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A organização do trabalho em saúde à luz da ergologia: experiências na pandemia da COVID-19

RESUMO

Objetivo:

O estudo buscou compreender a organização do trabalho de profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de COVID-19 em Manaus.

Método:

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso, que adotou como referencial teórico a ergologia. A produção dos dados empregou análise documental e entrevista semiestruturada com 33 trabalhadores da saúde da Rede de Atenção à Saúde. Utilizaram-se os recursos do software Atlas.ti 8.0 para análise de dados.

Resultados:

Os preceitos da análise de Redes Temáticas revelaram as seguintes categorias: “Reordenamento de serviços e funções”; “Incorporação e gestão da aplicação de instrumentos”; “Experiências e táticas profissionais: mudanças de papeis, atitudes e relações”.

Conclusão:

Constatou-se que eles expressam uma visão dinâmica do processo organizacional, em que o trabalhador, ao discutir normas do passado e comparar seus conhecimentos, experiências e valores, modifica o ambiente, os fluxos e as condutas conforme a necessidade, enfrentando a falta de segurança, de condições e de solidez das bases técnicas do trabalho.

DESCRITORES
Trabalho; Pessoal de Saúde; COVID-19; Serviços de Saúde

ABSTRACT

Objective:

To understand the work organization of health professionals when coping with the COVID-19 pandemic in Manaus.

Method:

This is a qualitative case study which adopted ergology as theoretical framework. Data production used document analysis and semi-structured interviews with 33 health workers from the Health Care Network. The resources of the software Atlas.ti 8.0 were used for data analysis.

Results:

The precepts of Thematic Networks analysis revealed the following categories: “Reordering services and functions”; “Incorporation and management of instruments application”; “Professional experiences and tactics: changing roles, attitudes and relationships”.

Conclusion:

It was found that they express a dynamic view of the organizational process, in which the worker, when discussing past standards and comparing his/her knowledge, experiences and values, modifies the environment, flows and conducts as needed, facing the lack of safety, conditions and solidity of the technical bases of work.

DESCRIPTORS
Work; Health Personnel; COVID-19; Health Services

RESUMEN

Objetivo:

El estudio buscó comprender la organización del trabajo de profesionales de salud en el enfrentamiento de la pandemia de COVID-19 en la ciudad de Manaus, Brasil.

Método:

Se trata de una investigación cualitativa, del tipo estudio de caso, que adoptó el referencial teórico la ergología. La producción de los datos empleó análisis documental y entrevista semiestructurada con 33 trabajadores de salud de la Red de Atención a la Salud. Fueron utilizados los recursos del software Atlas.ti 8.0 para analizar los datos.

Resultados:

Los preceptos del análisis de Redes Temáticas revelaron las siguientes categorías: “Reordenamiento de servicios y funciones”; “Incorporación y gestión de la aplicación de instrumentos”; “Experiencias y tácticas profesionales: cambios de roles, actitudes y relaciones”.

Conclusión:

Se constató que ellos expresan una visión dinámica del proceso organizacional, en la que el trabajador, al debatir normas del pasado y comparar sus conocimientos, experiencias y valores, cambia el ambiente, los flujos y las conductas de acuerdo a la necesidad, enfrentando la falta de seguridad, de condiciones y de solidez de las bases técnicas del trabajo.

DESCRIPTORES
Trabajo; Personal de Salud; COVID-19; Servicios de Salud

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, a emergência de novas doenças infecciosas ocasiona repercussão além dos próprios casos e mortes, pois desencadeia diversas indagações a respeito da atribuição dos sistemas nacionais de saúde pública em legitimar sua vigilância e assistência à saúde, quanto à oportunidade de identificação prévia e ao poder de contenção de novos surtos(11. World Health Organization. Novel Coronavirus (2019-nCoV): situation report, 11 [Internet]. Geneve: WHO; 2021 [cited 2021 Oct 20]. Available from: https://COVID19.who.int/.
https://COVID19.who.int/...
). No Brasil, instaurou-se um grupo de trabalho interministerial e a vigilância da infecção humana pelo novo coronavírus foi sendo construída à medida que as novas evidências técnicas e científicas foram publicadas, concebendo ações de notificação, registro, investigação, manejo e adoção de medidas preventivas(22. Brasil. Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020. Reconhece a ocorrência do estado de calamidade pública. Diário Oficial da União; Brasília; 2020.).

