Acessibilidade / Reportar erro

Relações entre o conhecimento de agricultores e de pedólogos sobre solos: estudo de caso em Rio Pardo de Minas, MG

Relationships between local farmers' and pedologists' knowledge on soil science: A case study in Rio Pardo de Minas, Brazil

Resumos

Um dos desafios para construção de modelos agrícolas que se referenciam pela sustentabilidade é a utilização de conhecimentos científicos adequados a singulares situações sociais. Para isso, é necessário considerar saberes acumulados por agricultores no espaço e no tempo. No caso do recurso 'solos', pouco desse saber é considerado no ensino em ciência do solo e nos trabalhos de pedologia. Por isso, a aplicação de tecnologias geradas com base no conhecimento científico é limitada quando destinada a grupos tradicionais, principalmente pela não-adequação às necessidades por eles reconhecidas. O objetivo deste estudo foi apresentar uma abordagem integrada entre os saberes de pedólogos e de agricultores, utilizando-se a hierarquização de ambientes no Cerrado pelos agricultores como ferramenta para compreender as bases sob as quais essa relação pode ocorrer. O estudo baseou-se em características ambientais e sociais da Comunidade Água Boa 2, em Rio Pardo de Minas (MG), onde, por trabalho de campo, foi possível analisar a terminologia local e, assim, descrever os ambientes, classificar as terras e constituir diálogos acerca do ambiente do Cerrado e dos solos.

etnopedologia; saber local; conhecimento científico; mapeamento de solos


One of the challenges of constructing agricultural systems that aim to be sustainable, is the usage of scientific knowledge adapted to the peculiar social situation. For this purpose it is necessary to consider the knowledge that farmers accumulated over time and space. In the case of the soil resources, a modest amount of the local knowledge is considered in classrooms and in soil research. This is a constraint to the application of technologies based on local scientific knowledge involving traditional farmer groups, mainly because of the lack of adaptation to the needs they are aware of. The objective of this study is to show a new methodology that integrates the pedologists' and local farmers' knowledge. The traditional local hierarchy of environments in the Cerrado region was used as a tool to understand how this relationship can be constructed. The study was developed based on environmental and social parameters in the Água Boa 2 community, in Rio Pardo de Minas, state of Minas Gerais, Brazil. It was possible to analyze the local terminology in a field survey and to describe the environments, to classify the land types, and to establish active dialogues about the Cerrado and its soils.

Ethnopedology; local knowledge; scientific knowledge; soil mapping


SEÇÃO V - GÊNESE, MORFOLOGIA E CLASSIFICAÇÃO DO SOLO

Relações entre o conhecimento de agricultores e de pedólogos sobre solos: estudo de caso em Rio Pardo de Minas, MG1 1 Parte da Tese de Doutorado do primeiro autor apresentada ao CPGA-CS, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ. Apoio da Embrapa Cerrados, Embrapa Solos e WWF - Programa Natureza e Sociedade.

Relationships between local farmers' and pedologists' knowledge on soil science: A case study in Rio Pardo de Minas, Brazil

João Roberto CorreiaI; Lúcia Helena Cunha dos AnjosII; Antonio Carlos Souza LimaIII; Delma Pessanha NevesIV; Luciano de Oliveira ToledoV; Braz Calderano FilhoVI; Edgar ShinzatoVII

IPesquisador da Embrapa Cerrados. BR 020, km 18, Caixa Postal 08223, CEP 73301-970 Planaltina (DF). E-mail: jroberto@cpac.embrapa.br

IIProfessora do Departamento de Solos – IA, UFRRJ. Seropédica, RJ. E-mail: lanjos@ufrrj.br

IIIProfessor do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional – UFRJ, Rio de Janeiro (RJ). E-mail: acslima@superig.com.br

IVProfessora do Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense, Niterói (RJ). E-mail: mdebes@provide.psi.br

VProfessor da Escola Agrotécnica Federal de Santa Teresa. Santa Teresa (ES). E-mail: luctoledo@gmail.com

VIAnalista da Embrapa Solos. Rio de Janeiro (RJ). E-mail: braz@cnps.embrapa.br

VIIPesquisador da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais. Rio de Janeiro (RJ). E-mail: shinzato@rj.cprm.gov.br

RESUMO

Um dos desafios para construção de modelos agrícolas que se referenciam pela sustentabilidade é a utilização de conhecimentos científicos adequados a singulares situações sociais. Para isso, é necessário considerar saberes acumulados por agricultores no espaço e no tempo. No caso do recurso 'solos', pouco desse saber é considerado no ensino em ciência do solo e nos trabalhos de pedologia. Por isso, a aplicação de tecnologias geradas com base no conhecimento científico é limitada quando destinada a grupos tradicionais, principalmente pela não-adequação às necessidades por eles reconhecidas. O objetivo deste estudo foi apresentar uma abordagem integrada entre os saberes de pedólogos e de agricultores, utilizando-se a hierarquização de ambientes no Cerrado pelos agricultores como ferramenta para compreender as bases sob as quais essa relação pode ocorrer. O estudo baseou-se em características ambientais e sociais da Comunidade Água Boa 2, em Rio Pardo de Minas (MG), onde, por trabalho de campo, foi possível analisar a terminologia local e, assim, descrever os ambientes, classificar as terras e constituir diálogos acerca do ambiente do Cerrado e dos solos.

Termos para indexação: etnopedologia, saber local, conhecimento científico, mapeamento de solos.

