Vulnerabilidade de imigrantes venezuelanos residentes em Boa vista, Roraima^*

RESUMO

Objetivo:

Identificar as vulnerabilidades sociais e de saúde de imigrantes venezuelanos residentes em Boa Vista, Roraima.

Método:

Pesquisa de métodos mistos, com estratégia transformativa concomitante. Na fase quantitativa, foram realizadas análises de documentos de gestão do estado de Roraima e da capital Boa Vista. Na qualitativa, entrevistas abertas com 16 imigrantes venezuelanos, 14 profissionais de enfermagem e 8 gestores públicos e um grupo focal com 12 profissionais de enfermagem. Utilizou-se o software webQDA para organização dos dados, e as análises de conteúdo e de discurso foram baseadas em Bardin e na hermenêutica-dialética, segundo Minayo.

Resultados:

As principais vulnerabilidades identificadas foram a ausência de políticas públicas para imigrantes, a fragilidade dos vínculos com os serviços de saúde e as diferenças de idioma.

Conclusão:

As vulnerabilidades dos imigrantes venezuelanos encontram-se vinculadas aos seus modos de viver e de trabalhar. As instituições e organizações de saúde não se encontram plenamente qualificadas para atendê-los. São necessárias políticas específicas para esse grupo social e qualificar instituições e profissionais de saúde para execução dessas políticas.

DESCRITORES
Vulnerabilidade a Desastres; Enfermagem; Emigrantes e Imigrantes; Saúde Pública; Políticas de Saúde

ABSTRACT

Objective:

To identify the social and health vulnerabilities of Venezuelan immigrants living in Boa Vista, Roraima.

Method:

Mixed methods research, with concomitant transformative strategy. In the quantitative phase, analysis of management documents for the state of Roraima and the capital Boa Vista were carried out. In the qualitative, open interviews with 16 Venezuelan immigrants, 14 nursing professionals and 8 public managers and a focus group with 12 nursing professionals. The webQDA software was used to organize the data and the content and discourse analyzes were based on Bardin and on dialectic-hermeneutics, according to Minayo.

Results:

The main vulnerabilities identified were the absence of public policies for immigrants, the fragility of links with health services and language differences.

Conclusion:

The vulnerabilities of Venezuelan immigrants are linked to their ways of living and working. Health institutions and organizations are not fully qualified to serve them. Specific policies are needed for this social group and to qualify institutions and health professionals to implement these policies.

DESCRIPTORS
Disaster Vulnerability; Nursing; Emigrants and Immigrants; Public health; Health policies

RESUMEN

Objetivo:

Identificar las vulnerabilidades sociales y sanitarias de inmigrantes venezolanos residentes en Boa Vista, Roraima.

Método:

Es una investigación de métodos mixtos, con estrategia transformativa concomitante. En la fase cuantitativa se llevó a cabo el análisis de documentos de gestión del estado de Roraima y de su capital, Boa Vista. En la fase cualitativa, se realizaron entrevistas abiertas con 16 inmigrantes venezolanos, 14 enfermeros y 8 gestores públicos y un grupo focal con 12 profesionales de enfermería. Se utilizó el software webQDA para organizar los datos y el análisis de contenido y discurso estuvo basado en Bardin y en la hermenéutica-dialéctica, según Minayo.

Resultados:

Las principales vulnerabilidades fueron la falta de políticas públicas hacia los inmigrantes, la fragilidad de los vínculos con los servicios sanitarios y las diferencias lingüísticas.

Conclusión:

Las vulnerabilidades de los inmigrantes venezolanos están relacionadas con su forma de vida y trabajo. Las instituciones y organizaciones sanitarias no tienen suficiente capacidad para atenderlos. Se necesitan políticas específicas para este grupo social y preparación de las instituciones y profesionales de la salud para implementar dichas políticas.

DESCRIPTORES
Vulnerabilidad ante Desastres; Emigrantes e Inmigrantes; Salud Pública; Políticas de Salud

INTRODUÇÃO

Imigrantes constituem uma população vulnerável, principalmente em países de economia emergente(¹). No contexto brasileiro, imigrantes venezuelanos que se deslocaram para o este país desde 2015 apresentam inúmeras vulnerabilidades sociais. Após sobreviverem à escassez de bens de consumo básicos em sua terra natal e atravessarem a fronteira, expondo-se ao risco de morte nas rotas do tráfico de drogas, chegam a Boa Vista, capital do estado de Roraima, onde sofrem múltiplos preconceitos decorrentes da xenofobia, que redunda em exclusão social(²).