Estudos apontam os sérios impactos na saúde mental dos profissionais de saúde em diferentes países, relacionados à depressão, ansiedade, stress, insônia e medo, entre outras, requerendo alternativas de enfrentamento, suporte psicológico e novas estratégias de promoção da resiliência(33. Rieckert A, Schuit E, Bleijenberg N, Ten Cate D, de Lange W, de Man-van Ginkel JM, et al. How can we build and maintain the resilience of our health care professionals during COVID-19? Recommendations based on a scoping review. BMJ Open. 2021;11(1):e043718. doi: http://dx.doi.org/10.1136/bmjopen-2020-043718. PubMed PMid: 33408212.
https://doi.org/10.1136/bmjopen-2020-043...
). As causas de variados distúrbios e sintomas decorrem da falta de contingente de trabalhadores, exaustão física ao cuidar de um número crescente de pacientes, comprometimento da saúde de colegas de trabalho, insuficiência de suporte adequado e de equipamento de proteção individual(44. Rezio LA, Oliveira E, Queiroz AM, Sousa AR, Zerbetto SR, Marcheti PM, et al. Neoliberalism and precarious work in nursing in the COVID-19 pandemic: repercussions on mental health. Rev Esc Enferm USP. 2022;56:e20210257. doi: https://doi.org/10.1590/1980-220X-REEUSP-2021-0257.
https://doi.org/10.1590/1980-220X-REEUSP...
,55. Siddiqui I, Aurelio M, Gupta A, Blythe J, Khanji MY. COVID-19: causes of anxiety and wellbeing support needs of healthcare professionals in the UK: a cross-sectional survey. Clin Med (Lond). 2021;21(1):66-72. doi: http://dx.doi.org/10.7861/clinmed.2020-0502. PubMed PMid: 33479070.
https://doi.org/10.7861/clinmed.2020-050...
). Logo, destaca-se a necessidade de preparo e estruturação dos serviços de saúde de maneira enérgica para evitar prejuízos aos serviços e prevenir consequências futuras, ainda imponderáveis, sobre os trabalhadores(66. Kang L, Li Y, Hu S, Chen M, Yang C, Yang BX, et al. The mental health of medical workers in Wuhan, China dealing with the 2019 novel coronavirus. Lancet Psychiatry. 2020;7(3):e14. doi: http://dx.doi.org/10.1016/S2215-0366(20)30047-X. PubMed PMid: 32035030.
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).

Para a compreensão dessas dinâmicas do trabalho humano, destacam-se os estudos no campo da ergologia, perspectiva teórico-metodológica para entender o trabalho e para transformá-lo(77. Ribeiro E, de Freitas EC. Gestão de si na atividade de trabalho: as dramáticas reveladas no dizer do tradutor intérprete de língua de sinais portuguesa. 5ª ed. Porto: Universidade do Porto; 2021.). A ergologia é uma abordagem pluridisciplinar para análise do trabalho como atividade, considerando uma mescla de aspectos técnicos e de comportamento humano imprescindíveis para sua compreensão. Propõe-se a discutir o mundo do trabalho e das organizações sob a visão de múltiplos saberes e experiências, uma vez que reconhece as diferentes singularidades e as defasagens entre o trabalho prescrito e o trabalho real, em permanente recriação e produção de reservas de alternativas – organizacionais, sociais e políticas(88. Scherer MDA, Pires DE, Prado NMBL, Menezes ELC. Entrevista: Yves Schwartz- Contribuições da ergologia para a gestão do trabalho. Trab Educ Saúde. 2022;20:e00336166. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sol00336.
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). Seu referencial tem sido proveitoso nos estudos que envolvem o processo de trabalho em saúde, seja como método ou teoria, com o intuito de melhor compreender a complexidade desse trabalho(99. Ribeiro G, Pires DE, Scherer MD. Theoretical-methodological contributions of ergology to research on work in the nursing area. Texto Contexto Enferm. 2019;28:e20170163. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2017-0163.
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).

A ergologia busca entender as situações de trabalho, incluindo a forma como são reguladas por meio de conjuntos normativos e prescritivos, de cunho técnico-cientifico, financeiro ou organizacional, que gerem atos, comportamentos e usos tecnológicos. O objetivo dessa combinação de conceitos e normas é prever qualquer atividade que os trabalhadores irão desempenhar no ambiente organizacional. Na ergologia, as chamadas normas antecedentes, que orientam o trabalho de forma nunca absoluta, articulam o conjunto de regulações a aspectos culturais, históricos e de valores(99. Ribeiro G, Pires DE, Scherer MD. Theoretical-methodological contributions of ergology to research on work in the nursing area. Texto Contexto Enferm. 2019;28:e20170163. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2017-0163.
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).

No decorrer de sua atuação e tendo em conta imprevistos, o agente renormaliza ações e tarefas, recria e remodela sua trajetória profissional e investe em seu conhecimento de forma pessoal, única e singular, imprimindo sua identidade à tarefa, em um contínuo processo de ressingularização ou ressignificação da própria atividade. A compreensão desse processo é importante para a realização das ações e para o debate situado pelo reconhecimento da inevitável renormalização da atividade e da condição real de trabalho(1010. Schwartz Y. Conceituando o trabalho, o visível e o invisível. Trab Educ Saúde. 2011;9(Supl 1):19-45. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S1981-77462011000400002.
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,1111. Oliveira S, Nogueira D. O trabalho em saúde na resposta ao rompimento das barragens da Vale S/A em Minas Gerais (BR) em 2015 e 2019: reflexões sobre o agir em competências em emergências e desastres. 5ª ed. Porto: Universidade do Porto; 2021.).

Portanto, é possível afirmar que todas as atividades são, em si, problemáticas e carregam um drama para o trabalhador, pois representam um tensionamento entre escolhas possíveis – a dramática do uso que fará de si mesmo(1010. Schwartz Y. Conceituando o trabalho, o visível e o invisível. Trab Educ Saúde. 2011;9(Supl 1):19-45. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S1981-77462011000400002.
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). As dramáticas do uso de si são conexas às cotidianas tensões/dramas que permeiam o trabalho, num cenário habitado por diferentes histórias ou sujeitos – o lugar de confrontos e variabilidades onde se dá o debate de normas que vai realizar e estabelecer suas escolhas e arbitragens de valores(1212. Holz EB, Bianco MF. Ergologia: uma abordagem possível para os estudos organizacionais sobre trabalho. Cad EBAPE BR. 2014;12(spe):494-512. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1679-39519106.
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).

