ter maior resiliência, desenvolver o trabalho em equipe, além de novos conhecimentos, que não param de chegar sobre as vacinas (Roy).

Gosto de sair da unidade e atuar em outros cenários durante a campanha. (Orem).

Os participantes do estudo revelaram que houve um maior ânimo da sociedade devido à realização da campanha de vacinação e maior reconhecimento da relevância da enfermagem nas ações realizadas, sendo que receberam diversas homenagens:

A sociedade está mais animada, a gente percebe isso durante o nosso trabalho (King).

Já recebi várias homenagens, como flores e bolos. A sociedade parece estar reconhecendo mais a importância da Enfermagem, tendo consciência do quanto estamos trabalhando em vários setores nessa pandemia, para promover a saúde da população (Levine).

Nas reflexões do segundo tema gerador, em que revelaram sobre os desencontros, entendidos como dificuldades durante a campanha de vacinação, os enfermeiros evidenciaram a falta de comunicação efetiva entre todos os envolvidos como um dos desafios, o que repercute em obstáculos na realização dos registros, na aplicação dos imunobiológicos e em confusão entre as doses e vacinas disponíveis no SUS. Nesse sentido, discutiram sobre a necessidade de maior orientação específica para atuação na vacinação:

Temos um sério problema de comunicação entre todos os níveis de atenção e isso gera inúmeros problemas (Peplau).

Está complicado com os registros. Na hora de registrar no sistema, ficam faltando dados e, às vezes, esses dados não batem (Henderson).

Está tendo dificuldade até na aplicação da vacina, porque tem profissionais que estão trabalhando na campanha, mas não têm experiência sobre o manuseio e aplicação de imunobiológicos (Leninger).

Agora nós temos duas vacinas disponíveis, a Coronavac e a AstraZeneca. Às vezes dá confusão entre as vacinas, entre as doses e os aprazamentos. Seria mais fácil se tivéssemos uma única dose e uma única vacina, assim como ocorre na campanha da gripe (Orem).

Tinha de ter maior orientação específica sobre vários detalhes, para evitar problemas durante a campanha e alcançar resultados mais satisfatórios (Nightingale).

Outra dificuldade apontada foi o intenso trabalho, com falta de trabalhadores, sendo que os enfermeiros acreditam que a campanha será longa. Somado a isso, ressaltaram a sensação de intenso calor, diante da necessidade de utilizar os equipamentos de proteção individual (EPI) em locais não refrigerados, locais esses que dificultam inclusive a manutenção da temperatura dos imunobiológicos:

Está dando bastante trabalho essa campanha, porque desgastará intenso tempo dos trabalhadores (Levine).

(…) além da vacina, temos que atender o público de maneira geral e toda a situação das pessoas com diagnóstico e suspeita de COVID-19. Então, faltam funcionários (King).

Difícil usar todos os EPI’s com aquele calor no drive-thru (…) dificulta inclusive manter a temperatura ideal das vacinas (Roy).

A necessidade de realizar a busca ativa e o movimento antivacina também foram citados como obstáculos para a equipe de enfermagem:

Têm pessoas que não estão retornando para a segunda dose. Muitos idosos ainda não se cadastraram para receber a vacina. É preciso fazer a busca ativa, que também demanda mais tempo e pessoal (Patterson).

Acho que (com)o movimento antivacina está bastante presente na sociedade e tenho visto gente que tem o direito de tomar a vacina e não quer, com medo (Roy).

Os enfermeiros destacaram a relevância de participação no CCV:

Foi muito bom ter participado de todos os encontros e me senti aliviada por saber que em todos os locais há problemas semelhantes aos nossos daqui (Orem).

Fiquei muito feliz em participar. Aprendi com vocês aqui, muito obrigada (Patterson).

Eu agradeço porque vocês me ouviram e fui ouvida. Estava precisando disso, de compartilhar meus anseios (…) saio daqui transformada (Nightingale).

DISCUSSÃO

A vacinação contra a COVID-19 é cercada de simbologias que deixam transparecer, exuberante ou sutilmente, a posição desta estratégia no controle da pandemia. A concepção de que a vacina proporciona imunização irrestrita pode ser fruto de um pensamento mágico que denota esgotamento e desespero das pessoas quanto à contenção definitiva da doença. Contudo, em uma posição oposta, há uma proporção da população brasileira que assume uma postura negacionista em relação aos efeitos imunizantes das vacinas(¹¹). A infodemia que cerca a COVID-19 e a hesitação vacinal refletem a tensão entre o risco cientificamente validado e o risco percebido subjetivamente, também influenciada pela crise de confiança na ciência e nas ações do governo federal(¹²).

Nesse cenário com carga emocional e laboral intensa, os enfermeiros dialogaram no CCV, compartilhando suas percepções sobre a campanha de vacinação. Ao refletirem sobre o primeiro tema gerador, em que discutiram sobre os encontros ou potencialidades da campanha de vacinação, foram desvelados elementos que exaltaram a importância dos profissionais da enfermagem, agregada à relevância do trabalho em equipe e à parceria entre instituições de ensino e serviço.

