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Vulnerabilidade social e de saúde de pessoas em situação de rua

RESUMO

Objetiva-se conduzir reflexão teórica sobre a vulnerabilidade social e de saúde de pessoas em situação de rua, na perspectiva do pensamento da complexidade. Estudo de abordagem teórico-reflexiva que acessou fontes bibliográficas de autores contemporâneos que buscam compreender o fenômeno das populações em situação de rua e, paralelamente, aprofundar a temática à luz do referencial da complexidade, sob um viés crítico e analítico. Concebe-se a saúde como subsistema do sistema social que transcende qualquer perspectiva diagnóstica linear e pontual. A reflexão teórica acerca da vulnerabilidade social e de saúde de pessoas em situação de rua acende uma apreensão singular e multidimensional de ser humano – unidade complexa por excelência, que demanda intervenções, igualmente, complexas.

DESCRITORES
Vulnerabilidade Social; Pessoas Mal Alojadas; Pandemias; Enfermagem em Saúde Comunitária; Dinâmica não Linear

ABSTRACT

The objective is to conduct a theoretical reflection on the social and health vulnerability of homeless people, from the perspective of complexity thinking. Study with a theoretical and reflective approach that accessed bibliographical sources of contemporary authors who seek to understand the phenomenon of homeless populations and, at the same time, attribute theoretical support from the reference of complexity, under a critical and analytical bias. Health is conceived as a subsystem of the social system that transcends any linear and punctual diagnostic perspective. Theoretical reflection on the social and health vulnerability of homeless people sparks a unique and multidimensional apprehension of the human being – a complex unit par excellence, which demands equally complex interventions.

DESCRIPTORS
Social Vulnerability; Ill-Housed Persons; Pandemics; Community Health Nursing; Nonlinear Dynamics

RESUMEN

El objetivo es realizar una reflexión teórica sobre la vulnerabilidad social y sanitaria de las personas en situación de calle desde la perspectiva del pensamiento de la complejidad. Se trata de un estudio con enfoque teórico y reflexivo basado en fuentes bibliográficas de autores contemporáneos que buscan comprender el fenómeno de las poblaciones sin hogar y, paralelamente, aportar sustento teórico desde el marco de la complejidad, bajo un sesgo crítico y analítico. La salud está concebida como un subsistema del medio social que trasciende cualquier perspectiva diagnóstica, lineal y puntual. La reflexión teórica sobre la vulnerabilidad social y sanitaria de las personas en situación de calle suscita una percepción singular y multidimensional del ser humano, unidad compleja por excelencia, que exige intervenciones igualmente complejas.

DESCRIPTORES
Vulnerabilidad Social; Personas con Mala Vivienda; Pandemias; Enfermería en Salud Comunitaria; Dinámicas no Lineales

INTRODUÇÃO

O presente estudo teve origem na análise de dados/indicadores sobre as pessoas que vivem em situação de rua. Estudo desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) concluiu que em março de 2020 mais de 221 mil pessoas viviam em situação de rua, no Brasil, o que representa um aumento de 140% dessa população desde o ano de 2012(1Figueiredo TMR, Lins HCC, Cassiano CJM, Silva KVCC, Silva CGL. The hunger and the defense of homeless in Brazil. Lancet Reg Health Am. 2021;6:100108. doi: http://dx.doi.org/10.1016/j.lana.2021.100108.PubMed PMid: 36777887.
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).

O aumento deste contingente populacional é notório para quem caminha pelas ruas das cidades e os questionamentos são quase sempre os mesmos: por que tantas pessoas vivem em situação de rua e passam fome, ao considerar que o Brasil é um dos países mais expressivos na produção de alimentos? Qual a origem do descompasso entre o que se produz e o que efetivamente está ao alcance dos cidadãos? Como pensar em saúde, em um diagnóstico médico/enfermagem/psicológico face ao desconhecido, aleatório e incerto?

A Política Nacional da População em Situação de Rua, em âmbito de Brasil, considera como população em situação de rua o grupo de pessoas que tem em comum a extrema pobreza, os vínculos familiares interrompidos em decorrência do uso abusivo de álcool e drogas e a falta de moradias convencionais regulares, dentre outros aspectos(2Brasil. Síntese da Política para População de Rua [Internet]. 2021 [cited 2022 Aug 21]. Available from: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/populacao-em-situacao-de-rua/publicacoes/sumario
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). Trata-se, portanto, de grupos populacionais que se servem de locais públicos para manter, temporária ou permanentemente, as suas condições de habitação e sobrevivência(3Lancione M. Radical housing: on the politics of dwelling as difference. Int J Hous Policy. 2020;20(2):273–89. doi: http://dx.doi.org/10.1080/19491247.2019.1611121
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,4Gray II DM, Anyane-Yeboa A, Balzora S, Issaka RB, May FP. COVID-19 and the other pandemic: populations made vulnerable by systemic inequity. Nat Rev Gastr Hepatol. 2020;17(9):520–2. doi: http://dx.doi.org/10.1038/s41575-020-0330-8.PubMed PMid: 32541960.
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).