Reconhecendo a produtividade da perspectiva ergológica na análise do trabalho e, em especial, sua potencial contribuição para a compreensão do contexto multifacetado de crise que tem caraterizado o trabalho em saúde durante a pandemia de COVID-19, o estudo buscou compreender a organização do trabalho de profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de COVID-19 a partir de conceitos da abordagem ergológica. Além disso, o cenário do estudo, representado por um dos importantes epicentros da pandemia no Brasil e no mundo, demanda conhecimento crítico, no sentido de aliar a descrição da situação de crise do sistema com as alternativas construídas nas experiências transformadas e transformadoras dos trabalhadores da saúde.

MÉTODO

Tipo de Estudo

Trata-se de um estudo qualitativo, do tipo estudo de caso, que integra uma macro pesquisa que trata das experiências construídas no decorrer do enfrentamento da pandemia de COVID-19 em Manaus, Amazonas, Brasil.

População

Participaram do estudo 33 trabalhadores da saúde. Dentre estes, 13 enfermeiros, 7 médicos, 6 técnicos de enfermagem, 2 agentes comunitários de saúde, 2 dentistas, 1 fisioterapeuta, 1 auxiliar de saúde bucal e 1 assistente social. A magnitude dos dados (número de achados similares) confirmou a saturação dos dados, ou adensamento das interpretações obtidas, não havendo necessidade de acréscimos descritivos sobre o objeto de estudo(1313. Minayo MCS. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias [Internet]. Rev Pesqui Qual. 2017 [cited 2021 Nov 15];5(7):1-12. Available from: https://editora.sepq.org.br/rpq/article/view/82/59.
https://editora.sepq.org.br/rpq/article/...
).

Local

O cenário do estudo foi a Rede de Atenção à Saúde de enfrentamento a COVID-19 em Manaus-AM, entre estas, 4 Unidades Básica de Saúde, 03 Hospitais, 1 Hospital de Campanha, 1 Unidade de Pronto Atendimento e 1 Serviço de Pronto Atendimento. A escolha desses serviços deve-se ao fato de serem porta de entrada prioritária para o atendimento aos pacientes com suspeita da infecção pelo novo Coronavírus.

Critérios de Seleção

Foram incluídos no estudo trabalhadores da saúde vinculados aos serviços implicados no enfrentamento da COVID-19, atendendo a representação dos diferentes serviços de saúde e utilizando como critério de inclusão estar atuando no referido serviço por no mínimo 01 mês.

Coleta de Dados

A produção dos dados ocorreu no segundo semestre de 2020 empregando a entrevista semiestruturada e análise documental. As entrevistas foram agendadas previamente, realizadas no local de trabalho, pelo pesquisador principal ou colaborador devidamente treinado, mediante roteiro previamente elaborado, contendo questões norteadoras sobre o processo de trabalho no enfrentamento da pandemia da COVID-19, incluindo foco sobre arranjos de organização e formas de trabalhar, estratégias desenvolvidas e vivências frente à normas e contingências (individuais e da equipe). As entrevistas tiveram a duração média de 45 minutos, foram gravadas (áudio) e posteriormente transcritas na íntegra pelo próprio pesquisador.

Análise e Tratamento de Dados

O processo analítico valeu-se de recursos do software Atlas.ti 8.0 (Qualitative Research and Solutions)(1414. ATLAS.ti. The Qualitative Data Analysis & Research Software. 2019. [Internet]. ATLAS.ti.; 2021 [cited 2021 Nov 17]. Available from: http://www.atlasti.com.
http://www.atlasti.com...
) e proposições da Análise de Redes Temáticas, de modo coerente ao referencial teórico adotado. Rede temática é apresentada como uma ferramenta ou técnica sensível para a sistematização e apresentação de análises de dados qualitativos; compartilha com a análise temática as ações de descoberta de temas em diferentes níveis e de exploração da compreensão de uma questão ou da significação de uma concepção, adicionando recursos de estruturação e representação destes temas(1515. Attride-Stirling J. Thematic networks: an analytic tool for qualitative research. Qual Res. 2001;1(3):385-405. doi: http://dx.doi.org/ 10.1177/146879410100100307.
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).

O software permitiu a criação de uma unidade hermenêutica para o tratamento dos dados desde a pré-análise, após as entrevistas serem transcritas e revisadas. Em seguida, o processo de análise de redes temáticas conformou-se em fases e passos, que partem da quebra do texto a fundamentações explícitas e significações implícitas, originando nesse processo a rede temática Organização do Trabalho.

Aspectos Éticos

Em todo o processo de investigação foram obedecidas as normas de ética em pesquisa envolvendo seres humanos e os indicativos da Resolução nº 466/2012(1616. Brasil. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Dispõe sobre diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 13 jun. 2013. Disponível em: http://bit.ly/1mTMIS3.
http://bit.ly/1mTMIS3...
) do Conselho Nacional de Saúde. Foi obtida a anuência das Secretarias de Estado e Municipal de Saúde e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Amazonas sob Parecer nº 4.085.240 de 2020. Todos os participantes foram devidamente informados sobre a pesquisa, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e tiveram garantidos seus direitos. Para preservar o sigilo e o anonimato, os fragmentos das falas dos participantes foram identificados por código – letras TS de trabalhador da saúde e o número de ordem do participante (TS01, TS02…).

RESULTADOS

Os participantes foram predominantemente mulheres, adultas jovens, com significativo tempo de experiência (63% com mais de 7 anos de atuação), vínculo de serviço estatutário (52%) e com pós-graduação (85%) (Figura 1).

