Comprometimento e entrincheiramento com a carreira entre enfermeiros da Atenção Primária^*

RESUMO

Objetivo:

Avaliar o comprometimento e o entrincheiramento com a carreira entre enfermeiros de serviços da Atenção Primária à Saúde.

Método:

Trata-se de um estudo transversal, realizado em 2018, com enfermeiros da atenção primária de dois municípios paulistas. Foram utilizadas as Escalas de Comprometimento e de Entrincheiramento com a Carreira, validadas no Brasil, e composta por 12 itens cada, que avaliam: identidade, resiliência e planejamento, relacionados ao comprometimento; custos emocionais, investimentos e limitação de alternativas na carreira, referentes ao entrincheiramento.

Resultados:

O escore médio do comprometimento (61,4 pontos) foi maior do que o de entrincheiramento com a carreira (57,8 pontos); o fator identidade obteve nível alto (70,9 pontos); resiliência e planejamento na carreira obtiveram níveis médios (62,5 e 50,8 pontos, respectivamente). O entrincheiramento com a carreira (57,8 pontos) e seus respectivos fatores atingiram níveis médios (investimentos: 57,7 pontos; limitação de alternativas: 58,8 pontos; custos emocionais: 57,0 pontos).

Conclusão:

Os enfermeiros apresentaram predomínio do vínculo de comprometimento com a carreira, pois apresentaram maior vínculo de identificação e relação positiva do que de estagnação com a carreira.

DESCRITORES
Mobilidade Ocupacional; Enfermagem do Trabalho; Ambiente de Trabalho; Atenção Primária à Saúde; Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

To assess career commitment and entrenchment among Primary Care nurses.

Method:

This is a cross-sectional study, carried out in 2018, with primary care nurses from two cities in the state of São Paulo. The Career Commitment and Entrenchment Scales, validated in Brazil, and consisting of 12 items each, were used, and assess: identity, resilience, and planning, related to commitment; emotional costs, investments, and limitation of career alternatives, related to entrenchment.

Results:

The mean score of career commitment (61.4 points) was higher than that of career entrenchment (57.8 points); the identity factor had a high level (70.9 points); resilience and career planning obtained medium levels (62.5 and 50.8 points, respectively). Career entrenchment (57.8 points) and its respective factors reached medium levels (investments: 57.7 points; limitation of alternatives: 58.8 points; emotional costs: 57.0 points).

Conclusion:

The nurses showed a predominance of the career commitment relationship, as they showed a greater link of identification and positive relationship than of career stagnation.

DESCRIPTORS
Career Mobility; Occupational Health Nursing; Working Environment; Primary Health Care; Nursing

RESUMEN

Objetivo:

Evaluar el compromiso y el atrincheramiento con la carrera entre enfermeros de cuidados de la Atención Primaria a la Salud.

Método:

Ha sido realizado un estudio transversal en 2018, con enfermeros de la atención primaria de dos ciudades paulistas. Se utilizaron las Escalas de Compromiso y de Atrincheramiento con la Carrera, convalidadas en Brasil, y compuesta por 12 temas cada, que evalúan: identidad, resiliencia y planificación, relacionados al compromiso; costos emocionales, inversiones y limitación de alternativas en la carrera, referentes al atrincheramiento.

Resultados:

El score promedio del compromiso (61,4 puntos) fue mayor del que el de atrincheramiento con la carrera (57,8 puntos); el factor identidad obtuvo nivel alto (70,9 puntos); resiliencia y planificación en la carrera obtuvieron niveles medios (62,5 y 50,8 puntos, respectivamente). El atrincheramiento con la carrera (57,8 puntos) y sus respectivos factores obtuvieron niveles medios (inversiones: 57,7 puntos; limitación de alternativas: 58,8 puntos; costos emocionales: 57,0 puntos).

Conclusión:

Los enfermeros presentaron en mayor proporción gran vínculo de compromiso con la carrera, una vez que presentaron mayor vínculo de identificación y relación positiva, más que de estagnación con la carrera.

DESCRIPTORES
Movilidad Laboral; Enfermería del Trabajo; Ambiente de Trabajo; Atención Primaria de Salud; Enfermería

INTRODUÇÃO

Os serviços de Atenção Primária à Saúde (APS) representam o primeiro nível de atenção do sistema público de saúde brasileiro e são considerados a porta de acesso dos usuários no Sistema Único de Saúde (SUS); portanto, a força de trabalho na APS é necessária para o aumentar a capacidade de atender as demandas dos usuários(¹–²). Contudo, o aumento do número de profissionais, a expansão do trabalho sazonal e informal, as dúvidas sobre o futuro e os avanços tecnológicos que têm marcado o mercado de trabalho contemporâneo repercutem nos vínculos das pessoas com o trabalho. Por esse motivo, torna-se relevante mensurar os vínculos do trabalhador com sua carreira, como o comprometimento e o entrincheiramento, que se caracterizam por comportamentos discordantes, capazes de causar importantes impactos organizacionais, sociais e pessoais(³–⁵).

