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Comunidade compassiva de favela: ampliando o acesso aos cuidados paliativos no Brasil

RESUMO

Objetivo:

Descrever a implementação de uma comunidade compassiva nas favelas da Rocinha e Vidigal, localizadas na cidade do Rio de Janeiro.

Método:

Relato da experiência da implementação de uma Comunidade Compassiva a partir das bases conceituais da Organização Mundial da Saúde, amparada pelas diretrizes da extensão universitária.

Resultados:

Inicialmente, lideranças locais e moradores foram recrutados e receberam treinamento sobre cuidados paliativos. Posteriormente, profissionais de saúde de diferentes especialidades engajaram-se no projeto por meio da prática do voluntariado. Foram instituídas visitas domiciliares na modalidade interconsulta e “apadrinhamentos” por moradores e profissionais de saúde às pessoas em cuidados paliativos e familiares. Por fim, a Rede de Atenção à Saúde do território foi integrada de forma a reconhecer o projeto como rede de apoio.

Conclusão:

Destacamos a experiência como trabalho vivo em saúde, que envolve relações e processos criativos, os quais mobilizam o saber técnico estruturado e as relações entre as pessoas e as tecnologias leve-duras e leves, tornando factível o reconhecimento de potências no território.

DESCRITORES
Cuidados Paliativos; Populações Vulneráveis; Visita Domiciliar; Pessoal de Saúde; Modelos de Assistência à Saúde

ABSTRACT

Objective:

To describe the implementation of a compassionate community in Rocinha and Vidigal slums, located in the city of Rio de Janeiro.

Method:

Report on the experience of implementing a Compassionate Community based on the World Health Organization conceptual bases, supported by university extension guidelines.

Results:

Initially, local leaders and residents were recruited and trained in palliative care. Subsequently, health professionals from different specialties engaged in the project through volunteering. Home visits were instituted in the form of interconsultation and “sponsorships” by residents and health professionals to people in palliative care and family members. Finally, the health care network in the territory was integrated in order to recognize the project as a support network.

Conclusion:

We highlight the experience as living work in health, which involves relationships and creative processes, which mobilize structured technical knowledge and relationships between people and soft-hard and soft technologies, making it possible to recognize powers in the territory.

DESCRIPTORS
Palliative Car; Vulnerable Population; House Call; Health Personne; Healthcare Model

RESUMEN

Objetivo:

Describir la implementación de una comunidad compasiva en las favelas de Rocinha y Vidigal, ubicadas en la ciudad de Río de Janeiro.

Método:

Relato de la experiencia de implementación de una Comunidad Compasiva a partir de las bases conceptuales de la Organización Mundial de la Salud, sustentada en lineamientos de extensión universitaria.

Resultados:

Inicialmente, se reclutaron y capacitaron a líderes locales y residentes en cuidados paliativos. Posteriormente, profesionales de la salud de diferentes especialidades se involucraron en el proyecto a través del voluntariado. Se instituyeron visitas domiciliarias en la modalidad de interconsulta y “patrocinios” por parte de residentes y profesionales de salud a personas en cuidados paliativos y familiares. Finalmente, se integró la Red de Atención a la Salud del territorio para reconocer el proyecto como una red de apoyo.

Conclusión:

Destacamos la experiencia como trabajo vivo en salud, que involucra relaciones y procesos creativos, que movilizan saberes técnicos estructurados y relaciones entre personas y tecnologías ligeras-duras y ligeras, posibilitando el reconocimiento de poderes en el territorio.

DESCRIPTORES
Cuidados Paliativos; Poblaciones Vulnerables; Visita Domiciliaria; Personal de Salud; Modelos de Atención de Salud

INTRODUÇÃO

Existe um grande desafio na equanimidade do acesso a cuidados paliativos de qualidade ao redor do mundo. Quando se pensa em populações vulneradas, aquelas formadas por indivíduos inseridos em contextos com condições desfavoráveis à vida(11. Schramm FR. Bioética da Proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev Bioet. 2008 [citado em 2022 out 14];16(1):11–23. Disponível em: https://www.ghc.com.br/files/BIOETICA%20DE%20PROTECAO.pdf
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), as limitações se ampliam, seja por conta de diversos tipos de discriminação, que rotulam e separam os seres humanos, seja pela desigualdade econômica gigantesca, que prevalece ao redor do mundo.

Devido às características das diferentes condições ameaçadoras da vida, por vezes, as pessoas nem sempre requerem cuidados que exigem hospitalização, mas necessitam que certos cuidados sejam oferecidos por profissionais de saúde capacitados em seus domicílios. O trabalho voluntário em diversos países, ao longo dos últimos anos, vem se destacando como uma estratégia que auxilia a minimizar as discrepâncias de acesso à saúde e ao cuidado digno e de qualidade, quando pensamos em doenças que ameaçam a continuidade da vida(22. Abdul Azeez EP, Anbuselvi G. Is the Kerala model of community-based palliative care operations sustainable? Evidence from the field. Indian J Palliat Care. 2021;27(1):18–22. doi: http://dx.doi.org/10.4103/IJPC.IJPC_45_20. PubMed PMID: 34035612.
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,33. Flores SL, Molina EH, Osuna JB, Vargas RM, Vicuña MN. All with you: a new method for developing compassionate communities — experiences in Spain and Latin-America. Ann Palliat Med. 2018;7(2):15–31. doi: http://dx.doi.org/10.21037/apm.2018.03.02
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).