A pandemia da Covid-19 agravou as condições de vida e saúde de pessoas que vivenciam a pobreza, a marginalização, a estigmatização e a discriminação social, sobretudo, no que se refere ao acesso à alimentação, higiene e necessidades humanas essenciais. Além de expostos às iniquidades sociais, as pessoas em situação de rua ficaram ainda mais vulneráveis, não somente em termos econômicos, mas, sobretudo, pela perda de sua identidade humana e social(5Rezio LA, Oliveira E, Queiroz AM, Sousa AR, Zerbetto SR, Marcheti PM, et al. Neoliberalism and precarious work in nursing in the COVID-19 pandemic: repercussions on mental health. Rev Esc Enferm USP. 2022;56:e20210257. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1980-220x-reeusp-2021-0257.PubMed PMid: 35040472.
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8Buheji M, Cunha KC, Beka G, Mavrić B, Souza YLC, Silva SSC, et al. The extent of COVID-19 pandemic socio-economic impact on global poverty. Am J Econ. 2020;10(4):213–24. doi: http://dx.doi.org/10.5923/j.economics.20201004.02
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).

A população em situação de rua está, à vista disto, entre os grupos que mais resistiram à Covid-19 e que continuarão sofrendo com as novas crises de saúde associadas aos eventos endêmicos agravados pela crise climática(9Machado RWG. A construção da política nacional para população em situação de rua. Temporalis. 2020;20(39):102–18. doi: http://dx.doi.org/10.22422/temporalis.2020v20n39p102-118
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). Na tentativa de fuga, essas populações migram para os centros urbanos onde enfrentam a pobreza, situações habitacionais precárias e, simultaneamente, experimentam a violência, o repúdio e a invisibilidade social. A migração aliada à situação de rua é um fenômeno social multifacetado e complexo, pois envolve múltiplas culturas, pessoas diversas, processos, fluxos e vivências diversas(10Spricigo LV. Street resident identity: a construction from the look of the other: perceptions of user. Eman. 2021;21:1–14. doi: http://dx.doi.org/10.5212/Emancipacao.v.21.2113775.010
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,11Bomtempo DC. Migração internacional, economia, urbana e territorialidades. Bol Goia Geogr. 2019;39:55885. doi: http://dx.doi.org/10.5216/bgg.v39i0.55885
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).

O fenômeno de pessoas em situação de rua deve ser analisado como evento social multifatorial e multidimensional, não reduzível ao desemprego ou a fatores econômicos das relações de produção, mas sob o viés da reprodução das relações sociais que envolvem tal dinâmica(12Machado RWG. População em situação de rua: uma análise das estruturas determinantes e condicionantes em torno dessa expressão da questão social. Rev Serv Soc Deb. 2019;1:12542.). A saúde, da mesma forma, deve ser apreendida como sistema dinâmico, singular, complexo, interligado aos diferentes sistemas sociais que visam promover o viver saudável de indivíduos, famílias e comunidades a partir de uma perspectiva socio-ecossistêmica(13Backes DS, Zamberlan C, Colomé J, Souza MT, Marchiori MT, Erdmann AL, et al. Interatividade sistémica entre os conceitos interdependentes de cuidado de enfermagem. Aquichan. 2016;16(1):24–31. doi: http://dx.doi.org/10.5294/aqui.2016.16.1.4
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).

Objetiva-se, com base no exposto, conduzir reflexão teórica sobre a vulnerabilidade social e de saúde de pessoas em situação de rua, na perspectiva do pensamento da complexidade.

MÉTODO

Estudo de abordagem teórico-reflexiva que acessou fontes bibliográficas de autores contemporâneos que buscam compreender o fenômeno das pessoas em situação de rua e, paralelamente, aprofundar a temática à luz do pensamento da complexidade, sob um viés crítico e analítico sistêmico. O embasamento teórico-complexo fundamenta-se em princípios que permitem ampliar e contextualizar os diferentes fenômenos sociais, quais sejam: da dialógica, do recurso organizacional, do hologramático(14Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2014.).