Fortuitamente, debate-se, nesse período de pandemia, quanto aos holofotes focados na enfermagem, sendo que tal valorização acontece em paralelo à campanha “Nursing Now”, desenvolvida principalmente em 2020. Nesse sentido, criaram-se esperanças de que este destaque perdure após a pandemia e a valorização, ora explorada, repercuta no processo de trabalho da enfermagem, no que tange à gestão de pessoas, segurança do trabalhador, remuneração, dentre tantos outros fatores presentes no contexto profissional.

É premente que, além da necessária valorização, a enfermagem encontre maior apoio político e social para conciliar o exercício de uma formação permanente, aperfeiçoando-se para a prática clínica, com vistas a oferecer resolutividade cada vez mais crescente na atenção à saúde(¹³). Ainda, a fim de atender à demanda do Plano Nacional de Vacinação, acentuaram-se parcerias chanceladas por conceitos e concepções da integração ensino e serviço, sendo que a cooperação e a estruturação de forças-tarefas no trabalho em equipe, durante o período pandêmico, nunca foi tão vislumbrado(¹⁴).

Nesta campanha de vacinação contra a COVID-19 as práticas cotidianas da enfermagem foram se renovando, o que proporcionou novos aprendizados sobre um tema em torno do qual o conhecimento tem sido estruturado em tempo real.

Houve ainda a necessidade de se utilizarem estratégias já consagradas nos serviços de atenção primária à saúde, cuja resolutividade é factual, como a busca ativa e a vacinação domiciliar, objetivando atingir a cobertura vacinal e proporcionar a vacinação a todos os grupos prioritários, conforme estabelecido pelo MS, reorganizando seus processos de trabalho para alcançar resultados positivos(¹⁵).

O aparato formativo faz parte do conjunto de medidas a serem providenciadas, dada a peculiaridade do contexto em saúde para o qual o conhecimento ainda é totalmente novo(¹⁶). A formação deve ser anterior à própria organização e à atuação em um serviço de saúde que, neste caso, também envolve as técnicas imbricadas na vacinação e na gerência da campanha(¹⁷).

Destaca-se que a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) lançou campanha, em parceria com o MS, direcionada à saúde mental de profissionais que vivenciam diariamente o colapso do sistema no contexto da pandemia. Nesse âmbito, a vacinação teve efeitos psicológicos perceptíveis ao bem-estar dos profissionais e emergiu renovando a esperança, estimulando os profissionais a persistir no enfrentamento desta grave crise sanitária mundial(¹⁸).

Nas reflexões sobre o segundo tema gerador, em que foram discutidos os desencontros vivenciados na campanha da vacinação contra a COVID-19, os participantes comentaram criticamente desafios a serem superados, apontando aspectos que denotam problemas no processo de trabalho e que envolvem diferentes dimensões: da gestão, da educação, da assistência e da política.

Logo, ao especificar a gestão das vacinas em si, observou-se ingerência relativa à disponibilidade de doses, definição assertiva do tipo a ser utilizado, considerando a existência de duas origens distintas distribuídas no Brasil: Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan, e AstraZeneca, proveniente da Fiocruz. Ambas as vacinas têm duas doses, com intervalos diferentes entre si(³), o que pode gerar confusão nos registros e orientação equivocada à comunidade.

A educação permanente direcionada a essa vacinação foi percebida como insuficiente, faltando orientações técnicas. Ressalta-se que o MS definiu o Plano Nacional de Operacionalização da vacinação contra a COVID-19, estabelecendo diretrizes como fonte de apoio a Unidades Federativas e municípios no planejamento e desenvolvimento da campanha vacinal(³). Mas o êxito dessa ação só será possível conforme o envolvimento das três esferas de gestão em esforços coordenados no SUS, para alcançar uma assistência adequada e adesão da população(³).

Apesar de tal plano ter o objetivo de instrumentalizar as instâncias gestoras na operacionalização da vacinação, vale refletir que o processo ocorreu de maneira repentina no Brasil, com tempo escasso para os municípios prepararem os profissionais, que foram aprendendo no próprio desenrolar da campanha.

Na gestão de pessoas, questionou-se o quantitativo de profissionais para trabalhar nas campanhas, bem como o tempo de atividade prevista para cada profissional e a ambiência. Os profissionais envolvidos direta e indiretamente no enfrentamento da COVID-19 estão expostos cotidianamente ao risco de adoecer, o que está associado às condições de trabalho, mão de obra escassa, cansaço físico e estresse psicológico diante da insuficiência e/ou negligência com relação às medidas de proteção e cuidado com a saúde.

Em razão disso, é premente prevenir a redução da capacidade de trabalho e da qualidade da atenção à população(¹⁹). Nesse sentido, cabe aos enfermeiros a promoção de ações que articulem, junto a sindicatos, associações e conselhos profissionais, a organização de debates sobre a perda de direitos trabalhistas e as atuais formas de trabalho, em busca de aprimoramento de políticas em defesa do trabalhador e por melhores condições laborais(²⁰) e salariais.

