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Vulnerabilidade no cotidiano de adolescentes na pandemia de COVID-19

RESUMO

Objetivo:

Conhecer a vulnerabilidade no cotidiano de adolescentes na pandemia de COVID-19.

Método:

Pesquisa qualitativa, realizada com 25 adolescentes de uma escola pública em um município do Sul do Brasil, no segundo semestre de 2021, por meio de entrevistas semiestruturadas individuais. Os dados foram submetidos à análise temática de conteúdo e interpretados com o referencial teórico da vulnerabilidade.

Resultados:

O cotidiano desses adolescentes na pandemia de COVID-19 apresentou-se com dificuldades na manutenção de empregos dos familiares, mudança de hábitos e rotinas, forma de acesso às aulas, internet e aumento da violência intrafamiliar.

Conclusão:

A vulnerabilidade no cotidiano de adolescentes durante a pandemia pode ser identificada como a ausência do convívio no contexto escolar e acesso aos recursos para aprendizagem, refletindo na vulnerabilidade individual e social. O desemprego e o possível acesso de outras fontes de renda repercutem na vulnerabilidade programática. Sugere-se a reflexão sobre práticas no contexto da saúde e da escola, tendo por base a vulnerabilidade identificada no cotidiano de adolescentes na pandemia de COVID-19.

DESCRITORES
Adolescente; COVID-19; Vulnerabilidade em Saúde

ABSTRACT

Objective:

To know the vulnerability in adolescents’ daily life during the COVID-19 pandemic.

Method:

Qualitative research carried out with 25 adolescents from a public school in a municipality in southern Brazil in the second half of 2021 through individual semi-structured interviews. Data were submitted to thematic content analysis and interpreted with the vulnerability theoretical framework.

Results:

These adolescents’ daily lives during the COVID-19 pandemic presented difficulties in keeping family members working, changing habits and routines, accessing classes, the internet and increasing intra-family violence.

Conclusion:

Vulnerability in adolescents’ daily life during the pandemic can be identified as the absence of interaction in the school context and access to learning resources, reflecting on individual and social vulnerability. Unemployment and possible access to other sources of income have an impact on programmatic vulnerability. Reflection on practices in the context of health and school is suggested, based on the vulnerability identified in adolescents’ daily lives during the COVID-19 pandemic.

DESCRIPTORS
Adolescent; COVID-19; Health Vulnerability

RESUMEN

Objetivo:

Conocer la vulnerabilidad en el cotidiano de los adolescentes ante la pandemia de COVID-19.

Método:

Investigación cualitativa, realizada con 25 adolescentes de una escuela pública de un municipio del sur de Brasil, en el segundo semestre de 2021, a través de entrevistas semiestructuradas individuales. Los datos fueron sometidos al análisis de contenido temático e interpretados con el referencial teórico de la vulnerabilidad.

Resultados:

El cotidiano de estos adolescentes durante la pandemia de la COVID-19 presentó dificultades para conservar el trabajo de los familiares, cambio de hábitos y rutinas, acceso a clases, internet y aumento de la violencia intrafamiliar.

Conclusión:

La vulnerabilidad en el cotidiano de los adolescentes durante la pandemia se puede identificar como la ausencia de interacción en el contexto escolar y acceso a los recursos de aprendizaje, reflexionando sobre la vulnerabilidad individual y social. El desempleo y el posible acceso a otras fuentes de ingresos inciden en la vulnerabilidad programática. Se sugiere la reflexión sobre las prácticas en el contexto de la salud y la escuela, a partir de la vulnerabilidad identificada en el cotidiano de los adolescentes en la pandemia de la COVID-19.

DESCRIPTORES
Adolescente; COVID-19; Vulnerabilidad en Salud

INTRODUÇÃO

A COVID-19 é uma doença causada pelo SARS-CoV-2, que surgiu no final de 2019 em Wuhan, na China, e foi declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como emergência de saúde pública, sendo designada como pandêmica. As medidas sanitárias de controle do contágio para garantir a proteção da população, desacelerar a tendência crescente de transmissão e impedir o colapso dos serviços de saúde se configuram elementos que podem alterar o cotidiano das pessoas. Essa doença acomete indivíduos de todas as idades, nível socioeconômico, sexo e etnias(11. Oliveira WK, Duarte E, França GVA, Garcia LP. How Brazil can hold back COVID-19. Epidemiol Serv Saude. 2020;29(2):e2020044. PubMed PMID: 32348405.). O Brasil, até o final da 34ª semana epidemiológica de 2021, foi considerado o segundo país com mais casos de óbitos de COVID-19 no mundo, com 20.728.605 pessoas infectadas e 579.010 óbitos no país(22. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico Especial: Doença pelo Coronavírus COVID-19. Semana epidemiológica 34 [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2021 [cited 2023 May 15]. Available from: https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/boletins/epidemiologicos/covid-19/2021/boletim_epidemiologico_covid_78-1.pdf
https://www.gov.br/saude/pt-br/centrais-...
). Entre 1º de julho de 2021 e 31 de dezembro, foram 3.730.380 casos registrados. No mês de setembro, o Ministério da Saúde recomendou a vacinação de adolescentes de 12 a 17 anos(33. Sociedade Brasileira de Pediatria. Vacinas covid-19: atualização [Internet]. Rio de Janeiro: SBP; jan. 2021 [cited 2023 May 25]. Available from: https://www.sbp.com.br/departamentos-cientificos/imunizacoes/documentos-cientificos
https://www.sbp.com.br/departamentos-cie...
).