A pessoa em situação de rua é apreendida, à luz do pensamento da complexidade, como sujeito singular e multidimensional. Sob esse impulso, o pensamento da complexidade estabelece-se como referencial relevante à compreensão do que as pessoas em situação de rua esperam e necessitam para assegurarem a sua dignidade humana e social.

O pensamento complexo(14Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2014.17Morin E. El método I: la naturaleza de la naturaleza. 8. ed. Madri: Cátedra; 2009.) possibilita um percurso metodológico que transcende ideias predefinidas de apreensão dos fenômenos sociais. O investigador, sob esse pensar, é induzido a protagonizar um caminho próprio com base em suas vivências e a partir do seu percurso formativo. A complexidade requer o pensamento do todo para compreender as partes, assim como o conhecimento das partes para apreender o todo. Ser complexo significa, sob esse enfoque, defender a importância do universal e do particular, do geral e do singular, do com\um entre homens e do que os diferencia, a fim de reconhecer que somos todos iguais na diferença.

O percurso metodológico se materializa, nessa direção, ao investigar e tecer em conjunto as experiências do vivido no aprender, articular e promover a saúde e o bem-estar social. Concebe-se, para tanto, a saúde como subsistema do sistema social maior, a partir de um quadro diagnóstico que transcende qualquer perspectiva diagnóstica linear e pontual. Assim, o estudo fundamenta-se em produções teóricas que conservam na gênese o pensamento sistêmico-complexo, sobremaneira, indutor de rupturas e processos evolutivos(18Morin E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2010.,19Morin E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; 2000.). Explora-se, nesse percurso, concepções como: ser humano, cidadania e saúde.

Sistema Social versus Sistema de Saúde: Aproximações Necessárias

Apresenta-se, inicialmente, um quadro reflexivo que transcende qualquer perspectiva diagnóstica pontual e linear. Intenta-se descortinar a saúde como subsistema do sistema social. Compreende-se saúde como bem-social, um bem da comunidade, cujo conceito só pode ser compreendido à luz dos determinantes e condicionantes sociais. Busca-se apreender, no entanto, não as respostas e certezas de diagnósticos lineares, mas lançar questões reflexivas prospectivas, conforme demonstra o Quadro 1.

Quadro 1
Diagnóstico social versus diagnóstico da saúde mediado por questões reflexivas prospectivas – Santa Maria, RS, Brasil, 2022.

A discussão teórico-complexa fundamenta-se em princípios como a dialógica, o recurso organizacional e o hologramático e será conduzida mediante o delineamento de três categorias exploratórias: Ser humano – unidade complexa; Cidadania para quem e para que?; e Saúde como bem-social.

Ser Humano – Unidade Complexa

Para Edgar Morin(15Morin E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina; 2015.,16Morin E. El método 3: el conocimiento del conocimiento. 6. ed. Madri: Cátedra; 2009.) é preciso diferir o pensamento reducionista daquele que amplia e contextualiza. O ser humano é, por excelência, um ser de múltiplas relações, interações e associações sistêmicas – um ser singular, multidimensional, dialógico, complexo. O ser humano é, por conseguinte, dotado de complexidades aliado aos fenômenos que lhe são impostos pelo ambiente social, econômico e cultural no qual está inserido. É dotado, também, de sentidos centrados na imaginação e na fantasia pelo papel extraordinário que desempenham na consciência humana(20Corso S, Mussgnug F, Sanchini V. Human reproduction and parental responsibility: new theories, narratives, ethics. Phenom Mind. 2020;19:10–8. doi: http://dx.doi.org/10.17454/10.17454/pam-1901
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).

O ser humano move-se como ser social em evolução, por meio de processos disruptivos e dialógicos, potencializados pela capacidade de ser singular e múltiplo, no intuito de possibilitar novas e sempre mais complexas comunicações. Assim sendo, as interações entre os indivíduos produzem a sociedade, que produz a cultura e é produzido por ela, conforme o princípio da recursividade proposto por Morin(14Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2014.,15Morin E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina; 2015.).

Nessa dinâmica social evolutiva o princípio da dialógica, que mantém a dualidade na unidade, compreende duas lógicas aparentemente complementares e antagônicas, mas necessárias para a evolução humana e social. A dialógica permite assumir a inseparabilidade de noções contraditórias para conceber um mesmo fenômeno complexo(14Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2014.). Sob esse enfoque, a dialógica entre noções opostas pode ser estimuladora e impulsionadora de espaços de convivência harmônicos e saudáveis, sem excluir pessoas em situação de rua.