Por isso, estudos nacionais e internacionais corroboram a importância de investir em pesquisas sobre as vulnerabilidades sociais e de saúde de imigrantes(³,⁴), pessoas que, impactadas por seus deslocamentos, muitas vezes forçadas, têm elevado potencial para desenvolvimento de doenças e agravos de ordem tanto física como emocional(⁴). Considerando as questões de saúde mental, suicídios, transtornos de ansiedade e depressão destacam-se como os principais agravos de saúde mental que acometem essa população(⁵).

As doenças e os agravos físicos são decorrentes, em sua maior parte, das más condições de vida e trabalho. Ao chegar em um novo país, sem nenhuma documentação que comprove que sua permanência ali é legal, os imigrantes têm sua mão de obra explorada e muitas vezes são obrigados a longas jornadas de trabalho sem remuneração digna, submetidos até mesmo a condições análogas à escravidão(⁶). Algo semelhante vem sendo observado na realidade dos imigrantes venezuelanos que se estabelecem em Roraima, especificamente na capital Boa Vista.

A imprensa nacional, assim como organizações de proteção a imigrantes e refugiados, identificou diversos episódios de flagrante desrespeito aos direitos humanos dos venezuelanos em Boa Vista e vem alertando para a necessidade de intensificar esforços para enfrentar essas situações(⁷). Identificar as vulnerabilidades de saúde vivenciadas pelos imigrantes venezuelanos e atuar em seu enfrentamento contribui para a conquista da cidadania e uma consequente melhoria da qualidade de vida dessas pessoas(⁸). Assim, o objetivo do presente estudo foi identificar as vulnerabilidades de saúde dos imigrantes venezuelanos residentes em Boa Vista.

MÉTODO

Desenho do Estudo

Pesquisa de métodos mistos, com caráter exploratório, analítico e descritivo, que utilizou a estratégia transformativa concomitante. A estratégia transformativa concomitante é guiada pelo pesquisador a partir de uma perspectiva teórica específica e coleta, ao mesmo tempo, de dados quantitativos e qualitativos(⁹).

População

Participaram do estudo 16 imigrantes venezuelanos, 26 profissionais (14 entrevistados e 12 participantes de um grupo focal) e 8 gestores públicos que atuam em unidades de saúde da capital Boa Vista, nos três níveis de atenção.

Coleta e Análise dos Dados

A coleta dos dados ocorreu entre julho e outubro de 2021, em duas fases: na fase quantitativa, foram coletadas informações nos relatórios de gestão estadual e municipal dos anos de 2018, 2019 e 2020, de vigilância em saúde do município e do estado, políticas e ações públicas construídas e executadas em Roraima para compor o perfil epidemiológico local e identificar demandas relativas aos imigrantes venezuelanos, particularmente os mais vulneráveis. Na fase qualitativa, optou-se pela realização de um grupo focal com 12 profissionais de saúde pertencentes às equipes de enfermagem de diversas unidades da capital, o que permitiu que externassem suas opiniões sobre o atendimento aos imigrantes venezuelanos em suas respectivas unidades. Já as entrevistas abertas objetivaram conhecer as perspectivas individuais sobre o fenômeno estudado e foram feitas com outros 14 profissionais de enfermagem, 8 gestores e 16 participantes venezuelanos.

O uso das entrevistas abertas justifica-se pela necessidade de conduzir livremente a coleta das informações, pois permite que a conversa “flutue” por qualquer assunto que se julgue apropriado ou necessário(¹⁰). Em razão das diferenças culturais e de idioma, contou-se com o apoio de uma intermediadora cultural de origem venezuelana. O número dos participantes das entrevistas foi definido por saturação(¹¹). Assim, levou-se em consideração a importância dos participantes no fenômeno estudado; características, experiências e expressões que deram lastro às falas dos participantes; questões socioculturais, políticas, econômicas, profissionais, de saúde e demais aspectos relativos à subjetividade dos grupos envolvidos. A decisão de encerrar as entrevistas foi tomada conforme cada grupo, após terem sido identificadas repetições, similaridades e ausência de falas complementares.