O comprometimento com a carreira está relacionado ao engajamento, à dedicação e à postura pró-ativa do profissional com a organização e envolve os comportamentos desejáveis do trabalhador em relação à sua carreira e à organização(⁶–⁷). O entrincheiramento, por outro lado, consiste na tendência de o trabalhador se manter na carreira por receio de perdas e limitação na percepção de outras oportunidades profissionais(⁵).

Enquanto o trabalhador comprometido está envolvido com a organização, o trabalho e a carreira, almejando crescimento e superando as dificuldades que surgem, o trabalhador entrincheirado apresenta-se estagnado, em uma posição defensiva e estática, causada por sentimentos de perdas emocionais e econômicas, que o mantêm ligado à carreira e ao trabalho que executa(⁵–⁹). Estar entrincheirado pode desencadear sentimentos de medo, relacionados ao risco de perder direitos e benefícios e à limitação da idade para a busca de uma boa reposição, além do desejo de evitar situações de esgotamento emocional e estigma social(⁵–⁶,¹⁰–¹²).

Os vínculos de comprometimento e entrincheiramento com a carreira manifestam-se a partir da motivação dos profissionais(⁶,¹¹–¹²). Assim, é importante verificar os motivos que cercam a permanência de enfermeiros da APS na profissão, uma vez que estes profissionais têm papel primordial na organização dos processos de trabalho e no gerenciamento das unidades de saúde, competindo-lhes participar do planejamento, da gestão e da avaliação das ações da equipe de enfermagem, de agentes saúde, além de desenvolver educação permanente dos profissionais da equipe, especialmente auxiliares/técnicos de enfermagem e agentes de saúde, prever e prover insumos para o adequado funcionamento da unidade(²).

Não obstante, conhecer os níveis dos vínculos de comprometimento e entrincheiramento com a carreira apresentados pelos enfermeiros da APS poderá favorecer o direcionamento de ações que fortaleçam o desenvolvimento pessoal e laboral destes profissionais, e a consolidação dos serviços de saúde do SUS. Afinal, muitas vezes, estes profissionais encontram-se sob condições de vulnerabilidade trabalhista, caracterizadas por contratações terceirizadas, por tempo determinado, com instabilidade dos vínculos trabalhistas, má remuneração e ausência de planos de cargos e salários, que levam à alta rotatividade e podem causar insatisfação e desinteresse nos trabalhadores, impactando negativamente na capacidade resolutiva do SUS(¹³–¹⁶).

Alguns estudos sobre os tipos de vínculos com a carreira, realizados com enfermeiros, evidenciam o predomínio do vínculo de comprometimento, em relação ao vínculo de entrincheiramento(⁵), além de apontar que a escolaridade, a idade, o setor de trabalho e o tempo de atuação profissional interferem nos níveis de comprometimento com a carreira(¹⁷–¹⁸). Todavia, a literatura sobre essa temática ainda é escassa, especialmente com relação aos vínculos com a carreira de enfermeiros que atuam na APS.

Diante disso, este estudo objetivou avaliar o comprometimento e o entrincheiramento com a carreira entre enfermeiros de serviços da Atenção Primária à Saúde.

MÉTODO

Tipo de Estudo

Estudo transversal, descritivo e analítico, realizado em 2018, com enfermeiros das equipes de Saúde da Família de dois municípios brasileiros.

Local

O estudo foi desenvolvido em dois municípios brasileiros, do interior do estado de São Paulo, selecionados de maneira intencional, em virtude do vínculo com os pesquisadores. O primeiro município (Município A) está situado a 452 km da capital, na região Norte do estado. É um município de grande porte e, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, possui população estimada de 438.354 habitantes. O município é sede da maior Divisão Regional de Saúde do estado de São Paulo (DRS XV) e referência no atendimento à saúde.

No momento da coleta dos dados, o município era dividido geograficamente em cinco Distritos de Saúde e contava com 27 serviços municipais de Atenção Primária à Saúde, com 40 equipes de Saúde da Família, responsáveis pela cobertura de 24% da população do município.