Em sua concepção multidimensional, o ser humano não se reduz à dimensão física, racial ou a uma determinada classe social. A sua natureza é por excelência relacional, associativa e evolutiva. A pessoa em situação de rua, assim como qualquer outro ser humana, é um ser cidadão e social e, por si só, singular e maior que a soma de singularidades e diferenças, capaz de construir e atribuir significados que produzem a sociedade(19Morin E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; 2000.).

Compreender o ser humano, sujeito singular e membro de uma sociedade, significa singularizar a partir da diversidade e transcender para alcançar a unidade do múltiplo(18Morin E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2010.). Sob esse enfoque, o sistema de saúde necessita considerar o ser humano em sua dinâmica de viver saudável, à luz dos determinantes e condicionantes sociais(13Backes DS, Zamberlan C, Colomé J, Souza MT, Marchiori MT, Erdmann AL, et al. Interatividade sistémica entre os conceitos interdependentes de cuidado de enfermagem. Aquichan. 2016;16(1):24–31. doi: http://dx.doi.org/10.5294/aqui.2016.16.1.4
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).

Morin defende que é preciso ensinar a compreensão humana com base na transdisciplinariedade e na contextualização da realidade, no sentido de integral e interligar o que está separado. Os sistemas vivos que compõem a sociedade estão em permanente evolução seja pela ordem ou pela desordem, as quais produzem mudanças prospectivas. Sob esse enfoque, Morin(16Morin E. El método 3: el conocimiento del conocimiento. 6. ed. Madri: Cátedra; 2009.) defende um pensamento integral e contextualizado, no qual não cabe um saber mutilante, fragmentado e redutor.

Nessa perspectiva, como apreender e acolher o ser humano – pessoa em situação de rua – como ser relacional e social, parte de uma comunidade evolutiva e civilizada? Alcançar um pensamento sistêmico-complexo no contexto social e da saúde implica em integrar o que está disperso e a congregar pessoas e grupos sociais que figuram, na sociedade, como sujeitos sem nome e identidade.

Cidadania, Para Quem e Para Que?

O termo cidadania origina-se do latim civitas, que significa cidade. Cidadão é, nessa direção, aquele que integra e habita a cidade, com base em direitos civis, políticos e sociais que se desenvolvem a partir da ideia do que é melhor para o grupo social. Logo, a cidadania confere e assegura direitos, além do dever de lutar por estes. Cidadania representa, também, a necessidade de reconhecimento de novos direitos(21Gomes YL, Saheb D. Teaching the human condition: a reflection on environmental education, music and self-training. Rev Elet Mest Educ Amb. 2019;36(2):26–43.,22Notari MB. A cidadania e o direito a ter direitos no pensamento de Hannah Arendt. Rev Fac Dir. 2020;29(2):201–22. doi: http://dx.doi.org/10.14295/juris.v29i2.9083
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).

A cidadania é um tema discutido e em evolução nos diferentes contextos sociais. Estudo demostra que a perda da cidadania de uma pessoa ou grupo social representa a perda de sua identidade, de seu valor e de seus direitos(23Bauman Z. Strangers at our door. Male, MA: Polity; 2016.). Os produtos e os fenômenos sociais são, à luz do pensamento complexo, a causa que os produzem, assim como a sociedade é produto das interações e associações evolutivas entre as pessoas(14Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2014.,15Morin E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina; 2015.). É por meio das interações que as pessoas sociais, em geral, se desenvolvem, se aproximam e convivem em vista do bem-comum.

O fenômeno – pessoas em situação de rua é, por si só, um fenômeno complexo, uma desordem humanitária que requer solidariedade humana, acolhida e compreensão singular não como a um estranho, mas a um ser humano cidadão que compartilha dos mesmos direitos e deveres de cidadania. A pessoa em situação de rua não quer ser lembrada e apoiada como objeto anônimo, mas deseja ser reconhecida pelo seu nome, pela sua identidade, história familiar, cultural e procedência. Deseja ser vista e acolhida como um ser humano que integra e habita a cidade na lógica do princípio organizacional – a unidade na diversidade, assim como a diversidade na unidade(24Gorczevski C. Cidadania, democracia e participação política: os desafios do século XXI. 1. ed. Santa Cruz do Sul: EDUNISC; 2018.,25Dvir Y, Morris P, Yemini M. What kind of citizenship for whom? The ‘refugee crisis’ and the European Union’s conceptions of citizenship. Globalisation, Soc Educ. 2019;17(2):208–19. doi: http://dx.doi.org/10.1080/14767724.2018.1525284
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).