As entrevistas e o grupo focal foram gravados em áudio e, posteriormente, transcritos. Os áudios em espanhol foram transcritos, traduzidos e conferidos com ajuda da intermediadora cultural. A análise dos dados foi subsidiada pelo software WebQDA de apoio à análise de dados qualitativos(¹²). Utilizou-se a análise do conteúdo de Bardin(¹³) e a análise hermenêutico-dialética de Minayo(¹¹) para analisar os discursos oriundos das entrevistas e do grupo focal.

O marco teórico que norteou a discussão dos achados foi a determinação social do processo saúde-doença, que, segundo Breilh(¹⁴), considera o modo de produção e reprodução social como determinante do perfil epidemiológico de uma população.

Estratégias Metodológicas

O Quadro 1(¹⁵) apresenta os marcadores de vulnerabilidade a doenças e agravos em um dado território, utilizados neste estudo.

Quadro 1
Marcadores de vulnerabilidade relacionados a doenças e agravos em um dado território – Boa Vista, RR, Brasil, 2023.

Aspectos Éticos

A pesquisa foi submetida e aprovada em 24 de março de 2021 pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Escola de Enfermagem da USP, sob o Parecer Nº 4.608.934, em observância à Resolução Nº 466 de 12 de dezembro de 2012, que determina normas e diretrizes regulamentadoras em pesquisas envolvendo seres humanos. Os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foram emitidos nos idiomas nativos dos participantes do estudo.

RESULTADOS

Apresentam-se a seguir as vulnerabilidades da população venezuelana, extraídas a partir da análise dos documentos de gestão, das falas produzidas nas entrevistas, bem como do grupo focal, as quais foram organizadas segundo os marcadores de vulnerabilidade(¹⁵), nas dimensões individual, programática e social.

Dimensão Individual

Perfil demográfico:

a população imigrante venezuelana é composta por 57% de homens, adultos jovens, na faixa etária de 20 a 39 anos. Sua escolaridade é baixa e 37% não possuem o nível que, no Brasil, corresponderia ao ensino fundamental completo. A renda média de 71% dos venezuelanos em Boa Vista não ultrapassa um salário-mínimo e meio, cerca de 193 dólares(¹⁶). Desde a reabertura da fronteira em março de 2021, grande parte chega ao Brasil proveniente dos estados venezuelanos próximos à fronteira, como Amazona, Bolívar, Monagas e Anzoátegui(¹⁷). Na cidade de Boa Vista, ocupam principalmente os bairros da periferia da zona oeste, conhecida como “Zona Vermelha”, por seus índices elevados de criminalidade;

Estrutura e dinâmica familiar:

identificaram-se famílias monoparentais, biparentais e estendidas. Famílias com nove pessoas foram vistas morando em espaços onde caberiam, no máximo, três ou quatro. Entre os entrevistados venezuelanos, as famílias eram patriarcais, à exceção de três monoparentais, nas quais as chefes eram mulheres que conviviam com seus filhos, filhas e mães;

Condições de vida:

os imigrantes não desfrutam de boas condições de vida. A quantidade de desempregados em Boa Vista é alta (cerca de 70% da população imigrante local). Há carência de recursos para compra de comida, dificuldades para conseguir documentações exigidas para acesso a trabalho, serviços de saúde e benefícios sociais;

Condições de trabalho:

os imigrantes ocupam empregos informais ou subempregos. Essas pessoas representam cerca de 25% dos residentes em Boa Vista e submetem-se a condições de trabalho insalubres, com salários inferiores aos dos brasileiros(¹⁶);

Conhecimentos e significados sobre a vida diária:

os imigrantes associam fortemente a sensação de estar seguro às condições socioeconômicas. A maioria dos entrevistados relatou sensação de segurança por estar no Brasil, dadas as conquistas financeiras;

Relações sociais:

festas e confraternizações são comuns nas vilas e residências onde os venezuelanos vivem, na periferia de Boa Vista. Nas entrevistas, os profissionais de enfermagem comentaram que as relações de cunho sexual e afetivo dos venezuelanos em Boa Vista são com múltiplos parceiros. Segundo relatos dos profissionais da APS e da Maternidade, o uso de preservativos não tem grande adesão entre os imigrantes;