Figura 1.
Perfil socioprofissional dos trabalhadores da saúde da Rede de Atenção à Saúde ao enfrentamento da COVID-19 – Manaus, AM, 2020.

Os resultados do estudo foram estruturados a partir dos seguintes temas: 1) “Reordenamento de serviços e funções”; 2) “Incorporação e gestão da aplicação de instrumentos”; 3) Experiências e táticas profissionais: mudanças de papeis, atitudes e relações”, conforme expresso na (Figura 2). As três temáticas representam desafios e exigências do trabalho que motivaram o debate de normas entre um prescrito já assimilado aos modos de fazer das equipes, novos prescritos em constante mudança e as emergentes dramáticas de uso de si no e pelo trabalho.

Figura 2.
Rede Temática Organização do Trabalho.

Reordenamento de Serviços e Funções

Umas das questões que a pandemia de COVID-19 inseriu no debate foi a necessidade de repensar o fazer do trabalho em saúde no âmbito tanto dos serviços prestados pelas unidades de saúde quanto das funções desempenhadas pelos trabalhadores.

Para que os profissionais se adaptem ao novo contexto mundial da pandemia, os serviços de saúde passaram e passam por um reordenamento institucional, para organização e reorganização das ações prestadas à população.

O primeiro passo foi ter que nos adaptar, segundo passo foi adaptar características dos pacientes e características do atendimento em si, porque atendíamos pacientes que são crônicos (…). E começamos a ver as pessoas com quadros agudos respiratórios e também querendo respostas muito imediatas; a gente trabalhando com critérios minimamente objetivos, mas tendo que dar conta da subjetividade da coisa e os outros problemas que continuaram acontecendo. (TS25)

Quando a pandemia chegou mudou totalmente a tua rotina, o teu fluxo de trabalho. A nossa urgência/emergência funcionava de uma forma, num fluxo diferente, quando a pandemia chegou teve o isolamento, todas as alas que eram suporte da sala de reanimação ficou tudo para COVID. (TS04)

A gente ficou nas portas, fazendo de uma forma que não houvesse proliferação desde a triagem e preparo do paciente que vinha com síndrome gripal (…) a gente pegava pelo Ministério, pela gestão e implantava na unidade. Enfermeiros, técnicos até a própria gestão ajudou, todos estávamos em uma mão só, todos contribuíram, assistentes sociais e agentes comunitários de saúde. (TS09)

A partir da transformação desses serviços cada ambiente determinou suas prioridades na hora do atendimento, criando formas de lidar com o cenário imposto pela pandemia e reordenar suas práticas de trabalho.

Primeiramente, foi a questão do desafio, e quando a gente fala de desafio não é só o desafio no ponto de vista técnico científico, mas o desafio de reordenar práticas de trabalho, cultura de trabalho que já estava muito bem estabelecida frente ao acolhimento de uma demanda e a gente já imaginava que seria muito avassaladora. (TS25)

A gente foi incorporando os EPIs, porque a gente não tinha essa prática (…) estabelecer esse fluxograma que foi tudo para fora, o médico sair do consultório dele e vir para cá. Foi tudo muito assustador, mas a gente foi indo, fomos nos adaptando àquilo, estabelecemos o fluxograma que deu certo, os médicos e enfermeiros que ficaram de frente não adoeceram. (TS18)

Incorporação e Gestão da Aplicação de Instrumentos

Nessa categoria estão identificados os depoimentos dos trabalhadores acerca da incorporação de instrumentos que durante sua prática de trabalho foram introduzidos para auxiliar no atendimento aos usuários, sem que tal incorporação e uso fossem acompanhados de uma relativa segurança por evidências científicas, de consenso e treinamento ou mesmo de prévias experiencias.

Adotou-se o protocolo de código rosa, algumas unidades que já mencionavam esse tipo instrumento (…), quando o paciente chegava com alguma suspeita nós já o notificávamos como paciente código rosa. (TS12)

Basicamente foi desenhar o fluxo, identificar possíveis pontos de gargalo nesse fluxo, reavaliar diariamente como foi desenvolvido no dia anterior, se teve alguma lentidão, alguma coisa travada, alguma coisa que demandasse mais profissionais para poder dar vazão maior na circulação das pessoas e envolvendo todos os profissionais, médicos e enfermeiros, técnicos, recepção, agente de saúde e o Núcleo Ampliado de Saúde da Família que bolou a ferramenta essencial para dar seguimento. (TS25)

Então, o protocolo é uma coisa assim, bem pessoal, vai de médico para médico, eu nunca fiz cloroquina em nenhum paciente meu, mesmo trabalhando no particular (…) a gente mantinha a prescrição e do nada o Ministério orienta para a gente que tinha que cancelar por exemplo o Ibuprofeno. (TS27)

Eu acho que como a gente trabalhou de maneira efetiva os fluxos para sintomas respiratórios, fluxos de demanda espontânea, trabalhando com a norma técnica, nós pegamos os instrumentos todos, nós pegamos o que tinha de literatura e desenhamos baseados na nossa realidade. Então, eu acho que o funcionamento do atendimento respiratório funcionou muito bem. (TS25)

O uso dos fluxos durante o desenvolvimento das atividades na crise, especialmente na porta de entrada dos serviços, fez parte da rotina diária desses trabalhadores. Tais normas foram postas constantemente à prova, principalmente por serem condutas ainda em processo de validação. A experiência foi construída na medida que novos conhecimentos surgiam, nas decisões e soluções de problemas concretos do trabalho.