Reconhecer o ser humano como sujeito singular, multidimensional e cidadão é, sob esse impulso, imprescindível para o alcance de resultados mais resolutivos e prospectivos. Respeitada a singularidade humana, cada sujeito e cidadão social será sempre maior que a soma das partes individuais. Apreender o ser humano como cidadão é integrá-lo e situá-lo no Universo(26Morin E. El método 3: el conocimiento del conocimiento. 6. ed. Madri: Cátedra; 2009.). Todo o indivíduo constitui-se, desde a mais restrita até a mais banal das vidas, em cosmos que, por meio das interações familiares e as trocas estabelecidas entre sistemas mais amplos, como a comunidade e escola, torna-se apto a apreender a condição humana e o exercício da cidadania(19Morin E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; 2000.).

O ser humano produz a sociedade nas interações e pelas interações, mas a sociedade, à medida que emerge, produz a humanidade desses indivíduos, fornecendo-lhes a linguagem e a cultura. Esse processo repercutirá no indivíduo e, consequentemente, em seu viver saudável. Essas interações e associações “modificam o comportamento ou a natureza dos elementos, corpos, objetos e fenômenos, os quais influenciam e são influenciados”(15Morin E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina; 2015.).

Qual a concepção de cidadania, no entanto, para as pessoas em situação de rua? Como pensar em estratégias que contribuam na promoção da cidadania e do bem-estar das pessoas em situação de rua – excluída de qualquer expressão e manifestação social? O pensamento da complexidade não se reduz, sob esse enfoque, em armazenar conhecimentos, mas em desenvolver a habilidade integrativa e associativa dos sujeitos, aparentemente, destituídos do princípio de cidadania e atribuir-lhes significado de vida, de viver saudável e de bem-estar(18Morin E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2010.,19Morin E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; 2000.).

Saúde Como Bem-Social

A saúde envolve movimentos próprios de recriar a dinâmica da vida em meio às noções de ordem e desordem. Nessa relação, o viver saudável implica em desenvolver percursos sistêmico-evolutivos, capazes de transcender a fragmentação, a lógica biomédica e a medicalização do processo saúde-doença(12Machado RWG. População em situação de rua: uma análise das estruturas determinantes e condicionantes em torno dessa expressão da questão social. Rev Serv Soc Deb. 2019;1:12542.).

Evidenciou-se, a partir das idas e vindas pelas ruas da cidade, que as pessoas em situação de rua não sentem, apenas, a falta de trabalho, comida, abrigo, aconchego, mas carecem, sobretudo, de respeito, dignidade e de alguém que os escute e acolhe em suas necessidades, angústias, medos e inseguranças. Esse pensar foi traduzido em um depoimento publicado em jornal local: “Eu não quero, apenas, que as pessoas parem para me dar uma moeda ou comida. Eu quero que as pessoas parem para ouvir o que tenho a dizer”.

Logo, qual o significado de saúde e viver saudável para as pessoas em situação de rua? O que significa saúde e viver saudável para os profissionais de saúde e como conduzir processos dialógicos e de escuta às pessoas em situação de rua? Com base no depoimento anteriormente expresso, a saúde transcende o viés biológico e diagnósticos pontuais e lineares que apreendem o ser humano, apenas, em suas vulnerabilidades aparentes. Compreendido em sua singularidade, o ser humano é capaz de atribuir significados de vida, de saúde, de cidadania, na medida em que é ouvido e acolhido em suas necessidades.

O princípio hologramático concebe a parte no todo e o todo como sendo maior que a soma das partes. “Essa ideia transcende reducionismos que vêm apenas partes ou o holismo que vê apenas o todo”. A interatividade sistêmico-complexa implica em movimentos recursivos em que o todo e a parte interagem e evoluem simultaneamente(14Morin E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2014.16Morin E. El método 3: el conocimiento del conocimiento. 6. ed. Madri: Cátedra; 2009.). Embora as populações em situação de rua representem um todo/grupo socialmente vulnerável, cada parte (sujeito) desse grupo deve ser apreendido e acolhido em sua singularidade e com base em seu significado de vida pessoal e coletivo.