O segundo município (Município B) está situado na região Oeste do estado, a 596 km da capital. Possui população de 33.707 habitantes, sendo considerado um município de pequeno porte. O município é centro de referência na área da saúde para nove municípios da região da Nova Alta Paulista. Na estruturação do modelo de saúde local, a Atenção Primária à Saúde era realizada por quatro unidades de Saúde da Família, com dez equipes e cobertura de 100% da população do município.

População e Amostra

A população do estudo foi constituída pelos enfermeiros de todas unidades de Atenção Primária à Saúde dos municípios, sendo estimados 110 profissionais no município A e 24 no município B, totalizando 134 profissionais. Os enfermeiros que se encontravam afastados das atividades profissionais ou em férias, durante o período de coleta dos dados, foram excluídos do estudo.

A amostra foi constituída por 92 enfermeiros (68,7% do total), sendo 77 do município A (70% da população) e 15 do município B (62,5% da população).

Coleta de Dados

Os dados foram coletados utilizando três instrumentos autoaplicáveis, sendo: um instrumento elaborado pelos pesquisadores, com variáveis profissionais e sociodemográficas; e as Escalas de Comprometimento com a Carreira (ECC)(⁹,¹⁹) e de Entrincheiramento na Carreira (EEC)(¹⁰,²⁰), validadas no Brasil.

A ECC é composta por 12 itens distribuídos em três fatores: identidade (itens 1, 2, 3, 4), resiliência (itens 5, 6, 7, 8) e planejamento (itens 9, 10, 11, 12). Os itens compreendem sentenças relativas a comportamentos e atitudes relacionados à carreira profissional(⁹). A EEC também contém 12 itens, que avaliam os fatores: investimentos (itens 1, 2, 3, 4), custos emocionais (itens 5, 6, 7, 8) e limitação de alternativas na carreira (itens 9, 10, 11, 12). Os itens da EEC apresentam sentimentos e percepções relacionados à possibilidade de o profissional mudar de carreira(²⁰).

Os pesquisadores utilizaram as reuniões de equipe para a coleta dos dados, após o agendamento com as gerentes das unidades de saúde. Inicialmente foram explicados os objetivos do estudo e, a seguir, entregues os questionários e os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), em envelopes separados e lacrados. Os profissionais puderam responder os questionários no local de trabalho ou em suas casas, em um prazo determinado de até sete dias. Após respondê-los, os questionários foram devolvidos em envelopes separados e lacrados, para evitar a identificação dos participantes do estudo.

Para os profissionais que não estavam presentes nas reuniões, os pesquisadores deixaram os questionários e o TCLE com as gerentes das unidades, que entregaram e recolheram os mesmos em envelopes separados e lacrados, e os entregaram para os pesquisadores, posteriormente, até o prazo máximo de 30 dias.

Análise e Tratamento dos Dados

Para a análise dos dados foi utilizado o programa SPSS (Statistical Package for Social Sciences), versão 20.0. Primeiramente, realizou-se a análise de precisão dos dados, por meio de técnicas estatísticas descritivas e exploratórias; análise do tamanho e descrição da amostra; e distribuição dos casos omissos. A confiabilidade dos dados foi verificada pelo indicador Alpha de Cronbach, que apontou α = 0,792 para o comprometimento com a carreira e α = 0,795 para o entrincheiramento com a carreira, valores considerados bons indicadores de confiabilidade(²¹).

A caracterização da população do estudo foi realizada por meio das variáveis profissionais e sociodemográficas. Para verificar os níveis dos vínculos estabelecidos pelos enfermeiros, inicialmente foi calculado o escore médio e o desvio padrão dos construtos, numa escala de zero a 20 para cada fator dos construtos: identidade [(Mean.(ECC1,ECC2,ECC3,ECC4) * 5)], planejamento [(Mean.(ECC5,ECC6,ECC7,ECC8) * 5)] e resiliência [(Mean.(ECC9,ECC10,ECC11,ECC12) * 5)]; investimentos [(Mean.(EEC1,EEC2,EEC3,EEC4) * 5)], limitação de alternativas [(Mean.(EEC5,EEC6,EEC7,EEC8) * 5)] e custo emocionais [(Mean.(EEC9,EEC10,EEC11,EEC12) * 5)]; e zero a 60 para os construtos comprometimento [(Mean. (ECC1,ECC2,ECC3,ECC4,ECC5,ECC6,ECC7,ECC8,ECC9,ECC10,ECC11,ECC12) * 5)] e entrincheiramento com a carreira [(Mean.(EEC1,EEC2,EEC3,EEC4,EEC5,EEC6,EEC7,EEC8,EEC9,EEC10,EEC11,EEC12) * 5)]. Em seguida, as médias de cada fator/construto foram padronizadas para uma escala de zero a 100 pontos, por meio da fórmula: (média do fator/construto * 100/20), e categorizadas conforme o valor médio obtido em: baixo (zero a 33,3 pontos), médio (33,3 a 66,7 pontos) e alto (66,7 a 100,0 pontos).