Frente a isso, em decorrência da pandemia de COVID-19, no mês de março de 2020, o Ministério da Educação decretou, a partir da Portaria nº 343(44. Brasil. Ministério da Educação. Portaria nº 343, de 17 de março de 2020. Dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus-COVID-19. 2020 [cited 2023 May 25]. Available from: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-343-de-17-de-marco-de-2020-248564376.
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/porta...
), a suspensão de aulas presenciais e sua consequente substituição por atividades não presenciais ancoradas em meios digitais, ocorrendo, nessa situação, o fechamento das escolas. Além disso, o Conselho Nacional de Saúde, sob a Recomendação nº 036, de 11 de maio de 2020(55. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Recomendação nº 036, de 11 de maio de 2020. Recomenda a implementação de medidas de distanciamento social mais restritivo (lockdown), nos municípios com ocorrência acelerada de novos casos de COVID-19 e com taxa de ocupação dos serviços atingido níveis críticos. 2020 [cited 2023 May 25]. Available from: https://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1163-recomendac-a-o-n-036-de-11-de-maio-de-2020
https://conselho.saude.gov.br/recomendac...
), recomendou medidas de isolamento e distanciamento social para evitar e controlar o coronavírus, com a suspensão de todas as atividades não essenciais à manutenção da vida e da saúde, com restrição da circulação de pessoas.

Diante disso, adolescentes e suas famílias precisaram readaptar sua rotina, o modo de aprendizagem e os recursos financeiros. Dessa maneira, ocorreu a separação dos adolescentes dos amigos, professores, entes queridos, a perda da liberdade e a incerteza sobre a doença. Dada a magnitude dessa circunstância, e compreendendo que a adolescência é um momento que perpassa diferentes transformações biológicas, psicológicas e sociais, isso pode constituir-se um problema a longo prazo na vida desses adolescentes(66. Becker SP, Breaux R, Cusick CN, Dvorsky MR, Marsh NP, Sciberras E, et al. Remote learning during COVID-19: examining school practices, service continuation, and difficulties for adolescents with and without attention- eficit/hyperactivity disorder. J Adolesc Health. 2020;67(6):769–77. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.jadohealth.2020.09.002. PubMed PMID: 33069580.
https://doi.org/10.1016/j.jadohealth.202...
,77. Miliauskas CR, Faus DP. Saúde mental de adolescentes em tempos de Covid-19: desafios e possibilidades de enfrentamento. Physis. 2020;30(4):e300402. doi: http://dx.doi.org/10.1590/s0103-73312020300402.
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).

No momento em que se enfrenta uma nova doença, é importante considerar o cotidiano de cada pessoa, os sentidos atribuídos à doença, os riscos, a cultura, o acesso à prevenção, cuidados e tratamento(88. Safadi MAP, Silva CAA. The challenging and unpredictable spectrum of covid-19 in children and adolescents. Rev Paul Pediatr. 2020;39:e2020192. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1984-0462/2020/38/2020192. PubMed PMID: 32901700.
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). O cotidiano é um termo que vem do latim cotidie ou cotidianus que significa todos os dias, o diário, o comum e o habitual, que remete a pensar diretamente em ações que dizem respeito a rotinas e a tudo que se realiza empiricamente repetidamente, vivendo o dia a dia(99. Heller A. O cotidiano e a história. 11. ed. São Paulo: Paz e Terra; 2016.). Dessa forma, o adolescente apresenta um cotidiano antes da pandemia e durante a pandemia, esse último com mudanças decorrentes das novas formas impostas pelo vírus.

A partir de dados publicados em uma revisão de scoping por autores brasileiros direcionada à saúde do adolescente em tempos de COVID-19, identificou-se a necessidade de aprofundar os estudos acerca dessa temática(1010. Oliveira WA, Silva JL, Andrade ALM, Micheli D, Carlos DM, Silva MA. Adolescents’ health in times of COVID-19: a scoping review. Cad Saude Publica. 2020;36(8):e00150020. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00150020 PubMed PMID: 32876127.
https://doi.org/10.1590/0102-311x0015002...
). Estudos com adolescentes na pandemia de COVID-19 abordam problemas de saúde mental e violência. A violência contra mulheres, crianças e adolescentes em tempos de pandemia pela COVID-19 configura-se necessidades de ações de enfrentamento, devido ao aumento da ocorrência de violência(1111. Marques ES, Moraes CL, Hasselmann MH, Deslandes SF, Reichenheim ME. Violence against women, children, and adolescents during the COVID-19 pandemic: overview, contributing factors, and mitigating measures. Cad Saude Publica. 2020;36(4):e00074420. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00074420. PubMed PMID: 32374808.
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). Outro estudo mostra que, em decorrência da pandemia, com o impacto do distanciamento social, ocorreram casos de subnotificações na identificação da violência contra criança e adolescente(1212. Hamada AK, Cassol MEG, Baggio AO, Marcon CEM. Impact of social distancing on reports of violence against children and adolescents in Rio Grande do Sul, Brazil. Cad Saude Publica. 2021;37(5):e00070521. PubMed PMID: 34008695.). Além disso, estudos abordam impacto negativo na saúde mental adolescentes associada a interrupções repentinas de hábitos e rotinas decorrentes da pandemia(1313. Montreuil M, Gendron-Cloutier L, Laberge-Perrault E, Piché G, Genest C, Rassy J, et al. Children and adolescents’ mental health during the COVID-19 pandemic: a qualitative study of their experiences. J Child Adolesc Psychiatr Nurs. 2023;36(2):65–74. doi: http://dx.doi.org/10.1111/jcap.12404
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-1414. Deng J, Zhou F, Hou W, Heybati K, Lohit S, Abbas U, et al. Prevalence of mental health symptoms in children and adolescents during the COVID-19 pandemic: a meta-analysis. Ann N Y Acad Sci. 2023;1520(1):53–73. doi: http://dx.doi.org/10.1111/nyas.14947
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).