Apesar de o enfermeiro ser um dos principais atores nesse cenário e de sua atuação ter sido reconhecida pela sociedade, sua valorização não o foi. Como um dos exemplos cita-se a luta por direitos, tais como o piso salarial e as trinta horas semanais de trabalho, que tramitam há anos no Congresso, sem serem analisadas e votadas. Aliada a isso, a necessidade de organização da campanha de vacinação em curto tempo expôs o desgaste profissional e as longas jornadas de trabalho, além do enfrentamento de situações como perda de familiares e colegas de profissão pela COVID-19, o que endossa a preocupação com a saúde física e mental desses profissionais (²¹).

Assistencialmente, houve dificuldades na comunicação, sendo que se refletiram, sobretudo, na organização da busca ativa. A comunicação é uma ferramenta crucial em todo o processo de cuidado, para que os profissionais repassem dados relevantes de maneira precisa e clara, visando à continuidade da assistência a indivíduos e coletividades. Quando efetiva, está diretamente ligada à segurança do ser cuidado, pois possibilita o registro de informações condizentes com todo o processo assistencial, que inclui a busca ativa, além de propiciar um ambiente de trabalho harmonioso, livre de danos(²²).

No âmbito político, o enfermeiro ainda foi requisitado a fazer o enfrentamento do movimento “antivacina”. Esse movimento ideológico não é novo, pois se iniciou com a Revolta da vacina, em 1904, e manteve-se aceso até os dias atuais, sendo uma ameaça real à população ao disseminar informações sem embasamento científico, por meio do ativismo virtual. A escassa informação sobre o processo de imunização e a falta de discernimento das pessoas acerca do processo saúde-doença apresentam-se como mais um desafio para a enfermagem, na linha de frente da prática de imunização(²³).

Cabe destacar a educação em saúde como uma estratégia fundamental para desenvolvimento da imunização na sociedade, enfatizando sua importância para prevenção da doença, o que promove ampliação da cobertura vacinal, além de sensibilizar a população para o autocuidado(¹⁵).

Vale destacar que a escolha da aplicação da vacina como metáfora para instigar as discussões no CCV foi importante para aproximação com a realidade dos participantes do estudo. No entanto, a enfermagem precisa ser reconhecida em seu papel social, pela sua capacidade em apoiar a consecução do acesso e da cobertura universal de saúde, uma vez que esses profissionais adquirem em sua formação habilidades e conhecimentos embasados cientificamente(²⁴), indo muito além do modelo tecnicista, a fim de abranger as necessidades de saúde dos indivíduos e coletividades.

No cenário político, ressalta-se que, historicamente, a enfermagem está desarticulada no que tange ao desenvolvimento da profissão e à luta por melhores condições de trabalho. Portanto, neste momento, faz-se necessário despertar a mobilização e a politização destes profissionais, a fim de alcançar maior reconhecimento social e transformar a realidade(²⁵).

Diante do exposto, desvela-se a aplicabilidade do Círculo de Cultura Virtual como espaço inovador para realizar encontros que promovam diálogo, reflexão e emancipação dos indivíduos por meio do aprendizado mútuo e do compartilhamento de saberes e de experiências, podendo ser empregado em diversas esferas do setor saúde, em especial em tempos de restrição social.

Salienta-se que os resultados desta investigação contribuem para a prática baseada em evidências de enfermeiros no desenvolvimento da campanha de vacinação contra a COVID-19, instigando reflexões quanto aos encontros e desencontros na assistência à população. Como limitações do estudo, cita-se o desafio de conciliar um horário com todos os enfermeiros para a realização do CCV, em razão do acúmulo de atividades que desenvolvem no seu processo de trabalho, principalmente no enfrentamento da COVID-19.

CONCLUSÃO

No CCV, os enfermeiros compartilharam suas vivências no processo de trabalho, durante a campanha de vacinação contra a COVID-19, em que se destacaram algumas potencialidades, como a relevância da atuação em equipe, o apoio de outras instituições, maior ânimo da sociedade, os quais repercutiram sentimentos de esperança, motivação e alegria. Também ficou evidente a aplicabilidade de ações inovadoras como o drive-thru e o agendamento on-line para vacinação, com resgate de antigas atividades como a busca ativa e a imunização em domicílio, emergindo, assim, encontros na operacionalização da vacinação.

Os enfermeiros da APS também refletiram sobre as fragilidades no processo vacinal, em que despontaram desafios como a falta de comunicação efetiva, dificuldades com os registros e na aplicação do imunobiológico, evidenciando escassez de profissionais e de formação específica para atuação na campanha. Ainda destacaram o movimento antivacina e o intenso trabalho diante da realidade de uma campanha longa. Tais fatores fornecem subsídios para a busca de aprimoramento na operacionalização da campanha de vacinação, pois se acredita que será um longo processo, que carece de ajustes em prol da qualificação da assistência à população e do trabalho dos profissionais envolvidos. Para além disso, é tempo de a enfermagem despertar para o envolvimento político em prol de maior reconhecimento social, na luta por melhores condições no seu processo de trabalho.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  24 Set 2021
• Data do Fascículo
  2021

Histórico

• Recebido
  28 Abr 2021
• Aceito
  22 Jul 2021