Por fim, verificou-se a diferença entre os níveis dos vínculos com a carreira, segundo variáveis sociodemográficas e profissionais, aplicando-se teste t ou análise de variância (ANOVA) para comparação das médias e considerando significantes valores de p ≤ 0,05.

Aspectos Éticos

Atendendo às exigências do Conselho Nacional de Saúde para estudos que envolvem seres humanos, o projeto foi submetido à análise do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto e aprovado com Parecer nº. 2.412.726, de 4 de dezembro 2017. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi assinado por todos os profissionais que participaram do estudo.

RESULTADOS

Participaram do estudo 92 enfermeiros, sendo 77 (83,7%) do município A e 15 (16,3%) do município B. Houve prevalência de profissionais do sexo feminino (93,5%%); idade entre 31 e 40 anos (44,6%), mediana de 37 anos; casados (60,9%); com especialização (81,5%); concursados (70,7%); renda familiar de seis a 10 salários mínimos (44,6%); gerentes das unidades de saúde (43,5%); e atuação na APS entre dois e cinco anos (28,3%), conforme mostra a Tabela 1.

Tabela 1.
Características profissionais e sociodemográficas dos enfermeiros da APS dos municípios estudados. São Paulo, Brasil, 2018.

Variáveis	Município A	Município B
	n (%)	n (%)
Total	77 (100,0)	15 (100,0)
Sexo
Masculino	5 (5,2)	1 (6,7)
Feminino	72 (93,5)	14 (93,3)
Não respondeu	1 (1,3)	–
Faixa etária
De 20 a 30 anos	16 (20,8)	1 (6,7)
De 31 a 40 anos	32 (41,6)	9 (60,0)
De 41 a 50 anos	19 (24,7)	3 (20,0)
Com 51 anos ou mais	6 (7,8)	2 (13,3)
Não respondeu	4 (5,2)	–
Estado civil
Casado	44 (57,1)	12 (80,0)
Solteiro	27 (35,1)	2 (13,3)
Separado	5 (6,5)	–
Viúvo	1 (1,3)	1 (6,7)
Escolaridade
Graduação	10 (13,0)	3 (20,0)
Especialização	63 (81,8)	12 (80,0)
Mestrado	2 (2,6)	–
Doutorado	2 (2,6)	–
Tipo de contrato
Concursado	53 (68,8)	12 (80,0)
Contratado	24 (31,2)	3 (20,0)
Renda familiar (em salários mínimos)*
De dois a cinco	24 (31,2)	10 (66,7)
De seis a 10	39 (50,6)	2 (13,3)
Mais de 10	12 (15,6)	3 (20,0)
Não respondeu	2 (2,6)	–
Gerente da unidade de saúde
Sim	31 (40,3)	9 (60,0)
Não	46 (59,7)	6 (40,0)
Tempo atuação na APS
Até dois anos	17 (22,1)	2 (13,3)
De dois a cinco anos	21 (27,3)	5 (33,3)
De seis a 10 anos	16 (20,8)	2 (13,3)
De 11 a 20 anos	20 (26,0)	4 (26,7)
Mais de 20 anos	1 (1,3)	2 (13,3)

• *Valor do Salário Mínimo: R$937,00.

Os resultados dos vínculos com a carreira mostraram que os enfermeiros apresentaram maior média para o construto comprometimento com a carreira (61,4 pontos) do que para o entrincheiramento com a carreira (57,8 pontos). Em relação ao comprometimento com a carreira, o fator identidade com a carreira obteve média mais elevada, classificada como alta (70,9 pontos). Os fatores resiliência com a carreira e planejamento com a carreira obtiveram escores classificados como médios (62,5 e 50,8 pontos, respectivamente) (Tabela 2).

Tabela 2.
Médias padronizadas e desvios padrão (±dp) para os construtos e fatores dos tipos de vínculos com a carreira e sua respectiva classificação. São Paulo, Brasil, 2018.