Podem-se perceber as estratégias e ações usadas pelos profissionais no seu trabalho, a preocupação constante em encontrar maneiras de trabalhar efetivamente, mesmo com as adversidades e limitações geradas pela pandemia. Essa atribuição do trabalho que somente as experiências são capazes de fornecer não está retratada em normas e protocolos institucionais.

As estratégias foram construídas diariamente a cada situação que se apresentava, a gente criava uma estratégia para cada dia. Então às vezes você tinha um paciente mais grave, outro mais estável, e as estratégias foram criadas de acordo com a demanda, todos os dias se criava uma estratégia diferente. (TS1)

Eu já estava ficando cansada de ter que ler normativas diferentes, que estão de dois em dois dias mudando, um dia você começava a ter dúvidas. Então, nós criamos um grupo de médicos que estavam envolvidos. Era sempre repassar a dúvida e a comunicação era muito valiosa; todas as formas de comunicação foram válidas [destaque aos grupos de WhatsApp]; eu podia não conseguir estar cara a cara, mas eu ligava e mandava mensagem e a gente sempre achava uma solução. Foi um momento de muitos desafios. (TS30)

Experiências e Táticas Profissionais: Mudanças de Papeis, Atitudes e Relações

Como característica marcante, surgiram relatos expressando efeitos desencadeados pela pandemia sobre o próprio trabalhador e o funcionamento do trabalho de cada um no interior do trabalho coletivo. Em situações cotidianas, tais vivências foram atribuídas às mudanças atitudinais e relacionais diante do desafio de enfrentar o novo e o urgente, que deixam marcas para além do imediato.

Então, mudou muita coisa, a gente está se prevenindo mais, está tendo esse cuidado de higienizar as mãos que a gente não tinha. Eu não tinha esse costume de ficar todo tempo higienizando as mãos, faz um procedimento e lava as mãos. Eu gostava de puncionar o paciente sem luva. (TS07)

Mudou toda a rotina de todos os profissionais, a gente chegava antigamente a não colocar EPI’s, até os necessários. Hoje não, todos chegam e vão direto para uma sala e colocam gorro, máscara, avental, propé, viseira, então, era todo dia essa rotina. Hoje já caiu, mas continuamos usando, mudou tudo radicalmente. (TS08)

A gente não estava acostumado a usar todos esses parâmetros que a gente usa hoje, na realidade já era para a gente usar (…). Então, já era para a gente estar acostumado, mas, na realidade, ninguém estava acostumado com isso. Então, quando COVID veio, foi opressor: foi oprimindo a gente por conta disso, que a gente tinha que usar todos os EPIs. (TS20)

Então, a gente teve que se atualizar e filtrar mesmo o que valia e o que não valia a pena pela experiência dos outros colegas; porque teve gente que fez cloroquina em todo mundo, mesmo sem o eletro e aí, acaba que não temos a evidência cientifica para tal ação. (TS27)

As formas de exercer o trabalho de modo seguro para si e para os outros (colegas e usuários) reiterou responsabilidades e rigor técnico em uma escala de gravidade não comparada com nada anterior.

A gente teve que ter um cuidado maior com a nossa própria segurança. Logo no começo não foi suficiente, eu fui infectado logo no início da pandemia. Quando eu retornei para unidade, depois de 16 dias afastado, tive que tomar mais cuidado ainda. (TS24)

DISCUSSÃO

Os relatos mostraram que os trabalhadores possuem modos discursivos singulares de explanar sua experiência no enfrentamento da COVID-19, configurando narrativas sobre situações de trabalho aparentemente simples e corriqueiras, mas de grande poder transformador. A categoria “reordenamento de serviços e funções”, por exemplo, aponta para um novo olhar sobre a organização do trabalho a partir do cotidiano em movimento – entre normas antecedentes, renormalizações urgentes (e por vezes precárias), incorporação e gestão de ingredientes, tanto novos como já constituintes do patrimônio do trabalho. A gestão da atividade pressupõe assumir o trabalho como realidade enigmática, híbrida entre o visível e o invisível, cujo resultado renormalizante se mostra tanto na tarefa executada como na avaliação crítica das normas antecedentes, permitindo ao trabalhador criar reservas alternativas(88. Scherer MDA, Pires DE, Prado NMBL, Menezes ELC. Entrevista: Yves Schwartz- Contribuições da ergologia para a gestão do trabalho. Trab Educ Saúde. 2022;20:e00336166. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sol00336.
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).

Nesse cenário, eles vivenciam, medeiam e agem nas mais diversas situações. A ergologia trouxe apoios conceituais importantes para interpretar relatos dos trabalhadores sobre o que fizerem, com o que fizeram e o como eles próprios mudaram enquanto mudavam seu trabalho.

Obviamente que há utilidades legítimas em reconhecer as experiências de trabalhadores no enfrentamento de uma pandemia que expôs tantas precariedades, especialmente na direção da organização do trabalho, da gestão de serviços e sistemas, da avaliação de políticas, especialmente no contexto estudado. No entanto, não se pode deixar de pensar sobre quem viveu o tempo extraordinário e dele herdará o legado.