Perfil de morbimortalidade:

não foram encontrados estudos que descrevessem com precisão o perfil de morbimortalidade da população imigrante venezuelana em Roraima, por ser um fenômeno recente. Contudo, diversas pesquisas identificadas na revisão de escopo realizada preliminarmente(¹⁸), bem como em depoimentos de gestores e profissionais de enfermagem, sinalizaram a violência como uma das principais causas de morte entre os venezuelanos;

Comportamentos e atitudes que refletem conhecimentos e significados:

os principais comportamentos e atitudes dizem respeito a medos e receios que os imigrantes venezuelanos têm de não serem atendidos ou de terem seus direitos negados pela falta da documentação adequada para garantir sua permanência no país;

Crenças e valores:

não foram identificadas situações ou falas relevantes acerca dessa temática, contudo, quando externavam sua satisfação por terem conseguido uma atividade remunerada ou por terem alcançado alguma estabilidade socioeconômica, a expressão “Graças a Deus” era repetida com frequência pelos imigrantes.

Dimensão Programática

Política de saúde:

não foram identificadas políticas públicas de saúde voltadas especificamente para a população imigrante venezuelana em Roraima, tampouco na capital Boa Vista;

Planejamento e avaliação das metas e ações:

considerando a ausência de políticas públicas de saúde, o único planejamento citado pelos gestores referiu-se ao crescimento demográfico da população local, para organizar fluxos de atendimento, coordenar as ações da APS e adequar o recebimento de recursos por parte das esferas superiores de gestão, no caso, a prefeitura de Boa Vista e o governo do estado de Roraima. A análise dos documentos de gestão não identificou ações significativas junto à população imigrante, no estado ou na capital;

Sustentabilidade da política:

as ações da Operação Acolhida, em conjunto com outras organizações não governamentais e de proteção aos direitos humanos (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, Organização Internacional de Migrações e Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais) representam o escopo de tudo o que é realizado em Roraima para atender às necessidades da população venezuelana no local;

Controle social e participação na execução da política:

não há evidências de participação efetiva dos imigrantes venezuelanos em nenhuma tomada de decisão, sendo assim, não se pode falar em controle social por parte de uma população que não possui representantes com direito à vocalização de suas necessidades sociais e de saúde;

Sustentabilidade política, institucional e material:

identificaram-se posicionamentos políticos polarizados no que diz respeito à crise migratória e seus impactos em Roraima. De um lado, o governo federal e as instituições filiadas à ONU acolhem, incluem e ajudam os refugiados. De outro, observa- se a “neutralidade” na falta de ações do governo estadual e da Prefeitura Municipal de Boa Vista, além da aversão à presença dos venezuelanos nas declarações de políticos locais que sugerem o fim da Operação Acolhida em Roraima(¹⁹);

Estrutura e organização dos serviços de saúde:

os profissionais entrevistados do Hospital Geral sinalizam sobrecarga de trabalho, superlotação, necessidade imprescindível de contratação de mais profissionais e inauguração dos anexos hospitalares que ainda se encontravam em construção(²⁰). Na APS, a situação é similar, contudo observam-se mais inciativas de acolhimento que nos hospitais;

Operacionalização das ações:

as ações de recepção e acolhimento aos imigrantes são operacionalizadas pela Operação Acolhida, em Pacaraima e Boa Vista. As ações por parte dos gestores públicos locais são escassas, pontuais e dependem das iniciativas de determinados profissionais ou equipes;

Práticas intersetoriais e multissetoriais:

as parcerias entre o Governo do Estado, a Prefeitura Municipal e a Operação Acolhida são tópicas. Durante os anos de 2018 e 2019, em uma parceria entre o Governo do Estado e a AMATUR Turismo, foram disponibilizados ônibus para levar de volta até Santa Elena de Uairén os imigrantes que não tivessem mais interesse em permanecer no Brasil(²¹);

Enfoque multidisciplinar:

ações com enfoque multidisciplinar são realizadas pelas organizações parceiras da Operação Acolhida. Considerando a ausência de políticas públicas de saúde voltadas aos venezuelanos em Roraima, não foi possível identificar nos serviços de saúde e nas falas dos entrevistados práticas reconhecidamente multidisciplinares;

Busca pela efetivação dos princípios inscritos na política:

na ausência de políticas públicas específicas para os imigrantes venezuelanos em Roraima, a busca por garantia de direitos volta-se para as conquistas da Nova Lei de Migração. Ações afirmativas desenvolvidas pela Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, Organização Internacional de Migrações, Agência Adventista de Desenvolvimento e Recursos Assistenciais, Universidade Federal de Roraima, Instituto Federal de Roraima e Diocese de Roraima ministram capacitação em diversas áreas para que os venezuelanos possam receber certificação e exercer trabalhos com melhor remuneração.