Vínculos com a carreira	Médias padronizadas (±dp)	Classificação
Comprometimento com a carreira	61,4 (±6,8)	Médio
Identidade com a carreira	70,9 (±10,3)	Alto
Planejamento com a carreira	50,8 (±10,5)	Médio
Resiliência com a carreira	62,5 (±17,5)	Médio
Entrincheiramento com a carreira	57,8 (±7,6)	Médio
Investimentos na carreira	57,7 (±18,2)	Médio
Limitação de alternativas na carreira	58,8 (±8,7)	Médio
Custos emocionais na carreira	57,0 (±10,1)	Médio

Em relação ao entrincheiramento com a carreira observou-se nível médio para o construto (57,8 pontos) e seus três fatores [investimentos com carreira = 57,7 pontos; limitações de alternativas com a carreira = 58,8 pontos; custos emocionais na carreira = 57,0 pontos]. Os desvios padrão apresentados foram baixos, evidenciando baixa variabilidade nas respostas dos enfermeiros (Tabela 2).

A Tabela 3 mostra os níveis dos vínculos com a carreira dos enfermeiros, segundo o município estudado, e aponta que não houve diferença significativa nos níveis dos vínculos com a carreira obtidos pelos enfermeiros dos dois municípios. Os profissionais dos dois municípios apresentaram vínculo de nível alto no fator identidade com a carreira [município A = 70,7 pontos; município B = 72,0 pontos]. Para os demais fatores e para os construtos (comprometimento e entrincheiramento), os níveis de vínculo com a carreira foram médios.

Tabela 3.
Médias padronizadas e desvios padrão (±dp) para os construtos e fatores dos tipos de vínculos com a carreira e sua respectiva classificação. São Paulo, Brasil, 2018.

Vínculos com a carreira	Médias padronizadas (±dp)		Valor-p*
	Município A	Município B
Comprometimento com a carreira	61,2 (±7,2)a	62,4 (±4,3)a	0,833
Identidade com a carreira	70,7 (±9,5)b	72,0 (±14,0)b	0,779
Planejamento com a carreira	50,0 (±10,4)a	55,0 (±10,0)a	0,286
Resiliência com a carreira	62,9 (±17,9)a	60,3 (±15,9)a	0,460
Entrincheiramento com a carreira	57,6 (±7,3)a	59,0 (±8,7)a	0,346
Investimentos na carreira	58,3 (±17,8)a	55,0 (±20,2)a	0,963
Limitação de alternativas na carreira	58,1 (±9,0)a	62,4 (±6,3)a	0,115
Custos emocionais na carreira	56,4 (±10,1)a	59,7 (±10,3)a	0,495

• *Test t. ^a Nível Médio. ^b Nível Alto.

Observou-se, no entanto, que os enfermeiros do município B apresentaram níveis de comprometimento com a carreira (62,4 pontos) discretamente superiores aos do município A (61,2 pontos). O mesmo ocorreu para os fatores identidade com a carreira [município B = 72,0 pontos; município A = 70,7 pontos] e planejamento com a carreira [município B = 55,0 pontos; município A = 50,0 pontos]. Para o fator resiliência com a carreira, os enfermeiros do município A apresentaram níveis superiores aos do município B (62,9 versus 60,3 pontos, respectivamente).

Em relação ao entrincheiramento com a carreira, a média obtida pelos enfermeiros do município B (59,0 pontos) foi maior do que a obtida pelos profissionais do município A (57,6 pontos). O oposto ocorreu no fator investimentos na carreira, ou seja, foi levemente maior no município A (58,3 pontos) em relação ao município B (55,0 pontos).

Nos fatores limitação de alternativas na carreira e custos emocionais na carreira, o município B obteve maiores médias do que o município A, conforme mostra a Tabela 3.

Em relação aos níveis de comprometimento e entrincheiramento com a carreira dos enfermeiros, segundo as características sociodemográficas e profissionais (Tabela 4), observou-se que o nível de identidade com a carreira foi significativamente maior entre os enfermeiros contratados (p = 0,033), evidenciando que estes profissionais possuem maior ligação emocional com a carreira.

Tabela 4.
Médias padronizadas e desvios padrão (±dp) para os construtos e fatores dos tipos de vínculos com a carreira, segundo as características sociodemográficas e profissionais dos enfermeiros da Atenção Primária. São Paulo, Brasil, 2018.