Sabe-se que, em situações de desastres/pandemias, aflora a vulnerabilidade no cotidiano de crianças e adolescentes. A vulnerabilidade pode ser definida como uma percepção ampliada e reflexiva que discorre sobre a exposição dos indivíduos a agravos e os consequentes impactos da mesma envolvendo componentes individuais, sociais e programáticos. O individual se refere ao grau e à qualidade da informação que os indivíduos dispõem sobre o problema e à possibilidade de empregá-las para a proteção. O social envolve aspectos que dependem do acesso aos meios de comunicação, disponibilidade de recursos materiais e fatores políticos. O programático tem relação com as ações de programas destinados à prevenção e ao cuidado, podendo ser políticas regionais, locais e nacionais que devem ser disponibilizadas de modo efetivo e democrático. Para tanto, os componentes ocorrem de maneira integrada, ocorrendo pelo maior ou menor acesso a recursos de todas as ordens(1515. Ayres JRCM, Paiva V, Franca Jr I, Gravato N, Lacerda R, Della Negra M, et al. Vulnerability, human rights and comprehensive health care needs of young people living with HIV/Aids. Am J Public Health. 2006;96(6):1001–6. doi: http://dx.doi.org/10.2105/AJPH.2004.060905. PubMed PMID: 16449593.
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).

Esta pesquisa, embasada no referencial teórico de vulnerabilidade(1515. Ayres JRCM, Paiva V, Franca Jr I, Gravato N, Lacerda R, Della Negra M, et al. Vulnerability, human rights and comprehensive health care needs of young people living with HIV/Aids. Am J Public Health. 2006;96(6):1001–6. doi: http://dx.doi.org/10.2105/AJPH.2004.060905. PubMed PMID: 16449593.
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), poderá subsidiar profissionais da enfermagem, saúde e da educação para o desenvolvimento de práticas que contemplem os desafios advindos da própria adolescência que esses vivenciam, somados a uma pandemia de amplitude social, econômica, individual, política e emocional. Para tanto, o presente estudo objetivou conhecer a vulnerabilidade no cotidiano de adolescentes na pandemia de COVID-19.

MÉTODO

Tipo do Estudo

Trata-se de uma pesquisa qualitativa(1616. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec; 2014.) do tipo descritiva e exploratória. Seguiram-se os critérios da lista de verificação do COnsolidated criteria for REporting Qualitative research (COREQ)(1717. The EQUATOR network. What is a reporting guideline? [Internet]. 2023 [cited 2023 May 24]. Available from: http://www.equator-network.org/about-us/what-is-areporting-guideline/
http://www.equator-network.org/about-us/...
) na condução e elaboração do relatório da pesquisa.

Cenário do Estudo

O estudo teve como cenário uma escola estadual de ensino fundamental, do 1º ao 9º ano escolar, localizada ao norte do município de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil. A mesma tem um total de 203 alunos matriculados, sendo 74 alunos das séries iniciais do 1º ao 4º ano e 129 das séries do 5º ao 9º ano escolar, com 18 professores atuando. Parte desses escolares vive em situações de vulnerabilidade, tais como condições precárias de moradia, dificuldades de manutenção das necessidades básicas e desemprego na família. Esse cenário foi escolhido intencionalmente, pois, nessa escola, são desenvolvidas ações extensionistas de promoção da saúde com os adolescentes escolares, coordenadas pela professora orientadora deste estudo, o que possibilitou uma relação prévia entre equipe de pesquisa e participantes.

População e Critérios de Seleção

Os participantes que integraram este estudo foram alunos matriculados na referida escola. Em relação aos critérios de seleção, foram incluídos os adolescentes na faixa etária entre 10 e 19 anos, conforme a OMS(1818. World Health Organization. Child and adolescent health and development. Geneva: World Health Organization; 2001.), regularmente matriculados e frequentando a escola no momento da coleta de dados. Dessa forma, a seleção dos participantes do estudo ocorreu por meio da amostra intencional(1919. Moreira H, Caleffe LG. Metodologia científica para o professor pesquisador. 2. ed. Rio de Janeiro: Lamparina; 2008.). Todos os adolescentes convidados a participar do estudo foram indicados pelos professores profissionais da escola. Desse modo, participaram os adolescentes do 5º ao 9º ano escolar que se enquadravam na faixa etária e tinham interesse em participar. Os escolares do 9º foram convidados, porém não quiseram participar, e não relataram alguma justificativa.