Dimensão Social

Recursos e ações na comunidade:

os imigrantes venezuelanos em Boa Vista não contam com uma organização própria que vocalize seus direitos humanos por meio de lideranças constituídas. Estão inseridos na mesma matriz sociocultural, política e econômica dos brasileiros;

Acesso às políticas públicas:

identificaram-se entraves relevantes no acesso dos imigrantes aos serviços públicos locais, principalmente os de saúde, devido a barreiras do idioma, orientação geográfica e xenofobia. Os venezuelanos referem esperar meses por um exame ou consulta com especialistas, isso quando conseguem vagas;

Participação política e exercício da cidadania:

as entrevistas com os imigrantes e as análises dos documentos de gestão demonstraram a falta de protagonismo social e político dessa população. Mais que isso, a fala de alguns entrevistados revelou como um sistema social segregador faz calar a voz da população refugiada;

Referências culturais, de gênero e de geração:

os entrevistados expressaram profundo sentimento de perda relacionado ao afastamento de seu país, seus costumes, sua cultura e, principalmente, de suas famílias. Estereótipos sociais de gênero puderam ser identificados nas falas das entrevistadas, que afirmam conseguir empregos apenas de diaristas e faxineiras, mas não conseguirem exercer suas profissões de origem. Os profissionais de enfermagem mencionaram que as mulheres venezuelanas estabelecem relações de favorecimento sexual em troca de moradia e alimentação;

Normas e crenças religiosas:

tal como o estado, o município de Boa Vista possui uma população com 55% das pessoas autodeclaradas católicas, seguida de 33% de protestantes, 10% espíritas e 2% pertencem a outras religiões ou se declaram agnósticos(²²). Na Venezuela, 85,7% da população declara-se católica, seguida de 12% de protestantes e 2,3% de outras religiões(²³).

DISCUSSÃO

A análise dos resultados desta pesquisa mostrou a existência de múltiplas vulnerabilidades que afetam a população imigrante venezuelana residente em Boa Vista, uma vez que suas necessidades de saúde não estão sendo atendidas. O neoliberalismo econômico, próprio do modo de produção e reprodução social no Brasil e em Roraima, centrado no acúmulo de capital, caracteriza-se por subalternidade de classe, exploração da mão de obra e preconceito contra o imigrante, constituindo a principal força opressora que subalterniza os venezuelanos(²⁴). O agronegócio e a exploração ilegal do ouro movimentam grandes somas e conseguem cooptar os imigrantes em condição de vulnerabilidade social. Mesmo sob perspectivas legais de trabalho, os imigrantes são espoliados, uma vez que as atividades produtivas locais não formalizam vínculos empregatícios que garantiriam alguma forma de proteção social.

As especificidades do fenômeno da imigração venezuelana em Roraima apresentam similaridades com realidades de migração em outros estados do Brasil e no mundo. Em um estudo de revisão de escopo acerca das vulnerabilidades de refugiados árabes residentes na cidade de São Paulo, Lima Jr et al.(²⁵) elencou as principais vulnerabilidades identificadas em 40 artigos que compuseram a revisão. Ainda no estudo de Lima Jr et al.(²⁵), os elementos de vulnerabilidade puseram em destaque a desigualdade e a desvantagem dos refugiados em relação ao sistema de saúde nos países de acolhimento.

Na dimensão individual da vulnerabilidade, destacou-se a incidência de transtornos de ordem psicológica, cuja susceptibilidade é dez vezes maior que outros tipos de doenças ou agravos de saúde. Na dimensão social, o próprio fenômeno migratório foi citado como condição de vulnerabilidade do imigrante. Na dimensão programática, os marcadores de vulnerabilidade que mereceram destaque foram o acesso aos serviços de saúde, o desenvolvimento de políticas públicas de saúde e as práticas de saúde, consequências das fragilidades no campo das políticas públicas direcionadas à saúde dos imigrantes. A barreira do idioma foi o principal limitador do acesso nos serviços de saúde, seguido do tempo de espera para o atendimento e os custos dos serviços.