Variáveis sociodemográficas e profissionais	Comprometimento com a carreira				Entrincheiramento com a carreira
	Identidade	Planejamento	Resiliência	Construto geral	Investimentos	Limitação de alternativas	Custos emocionais	Construto geral
Sexo
Masculino	67,0 (±6,7)a	51,0 (±10,2)a	58,0 (±13,0)a	58,7 (±8,8)a	52,2 (±14,4)a	63,0 (±2,7)a	60,0 (±5,0)a	58,3 (±5,9)a
Feminino	71,3 (±10,3)b	50,7 (±10,5)a	62,6 (±17,8)a	61,5 (±6,7)a	58,3 (±18,4)a	58,5 (±8,9)a	57,0 (±10,2)a	57,9 (±7,6)a
Valor-p	0,363	0,237	0,950	0,487	0,882	0,398	0,016	0,270
Escolaridade
Graduação	72,7 (±10,1)b	50,4 (±6,3)a	58,9 (±15,6)a	60,6 (±5,1)a	49,6 (±21,6)a	57,8 (±8,5)a	54,6 (±11,6)a	54,0 (±9,0)a
Especialização	70,9 (±10,2)b	51,5 (±10,6)a	63,2 (±17,9)a	61,8 (±6,8)a	59,4 (±17,1)a	58,9 (±9,0)a	57,7 (±9,9)a	58,6 (±7,0)a
Mestrado	67,5 (±17,7)a	45,0 (±7,1)a	62,5 (±17,7)a	58,3 (±14,1)a	65,0 (±14,1)a	65,0 (±0,0)a	55,0 (±7,1)a	61,7 (±7,1)a
Doutorado	62,5 (±10,6)a	35,0 (±21,2)a	60,0 (±28,3)a	52,5 (±1,2)a	40,0 (±28,3)a	57,5 (±3,5)a	47,5 (±10,6)a	48,3 (±11,8)a
Valor-p	0,227	0,588	0,138	0,872	0,044	0,141	0,755	0,416
Tipo de contrato
Concursado	70,4 (±9,7)b	52,2 (±10,1)a	64,5 (±17,1)a	62,4 (±6,6)a	60,8 (±16,1)a	58,7 (±8,2)a	57,7 (±9,7)a	59,0 (±6,4)a
Contratado	72,0 (±11,7)b	47,6 (±10,8)a	57,6 (±18,0)a	59,1 (±6,8)a	50,4 (±20,9)a	59,1 (±10,0)a	55,2 (±11,1)a	54,9 (±9,3)a
Valor-p	0,033	0,485	0,056	0,084	0,015	0,012	0,860	0,282
Tempo atuação na APS
Até dois anos	75,0 (±10,3)b	48,4 (±9,0)a	53,4 (±17,6)a	58,9 (±7,5)a	47,9 (±20,5)a	54,5 (±9,7)a	61,6 (±9,1)a	54,6 (±9,4)a
De dois a cinco anos	69,4 (±10,7)a	53,3 (±11,9)a	62,9 (±16,7)a	61,9 (±6,4)a	55,4 (±15,9)a	61,9 (±8,3)a	56,4 (±9,2)a	57,9 (±5,5)a
De seis a 10 anos	67,8 (±9,4)a	50,6 (±8,0)a	70,0 (±16,9)b	62,8 (±6,3)a	63,9 (±11,8)a	59,7 (±6,5)a	56,7 (±9,2)a	60,1 (±5,3)a
De 11 a 20 anos	72,1 (±9,8)b	49,6 (±12,2)a	62,7 (±17,8)a	61,6 (±7,0)a	62,3 (±20,7)a	57,2 (±9,0)a	55,4 (±12,5)a	58,3 (±9,3)a
Mais de 20 anos	63,3 (±11,5)a	55,0 (±8,7)a	60,0 (±8,7)a	59,4 (±2,5)a	71,7 (±7,6)b	63,3 (±5,8)a	50,0 (±0,0)a	61,7 (±4,4)a
Valor-p	0,468	0,129	0,536	0,074	0,221	0,022	0,040	0,205

• ^a Nível Médio. ^b Nível Alto.

Em relação aos fatores do construto entrincheiramento com a carreira, o nível dos custos emocionais na carreira foi maior entre enfermeiros do sexo masculino (p = 0,016); o nível de investimentos na carreira entre mestres e especialistas foi maior do que o de doutores e graduados (p = 0,044).

Profissionais concursados apresentaram maior perda de investimentos em caso de mudança na carreira (p = 0,015), enquanto os profissionais contratados apresentaram maiores custos emocionais em caso de mudança de carreira (p = 0,012).