A saúde, assim como os demais sistemas é subsidiada por subsistemas e, ao mesmo tempo, está inserido em um sistema maior que interage com os demais sistemas sociais. Como sistema complementar, a saúde retroalimenta-se a partir de movimentos dialógicos entre usuários, profissionais, serviços, comunidades que, por sua vez, interferem no viver saudável dos indivíduos. A mudança em um subsistema interfere na dinâmica evolutiva do sistema maior e vice-versa(15Morin E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina; 2015.,16Morin E. El método 3: el conocimiento del conocimiento. 6. ed. Madri: Cátedra; 2009.).

A qualidade e a dinâmica do sistema de saúde são determinadas, a partir desse enfoque, pela qualidade das relações, interações e associações dialógicas e prospectivas com os diferentes atores envolvidos no processo de cuidado em saúde(27Cribb A, Entwistle V, Mitchell P. Talking it better: conversations and normative complexity in healthcare improvement. Med Humanit. 2022;48(1):85–93. doi: http://dx.doi.org/10.1136/medhum-2020-012129.PubMed PMid: 34035179.
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). Estudo reforça esse pensar ao mencionar que os indicadores de saúde são determinados pelo acolhimento, a ambiência e o vínculo para com aqueles usuários – pessoas em situação de rua – aparentemente mais distantes e invisíveis aos olhos da sociedade(28Lima IB, Bernadi FA, Yamada DB, Vinci ALT, Rijo RPCL, Alves D, et al. The use of indicators for the management of Mental Health Services. Rev Lat-Am Enferm. 2021;29:e3409. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1518-8345.4202.3409.PubMed PMid: 33852681.
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).

Conceber a saúde como bem-social implica, necessariamente, em ampliar a concepção de ser humano, de cidadania, de viver saudável. Se o profissional de saúde tem aptidões para promover a saúde como bem-comum-social, este o tem, igualmente, para evoluir e prospectar estratégias que incluam as diferentes classes sociais, sobremaneira, as pessoas em situação de rua(29Margaret E, Kruk ME, Gage AD, Arsenault A, Jordan K, Leslie HH, et al. High-quality health systems in the sustainable development goals era: time for a revolution. The Lan Globh Com. 2018;6(11):1196–252.).

O pensamento complexo “questiona o previsível, o absoluto e a linearidade dos fenômenos sociais”(17Morin E. El método I: la naturaleza de la naturaleza. 8. ed. Madri: Cátedra; 2009.). Alcançar processos sistêmico-complexos no contexto da saúde implica, portanto, em promover a interatividade e a complementaridade daqueles fenômenos, aparentemente disjuntivos e disruptivos.

O presente estudo possibilita, com base no exposto, avanços relacionados a apreensão ampliada da saúde como subsistema de um sistema maior – sistema social. Outro avanço está relacionado ao fomento de um novo pensar e agir entre os profissionais de saúde, capaz de superar o paradigma simplificador e reducionista, que concebe o conhecimento sob uma ótica fragmentada e disciplinar, com vistas ao reconhecimento do ser humano no contexto de suas relações sociais.

A proposição de apenas um referencial teórico – pensamento complexo para o embasamento das discussões se constitui em limitação, embora tenham sido utilizadas outras fontes bibliográficas. Intenta-se, em suma, avanços teórico-práticos, no sentido de alavancar políticas sociais e de saúde que considerem às necessidades singulares das pessoas em situação de rua. Assim como o conceito de cidadania não se reduz à possibilidade de ter direitos e deveres, da mesma forma o viver saudável não se reduz às necessidades humanas biológicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concebe-se a saúde como subsistema do sistema social, a partir de um quadro reflexivo que transcende qualquer perspectiva diagnóstica linear e pontual. A reflexão teórica acerca da vulnerabilidade social e de saúde de pessoas em situação de rua acende uma apreensão singular e multidimensional de ser humano – unidade complexa, por excelência, e que demanda intervenções, igualmente, complexas.

Ampliar a compreensão de ser humano – pessoa em condição de rua, requer estratégias dialógicas e prospectivas por parte dos diferentes atores sociais. Parte-se do princípio de que o profissional de enfermagem, por meio do cuidado em saúde, tem potencial para promover rupturas e liderar avanços, com base em referenciais que viabilizem novas formas de intervir e promover o viver saudável.

  • Apoio financeiro
    Acordo CAPES/COFEN – Edital N° 08/2021. Processo: 88887.690076/2022-00.
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

REFERENCES

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Editado por

EDITOR ASSOCIADO

Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Out 2022
  • Aceito
    19 Jul 2023
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