No Brasil, ainda são pequenas as ações organizadas que reúnem voluntariado ativo e direcionado para assistência e auxílio de pessoas com necessidade de cuidados paliativos. Urge no país a implementação de ações educacionais, gerenciais, organizacionais e assistenciais que contemplem e assegurem a dignidade das pessoas que necessitam desses cuidados. Nesse contexto, trazemos a extensão universitária como uma ação que pode viabilizar projetos que possibilitem a criação de uma práxis atrelada ao conhecimento acadêmico e que contribua para uma relação transformadora entre a universidade e a sociedade.

As universidades públicas brasileiras, desde o século passado, agregam a extensão universitária como parte do seu escopo de trabalho, formalizando a tríade “ensino, pesquisa e extensão”, e tem sua indissociabilidade como princípio básico norteador do seu funcionamento. A ideia mais recente de extensão consiste no empenho na produção de conhecimento com o intuito de colaborar para a transformação social, entendendo a sociedade como agente ativo, com saberes, viveres e experiências válidas(44. Silva WP. Extensão universitária: um conceito em construção. Rev Extensão & Sociedade. 2020;11(2):21–32. doi: https://doi.org/10.21680/2178-6054.2020v11n2ID22491
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).

Motivado pela demanda de cuidados e desafios na Rede de Atenção à Saúde (RAS) em comunidades vulneradas e tendo em vista a fragilidade que os serviços de saúde apresentam em acolher os pacientes e oferecer cuidados paliativos(55. Boaventura JR, Pessalacia JDR, Martins TCR, Silva AE, Marinho MR, Neto PKS. Participação e controle social no contexto político dos cuidados paliativos no Brasil: uma reflexão teórica. Rev Enferm Centro Oeste Min. 2019;9:e3433. doi: http://dx.doi.org/10.19175/recom.v9i0.3433
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), Alexandre Ernesto Silva, enfermeiro e professor da Universidade Federal de São João del-Rei, em Minas Gerais, desde 2008, em seu processo de formação lato e stricto sensu, iniciou atendimentos domiciliares a pacientes com necessidades de cuidados paliativos nas favelas do Vidigal e da Rocinha, na cidade do Rio de Janeiro, Brasil, com o apoio de membros da própria comunidade, de forma voluntária. Logo observou-se uma crescente demanda da população a esses cuidados, sendo necessárias a estruturação e a ampliação desses atendimentos.

Em agosto de 2019, ao se encontrarem no I Congresso de Cuidados Paliativos do Rio de Janeiro, somou-se a essa iniciativa outros profissionais especialistas em cuidados paliativos; dentre esses profissionais, estão duas enfermeiras professoras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Maria Gefé da Rosa Mesquita e Liana Amorim Corrêa Trotte, e uma médica da rede municipal de saúde, Lívia Pereira Coelho, que optaram por construir um projeto de extensão universitário na intencionalidade de implantar uma Comunidade Compassiva nos territórios do Vidigal e da Rocinha.

O termo “Comunidade Compassiva” não é novo. A primeira concepção de um movimento/ação do que mais tarde se denominariam “Comunidades Compassivas” surgiu por meio do trabalho de um professor universitário na La Trobe University (Austrália), em conjunto com o Victorian Department of Human Services, iniciado como ação pela Escola de Saúde Pública da universidade. Neste primeiro momento, tinha-se a intenção de criar estratégias para promoção de cuidados paliativos de base universitária, que gerassem incentivo para ampliação da promoção dos cuidados paliativos na saúde pública da Austrália(66. Kellehear A. Health-promoting palliative care: developing a social model for practice. Mortality. 1999;4(1):75–82. doi: http://dx.doi.org/10.1080/713685967
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).

Tal iniciativa objetivava demonstrar para a universidade e para sociedade que a promoção de cuidados paliativos também configurava cuidados de promoção à saúde, contribuindo para a desmistificação da ideia de que cuidados paliativos estavam somente relacionados às atenções secundária e terciária e ao processo de fim de vida(66. Kellehear A. Health-promoting palliative care: developing a social model for practice. Mortality. 1999;4(1):75–82. doi: http://dx.doi.org/10.1080/713685967
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).

Derivadas do conceito da Organização Mundial de Saúde de “Cidades Saudáveis” ou “Comunidades Saudáveis”, as Comunidades Compassivas são baseadas na ideia de que saúde é mais do que mera ausência de doença, e encoraja as pessoas comuns, em todos os lugares, a adotar um entendimento de que a saúde é responsabilidade de todos e não somente dos serviços e profissionais de saúde. Tais concepções foram gradualmente defendidas no mundo, tendo como marco a Declaração de Alma Ata, que inspirou a mudança de paradigma de modelos hospitalocêntricos e focados na doença para modelos coletivos que atentassem para aspectos preventivos e de promoção à saúde. Ao longo do final dos anos 1990 e início dos anos 2000, profissionais de cuidados paliativos agregaram os conceitos supracitados e introduziram a ideia de as pessoas pensam no processo de morrer como uma etapa da vida(77. Kellehear A. Compassionate communities: end-of-life care as everyone’s responsibility. QJM. 2013;106(12):1071–5. doi: http://dx.doi.org/10.1093/qjmed/hct200. PubMed PMID: 24082152.
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).