O tempo de atuação na APS também influenciou os fatores do entrincheiramento com a carreira. Foram observados maiores escores para limitação de alternativas na carreira entre os enfermeiros que tinham de dois a cinco anos ou com mais de 20 anos de atuação profissional na APS (p = 0,022). Já os enfermeiros com até dois anos de atuação na APS apresentaram maiores custos emocionais em caso de mudança da carreira (p = 0,040).

Não houve diferenças significativas nos níveis dos vínculos com a carreira em relação à faixa etária, estado civil, renda familiar e ser ou não gerente da unidade de saúde (p > 0,05).

DISCUSSÃO

O perfil descrito pela literatura dos profissionais de nível superior que atuam na APS corrobora o perfil dos enfermeiros deste estudo, constituído majoritariamente por mulheres casadas, com menos de 40 anos e pós-graduadas, com tempo de atuação na APS entre dois e cinco anos(¹³,¹⁵,²²).

O fato de os enfermeiros apresentarem vínculo empregatício formal e estável é positivo para o sistema de saúde, pois contribui para o fortalecimento da gestão municipal, especialmente na implementação de ações de longo prazo, garantindo a continuidade da atenção à saúde da população. Além disso, se o município tiver um plano de carreira que assegure crescimento e valorização profissional, pode gerar aumento da satisfação profissional e a ampliação da resolutividade local do sistema de saúde. Da mesma forma, esta estabilidade favorece o aumento dos níveis de comprometimento com a carreira, especialmente no fator planejamento na carreira(²³–²⁴).

A atuação dos enfermeiros como gerentes dos serviços de APS é condizente com a literatura, que aponta um grande número de profissionais exercendo esta função em municípios de grande porte, onde o cargo de gerente é comum. A criação e formalização deste cargo permite que se definam as competências necessárias aos profissionais que o ocuparão, estabelecendo-se salários compatíveis com o cargo/função, de modo a fortalecer o processo de gestão dos serviços, gerando impactos positivos na resolutividade das ações de atenção à saúde(²⁵).

A obtenção de níveis médios de comprometimento e entrincheiramento com a carreira pelos enfermeiros corrobora com a literatura nacional sobre o tema(⁵). No entanto, estudos com enfermeiros sauditas(¹⁷) e egípcios(¹⁸) apontaram níveis de comprometimento com a carreira elevados entre os profissionais. Esse resultado pode ser reflexo do processo de trabalho dos enfermeiros brasileiros na APS que, além da crescente demanda de usuários, apresenta dificuldades como o número insuficiente de profissionais de enfermagem nas equipes, a sobrecarga com as atividades clínico-assistenciais, administrativas e de gestão, o déficit estrutural das unidades de saúde, a precariedade de vínculos empregatícios e a falta de reconhecimento do trabalho do enfermeiro pelos gestores e usuários dos serviços(²⁶).

A Literatura aponta que o apoio social recebido pelos enfermeiros impacta positivamente no nível de comprometimento dos profissionais com a carreira(¹⁷–¹⁸). Todavia, o fato de a Enfermagem não ser uma profissão fortemente valorizada no Brasil e ser historicamente constituída sob a égide da caridade e do voluntariado(²⁷) pode contribuir para a redução dos níveis de comprometimento com a carreira encontrada entre os enfermeiros brasileiros em relação aos profissionais de outros países.

Por outro lado, o elevado nível de identidade com a carreira mostra que os enfermeiros da APS desejam crescer e serem reconhecidos profissionalmente. Nesse contexto, é compreensível que os enfermeiros contratados tenham apresentado nível de identidade com carreira significativamente maior do que os concursados, pois ao se destacarem na carreira, estes profissionais ganham reconhecimento e diminuem o risco de terem seus contratos encerrados.

Não obstante, a alta identidade com a carreira é um aspecto positivo, visto que o foco na carreira pode aumentar a possibilidade de os profissionais investirem em suas capacidades e conhecimentos, contribuindo para o aumento de seu desempenho e autonomia profissionais, além de favorecer o fortalecimento da carreira e o aumento da satisfação profissional(²⁸–²⁹).

Além disso, os enfermeiros apresentaram bons níveis de resiliência com a carreira, ou seja, possuem boa capacidade de se adaptar e superar situações adversas, muito comuns no sistema público de saúde brasileiro, como a superlotação, falta de profissionais, equipamentos e materiais, cortes de recursos financeiros, entre outros(³⁰). Profissionais com bons níveis de resiliência com a carreira são vistos como capazes de trabalhar em equipe, articulando independência e cooperação, aspectos importantes para atender às prerrogativas da Política Nacional de Atenção Básica, que foi revisada em 2017, e trouxe novas diretrizes para a organização das equipes de APS, no âmbito do SUS(²).