Coleta de Dados

A aproximação com o cenário do estudo se deu por meio de contato com uma profissional professora de referência, com maior proximidade e vínculo com os alunos da escola. A partir disso, foi agendada uma conversa com os professores e direção da escola, momento no qual foi apresentada a proposta do estudo, a importância e o processo de como seriam conduzidas as entrevistas com os adolescentes. Logo após, foi enviada uma minuta para a direção da escola constando as principais informações que seriam coletadas dos adolescentes. Em seguida, foi disponibilizada aos pesquisadores a lista dos nomes dos alunos das turmas da escola. Destaca-se que, nesse período, a escola estava em processo de voltar às aulas presenciais, de segunda a sexta-feira. Mas no primeiro momento, ficou facultativo para os alunos sua presença em sala de aula, podendo permanecer com aulas remotas se desejassem. Ocasião essa em que a escola estava se ajustando ao retorno das aulas. A contar disso, foi contatado com os alunos que estavam presentes presencialmente na aula, uma turma por vez, de modo coletivo, e foi realizado o convite e explicado sobre a pesquisa aos adolescentes. Mediante convite, aos interessados em participar do estudo eram entregues o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), para assinatura, em casa, dos pais ou responsável legal, e o Termo de Assentimento (TA), para os menores de 18 anos, salientando que, após o aceite e assinatura dos termos, os alunos deveriam entregá-los na escola, e depois era agendado um turno e horário, conforme disponibilidade do aluno, para realização da entrevista individual na escola. A coleta de dados ocorreu entre agosto e setembro de 2021.

Para coleta de dados, foi utilizado, inicialmente, um formulário de caracterização sociodemográfica dos adolescentes contendo as seguintes variáveis: sexo, idade, série e quantas pessoas residem na casa. Subsequentemente, foram realizadas as entrevistas semiestruturadas individuais, pelo pesquisador principal, de modo presencial, em um espaço disponível dentro da escola cedido pela instituição, respeitando e garantindo a privacidade dos participantes. As entrevistas foram norteadas por questões que envolviam a vida diária, a rotina familiar, as atividades escolares, o distanciamento de amigos, colegas, familiares, e as atividades de lazer durante a pandemia. Foi realizado pré-teste com adolescentes vinculados aos membros do grupo de pesquisa para qualidade da redação e compreensão, a fim de minimizar os erros na coleta de dados. Houve modificações em relação à formulação das perguntas, tornando-as cada vez mais próximas do adolescente. Foram seguidas as medidas de biossegurança e prevenção ao SARS-CoV-2 na época da coleta de dados. As entrevistas foram gravadas em áudio, mediante autorização, por meio de gravador digital. Posteriormente, foram transcritas integralmente e tiveram uma duração média de 30 minutos.

Análise e Tratamento dos Dados

As entrevistas foram transcritas, organizadas e submetidas à análise de conteúdo temática, constituída pelas seguintes etapas: a) pré-análise, na qual se realizou a leitura flutuante dos depoimentos dos adolescentes, iniciando o contato direto e intenso com o material de campo; b) exploração do material, guiada pela leitura exaustiva do material, buscando encontrar categorias significativas em função das quais o conteúdo de uma fala ou mais será organizado; e c) tratamento e interpretação dos dados, com o quadro teórico desenhado inicialmente, ou abertura de pistas em torno de novas dimensões teóricas e/ou interpretativas(1515. Ayres JRCM, Paiva V, Franca Jr I, Gravato N, Lacerda R, Della Negra M, et al. Vulnerability, human rights and comprehensive health care needs of young people living with HIV/Aids. Am J Public Health. 2006;96(6):1001–6. doi: http://dx.doi.org/10.2105/AJPH.2004.060905. PubMed PMID: 16449593.
https://doi.org/10.2105/AJPH.2004.060905...
). Dessa forma, ocorreu a definição da categoria temática na qual os resultados estão apresentados.

Aspectos Éticos

O estudo seguiu os aspectos éticos da pesquisa com seres humanos, conforme a Resolução n° 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, que trata das Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos. O estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), sob o Registro no 4.823.496 no ano de 2021. Previamente à entrevista, as questões éticas previstas compreenderam o conhecimento e a assinatura do TCLE aos adolescentes maiores de 18 anos, porém não ocorreu, pois esses adolescentes convidados não quiseram participar. Aos adolescentes menores de 18 anos de idade, foi apresentado o TA, e aos responsáveis, o TCLE. A partir da assinatura dos termos, iniciou-se a coleta de dados. Como garantia ao anonimato dos participantes, os adolescentes foram identificados pela letra “A”, relativo à Adolescente, seguido por uma numeração arábica, conforme a ordem das entrevistas (A1, A2...A10...A25).

RESULTADOS

Participaram deste estudo 25 adolescentes, sendo que 13 eram do sexo feminino e 12 do sexo masculino, com idades entre 11 e 15 anos, cursando do 5º ao 8º ano escolar. Onze adolescentes residiam com madrasta ou padrasto e irmãos e, por vezes, os avós, tios e sobrinhos também moravam juntos. Outros nove adolescentes residiam com pai, mãe e irmãos; dois adolescentes, com mãe, avós, tios, primos, irmãos, sobrinhos e cunhado; um adolescente, com avós e irmãos; e dois adolescentes, com tios e primos.

A partir da análise dos resultados, foi identificada a seguinte categoria temática: As diferentes faces da pandemia de COVID-19 e a vulnerabilidade no cotidiano de adolescentes.