No debate de normas e nas dramáticas do uso de si, flagra-se a sensação do vazio ou da insuficiência de normas, num cenário de incertezas, poucas clarezas e justaposição de direcionamentos. Ao mesmo tempo, diante das situações de enfrentamento da pandemia, os trabalhadores desenvolvem experiências e táticas que configuram mudanças de papeis, de relações intra e extra equipe e de formas de agir e se expressar.

Nesse contexto, o trabalho desempenha um papel central na análise de estratégias de controle da doença(1717. Brasil. Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020. Regulamenta a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para definir os serviços públicos e as atividades essenciais. Diário Oficial da União; Brasília; 2020.). O trabalho é realizado em processo em que o produto ou resultado responde a uma finalidade concreta e socialmente produzida, de acordo com as necessidades humanas(1818. Marx K. O capital: crítica da economia política; livro I - o processo de produção do capital. 2ª ed. São Paulo: Boitempo Editora; 2011.). Assim, o trabalho em saúde é entendido como uma prática de profissionais que tem o propósito de desenvolver ações relacionadas à assistência dos pacientes e/ou clientes(1919. Jackson Fo JM, Assunção AÁ, Algranti E, Garcia EG, Saito CA, Maeno M. Worker’s health and the struggle against COVID-19. Rev Bras Saúde Ocup. 2020;45:e14. doi: https://doi.org/10.1590/2317-6369ed0000120.
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).

O preparo dos serviços de saúde e de recursos humanos é inexorável na forma como impacta todo o processo de enfrentamento de uma pandemia que, em alguns cenários, contaminou 80% da população. A alta transmissibilidade do vírus, associada à proteção inadequada, ao excesso de trabalho e à exaustão dos trabalhadores de saúde, gerou maior frustração nestes por não conseguirem atender com qualidade a tanta demanda(2020. Guo YR, Cao QD, Hong ZS, Tan YY, Chen SD, Jin HJ, et al. The origin, transmission and clinical therapies on coronavirus disease 2019 (COVID-19) outbreak – an update on the status. Mil Med Res. 2020;7(1):11. doi: http://dx.doi.org/10.1186/s40779-020-00240-0.
https://doi.org/10.1186/s40779-020-00240...
).

Como o trabalho envolve exigências sociais, finalidades impostas e tarefas reguladas, por mais prescritas que estas sejam, são executadas por indivíduos singulares em contextos variáveis, o que resulta que cada atividade seja única, embora possa ser semelhante(1212. Holz EB, Bianco MF. Ergologia: uma abordagem possível para os estudos organizacionais sobre trabalho. Cad EBAPE BR. 2014;12(spe):494-512. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1679-39519106.
https://doi.org/10.1590/1679-39519106...
).

Na abordagem ergológica, o trabalho não é uma simples execução de tarefas ou cumprimento de rotinas e procedimentos. Toda atividade de trabalho é uma dramática do uso de si, atravessada pelas normas antecedentes e pela necessidade do trabalhador de suprir e agir nas suas atividades, expressando os seus valores e as suas singularidades(2121. Muniz FV. The reality of the nurse’s work in an adult emergency unit in the view of ergology. Revista Encantar [Internet]. 2019;1(3):310–9. Available from: https://www.revistas.uneb.br/index.php/encantar/article/view/8874.
https://www.revistas.uneb.br/index.php/e...
).

O debate normativo aqui apresentado leva a outras maneiras de ver as coisas, bem como a outras visões de viver e agir juntos, desde os aspectos mais macro das possibilidades, como a formulação de fluxos, até as mudanças comportamentais, como o uso dos EPIs. Nesse processo, há uma produção permanente da renormalização, fazendo parte de uma dinâmica constante no processo de organização do trabalho, que não se limita a tarefa, vai muito além, refere-se ao ato de uma pessoa que cria e recria na realização da atividade de trabalho(2121. Muniz FV. The reality of the nurse’s work in an adult emergency unit in the view of ergology. Revista Encantar [Internet]. 2019;1(3):310–9. Available from: https://www.revistas.uneb.br/index.php/encantar/article/view/8874.
https://www.revistas.uneb.br/index.php/e...
).

No contexto estudado, trabalhadores da saúde buscam alternativas para organizar seu trabalho e gerir a própria atividade em ambiente de grande exposição ao risco, enfatizando o rápido estabelecimento de um fluxo de atendimento diferenciado para suspeitos de COVID-19 e a efetivação do uso de EPIs como forma de proteção. O risco era reconhecido a cada minuto, sem tréguas ou relaxamento, frente ao já conhecido transformado por novas contingências e gravidade – a doença e a morte. O dia a dia fez problematizar o uso de si mesmo no trabalho, na medida em que a segurança de cada exigia atenção aos mínimos detalhes, destacando a relação entre pequenas ações e grandes temores. Desses trabalhadores foi exigida tomada de decisão imediata, influenciada por normas, processos e políticas públicas, além de habilidades técnicas e limites legais do exercício profissional, em movimentos sob margens de flexibilidade nunca completamente predeterminadas e normalizadas(99. Ribeiro G, Pires DE, Scherer MD. Theoretical-methodological contributions of ergology to research on work in the nursing area. Texto Contexto Enferm. 2019;28:e20170163. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1980-265x-tce-2017-0163.
https://doi.org/10.1590/1980-265x-tce-20...
).