Em nosso país, a Constituição Federal Brasileira de 1988(88. Brasil. Legislação Informatizada - Constituição de 1988 - Publicação Original. Brasília: Senado Federal; 1988 [citado em 2022 jun 13]. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/consti/1988/constituicao-1988-5-outubro-1988-322142-publicacaooriginal-1-pl.html
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) definiu, em seu Artigo 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Porém, acredita-se que o envolvimento popular é fundamental para o exercício efetivo da democracia e garantia de acesso aos direitos estabelecidos. O diálogo entre a população e o Estado deve ocorrer de forma habitual, e pode ser realizado por meio de organizações sociais e outras formas de associações que representem grupos ou comunidades e atuem como suporte e apoio para alcance de metas desejáveis.

As Comunidades Compassivas podem operar como parte de uma abordagem de saúde mais ampla para apoiar as pessoas com condições ameaçadoras da vida, suas famílias e cuidadores. Alguns exemplos(33. Flores SL, Molina EH, Osuna JB, Vargas RM, Vicuña MN. All with you: a new method for developing compassionate communities — experiences in Spain and Latin-America. Ann Palliat Med. 2018;7(2):15–31. doi: http://dx.doi.org/10.21037/apm.2018.03.02
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,77. Kellehear A. Compassionate communities: end-of-life care as everyone’s responsibility. QJM. 2013;106(12):1071–5. doi: http://dx.doi.org/10.1093/qjmed/hct200. PubMed PMID: 24082152.
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,99. Gómez-Batiste X, Mateu S, Serra-Jofre S, Molas M, Mir-Roca S, Amblàs J, et al. Compassionate communities: design and preliminary results of the experience of Vic (Barcelona, Spain) caring city. Ann Palliat Med. 2018;7(Suppl 2):32–41. doi: http://dx.doi.org/10.21037/apm.2018.03.10. PubMed PMID: 29764171.
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) adotados até então, geralmente, envolvem o uso de abordagens de desenvolvimento comunitário para aumentar a conscientização sobre o morrer e desenvolver a capacidade das pessoas da comunidade de cuidarem umas das outras.

Partindo dessa reflexão e das dificuldades enfrentadas em nossa realidade como profissionais de saúde paliativistas inseridos na universidade pública federal e no Sistema Único de Saúde (SUS), o presente estudo tem como objetivo descrever a implementação de uma Comunidade Compassiva nas favelas da Rocinha e Vidigal, localizadas na cidade do Rio de Janeiro.

MÉTODO

Desenho do Estudo

Trata-se de um relato de experiência sobre a implementação do projeto de extensão universitária intitulado “Comunidade Compassiva: uma proposta de engajamento social para o fortalecimento dos cuidados paliativos”, realizado em duas favelas da cidade do Rio de Janeiro, RJ, Brasil, a partir das bases conceituais publicadas pela Organização Mundial da Saúde e pelos pesquisadores Allan Kellehear e Suresh Kumar(22. Abdul Azeez EP, Anbuselvi G. Is the Kerala model of community-based palliative care operations sustainable? Evidence from the field. Indian J Palliat Care. 2021;27(1):18–22. doi: http://dx.doi.org/10.4103/IJPC.IJPC_45_20. PubMed PMID: 34035612.
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,66. Kellehear A. Health-promoting palliative care: developing a social model for practice. Mortality. 1999;4(1):75–82. doi: http://dx.doi.org/10.1080/713685967
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,99. Gómez-Batiste X, Mateu S, Serra-Jofre S, Molas M, Mir-Roca S, Amblàs J, et al. Compassionate communities: design and preliminary results of the experience of Vic (Barcelona, Spain) caring city. Ann Palliat Med. 2018;7(Suppl 2):32–41. doi: http://dx.doi.org/10.21037/apm.2018.03.10. PubMed PMID: 29764171.
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). Desenvolveu-se amparado pelas diretrizes da extensão universitária como prática acadêmica, como metodologia interdisciplinar e transdisciplinar e como sistemática de interação dialógica entre a universidade e a sociedade.

A implementação deste projeto ocorreu por meio de sete etapas interrelacionadas, conforme exposto na Figura 1.

Figura 1.
Etapas interrelacionadas para implementação do projeto.

Devido à natureza viva dos encontros e atores do processo de implementação da Comunidade Compassiva, houve grande riqueza nos encontros, o que permitiu a promoção de práticas integrais em saúde e a construção gradual das redes em momentos com mais potência do que em outros, à medida que foram sendo identificadas barreiras promotoras e dificultadoras de acesso, formação de vínculo e corresponsabilização dos envolvidos nos cuidados paliativos e na atenção à saúde no território.

Local

O presente estudo foi desenvolvido nas comunidades da Rocinha e Vidigal, localizadas na zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Essas localizações constituem-se como aglomerados urbanos subnormais, conhecidos popularmente como favelas. Apesar de esses territórios não se comporem de forma homogênea em todas as regiões do Brasil, eles apresentam algumas características em comum, como a predominância de população de baixa renda que, muitas vezes, se sustenta com empregos informais que não geram contribuição previdenciária, o que fragiliza o trabalhador, residências levantadas em terrenos irregulares, entre outros, produzindo dificuldades no acesso e na circulação de pessoas, sejam elas moradoras ou não da localidade.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística(1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sistema IBGE de Recuperação Automática – SIDRA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2022 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2022 [citado em 2022 out 14]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/home/pms/brasil
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), os aglomerados urbanos subnormais são conjuntos habitacionais formados de, no mínimo, 51 unidades de moradias, sendo elas barracos, casas e outras formas de habitação, com ocupação de terrenos de propriedade de outrem, da esfera pública ou privada. Em geral, apresentam fragilidades na cobertura de serviços públicos essenciais(1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sistema IBGE de Recuperação Automática – SIDRA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2022 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2022 [citado em 2022 out 14]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/home/pms/brasil
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). No que concerne às características de urbanização, dispõem-se de vias de circulação estreitas, de formato irregular, terrenos de tamanhos e formas desiguais. Em sua grande maioria, não são regulamentados por órgãos públicos(1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sistema IBGE de Recuperação Automática – SIDRA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2022 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2022 [citado em 2022 out 14]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/home/pms/brasil
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).