As Diferentes Faces da Pandemia de Covid-19 e a Vulnerabilidade no Cotidiano de Adolescentes

A pandemia de COVID-19 desencadeou diferentes faces no cotidiano dos adolescentes. Para tanto, foram sinalizadas, em suas falas, implicações da pandemia nas relações familiares que, por vezes, foram demonstradas com mais união, presença, aproximação dos pais, conversas e, por outras, as brigas diminuíram, conforme os relatos a seguir:

O pai e a mãe ficavam mais ausentes, e agora eles ficaram um pouquinho mais presentes. (A3)

O pai e a mãe se aproximaram mais durante a pandemia. (A18)

O bom é que todo mundo ficou junto em casa, família unida em casa, feliz, ninguém tinha como sair. (A20)

Meu padrasto e minha mãe brigavam bastante antes da pandemia. Uma coisa boa que aconteceu foi que as brigas diminuíram [...] a gente se uniu mais, ficamos mais tempo juntos. (A21)

Foi tranquila, a família parece que se uniu mais, ficamos mais tempo juntos. (A24)

Fiquei em casa olhando TV com a família [mãe e pai], olhando vídeo, jogando vídeo game, foi mais tranquilo [...] foi bom, a família ficou mais unida, teve mais conversa. (A25)

Nesse cotidiano dos adolescentes durante a pandemia de COVID-19, eles mencionaram que ocorreram mudanças, como perdas de emprego, mudança de casa, depressão da mãe, necessidade do adolescente realizar alguns trabalhos para ajudar em casa, o que foi muito ruim no olhar dos adolescentes, desencadeando anseio sobre a saúde financeira das famílias, sinalizando-se para uma vulnerabilidade programática, de acordo com as falas a seguir:

Minha mãe perdeu o emprego e meu padrasto também, e aí tivemos que mudar para casa da minha tia. (A5)

Minha mãe fazia faxina e, com a pandemia, não tinha mais. Ela tem crise de depressão e ficou mais forte, eu acabo tendo que cuidar dela um pouco, porque é só eu. (A14)

Foi ruim, minha tia precisou parar de trabalhar, aí só meu tio trabalhava, eu ajudava quando dava eu fazia uns bicos (trabalho como freelancer). (A15)

O meu padrasto, meus dois irmãos e minha prima perderam o emprego na pandemia. A minha mãe e a minha irmã também tiveram que parar de trabalhar nessa COVID, então isso foi ruim. (A19)

Foi um pouco difícil, porque a minha mãe trabalha fazendo unha e a maioria das pessoas não iam, aí minha mãe não ganhava dinheiro, mas a sorte que meu pai está trabalhando. (A20)

Em relação à escola, os adolescentes mencionaram que as atividades escolares foram desenvolvidas por meio de materiais para leitura e exercícios disponibilizado via Classroom, que é um sistema de gerenciamento de conteúdo escolar, ou de forma impressa na escola. Foram referidos pelos adolescentes dificuldades para participarem das aulas online e o manuseio da tecnologia. Outros adolescentes trouxeram as limitações de acesso aos recursos (celular, computador, internet) disponíveis, o que influenciou no aprendizado, e ainda referiram que não conseguiam aprender direito devido ao acúmulo de atividades escolares. Diante dessas dificuldades, por momentos, contaram com a ajuda de familiares, mas consideraram que o ensino com o professor era melhor. Alguns adolescentes sentiram falta da escola, pelas relações com os colegas e por ser um lugar que gostam de estar, além de a aprendizagem ocorrer de forma mais efetiva, sendo mais difícil aprender separada da escola, constituindo-se vulnerabilidade individual, social e programática, conforme as narrativas a seguir:

Uma dificuldade foi que eu tive que parar de ir na escola que, pra mim, sempre foi um canto que eu gostava [...] a gente fazia online, e os professores deixavam material para a gente ir no colégio buscar as atividades e a gente fazia. Quando a gente não sabia, a gente fazia pelo Classroom, e eu pedia ajuda para minha irmã ou para o meu tio. (A4)

Eu não tinha internet, nem celular, aí minha mãe tinha que buscar na escola o material. Era difícil, porque é melhor com a professora do que com a minha mãe. (A5)

Não gostava das aulas online, achava chato porque não conseguia aprender direito, era bem ruim, era muita coisa acumulada para fazer, e as atividades eram ruim para mim, porque eu não sabia como fazer as atividades. (A6)

A educação foi ruim, porque não é a mesma coisa do que ir na aula presencial. (A10)

Fiquei com saudade da escola, eu não podia conversar com os colegas [...], eu choro porque na escola não tem como ir, muito melhor na escola, a minha escrita é muito feia, ainda tá horrível, é mais difícil para mim separada da escola piorou mais ainda, eu parei de fazer as coisas. (A19)

Eu achava difícil, porque a gente não tinha computador e o celular era da minha tia, era complicado para mim, eu gostava mais é quando a escola estava aberta para eu ir fazer as atividades e pronto. (A23)

Durante a pandemia, os adolescentes relataram que deixaram de realizar algumas atividades que faziam parte de seu cotidiano, principalmente no que se refere ao lazer, como jogar bola na rua, passear com amigos e familiares, fazer visitas, mas agora ficavam somente em casa, a partir das recomendações realizadas pelo Conselho Nacional de Saúde de isolamento e distanciamento social, revelando-se, assim, uma vulnerabilidade social, segundo as falas a seguir:

Eu jogava bola na rua com as pessoas que eu conhecia, e agora não dá mais, porque os pais deles não deixam eles saírem. (A1)