O debate de normas envolve tensões e acordos entre preceitos impostos e estabelecidos na ação, em decorrência dessa implicação necessária no trabalho, de nunca ser definido apenas pela imposição normativa de regras e propósitos dos gestores do trabalho. É o significado conferido ao próprio trabalho que determina o envolvimento do trabalhador na função realizada. As experiências dos profissionais acessados no estudo mostraram não apenas a reinvenção da atividade em um cenário em que as normas antecedentes eram postas à prova em grande velocidade, mas também a reconfiguração das competências. Para tal, elementos como a formação e a experiência profissional podem ter desempenhado um importante papel (maioria de pós-graduados e com 7 anos ou mais de atuação), embora a intensidade das dramáticas do uso de si tornem difícil situar elementos mais ou menos preponderantes. A competência construída na atividade faz-se na síntese de ingredientes heterogêneos e interrelacionáveis – da apropriação de saberes e normas antecedentes, da apreensão da situação como experiência ou encontro e, por fim, do debate de valores que convoca o trabalhador a negociações complexas; o que não nega o peso do que o ambiente coloca à disposição da pessoa como espaço para expandir suas potencialidades(2222. Schwartz Y. Os ingredientes da competência: um exercício necessário para uma questão insolúvel. Educ Soc. 1998;19(65):101-40. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-73301998000400004.
https://doi.org/10.1590/S0101-7330199800...
). Intimamente relacionada a este componente ambiental está a falta de condições adequadas para a realização do trabalho, visto que os trabalhadores são impactados por dificuldades com os materiais, equipamentos e estruturas inadequadas para desenvolver seu trabalho, além de insuficientes condições de meios de proteção e da precarização da força de trabalho(2323. Teixeira CF, Soares CM, Souza EA, Lisboa ES, Pinto IC, Andrade LR, et al. The health of healthcare professionals coping with the COVID-19 pandemic. Ciênc saúde coletiva. 2020;25(9):3465-74. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020259.19562020.
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). Isso foi exaustivamente descrito em diversos cenários do mundo, apontando para a importância de condições estruturais, de pessoal e de suporte para as graves consequências à saúde mental dos trabalhadores que enfrentam a pandemia(2424. Chen Q, Liang M, Li Y, Guo J, Fei D, Wang L, et al. Mental health care for medical staff in China during the COVID-19 outbreak. Lancet Psychiatry. 2020;7(4):e15-6. doi: http://dx.doi.org/10.1016/S2215-0366(20)30078-X. PubMed PMid: 32085839.
https://doi.org/10.1016/S2215-0366(20)30...
,2525. Aughterson H, McKinlay AR, Fancourt D, Burton A. Psychosocial impact on frontline health and social care professionals in the UK during the COVID-19 pandemic: a qualitative interview study. BMJ Open. 2021;11(2):e047353. doi: http://dx.doi.org/10.1136/bmjopen-2020-047353. PubMed PMid: 33558364.
https://doi.org/10.1136/bmjopen-2020-047...
).

No contexto estudado, consequências inaceitáveis foram produzidas com o colapso do sistema de saúde no início de 2021, com perdas de vida por precariedade de condições básicas de tratamento e de preparo dos serviços. Situações essas que acirram o estresse e sofrimento moral para os trabalhadores(2626. Caram CD, Ramos FR, Almeida NG, Brito MJ. Moral suffering in health professionals: portrait of the work environment in times of COVID-19. Rev Bras Enferm. 2021;74(Suppl 1):e20200653. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0653.
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) que não veem asseguradas as condições de trabalhar com segurança, dignidade ou efetividade.

No ofício diário dos trabalhadores de saúde na Rede de Atenção à Saúde (RAS) de Manaus, a dramática do uso de si é visível, destacando-se as peculiaridades no atendimento imposto pela urgência de respostas na pandemia, que demandava agilidade, habilidade e rapidez por parte dos trabalhadores. O estudo desvelou estratégias e ações utilizadas pelos profissionais em seu trabalho, buscando encontrar uma forma de laborar, apesar das limitações da estrutura física, de material e das constantes mudanças de protocolos. A volatilidade e inconstância marcam até o que era antes sólido e confiável, como os protocolos, a ponto de serem identificados como recurso e produto da prática individual – “cada um tem o seu”. O contraditório de uma expressão que retrata a insuficiência de normas antecedentes e a aceitação de algo qualquer que lhe ocupasse o lugar, na individualização da apropriação do saber e tecnologia. A incorporação e gestão da aplicação de instrumentos mostrou, paradoxalmente, respostas simples e ágeis, vias alternativas e periféricas de comunicação (a exemplo de trocas de opiniões vias grupos de WhatsApp), por fora dos circuitos oficiais da informação. Tal achado pode ser relacionado à arquitetura comunicacional digital utilizada pelo governo federal, de modo a operar fronteiras de ignorância por dentro da própria ciência(2727. Nascimento LF, Fonseca PFC, de Jesus JP, de Oliveira JB. Oracle power and digital communication ecosystems: the production of zones of ignorance during the COVID-19 pandemic in Brazil. Rev Front. 2021;23(2):190-206. doi: https://doi.org/10.4013/fem.2021.232.13.
https://doi.org/10.4013/fem.2021.232.13...
). De fato, as táticas de comunicação utilizadas nos diferentes níveis de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) não abordaram adequadamente as temáticas de vigilância, assistência, promoção e educação em saúde, sendo orientadas por um modelo utilitarista, centralizador e funcional (transmissão e não emancipação)(2828. Santos MOS, Peixinho BC, Cavalcanti AMC, Silva LGF, Silva LIM, Lins DOA, et al. Communication strategies adopted by the management of the Brazilian National Health System during the COVID-19 pandemic. Interface (Botucatu). 2021;25(Suppl 1):e200785. doi: https://doi.org/10.1590/interface.200785.
https://doi.org/10.1590/interface.200785...
). As consequências do negacionismo e do autoritarismo na gestão da comunicação levam a perdas de transparência, análise de risco, adequação e pontualidade(2929. da Silva Lopes I, de Ulysséa Leal D. Entre a pandemia e o negacionismo: a comunicação de riscos da COVID-19 pelo governo brasileiro. Chasqui: Rev Latinoam Comun. 2020 [cited 2022 Jun 28];1(145):261-80. Available from: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=7718839.
https://dialnet.unirioja.es/servlet/arti...
).