A Rocinha é considerada a maior favela do Brasil e um dos maiores aglomerados urbanos subnormais do mundo(1111. Pinto LF, Harzheim E, Hauser L, D’Avila OP, Gonçalves MR, Travassos P, et al. Primary Health Care quality in Rocinha – Rio de Janeiro, Brazil, from the perspective of children caregivers and adult users. Cien Saude Colet. 2017;22(3):771–81. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232017223.33132016. PubMed PMID: 28300986.
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). Sua população é estimada em 69.356 mil pessoas e cerca de 25.543 mil domicílios(1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sistema IBGE de Recuperação Automática – SIDRA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2022 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2022 [citado em 2022 out 14]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/home/pms/brasil
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). O aglomerado Vidigal apresenta uma população estimada em 12.797 mil pessoas, compondo cerca de 4.585 mil domicílios(1010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sistema IBGE de Recuperação Automática – SIDRA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2022 [Internet]. Rio de Janeiro: IBGE; 2022 [citado em 2022 out 14]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/home/pms/brasil
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).

O presente estudo foi produzido por meio da experiência dos próprios autores, que ocorreu durante as vivências das etapas de implementação do projeto, entre os anos de 2019 e 2021. A implementação da Comunidade Compassiva será narrada mediante a descrição das atividades, o que incluirá: a elegibilidade dos pacientes aos cuidados paliativos; a relação entre a comunidade, o paciente e a equipe de saúde; atividades de educação em saúde; visitas domiciliares; ações de voluntariado; características de vulneração territorial; discussões de casos clínicos; e a prestação dos cuidados integrais e paliativos.

Aspectos Éticos

Por se tratar de um relato de experiência profissional, não foi necessário a apreciação pelo Comitê De Ética em Pesquisa.

RELATO DA EXPERIÊNCIA

No início do trabalho, os coordenadores buscaram identificar na Rocinha e Vidigal pessoas que atuassem como lideranças locais, a fim de apresentar o projeto, explicar o objetivo e, assim, indagar por pessoas que possuíssem indicação para receber cuidados paliativos e outras que desejassem atuar como cuidadores voluntários dessas pessoas. As portas de entrada encontradas no território foram a Associação de Moradores e a Igreja Católica local. A segunda, por ser liderada por padres franciscanos, já possuía voluntários atuando no cuidado à saúde de pessoas.

Na busca por imergir no território, muitas reuniões com os moradores foram realizadas na intencionalidade de ouvir o contexto social, cultural e de saúde das pessoas locais, para que, dessa forma, as relações se estreitassem, a confiança brotasse e os vínculos acontecessem. Em um território vulnerado, acostumado com a ausência do Estado, muitos são os olhares desconfiados e as perguntas sobre o que seria necessário em troca do nosso trabalho. As pessoas dificilmente acreditavam que o projeto não estava ligado a segundas intenções ocultas, como prestação de serviços a alguma iniciativa político-partidária que, depois, resultasse em pedir votos para alguém. Salienta-se que, nos momentos de incredulidade, apresentamo-nos como professores da universidade pública brasileira que buscavam trabalhar executando os ideais extensionistas. Isso nos abriu portas e conferiu crédito às nossas reais intenções, ou seja, oferecer cuidados paliativos a pessoas vulneradas.

Uma palestra e rodas de conversas com os moradores sobre a definição de cuidados paliativos, seus objetivos e quem seriam as pessoas com indicação para receber esse tipo de cuidado foram as primeiras iniciativas da implementação. Na sequência, os moradores voluntários foram encorajados a buscar na vizinhança pessoas que tivessem as características apresentadas em nossos encontros e que desejassem receber uma visita da equipe de profissionais de saúde. Dessa forma, teve início a nova etapa, constituída por visitas domiciliares a pessoas potencialmente elegíveis para o cuidado paliativo.

No início dessa etapa, as visitas domiciliares eram realizadas por uma equipe pequena composta pelos coordenadores do projeto (enfermeiros e médica), somada ao morador voluntário, que havia identificado a pessoa potencialmente elegível aos cuidados paliativos. Para a elegibilidade, os pacientes foram avaliados pela equipe mediante a critérios como: ter uma doença progressiva, incurável e avançada; dispor de evolução clínica oscilante, caracterizada pelo surgimento de várias crises de necessidades ou reagudizações recorrentes; ter uma condição que ocasionasse grande impacto emocional ou social para si e sua família; contar com um prognóstico de vida reservado, com indicação de cuidados paliativos predominantes ou exclusivos; possuir necessidade de adequação terapêutica.