Não poder sair de casa, eu já não conversava muito com as pessoas, e aí eu acabei ficando mais isolada, a pandemia tirou tudo isso e ainda fez a gente ficar sem amigos. (A6)

Eu convidava as tias para sair e junto a gente costumava ir na praça conversar, passear e agora não podia mais, tinha que ficar mais em casa. (A7)

Eu não saia muito que nem antes para ver meus amigos, ter que ficar em casa não poder sair é um enfrentamento, mas é estranho não poder visitar os parentes que era de costume. (A12)

Eu não podia jogar futebol com meus amigos e também sair com a minha mãe. (A14)

Eu não podia sair, então era ruim, pois gostava de ir jogar com os amigos, conversar, e agora só em casa é chato. (A17)

Alguns adolescentes referiram situações de violência física e automutilações. Automutilações foram frequentes; ocorreu tentativa de suicídio; e a violência intrafamiliar foi causada pelo padrasto ou cunhado, relatadas pelos adolescentes que se acentuaram durante o período de pandemia, o que representa uma vulnerabilidade individual social, conforme os relatos a seguir:

Eu me cortava bastante e já tentei me matar também, fui para o hospital porque eu tomei remédio escondido, eu não me cortava antes da pandemia, não dava bola para nada, mas agora sei lá acho que eu fiquei mais frágil. Antes, eu era bastante forte, não ligava, ficava de boa na minha, agora não. (A2)

No início da pandemia, eu me cortava com gilete os braços e as pernas, e agora eu meio que olho os vídeos na internet e tento não fazer mais, eu meio que me sinto com uma dor no coração, me sinto sozinho. (A4)

O meu padrasto me batia mais durante a pandemia, ficava mais em casa. O meu pai descobriu, e ele tirou a guarda da minha mãe. (A11)

Meu cunhado tá saindo de dentro de casa, porque ele acabou batendo na minha irmã, e aí ela não quer mais ficar com ele. (A14)

Meu padrasto começou a bater na minha mãe e eu me avancei nele e comecei a bater nele, ele parou e me pediu desculpa. (A19)

Diante dos relatos de violência e mutilações, foi prestado suporte, sendo oferecido apoio e conforto pelos pesquisadores e auxílio na busca de tratamento psicológico, circunstância em que o conforto foi o suporte que os adolescentes mais desejaram naquele momento.

DISCUSSÃO

Os dados produzidos pelos adolescentes mostraram que ocorreram dificuldades na manutenção de empregos dos familiares, mudança de hábitos e rotinas, na forma de acesso às aulas, internet e o aumento da violência intrafamiliar no seu cotidiano na pandemia de COVID-19. Além disso, proporcionou um maior convívio dos adolescentes com seus familiares em casa. Para tanto, esses fatores influenciaram na exposição dos adolescentes à vulnerabilidade individual, social e programática.

Em relação a um maior convívio familiar do adolescente, positivamente, a pandemia propiciou a união, mas, por vezes, reforçou conflitos, o que implica uma vulnerabilidade social. Isso converge com estudo realizado com adolescentes do nordeste brasileiro, que trouxe a família no enfrentamento da pandemia em que mostrou relações familiares integradoras e desintegradoras(2020. Santos KAM, Miura PO, Barboza AMM, Araújo CGSL. Quais os significados sobre família em situação de pandemia para os adolescentes? Cien Saude Colet. 2022;27(1):193–203. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232022271.08222021. PubMed PMID: 35043899.
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). Outro estudo mostrou que a pandemia desencadeou maior convivência do adolescente com a família, o que pode representar uma proteção para o adolescente de possíveis adoecimentos(2020. Santos KAM, Miura PO, Barboza AMM, Araújo CGSL. Quais os significados sobre família em situação de pandemia para os adolescentes? Cien Saude Colet. 2022;27(1):193–203. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232022271.08222021. PubMed PMID: 35043899.
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). Essa proteção pode ser viabilizada a partir da comunicação entre pais e filhos, com a possibilidade de auxiliar na saúde mental da criança e adolescente, atenuando situações de ansiedade e depressão(2121. Magklara K, Lazaratou H, Barbouni A, Poulas K, Farsalinos K. The impact of COVID-19 lockdown on children’s and adolescents’ mental health in Greece. Child Soc. 2023;37(2):469–84. doi: http://dx.doi.org/10.1111/chso.12605.
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).

Durante a pandemia, o distanciamento social acabou se tornando a principal forma de contenção da velocidade da contaminação pela COVID-19(55. Brasil. Conselho Nacional de Saúde. Recomendação nº 036, de 11 de maio de 2020. Recomenda a implementação de medidas de distanciamento social mais restritivo (lockdown), nos municípios com ocorrência acelerada de novos casos de COVID-19 e com taxa de ocupação dos serviços atingido níveis críticos. 2020 [cited 2023 May 25]. Available from: https://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1163-recomendac-a-o-n-036-de-11-de-maio-de-2020
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), produzindo consequências econômicas negativas, como a diminuição na renda das pessoas, em que empresas demitiram empregados com carteira assinada e trabalhadores informais perderam seu sustento(2222. Costa SS. Pandemia e desemprego no Brasil. Rev Adm Pública. 2020;54(4):969–78. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0034-761220200170.
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). Diante disso, as medidas sanitárias estabelecidas para conter a pandemia de COVID-19 imprimiram relações de trabalho precárias, redução das horas de trabalho, entre outras. Essa precariedade das condições econômicas dos adolescentes e seus respectivos familiares amplia a vulnerabilidade social que a pandemia impôs no cotidiano dessas pessoas.

