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Resistência antimicrobiana no Brasil: uma agenda integrada de pesquisa

INTRODUÇÃO

A resistência antimicrobiana (RAM) adquirida ocorre quando bactérias, vírus, fungos e parasitas alteram-se ao longo do tempo e deixam de responder a medicamentos aos quais anteriormente eram susceptíveis(11. World Health Organization. Antimicrobial Resistance [Internet]. Geneva: WHO; 2021. Available from: https://www.who.int/health-topics/antimicrobial-resistance.
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). Isso torna as infecções mais difíceis de serem tratadas e aumenta o risco de propagação de patógenos, levando a maior mortalidade. Embora o termo antimicrobiano refira-se a antibióticos, antivirais, antifúngicos e antiparasitários, este artigo focaliza questões relacionadas com o uso de antibióticos no contexto brasileiro.

A RAM é uma ameaça à saúde global e seu agravamento é observado no atual contexto da pandemia do SARS-CoV-2. Somada aos desafios do controle de infecções e prevalência de morbidades e mortalidade na pandemia, resistências virais e bacterianas apresentam-se como uma emergência global de saúde. Nesse sentido, o problema da RAM torna-se intrinsicamente relacionado ao atual contexto sanitário, o que pode implicar em padrões acelerados de RAM e maior incidência nos serviços de saúde.

Esses desafios, com implicações sanitárias e políticas em escala global, são especialmente difíceis em países com rendimento econômico médio e baixo, como é o caso do contexto latino-americano. Nesse cenário, respostas ao problema da RAM requerem esforços coordenados e multissetoriais envolvendo perspectivas clínico-biológicas, socioeconômicas e políticas nos âmbitos global, nacional e local.

Em resposta à agenda global de enfrentamento à RAM, a Organização Mundial de Saúde (OMS) propõe “uma abordagem colaborativa, multissetorial e transdisciplinar – trabalhando nos níveis locais, regionais e nacionais – para alcançar resultados ótimos de saúde e bem-estar ao reconhecer as interconexões entre pessoas, animais, plantas e seu ambiente compartilhado”, designada Saúde Única(22. World Health Organization. Global Action Plan on Antimicrobial Resistance. Geneva: WHO; 2015. Available from: https://www.who.int/publications/i/item/9789241509763.
https://www.who.int/publications/i/item/...
,33. One Health Commission. What is One Health [Internet]. 2021 [cited 2021 Apr 21]. Available from: https://www.onehealthcommission.org/en/why_one_health/what_is_one_health/.
https://www.onehealthcommission.org/en/w...
). Este artigo considera os potenciais desdobramentos da abordagem da Saúde Única para a pesquisa sobre a RAM. Adota uma perspectiva teórico-metodológica que articula a abordagem da Saúde Única e a produção social do fenômeno da RAM, em três eixos. O primeiro refere-se às práticas de prescrição e dispensação de antibióticos por profissionais. O segundo diz respeito à análise do uso de antibióticos sob o ponto de vista dos usuários dos serviços de saúde. O terceiro propõe a reflexão sobre o processo de construção de uma agenda política de enfrentamento à RAM no Brasil. Esta contribuição apresenta uma apreciação e valorização da diversidade de práticas, conhecimentos e perspectivas individuais de usuários da Atenção Primária à Saúde (APS), profissionais de saúde e formuladores de políticas que visam a preencher lacunas de pesquisa e conhecimento no contexto brasileiro. Além disso, visa a fazer avançar a agenda global de ações no Brasil, ao mesmo tempo em que contribui com reflexões que possam servir de referência para a região latino-americana.

Prescrição de Antibióticos e Resistência Antimicrobiana

A prescrição de antibióticos tem sido objeto de monitoramento crescente em ambientes hospitalares na última década, ainda que a maior parte do problema esteja na APS. Estudos apontam diversos fatores associados à prescrição de antimicrobianos: conhecimentos acerca da RAM, situações clínicas críticas, percepções de risco e expectativas dos pacientes, além de comportamentos, valores e ideologias dos profissionais(44. Krockow EM, Colman AM, Chattoe-Brown E, Jenkins DR, Perera N, Mehtar S, et al. Balancing the risks to individual and society: a systematic review and synthesis of qualitative research on antibiotic prescribing behaviour in hospitals. J Hosp Infect. 2019;101(4):428-39.). Ademais, o funcionamento dos serviços de saúde, a comunicação entre os diferentes níveis de atenção à saúde e a influência ou a falta de recomendações clínicas e protocolos clínicos baseados em evidência, particularmente na APS, constituem desafios para a implementação de intervenções adequadas nesse nível de atenção à saúde.