Para o fim acima descrito, a equipe elaborou instrumento próprio, reunindo elementos já descritos na literatura para a avaliação da elegibilidade para cuidados paliativos, contendo dados biográficos do indivíduo, da doença de base, dos tratamentos e medicamentos em uso, da avaliação de sintomas, com a utilização do instrumento Edmonton Symptom Assessment System (ESAS), da avaliação funcional, com apoio da Karnofsky Scale (KPS), da análise de exames que a pessoa apresentasse à equipe. Foram somados a isso os dados que contemplassem a realidade local do território vulnerado, sem os quais não seria possível tomar decisões terapêuticas e propor planos de cuidados, como condições da moradia, situação familiar ou disposição de algum tipo de cuidador, usufruto de alguma renda, contato com refeições diárias, condições para acesso a algum serviço de saúde, entre outras particularidades que a equipe julgasse necessárias registrar no instrumento.

Salienta-se que, por conta da grande extensão geográfica do território, muitos moradores não conhecem todas as regiões da favela e, consequentemente, as diferentes realidades que nela coexistem. Tal constatação impactou os moradores voluntários, e contribuiu para a sua motivação para envolver-se ainda mais com o projeto.

Após o término da visita de elegibilidade, quando a equipe considerava a pessoa elegível aos cuidados paliativos e com perfil para ser acompanhada pelo projeto, ela recebia a informação de que receberia outras visitas de seu vizinho e, mensalmente, da equipe do projeto. Quando a elegibilidade não acontecia, considerando as necessidades identificadas na avaliação, a equipe elaborava um resumo do atendimento e orientava as pessoas no fluxo para acesso à saúde do território.

Na continuidade, a pessoa em cuidados paliativos passa a ser acompanhada pelo projeto, estrategicamente recebe um “padrinho/madrinha” local, responsável por realizar visitas domiciliares periódicas, acompanhando de perto seu/sua “afilhado/afilhada”, suas necessidades e sendo o intermediário entre a pessoa e a equipe de saúde. Para melhor gestão e otimização dos processos, o paciente em cuidados paliativos ganha um tutor profissional, que se torna responsável por manejar o caso, comunicando-se diretamente com o “padrinho/madrinha” local, acionando outros profissionais da equipe e se comunicando diretamente com o paciente/família, de acordo com as necessidades identificadas.

Nos primórdios da implementação da Comunidade Compassiva, afligia-nos como seria a adesão de profissionais de saúde via voluntariado. Trata-se de projeto de extensão universitária que não possui financiamento para pagamento de pessoal, por sabermos das dificuldades enfrentadas por nossos colegas, devido à precarização das condições de trabalho na área da saúde em nosso país, agravada pela pandemia por COVID-19, o que gerava sobrecarga em muitos. Entretanto, ao acionar o networking, apresentar o projeto e solicitar apoio, o resultado foi notável: conseguimos voluntários de todas as especialidades da área da saúde, em diferentes estados do Brasil, que se disponibilizaram a atender aos pacientes, fosse de maneira remota ou presencial. Da mesma forma, pessoas de outras áreas e membros da sociedade civil que tiveram conhecimento da Comunidade Compassiva que surgia na Rocinha e Vidigal começaram a fazer contato para saber como contribuir. Dessa maneira, surgiram os membros intitulados “apoiadores”, que são pessoas voluntárias que se identificam com o projeto e contribuem de diferentes formas, de acordo com a disponibilidade de cada um, seja a distância ou presencial.

Todas as pessoas engajadas recebem orientações sobre o voluntariado, em consonância com os princípios das Nações Unidas, ou seja, nossos voluntários estão trabalhando para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio reduzindo a pobreza e contribuindo para a paz, segurança, saúde, bem-estar e o desenvolvimento econômico, social e político de pessoas, contribuindo, dessa forma, para as sociedades a nível local e nacional.

Considerando que a Comunidade Compassiva acolhe pessoas voluntárias, sejam elas profissionais de saúde ou membros da sociedade civil, outro aspecto crucial que a coordenação do projeto investe esforços é a educação, trabalhada por meio de diferentes metodologias da educação em saúde, alicerçada pela saúde baseada em evidências. De acordo com o nível de conhecimento de cada pessoa envolvida no projeto, uma estratégia de educação é traçada respeitando o tempo, a finalidade e o objetivo que a pessoa possuía. Dessa forma, a Comunidade Compassiva é cenário constante de treinamentos, rodas de conversa, visitas técnicas de profissionais de saúde, estudantes de graduação e pós-graduação, entre outras atividades pedagógicas que são repletas de troca de conhecimentos e experiências.

Tornamos explícito que a Comunidade Compassiva é uma iniciativa de apoio que objetiva ampliar o acesso aos cuidados paliativos a pessoas vulneradas que deve ser somada à RAS instalada no território. Há uma clara definição das funções que cada nível de atenção deve desempenhar junto aos usuários em nosso sistema de saúde, e o projeto visa aproximar-se da rede de atenção existente e apoiá-la, de forma a proporcionar ao usuário e à família em cuidados paliativos melhor controle de sinais e sintomas, bem como congregar ferramentas de apoio para a educação permanente em saúde dos profissionais envolvidos no cuidado.

Agindo nessa intencionalidade, a coordenação do projeto, de forma ativa, identificou a rede adstrita ao território, composta por quatro Clínicas da Família, uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e equipes do Programa de Atenção Domiciliar ao Idoso (PADI), instaladas em um hospital municipal da região, agendando reuniões para a apresentação do projeto com cada gestor e equipe dessas unidades de saúde. Ao término da apresentação inicial, tendo sido expostos os objetivos do projeto, foram apresentados às equipes de saúde os usuários que tinham sido elegíveis para receber o suporte da equipe multiprofissional de cuidados paliativos, tendo sido, ainda, estimulado que os profissionais das unidades encaminhassem ao projeto usuários que eles identificassem elegíveis aos cuidados paliativos e que poderiam ser beneficiados pela assessoria do projeto.