De acordo com dados do Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), famílias com crianças e adolescentes de 0 a 17 anos relataram que seus rendimentos foram afetados pela pandemia, havendo necessidades de recorrer a outras fontes de renda, como benefício do governo federal, estadual e municipal, o Bolsa Família, doação de alimentos, seguro desemprego e Benefício de Prestação Continuada(2323. Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Impactos primários e secundários da covid 19 em crianças e adolescentes. Brasil: IBOPE Inteligência; 2020. 36 p.). O desemprego e o possível acesso de outras fontes de renda também estão relacionadas à vulnerabilidade programática(1515. Ayres JRCM, Paiva V, Franca Jr I, Gravato N, Lacerda R, Della Negra M, et al. Vulnerability, human rights and comprehensive health care needs of young people living with HIV/Aids. Am J Public Health. 2006;96(6):1001–6. doi: http://dx.doi.org/10.2105/AJPH.2004.060905. PubMed PMID: 16449593.
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), em que há necessidade de ações, programas e políticas que subsidiem de maneira efetiva condições dignas para viver. Estudo realizado nos Estados Unidos com adolescentes durante a pandemia apontou que as dificuldades financeiras e o estresse relacionado à pandemia serviram como fatores de risco, enquanto o enfrentamento e o envolvimento dos pais serviram como fatores de proteção, associado à queda do vínculo escolar(2424. Maiya S, Dotterer AM, Whiteman SD. Longitudinal changes in adolescents’ school bonding during the COVID-19 pandemic: individual, parenting, and family correlates. J Res Adolesc. 2021;31(3):808–19. doi: http://dx.doi.org/10.1111/jora.12653. PubMed PMID: 34448299.
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).

A qualidade de vida e de ensino de adolescentes sofreram impactos provocados pela COVID-19. Isso concerne com a vulnerabilidade programática e social, pois o adolescente, para o seu desenvolvimento, precisa ter acesso aos meios de comunicação, disponibilidade de recursos materiais e, partir desses acessos, buscar qualidade da informação e desenvolvê-las para sua proteção(1515. Ayres JRCM, Paiva V, Franca Jr I, Gravato N, Lacerda R, Della Negra M, et al. Vulnerability, human rights and comprehensive health care needs of young people living with HIV/Aids. Am J Public Health. 2006;96(6):1001–6. doi: http://dx.doi.org/10.2105/AJPH.2004.060905. PubMed PMID: 16449593.
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).

Durante a pandemia de COVID-19, famílias tiveram que se readequar e conciliar a educação escolar de seus filhos e o trabalho, de acordo com as suas condições vivenciadas pelo distanciamento social. A educação durante a pandemia foi realizada de maneira improvisada, ocasionando perdas na aprendizagem, sendo necessário restaurar esses danos oferecendo apoio às famílias, adolescentes e educadores(2525. Gomes CA, Sá SO, Vázquez-Justo E, Costa-Lobo C. Education during and after the pandemics. Ensaio: Aval. Pol. Públ. Educ. 2021; 29(112):574–94.). Estudo realizado na Turquia mostrou que a satisfação em relação à vida escolar dos adolescentes foi prejudicada devido às incertezas que enfrentaram durante a pandemia de COVID-19 associada a elevados níveis de estresse(2626. Hatice O, Feridun K, Fatih A. Does educational stress mediate the relationship between intolerance of uncertainty and academic life satisfaction in teenagers during the COVID-19 pandemic? Psychol Sch. 2023;60(5):1514–31.). A responsabilidade pela educação dos filhos remete, inicialmente, à família e, nesse contexto, a escola predispõe a um ambiente de ensino-aprendizagem. Vários pais não possuem formação pedagógica para mediarem conteúdos de disciplinas de conhecimentos específicos. Além de suas demandas de trabalho, ou ausência delas, percebem-se sobrecarregados no acompanhamento das atividades escolares de seus filhos(2727. Laguna TFS, Hermanns T, Silva ACP, Rodrigues LN, Abaid JLW. Remote education: parents’ challenges in teaching during the pandemic. Rev Bras Saúde Mater Infant. 2021;21(Supl. 2):S393–401. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9304202100s200004.
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).

Ainda no contexto escolar, têm-se as relações afetivas do adolescente, em que, muitas vezes, são nessas relações que eles encontram suporte para vivenciar a fase da adolescência. Estudo realizado na China apontou que as relações de amizade do adolescente podem estar significativamente associadas ao bem-estar psicológico deles(2828. Zhou X, Li J, Wang Q. Making best friends from other groups and mental health of Chinese adolescents. Youth Soc. 2022;54(1):123–47. doi: http://dx.doi.org/10.1177/0044118X20959222.
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). Durante a pandemia, ocorreram impedimentos dos contatos sociais amplos e a convivência limitada entre as pessoas, inviabilizando as formas tradicionais de experienciar o lazer, como as festas em família, os encontros entre amigos, a realização de esportes coletivos e a possibilidade de realizar viagens(2929. Gadagnoto TC, Mendes LMC, Monteiro JCS, Gomes-Sponholz FA, Barbosa NG. Emotional consequences of the COVID-19 pandemic in adolescents: challenges to public health. Rev Esc Enferm USP. 2022;56:e20210424. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1980-220x-reeusp-2021-0424. PubMed PMID: 35499758.
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).