A prescrição de antibióticos tem sido largamente utilizada como estratégia preventiva no âmbito da medicina veterinária e zootecnia. Antibióticos são ofertados em larga escala para promover o crescimento e o desenvolvimento de animais para o consumo alimentar humano, ainda que os impactos dessas práticas na produção da RAM sejam pouco considerados(55. Ferri M, Ranucci E, Romagnoli P, Giaccone V. Antimicrobial resistance: A global emerging threat to public health systems. Crit Rev Food Sci Nutr. 2017;57(13):2857-76.).

Entretanto, a compra, a venda, o manejo e o descarte de antibióticos em farmácias e em lojas de suprimentos para animais continuam sendo superficialmente abordados e de forma fragmentada(66. Braoios A, Pereira ACS, Bizerra AA, Policarpo OF, Soares NC, Barbosa AS. Uso de antimicrobianos pela população da cidade de Jataí (GO), Brasil. Cien Saude Colet. 2013;18(10):3055-60.). Desse modo, a RAM tende a ser analisada sobretudo em relação à saúde humana ou à relação médico-paciente, mesmo que se estenda na teia de interações entre humanos, animais e meio ambiente, incluindo os próprios sistemas de saúde e a oferta de redes de saneamento básico(55. Ferri M, Ranucci E, Romagnoli P, Giaccone V. Antimicrobial resistance: A global emerging threat to public health systems. Crit Rev Food Sci Nutr. 2017;57(13):2857-76.,77. Tompson AC, Chandler CIR. Addressing antibiotic use: insights from social science around the world [Internet]. Londres: London School of Hygiene & Tropical Medicine; 2021. Available from: https://researchonline.lshtm.ac.uk/id/eprint/4659562/.
https://researchonline.lshtm.ac.uk/id/ep...
). É escassa a produção científica sobre as relações entre humanos, animais e consumo alimentar, sobretudo no contexto brasileiro.

A comunicação e negociação entre prescritores de antibióticos e usuários, assim como os desafios e as facilidades que os profissionais encontram em suas práticas clínicas, cooperam para tornar ainda mais complexa a dinâmica intrínseca à prescrição de antibióticos. Por exemplo, no Brasil, antibióticos foram inseridos no chamado kit-Covid, um arranjo de medicamentos considerados “profiláticos”, incentivado à prescrição e uso pelo Governo Federal com o slogan de “tratamento precoce”. Como consequência, a azitromicina, antibiótico já utilizado nos serviços de saúde, teve maior prescrição e venda ao longo de 2020 no país como um dos componentes do kit-Covid (88. Melo JRR, Duarte EC, Moraes MV, Fleck K, Dourado Arrais PS. Automedicação e uso indiscriminado de medicamentos durante a pandemia da COVID-19. Cad Saude Publica. 2021;37(4):e00053221.).

As Práticas de Uso de Antibióticos sob o Ponto de Vista dos Usuários dos Serviços de Saúde

No Brasil, a análise das condições de acesso aos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), sobretudo por meio das ­equipes da Estratégia Saúde da Família, contribui para o conhecimento dos espaços de habitação e compreensão dos fatores que condicionam a demanda e o uso de antibiótico. Revela ­também como as interações entre usuários e profissionais de saúde são importantes para orientar atitudes informadas de consumo desses medicamentos. A unidade familiar, a comunidade, as relações entre humanos e animais e as condições sanitárias em que vivem constituem aspectos de compreensão da problemática.

Assim, é estratégica a centralidade do indivíduo inserido no ambiente onde habita com vistas ao mapeamento de suas atitudes e conhecimentos relativos ao uso de antibióticos e à RAM. Características como gênero, geração, renda e habitação são compreendidas como fatores prevalentes para as diferentes formas de uso de antibióticos. Identifica-se, ainda, o desconhecimento dos indivíduos sobre as complicações provocadas pelo uso desses medicamentos sem prescrição médica e pela automedicação(66. Braoios A, Pereira ACS, Bizerra AA, Policarpo OF, Soares NC, Barbosa AS. Uso de antimicrobianos pela população da cidade de Jataí (GO), Brasil. Cien Saude Colet. 2013;18(10):3055-60.). O impacto do descarte de antibióticos no lixo doméstico, pias e sanitários é pouco conhecido, assim como sua influência na pressão seletiva de agentes resistentes, o que indica a relevância de investigar as condições de uso, estocagem e descarte de antibióticos entre os usuários do sistema de saúde. Todos esses aspectos são investidos de urgência no contexto brasileiro, tendo em vista os altos números de prescrição e consumo desses medicamentos desde o início da pandemia de COVID-19 no país(88. Melo JRR, Duarte EC, Moraes MV, Fleck K, Dourado Arrais PS. Automedicação e uso indiscriminado de medicamentos durante a pandemia da COVID-19. Cad Saude Publica. 2021;37(4):e00053221.).