Devido à rotatividade de profissionais e à presença de residentes, estudantes e outros membros nas equipes, são realizadas reuniões semestrais com a gestão e profissionais de saúde das unidades. Inicialmente, apresenta-se o projeto e, na sequência, realiza-se uma roda de conversa sobre cuidados paliativos e a discussão de casos de usuários.

A FORMAÇÃO DA REDE COMPASSIVA

Implementar a Comunidade Compassiva na Rocinha e Vidigal é um trabalho vivo em saúde que envolve relações, processos criativos, e que mobiliza, predominantemente, o saber técnico estruturado e as relações entre as pessoas, ou seja, tecnologias leve-duras e leves. Utiliza-se pouco do aparato instrumental duro da tecnologia dura, tornando-se, assim, um espaço aberto para a exploração de potências nele detectadas e sendo passível de reproduções em outros territórios(1212. Neves CAB. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. Cad Saude Publica. 2008;24(8):1953–5. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2008000800023
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).

Comunidades Compassivas apoiam as pessoas em fim de vida e suas famílias de várias maneiras: as ajudam a viver em suas casas, as conectam aos serviços, aumentam a conscientização sobre o fim da vida e desenvolvem a capacidade de empatia e compaixão entre as pessoas na comunidade. O grande diferencial na proposta de se construir uma Comunidade Compassiva é que a participação da comunidade deixa de estar apenas na esfera do planejamento operacional, sendo elevada às esferas tática e estratégica.

O modelo de cuidado operacionalizado por meio das Comunidades Compassivas viabiliza a liderança incorporada na comunidade local, onde membros desses territórios, em parceria com as redes sociais de apoio, colaboram com oferta de cuidados paliativos às pessoas da própria comunidade que apresentam alguma condição ameaçadora de vida, estendendo-se aos familiares e cuidadores(1313. Tziraki C, Grimes C, Ventura F, O’Caoimh R, Santana S, Zavagli V, et al. Rethinking palliative care in a public health context: addressing the needs of persons with non-communicable chronic diseases. Prim Health Care Res Dev. 2020;28(3):229–35.). Esse modelo de cuidado visa responder às necessidades da comunidade local, geralmente envolvendo pessoas da mesma localização geográfica, possibilitando ainda abarcar instituições religiosas, famílias, organizações locais, bairros e grupos diversos de pessoas que compartilham experiências que se assemelham(1414. Palliative Care Australia. Compassionate communities: an implementation guide for community approaches to end of life care [Internet]. Fyshwick: Palliative Care Australia; 2018 [citado em 2022 jun 13]. Disponível em: https://palliativecare.org.au/wp-content/uploads/dlm_uploads/2018/09/An-implementation-guide-for-community.pdf
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).

Dessa maneira, a forma com que as Comunidades Compassivas se desenvolvem e fornecem suporte pode variar entre as diferentes comunidades(1414. Palliative Care Australia. Compassionate communities: an implementation guide for community approaches to end of life care [Internet]. Fyshwick: Palliative Care Australia; 2018 [citado em 2022 jun 13]. Disponível em: https://palliativecare.org.au/wp-content/uploads/dlm_uploads/2018/09/An-implementation-guide-for-community.pdf
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). Da mesma forma, a Comunidade Compassiva desenvolvida nas favelas da Rocinha e Vidigal é realizada por meio da oferta de cuidados paliativos a pessoas em situação de vulneração social, promovendo a integralidade do cuidado, mediante a prevenção e gestão de sinais e sintomas associados a acometimentos físicos, espirituais e psicossociais, por meio da parceria entre profissionais de saúde voluntários profissionais, voluntários locais e apoiadores externos.

Nesse contexto, compreende-se por populações vulneradas aquelas que vivenciam situações concretas de desigualdades sociais, não estando apenas no campo da suscetibilidade, mas experienciando de fato a fragilidade de atuação do Estado(11. Schramm FR. Bioética da Proteção: ferramenta válida para enfrentar problemas morais na era da globalização. Rev Bioet. 2008 [citado em 2022 out 14];16(1):11–23. Disponível em: https://www.ghc.com.br/files/BIOETICA%20DE%20PROTECAO.pdf
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), consubstanciado por disparidades socioeconômicas e culturais presentes nesses territórios. Nesse ínterim, o contexto de vulneração social experienciado por pacientes em cuidados paliativos, que vivem nessas localizações, propicia um processo de morrer/morte antecipado, que emerge da falta de acesso aos serviços essenciais para a vida humana, como a saúde, a alimentação, a moradia, a renda, a educação, o lazer, entre outros, que se constituem fatores determinantes e condicionantes para o trajeto saúde-doença.

A antecipação do processo de morrer proveniente das disparidades encontradas nessas localizações é conhecido como o neologismo mistanásia, forma de morrer infeliz e dolorosa, provocada de maneiras lentas e sutis em decorrência de determinados sistemas e estruturas(1515. Anjos FM. Eutanásia em chave de libertação. Boletim do Instituto Camiliano de Pastoral da Saúde (ICAPS). 1989 Jun;57:6.), ou seja, pela falta de recursos que inferem nas necessidades humanas básicas. A prática desse fenômeno diverge dos direitos assegurados pela Constituição da República Federativa do Brasil(1616. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União [Internet]; Brasília, 5 out. 1988. [citado em 2022 jun 13]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
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), ferindo o Artigo 1º, inciso III, que versa sobre a dignidade da pessoa humana. Além disso, opõe-se a outros direitos e garantias fundamentais, como a inviolabilidade do direito à vida, que é considerada um valor soberano, que não pode ser flexibilizada e abrange a todos sem distinção(1717. Siqueira SF, Ferreira THA, Andrade DCM. Mistanásia ou eutanásia social: a morta infeliz no sus e a violação do princípio da dignidade da pessoa humana. Cienc Hum Soc. 2020;6(2):99–112. doi: http://orcid.org/0000-0003-2779-9185
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).