Com o distanciamento social, as pessoas que tinham acesso a tecnologias encontraram no lazer virtual uma forma de se distrair e adaptar suas rotinas, por meio das mídias digitais e sociais. Paradoxalmente, ocorreu o aumento expressivo do uso da internet. Com isso, a utilização da tecnologia disparou, como uso de aplicativos, redes sociais, assinaturas de televisão, entre outros, o que mostrou que as pessoas tinham a necessidade humana de manterem suas relações sociais usufruindo do meio tecnológico como lazer(2828. Zhou X, Li J, Wang Q. Making best friends from other groups and mental health of Chinese adolescents. Youth Soc. 2022;54(1):123–47. doi: http://dx.doi.org/10.1177/0044118X20959222.
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).

Também referente às relações, no cotidiano de alguns adolescentes, ocorreu tensão e estresse intrafamiliar, devido à intensificação da convivência familiar somada aos anseios, medo e crise econômica e social. Estudo realizado com adolescentes que investigou o impacto da COVID-19 na saúde mental das crianças e adolescentes mostrou que, de maneira geral, foi negativo, em que no ambiente familiar os conflitos aumentaram(2121. Magklara K, Lazaratou H, Barbouni A, Poulas K, Farsalinos K. The impact of COVID-19 lockdown on children’s and adolescents’ mental health in Greece. Child Soc. 2023;37(2):469–84. doi: http://dx.doi.org/10.1111/chso.12605.
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). Cabe destacar que a família também pode ser integradora no contexto de mudanças da pandemia com o adolescente, desenvolvendo um cuidado familiar pautado na confiança e proteção(2020. Santos KAM, Miura PO, Barboza AMM, Araújo CGSL. Quais os significados sobre família em situação de pandemia para os adolescentes? Cien Saude Colet. 2022;27(1):193–203. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232022271.08222021. PubMed PMID: 35043899.
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).

Em relação às situações de violência intrafamiliar e automutilação com as mudanças de convivência, ficaram mais frequentes e intensas ou se originaram nesse período. Durante o isolamento social, o lar teve o risco de se tornar um local muito perigoso, ocorrendo a violência doméstica, pela recomendação de ficar em casa. A rotina de estar junto de familiares impediu as pessoas de estarem perto de amigos e outros indivíduos significativos(3030. Mazza M, Marano G, Lai C, Janiri L, Sani G. Danger in danger: interpersonal violence during COVID-19 quarantine. Psychiatry Res. 2020;289:113046. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.psychres.2020.113046
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). Estudo que analisou as taxas de notificações de violência infanto-juvenil no estado do Rio Grande do Sul, no período da pandemia COVID-19, constatou que houve diminuição nas taxas de notificações de violência contra crianças e adolescentes, sendo necessárias ações que melhorem o reconhecimento dos casos suspeitos de violência durante a pandemia(1212. Hamada AK, Cassol MEG, Baggio AO, Marcon CEM. Impact of social distancing on reports of violence against children and adolescents in Rio Grande do Sul, Brazil. Cad Saude Publica. 2021;37(5):e00070521. PubMed PMID: 34008695.).

A limitação do estudo consiste em ter sido realizado em apenas uma escola, caracterizando uma pesquisa em nível local, não representando diferentes contextos, o que possivelmente poderia implicar distintos cotidianos e vulnerabilidade. Devido às restrições e aos cuidados extremos decorrentes da pandemia, optou-se por fazer em uma escola, com a qual a equipe de pesquisa já possuía um contato prévio.

As contribuições deste estudo direcionam-se para visibilidade da vulnerabilidade do cotidiano vivido dos adolescentes diante da pandemia de COVID-19, e que suas dimensões individual, social e programática sejam reconhecidas e discutidas.

CONCLUSÃO

A partir do estudo realizado, foi possível conhecer a vulnerabilidade presente no cotidiano de adolescentes na pandemia de COVID-19. Observou-se, na dimensão social, a ausência do convívio escolar e aprendizagens, como acesso às aulas, internet e aos recursos e aparelhos de comunicação disponíveis para dar continuidade aos estudos. Além disso, durante o período da pandemia, os efeitos sobre a saúde dos adolescentes foram intensos, visto que eles ficaram confinados em suas casas, sem atividades ao ar livre e interação com amigos e colegas. Para alguns adolescentes, ocorreu a presença da violência doméstica, o que fragilizou a convivência entre os membros da família.

Envolvendo-se a dimensão individual e programática, foi evidenciada a falta de acesso à tecnologia e de conectividade enfrentada pelos adolescentes que não as possuem ou não conseguiram desenvolver habilidades no uso dessas novas ferramentas tecnológicas. O desemprego e o possível acesso de outras fontes de renda foram relacionados ao componente programático. Contudo, os componentes da vulnerabilidade estão presentes em todo cotidiano dos adolescentes na pandemia, pois o viver é multifacetado e acontece de maneira interligada, podendo apresentar maior ou menor suscetibilidade em determinado componente. Sugere-se a reflexão sobre práticas no contexto da saúde e da escola, tendo por base a vulnerabilidade identificadas no cotidiano de adolescentes na pandemia de COVID-19.

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Editado por

EDITOR ASSOCIADO

Thiago da Silva Domingos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    16 Abr 2023
  • Aceito
    20 Jul 2023
Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
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