No que tange às leis e políticas públicas de proteção ao imigrante e refugiado, o Brasil possui em seu ordenamento jurídico a Nova Lei de Migração. A ela se soma a Lei nº 13.684, de 21 de junho de 2018, que serviu de lastro para a criação da Operação Acolhida, na qual se pode identificar uma forte ligação com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e com os princípios e diretrizes do SUS. A análise dos dados provenientes dos documentos de gestão, entrevistas e grupo focal, mostra que existem importantes iniquidades vivenciadas pelos imigrantes, mesmo com instrumentos de grande potencial para responder às necessidades de saúde e combater suas vulnerabilidades no Brasil, em especial, nos estados da Região Norte do Brasil, que são os mais afetados pelo fenômeno da imigração venezuelana.

Como uma das mais importantes vulnerabilidades identificadas, a falta de políticas públicas voltadas para o atendimento das necessidades dos venezuelanos constitui numa espécie de “silêncio” que incomoda aqueles que os reconhecem como pessoas portadoras de direitos. A negação da assistência aos imigrantes por parte do poder público está relacionada a uma lógica protecionista ultrapassada, mas que ainda faz parte de políticas neoliberais em alguns países europeus, assim como nos Estados Unidos e, mais recentemente, no Brasil(²⁶). Tais políticas são fomentadas e financiadas por alas conservadoras, para as quais imigrantes e refugiados representam potenciais ameaças aos direitos da população nativa e, consequentemente, à ordem pública. Assim, não são vistos como sujeitos de direito. Barreiras impostas aos imigrantes reforçam posturas racistas, hierarquizantes e colonialistas, ao mesmo tempo em que proporcionam a disseminação da xenofobia e agravam a intolerância(²⁶).

As vulnerabilidades dos imigrantes venezuelanos residentes em Boa Vista também são determinadas por suas condições de trabalho. Ambientes de trabalho diferentes produzem vulnerabilidades diferenciadas, mesmo para atividades similares. Na lógica de reprodução dos modelos sociais, os processos de trabalho podem ser protetivos ou destrutivos. Modelos sociais são formas mediante as quais os indivíduos interagem dentro de suas dimensões particulares e reproduzem formatos de interação determinados pela macroestrutura econômica vigente em um determinando local. Essa forma de reprodução determina os aspectos mais relevantes no processo de saúde das pessoas(¹⁴).

Uma vez que a sobrevivência é uma das principais motivações para se migrar, os venezuelanos em Roraima associam a segurança à estabilidade das condições socioeconômicas. Tal compreensão favorece a perpetuação da exploração da mão de obra dessas pessoas, induz seu ingresso em atividades ilegais, entre elas, o garimpo e o tráfico de drogas, o que impacta seu perfil de saúde. Ou seja, o imigrante venezuelano envolve-se em processos de trabalho destrutivos, ocupa postos com risco elevado, baixa remuneração e maior exposição a agravos, como resultado de um processo socialmente imposto por suas atividades laborais(²).

Corroboram as assertivas acima os dados trazidos na seção de captação de dados quantitativos, que informam o aumento das taxas de incidência de arboviroses (febre amarela, dengue, zika e hikungunya), malária e leishmanioses (decorrentes da atividade de garimpo que ocorre dentro das regiões de mata fechada), mortes violentas (homicídios e acidentes de trânsito), violência e exploração sexual das mulheres venezuelanas. A isso se somam as altas taxas de doenças respiratórias, parasitoses e doenças diarreicas que atingem a população infantil e o aumento dos índices de gravidez na adolescência e intercorrências próprias do período gestacional(²⁷).