Um estudo de projeção sobre a carga futura de sofrimento grave relacionado à saúde evidenciou que, até o ano de 2060, cerca de 48 milhões de pessoas morrerão a cada ano, apresentando algum tipo de sofrimento relacionado à saúde(1717. Siqueira SF, Ferreira THA, Andrade DCM. Mistanásia ou eutanásia social: a morta infeliz no sus e a violação do princípio da dignidade da pessoa humana. Cienc Hum Soc. 2020;6(2):99–112. doi: http://orcid.org/0000-0003-2779-9185
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). Dessas mortes, cerca de 83% ocorrerão em países de baixa e média renda, onde observa-se uma incipiente mobilização para o oferecimento de cuidados paliativos à população(1818. Sleeman KE, Brito M, Etkind S, Nkhoma K, Guo P, Higginson HJ, et al. The escalating global burden of serious health-related suffering: projections to 2060 by world regions, age groups, and health conditions. Lancet Glob Health. 2019;7(7):e883–92. doi: http://dx.doi.org/10.1016/S2214-109X(19)30172-X. PubMed PMID: 31129125.
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,1919. Knaul FM, Farmer PE, Krakauer EL, Lima L, Bhadeia A, Kwete XJ, et al. Alleviating the access abyss in palliative care and pain relief-an imperative of universal health coverage: the Lancet Commission report. Lancet. 2018;391(10128):1391–454. doi: http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(17)32513-8. PubMed PMID: 29032993.
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). Nessa perspectiva, esses indivíduos, que vivem e morrem em áreas de pobreza, não recebem de forma adequada o alívio do sofrimento humano por meio dos cuidados paliativos ou controle da dor. Desse modo, olhando para essas fragilidades, vê-se materializado o sofrimento na face cruel das desigualdades sociais(1919. Knaul FM, Farmer PE, Krakauer EL, Lima L, Bhadeia A, Kwete XJ, et al. Alleviating the access abyss in palliative care and pain relief-an imperative of universal health coverage: the Lancet Commission report. Lancet. 2018;391(10128):1391–454. doi: http://dx.doi.org/10.1016/S0140-6736(17)32513-8. PubMed PMID: 29032993.
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).

No Brasil, a precarização na disponibilidade de serviços que ofertam cuidados paliativos se agrava quando se trata de comunidades vulneradas, pois há uma escassez de pesquisas e iniciativas governamentais que versem sobre essa prática nesses territórios. Além disso, não é conhecido o quantitativo de indivíduos que tenham necessidade dessa abordagem nesse contexto. Outrossim, não se têm documentadas as demandas específicas de cuidado que esse cenário impõe. Torna-se imperativo fomentar iniciativas que proporcionem a equidade, a integralidade e a universalidade do acesso aos cuidados paliativos, princípios doutrinários que regem o SUS.

Nessa perspectiva, os resultados deste estudo corroboram com os achados de uma pesquisa que propõe um modelo de cuidado que tem como base os princípios da justiça social e da equidade(2020. Abel J, Kellehear A, Karapliagou A. Palliative care: the new essentials. Ann Palliat Med. 2018;7(2, Suppl 2):S3–14. doi: http://dx.doi.org/10.21037/apm.2018.03.04. PubMed PMID: 29764169.
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). Nesse espaço, é realizada a integração entre os cuidados paliativos especializados, cuidados paliativos generalistas, Comunidades Compassivas e membros da comunidade local para uma abordagem de cuidados de fim de vida, possibilitando a integração do conhecimento técnico-científico e do saber popular para um maior alcance dessa abordagem em diferentes contextos sociais(2020. Abel J, Kellehear A, Karapliagou A. Palliative care: the new essentials. Ann Palliat Med. 2018;7(2, Suppl 2):S3–14. doi: http://dx.doi.org/10.21037/apm.2018.03.04. PubMed PMID: 29764169.
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).

No cenário brasileiro, a participação popular no processo de elaboração e efetivação de políticas públicas de saúde está assegurada por meio da Lei Orgânica da Saúde (LOS) nº. 8.142/90, em que são garantidos à população espaços para debater ideias e problemas prioritários no contexto saúde-doença(2121. Brasil. Lei nº 8.142, de 28 de Dezembro de 1990. Dispõe Sobre a participação da comunidade na gestão do sistema único de saúde - sus e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 28 dez. 1990 [citado em 2022 jun 13]. Disponível em: https://legislacao.presidencia.gov.br/atos/?tipo=LEI№=8142&ano=1990&ato=850o3Zq1keFpWTcff
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). Nessa perspectiva, o cuidado desenvolvido pela população local por meio da Comunidade Compassiva evidencia que é de responsabilidade coletiva cuidar uns dos outros, minimizando o sofrimento e promovendo a qualidade de vida de indivíduos em condições ameaçadoras da vida(66. Kellehear A. Health-promoting palliative care: developing a social model for practice. Mortality. 1999;4(1):75–82. doi: http://dx.doi.org/10.1080/713685967
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), frente a um serviço de saúde que, muitas vezes, não coloca em prática o princípio da universalidade.