À insegurança na ação somam-se rotinas exaustivas e um cuidado que pode se tornar penoso e pouco exitoso. Nesse cotidiano, reconfiguraram-se experiências e estratégias profissionais, relativizando e modificando papéis, atitudes e relações de trabalho, inclusive ressignificando a autoproteção no trabalho.

Enfim, exemplos interessantes de modalidades de reorganização da atenção à saúde mostram o protagonismo de trabalhadores diretamente envolvidos nas ações de cuidado às pessoas suspeitas de COVID-19, na criação de diferentes estratégias para prestar serviços aos usuários e até mesmo reduzir o nível de propagação da doença(3030. Brito J, Masson LP, Figueiredo MG. Gestões do trabalho e da saúde pública em tempos de pandemia. Laboreal (Porto). 2021;17(1):1-6. doi: http://dx.doi.org/10.4000/laboreal.17544.
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), o que esteve presente nas vivências relatadas pelos participantes.

Os resultados confirmaram que, no contexto da atual crise, a experiência e os saberes que vêm sendo desenvolvidos no campo dos serviços de saúde fazem com que seus processos de trabalho e a construção de seu patrimônio coletivo sofram grandes transformações(3030. Brito J, Masson LP, Figueiredo MG. Gestões do trabalho e da saúde pública em tempos de pandemia. Laboreal (Porto). 2021;17(1):1-6. doi: http://dx.doi.org/10.4000/laboreal.17544.
https://doi.org/10.4000/laboreal.17544...
).

Nesse sentido, ainda se ressalta a necessidade de considerar a saúde do trabalhador, enfatizando a importância de apoiar os trabalhadores por meio da proteção à saúde mental, na capacitação e medidas para garantir o trabalho seguro e a segurança ocupacional, viabilizando um tratamento justo para as pessoas afetadas pela COVID-19 e outras doenças(3131. Soares SS, Souza NV, Carvalho EC, Varella TC, Andrade KB, Pereira SR, et al. From caregiver to patient: in the COVID-19 pandemic, who defends and cares for Brazilian nursing? Esc Anna Nery. 2020;24(spe):e20200161. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2020-0161.
https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-20...
).

CONCLUSÃO

Ao explorar narrativas dos trabalhadores sobre o enfrentamento da pandemia de COVID-19 nos serviços da RAS de Manaus, o estudo ressaltou uma organização do trabalho dinamizada pela urgência e o risco. A gravidade e intensidade da crise vivida no município estudado apontam para a importância da gestão do trabalho a partir de uma base teórica que coloque a vivência profissional no centro da reflexão e da construção de novas e edificantes alternativas para o trabalho em saúde. Ao discutir normas do passado e comparar seus conhecimentos, experiências e valores com as novas demandas, o trabalhador modifica o ambiente, os fluxos e as condutas conforme a necessidade, enfrentando a falta de segurança, de condições e de solidez das bases técnicas do trabalho.

Dialogando com a ergologia, é importante reconhecer que no trabalho em saúde a rápida tomada de decisão auxilia os trabalhadores a atuarem da melhor maneira possível, renormalizando rotinas e a prestação do cuidado. O debate de normas e as dramáticas do uso de si potencializam a compreensão do processo de trabalho dos profissionais envolvidos. O eixo analítico baseado nesses conceitos não os tomou como categoria à priori, mas como pano de fundo conceitual, processualmente conformado pelas três categorias empíricas, com foco na reorganização do trabalho, nos instrumentais incorporados e nas mudanças sobre si e suas relações, sem que quaisquer elementos se sobreponham ou possam ser concebidos de forma isolada.

Portanto, os resultados deste estudo fornecem informações importantes sobre a complexidade da gestão do trabalho no enfrentamento da pandemia em Manaus, permitindo desencadear reflexões sobre as múltiplas dimensões, objetivas e subjetivas, que envolvem as experiências construídas. Alguns achados retomam aspectos já amplamente retratados no contexto pandêmico, como da reorganização dos ambientes de trabalho, redução da carga horária, orientação e estímulo ao uso dos EPIs e atenção à saúde mental desses trabalhadores. No entanto, o referencial ergológico ajuda a ampliar o escopo de reflexão, integrando elementos novos para uma visão crítica e transformadora do trabalho que se pretende resolutivo, seguro e coerente com os fins da excelência da atenção ofertada e do exercício profissional pleno de valores.

  • Apoio Financeiro Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM – 50005.UNI812.42185.26122020/ EDITAL N. 006/2020 – PCTI-EMERGESAÚDE/AM – CHAMADA II – ÁREAS PRIORITÁRIAS – Processo: 01.02.016301.01044/2021

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    » https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2020-0161

Editado por

EDITOR ASSOCIADO

Cristiane Helena Gallasch

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Jun 2022
  • Aceito
    10 Fev 2023
Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
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