Os níveis médios de investimentos na carreira, limitação de alternativas na carreira e custos emocionais na carreira apresentados pelos enfermeiros da APS corroboram estudos brasileiros com profissionais de saúde(⁵,²⁹). Também, evidenciam que, entre os enfermeiros da APS, a influência do vínculo entrincheiramento é menor do que a influência do vínculo comprometimento com a carreira, ou seja, não são a falta de alternativas de atuação profissional, os custos emocionais ou os investimentos perdidos em caso de mudança de carreira que obrigam os enfermeiros a permanecerem nos serviços de APS dos municípios, mas o desejo de se desenvolver na carreira.

As diferenças dos níveis de vínculos com a carreira observadas entre os profissionais dos diferentes municípios, embora não sejam estatisticamente significativas, podem estar relacionadas à realidade organizacional e gerencial dos municípios, bem como às oportunidades de trabalho e perspectivas de crescimento.

Em municípios de pequeno porte, onde as oportunidades de trabalho para os enfermeiros são reduzidas e o sistema público é um importante empregador, é compreensível que os profissionais tenham dificuldade de encontrar outras alternativas profissionais fora da APS e sofram perdas emocionais caso haja mudança de ocupação, motivo que os leva a apresentarem forte ligação emocional com a carreira na APS e maior capacidade de definir metas para o desenvolvimento desta carreira. Por outro lado, em municípios de grande porte, onde as demandas dos serviços são mais intensas e desgastantes, é esperado que os enfermeiros apresentem alta capacidade de enfrentamento das adversidades e, em caso de mudança de carreira, percam mais investimentos.

A maior ligação emocional com a carreira, apresentada pelos enfermeiros contratados em relação aos concursados, também foi encontrada em estudo com enfermeiros sauditas(¹⁷) e pode ser explicada pela instabilidade do vínculo de trabalho dos profissionais contratados. Em contrapartida, por possuírem estabilidade no emprego, os enfermeiros concursados apresentaram maiores custos emocionais em caso de eventual mudança de carreira, visto que esses profissionais tendem a planejar melhor e a investir mais na carreira, uma vez que a estabilidade proporciona maiores possiblidades de desenvolvimento e crescimento no ambiente laboral, ao longo da trajetória profissional. Nesse contexto, a literatura destaca que há grandes diferenças de carreira entre os setores público e privado, sendo que a estabilidade oferecida para os profissionais concursados permite que os profissionais se qualifiquem continuamente, o que nem sempre ocorre com profissionais contratados(¹¹,¹⁷).

CONCLUSÃO

O estudo mostrou que o comprometimento com a carreira foi o vínculo predominante entre os enfermeiros da APS, ou seja, os profissionais apresentaram maior vínculo de identificação e relação positiva do que de estagnação com a carreira.

Além disso, os resultados sobre a análise do comprometimento e entrincheiramento com a carreira entre os enfermeiros da APS, obtidos neste estudo, contribuem para o processo de gestão na Atenção Primária e favorecem o direcionamento de ações de desenvolvimento pessoal e laboral destes profissionais, com vistas à estruturação e ao fortalecimento de uma proposta de carreira que contribua para consolidar a ESF como modelo de atenção à saúde no SUS, secundando o avanço deste sistema, com o aumento da cobertura e do acesso universal aos serviços de APS.

Este estudo apresenta como principal limitação o seu desenvolvimento antes do início da pandemia de Covid-19, que levou à exposição dos enfermeiros a riscos de infecção pelo SARS-CoV-2, e anterior à declaração do “Ano internacional dos profissionais da Enfermagem e das Parteiras” pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e Organização Mundial da Saúde (OMS), que objetivou valorizar o trabalho dos profissionais e destacar os desafios da profissão. Portanto, os resultados obtidos não sofreram influência negativa dos riscos relacionados ao enfrentamento da pandemia, nem influência positiva decorrente de possíveis investimentos e melhorias nas condições de trabalho e desenvolvimento profissional realizados em decorrência do “Ano da Enfermagem”.

Todavia, novos estudos são necessários e importantes para verificar os motivos que cercam a permanência dos enfermeiros na profissão, após o ano de 2020, marcado pela campanha de valorização da Enfermagem e pelo enfrentamento da pandemia de Covid-19.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  15 Nov 2021
• Data do Fascículo
  2021

Histórico

• Recebido
  22 Abr 2021
• Aceito
  06 Out 2021