Além disso, cabe destacar o protagonismo da enfermagem no planejamento e operacionalização dessa Comunidade Compassiva, tendo sido essa, no Brasil, uma iniciativa liderada por enfermeiros. A enfermagem paliativa ancora-se em valores e habilidades, como a presença, escuta, capacidade de observação, comunicação assertiva, cuidado centrado na pessoa, empatia, compaixão, entre outros, que fazem com que tais profissionais desenvolvam estratégias e competências relacionais que o destacam junto a pacientes, familiares, equipe e comunidade(2222. Moran S, Bailey M, Doody O. An integrative review to identify how nurses practicing in inpatient specialist palliative care units uphold the values of nursing. BMC Palliat Care. 2021;20(1):111. doi: http://dx.doi.org/10.1186/s12904-021-00810-6. PubMed PMID: 34271889.
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). Cuidar de uma pessoa em cuidados paliativos mantém aceso no enfermeiro a chama do cuidar, seja por meio da arte sensível de um toque, silêncio ou presença em momento oportuno, por meio da competência clínica, ao desenvolver o raciocínio diagnóstico para se manejar determinado sintoma que se exacerba.

Ao adentrar a Rocinha e a Vidigal para desenvolver a Comunidade Compassiva, nossos olhares atentos são inundados por estímulos para a produção de um cuidado que é bem maior que a mera ausência de doenças. Ao percorrer as vielas e suas estruturas físicas e passar pelos moradores e voluntários locais com suas histórias que nos são contadas e chegar, finalmente, aos usuários em cuidados paliativos e seus familiares em seus lares à procura de apoio, pensamos em estratégias que possam produzir mais saúde, reduzir danos e promover bem-estar, seja na esfera do ambiente, com vistas a promover a sustentabilidade, seja na esfera social, para combater as desigualdades, seja na esfera da educação, para empoderar pessoas e ampliar suas possibilidades na sociedade. Desenvolver a Comunidade Compassiva realça o nosso olhar para vermos o homem como ser social que vive em coletividade e precisa dos outros de sua espécie durante o decorrer de sua vida, reforçando o compromisso social e a solidariedade como ferramentas importantes na atualidade.

Cabe mencionar as dificuldades encontradas na trajetória, que foram a pandemia de COVID-19 no ano de 2020, que nos fez replanejar estratégias e adiar atividades, a falta de financiamento inicial para suprir algumas necessidades identificadas junto aos usuários e à rotatividade de profissionais na rede de atenção do território, o que causou atraso à formação de vínculo e à parceria com o projeto.

Como limitações deste estudo, observa-se que as reflexões aqui expostas emergem das vivências das fases de implementação de um projeto de extensão universitária sob a ótica de três professores universitários e uma médica da rede pública de saúde local, os quais fazem parte da gestão do projeto. Dessa forma, não foram captadas as experiências vivenciadas por outros colaboradores, como os profissionais voluntários, moradores voluntários locais e dos usuários e familiares participantes do projeto.

Como contribuições para as áreas da saúde e enfermagem, essa iniciativa destacou-se por se tratar de um projeto de extensão universitário protagonizado por enfermeiros que buscam a cooperação e disseminação dos saberes científicos, tecnológicos e culturais por meio da articulação entre os conhecimentos teóricos e sua aplicação na comunidade, privilegiando, ainda, o espaço para a produção de conhecimento científico por meio da pesquisa, da formação de profissionais e da possibilidade de transformação social, entendendo a sociedade como agente ativo, com saberes, viveres e experiências válidas.

CONCLUSÃO

Com este relato de experiência, descrevemos a implementação da Comunidade Compassiva nas favelas da Rocinha e Vidigal, no município do Rio de Janeiro, de forma a ampliar o acesso aos cuidados paliativos a pessoas vulneradas em território de difícil entrada e mobilidade. Pode-se observar que prover e dar continuidade aos cuidados de saúde, com destaque para os cuidados paliativos, às pessoas que habitam nesse local torna-se um grande desafio à rede de saúde local. Iniciativas como o projeto descrito podem contribuir como recurso adicional, de forma a minimizar barreiras dificultadoras de acesso à saúde, ao surgirem redes vivas de apoio que podem impactar diretamente os casos.

A Comunidade Compassiva, por meio de seus voluntários, profissionais e apoiadores, confere mobilidade às pessoas em cuidados paliativos por meio dos encontros e das ações de cuidados compartilhadas por todos. Ao encontro dessa afirmação, destacam-se iniciativas correlatas no mundo, como a de 2022, da Worldwide Hospice Palliative Care Alliance (WHPCA), cujo tema foi “Curando corações e comunidades”, que trabalhou o luto coletivo que o mundo vivencia pós-pandemia, e esteve envolto a conflitos entre nações, e a de 2023, da Public Health Palliative Care International (PHPCI), cujo tema é “Comunidades Compassivas: Juntos pelos Cuidados Paliativos”. A compaixão como força motriz dos cuidados paliativos é capaz de contribuir para a construção de relações de confiança e conforto, nas quais pacientes, familiares e profissionais reinventam a produção de saúde de acordo com as necessidades do protagonista.

  • Apoio financeiro
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

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Editado por

EDITOR ASSOCIADO

Márcia Regina Martins Alvarenga

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Jan 2023
  • Aceito
    16 Jun 2023
Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
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