Tais elementos demandam uma compreensão abrangente de ambiente, como o contexto no qual se inserem indivíduos e grupos, sendo a noção de ambiente aquela do espaço compartilhado onde são construídas redes que englobam indivíduos e grupos, assim como as relações que estabelecem entre si. Nesse sentido, é pertinente a abordagem integrada do meio-ambiente e da saúde, tanto humana como animal, preconizada pela Saúde Única. Assim, visibilizam-se dimensões da coabitação e ­interação entre donos e animais, pois tanto animais domésticos quanto humanos podem desenvolver e transmitir microrganismos multirresistentes a antibióticos. Portanto, as práticas de cuidados veterinários de animais domésticos, como a prescrição de antibióticos, também impactam na RAM.

A Resposta À Ram No Brasil: Construção de Uma Agenda Política

Embora ações pontuais relacionadas à RAM tenham sido desenvolvidas em anos anteriores, a formalização de uma agenda nacional somente se concretizou em 2018, com a publicação do Plano de Ação Nacional de Prevenção e Controle da Resistência aos Antimicrobianos no Âmbito da Saúde Única (PAN-BR)(99. Brasil. Ministério da Saúde. Plano de Ação Nacional de Prevenção e Controle da Resistência aos Antimicrobianos no Âmbito da Saúde Única 2018-2022 [Internet]. Brasília; 2018. Available from: www.saude.gov.br/svs.
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), coordenado pelo Ministério da Saúde e contando com a participação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e do Ministério do Meio Ambiente (MMA), dentre outros. O PAN-BR atende tanto a uma necessidade interna, de construção de uma agenda política mais integrada e intersetorial, como responde a um chamado da agenda multilateral liderada pela OMS, em parceria com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e a Organização Internacional de Saúde Animal (OIE) que reconheceram o problema da RAM como um tema prioritário na agenda da saúde global.

A formulação do PAN-BR representa um avanço no reconhecimento da necessidade de uma abordagem multidisciplinar e multissetorial da RAM. Sua implementação demanda relações articuladas entre diferentes níveis de governança, órgãos públicos e privados, indústrias, além da sociedade em geral. Isso implica diferentes prioridades e possíveis interesses conflitantes. Dentre os principais desafios para sua implementação, destacam-se: a instituição de uma política sustentável; a execução descentralizada das atividades de controle, prevenção e monitoramento; e o investimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação para produção de antimicrobianos, métodos diagnósticos e vacinas por meio do acesso universal e equitativo(1010. Estrela TS. Resistência antimicrobiana: enfoque multilateral e resposta brasileira. In: Brasil. Ministério da Saúde. Saúde e Política Externa: os 20 anos da Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde: (1998-2018) [Internet]. Brasília; 2018. Available from: http://www.un.org/sustainabledevelopment/sustainable-development-goals/.
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). É necessário criar mecanismos que permitam o diálogo entre as vigilâncias sanitária e epidemiológica, com compartilhamento de dados, para possibilitar a busca de nexos causais relativos à RAM na ­perspectiva da Saúde Única.

O contexto da pandemia global de SARS-CoV-2 colocou em relevo elementos importantes para a agenda da RAM, dentre os quais a urgência do investimento em programas de prevenção e controle de infecções, e a necessidade de amplas estratégias de comunicação de risco, além dos perigos advindos da dependência tecnológica de insumos de saúde para a garantia de medicamentos, incluindo os antibióticos. As lições apreendidas podem servir de referência para o planejamento de intervenções relacionadas à RAM no cenário pós-pandemia e para prevenção de cenários de crise futuros.

A pesquisa sobre a agenda política da RAM no Brasil implica compreender os enquadramentos dados ao tema, bem como os processos subjacentes de disputa, negociação, criação de consensos e dissensos a partir das visões dos principais atores interessados. Compreender em que medida respostas políticas como o PAN-BR incorporam visões e demandas dos usuários de serviços de saúde e dos profissionais que atuam na prescrição e dispensação de antibióticos é fundamental para promover intervenções adequadas e sustentáveis.

  • Apoio financeiro Danida – Ministry of Foreign Affairs of Denmark.

REFERENCES

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    » http://www.un.org/sustainabledevelopment/sustainable-development-goals/.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Jan 2022
  • Aceito
    12 Jan 2022
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