Além das condições de vida e de trabalho, a condição de estrangeiro pobre fomenta a xenofobia, o que também leva à segregação e à marginalização dos venezuelanos no espaço físico do Município de Boa Vista, o que é evidenciado pela disposição geográfica de seus locais de moradia(²⁸). Excetuando-se os que residem nos bairros 13 de setembro e São Vicente, localizados no entorno dos abrigos Rondon, todos os demais entrevistados e suas famílias moravam na região oeste da capital, também conhecida como “Zona Vermelha”, onde os valores dos aluguéis são mais baratos. Isso se deve a uma série de fatos, entre os quais se destacam os altos níveis de criminalidade e a falta de segurança pública. Ali também se encontram os assentamentos e as ocupações por meio de invasões. Os moradores afirmam que a motivação maior de sua permanência nesses bairros decorre das políticas públicas de promoção de assentamentos, algo que também se tornou objetivo dos venezuelanos residentes no local(²⁹).

Outro grave problema social e de saúde que compõe o quadro de vulnerabilidades da população imigrante em Boa Vista é a violência contra as mulheres venezuelanas. Nos guetos venezuelanos de Boa Vista, as práticas sexuais com múltiplos parceiros, tanto de homens quanto de mulheres, relatadas pelos profissionais de enfermagem e gestores, podem ter origem no confinamento social(²⁸), que se caracteriza como um dispositivo socio-organizador que imprime ao imigrante uma violência constituída a partir do isolamento e da marginalização em espaços físicos de determinado local. A opção por não usar preservativos pode ter a mesma motivação ou, na perspectiva de gênero, derivar da subalternidade feminina imposta pelo modelo social machista(³⁰). Mesmo que o presente estudo não tenha elementos suficientes para elucidar tais motivações, fato é que as taxas de IST entre os venezuelanos é bastante alta(²⁷).

No enfrentamento às vulnerabilidades de saúde, a garantia de acesso de qualidade aos bens e serviços públicos é condição sine qua non. Os elementos que compõem o cenário de negligência frente às necessidades de saúde dos venezuelanos em Boa Vista também podem ser evidenciados na dimensão particular das vulnerabilidades, na qual os entraves gerados pela diferença dos idiomas português e espanhol representam as principais vulnerabilidades identificadas junto à população imigrante venezuelana local e impedem o acesso de qualidade aos bens e serviços de saúde.

CONCLUSÃO

A realidade objetiva do imigrante venezuelano residente em Roraima, especificamente na capital Boa Vista, apresenta múltiplas vulnerabilidades e necessidades de saúde não atendidas. Na dimensão estrutural, o modo de produção e reprodução social cria elementos nas demais dimensões que determinam a exclusão dos venezuelanos nos diversos setores da sociedade, impedindo, inclusive, seu acesso com qualidade aos bens e serviços de saúde. Barreiras linguísticas, xenofobia e sobrecarga de trabalho dificultam que a Enfermagem responda adequadamente às necessidades de saúde dos venezuelanos em Boa Vista. O modo de produção e reprodução social determina tanto as vulnerabilidades dos venezuelanos quanto a forma de trabalho das instituições e organizações que agem no intuito de enfrentá-las.

O fenômeno migratório venezuelano em Roraima é de tal magnitude que requer avançar nos estudos de migração, especialmente nos relacionadas aos indígenas venezuelanos, como os Warao, a maior etnia que migra para o Brasil. Juntamente com gênero, a categoria raça/etnia pode contribuir para uma compreensão mais aprofundada das necessidades e vulnerabilidades de saúde dos imigrantes venezuelanos no Brasil.

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• ERRATA

  No artigo “Vulnerabilidade de imigrantes venezuelanos residentes em Boa Vista, Roraima”, com número de DOI: https://doi.org/10.1590/1980-220X-REEUSP-2023-0074pt, publicado no periódico Revista da Escola de Enfermagem da USP, volume 57 de 2023 (spe), na página 1
  Onde se lia:
  Autor correspondente:
  Aristides Sampaio Cavalcante Neto
  Rua Manoel Dias de Almeida, 862
  69305280 - Boa Vista, RR, Brasil
  [e-mail]
  Leia-se:
  Autor correspondente:
  Aristides Sampaio Cavalcante Neto
  Avenida Glaycon de Paiva, 2426
  69303340 - Boa Vista, RR, Brasil
  [e-mail]

• Apoio financeiro Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Processo nº 142.185/2019-1.

Editado por

EDITOR ASSOCIADO

José Manuel Peixoto Caldas

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  15 Set 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  23 Mar 2023
• Aceito
  19 Jul 2023