SUMMARY

One of the challenges of constructing agricultural systems that aim to be sustainable, is the usage of scientific knowledge adapted to the peculiar social situation. For this purpose it is necessary to consider the knowledge that farmers accumulated over time and space. In the case of the soil resources, a modest amount of the local knowledge is considered in classrooms and in soil research. This is a constraint to the application of technologies based on local scientific knowledge involving traditional farmer groups, mainly because of the lack of adaptation to the needs they are aware of. The objective of this study is to show a new methodology that integrates the pedologists' and local farmers' knowledge. The traditional local hierarchy of environments in the Cerrado region was used as a tool to understand how this relationship can be constructed. The study was developed based on environmental and social parameters in the Água Boa 2 community, in Rio Pardo de Minas, state of Minas Gerais, Brazil. It was possible to analyze the local terminology in a field survey and to describe the environments, to classify the land types, and to establish active dialogues about the Cerrado and its soils.

Index terms: Ethnopedology, local knowledge, scientific knowledge, soil mapping.

INTRODUÇÃO

Um dos desafios atuais da pesquisa agropecuária voltada ao desenvolvimento de modelos agrícolas sustentáveis é o de estabelecer relações entre as abordagens do conhecimento gerado no meio científico e aquele gerado e acumulado pelos agricultores, em particular de base familiar. Segundo Agrawal (1995), diferenças entre essas abordagens ocorrem em função das características dos dois campos de conhecimento, por aplicarem diferentes métodos de investigação da realidade e por razões contextuais – o conhecimento local/tradicional é mais profundamente enraizado no ambiente.

A aplicabilidade do Sistema Brasileiro de Classificação de Solos (SiBCS) (Embrapa, 1999) na transferência de informações vem apresentando limitações, sobretudo porque os níveis hierárquicos de ordem a subgrupo contêm informações ainda insuficientes para o planejamento de uma propriedade agrícola, sendo mais aplicáveis a levantamentos até o nível de reconhecimento. Além disso, os mapeamentos não têm conseguido atingir níveis de detalhe que possam subsidiar o planejamento em propriedades rurais, seja por falta de técnicos para executá-lo, seja pelo seu elevado custo, principalmente em escalas maiores. A utilização do conhecimento dos agricultores e a observação do ambiente no conjunto sociedade-natureza podem ser alternativas para viabilizar esses levantamentos e contribuir para melhoria da compreensão da relação homem-ambiente.

Considerando o solo como estratificador de ambientes e base para elaboração do planejamento de uso da terra, a integração entre saber de agricultores e de pedólogos pode permitir a construção de modelos agrícolas mais adequados à realidade local. O presente estudo teve como objetivo estabelecer relações entre o saber acumulado por agricultores e pedólogos, com o intuito de desenvolver uma abordagem integrada de conhecimentos. Esse tipo de enfoque procura identificar e mobilizar relações entre informações científicas e da cultura local para elaborar esquemas de manejo de recursos naturais, segundo os contextos social, cultural, econômico e ecológico locais (Barrera-Bassols & Zinck, 2003).

MATERIAL E MÉTODOS

A pesquisa foi desenvolvida com 80 famílias de agricultores (cerca de 400 pessoas) que moram em uma sub-bacia do rio Água Boa, afluente do rio Pardo, no município de Rio Pardo de Minas, localizado ao norte do Estado de Minas Gerais. São agricultores familiares, que fazem parte da comunidade Água Boa 2, cujas propriedades têm tamanho médio de 15 ha. A sub-bacia está localizada nas coordenadas 15 º 32 ' 11,8 " S e 42 º27 ' 37,3 " W, possui altitude que varia de 820 a 1.017 m e uma área de 5.553,80 ha. A região é considerada como pertencente ao semi-árido, com precipitação média anual de 880 mm. Contudo, a vegetação predominante é de Cerrado sentido restrito (Ribeiro & Walter, 1998), em transição para a Caatinga.

A informação dos agricultores sobre solos e ambientes foi obtida utilizando-se técnicas de estudos etnográficos, como observação participante (Cicourel, 1980; Alfonso, 1990; Becker, 1999), entrevistas semi-estruturadas, histórias de vida e caminhadas transversais (Chambers, 1992), além da técnica de desenho de mapas das propriedades, realizados pelos próprios moradores. Esse conjunto de técnicas foi utilizado para levantar dados que direta ou indiretamente estavam relacionados com o conhecimento local sobre solos, uma vez que esse saber é construído a partir das vivências do dia-a-dia das famílias dos agricultores e das formas como elas se relacionam entre si e com o ambiente.

O mapa pedológico foi construído a partir do levantamento de solos realizado na área, segundo as normas vigentes (Embrapa 1995, 1999; Lemos & Santos, 1996; Santos et al., 2003), no nível de reconhecimento de alta intensidade, com escala aproximada de 1:10.000. Tendo em vista a falta de material básico em uma escala compatível com a necessidade do mapeamento, foram utilizadas, como material básico, cópias imageadas de fotografias aéreas, originalmente na escala 1:40.000, que permitiram a ampliação em computador para escalas aproximadas de 1:20.000 e 1:10.000. Com base em Lemos & Santos (1996), foram descritos e coletados 15 perfis, 25 amostras extras e 18 amostras compostas de fertilidade, analisados segundo Embrapa (1997).

A relação entre os dois modos de saber (de pedólogos e de agricultores) sobre solos foi estabelecida tendo como base a descrição dos ambientes definidos pelos próprios agricultores. Dessa forma, foram estabelecidas relações entre a informação local sobre solos e as unidades de mapeamento, identificadas segundo conceitos de levantamento de solos e o Sistema Brasileiro de Classificação de Solos. Aparentemente simplificada quando comparada à concepção geomorfológica e pedológica, essa hierarquização permitiu relacionar um conjunto de características ambientais que os agricultores consideram como mais importantes. Essa estratégia possibilitou estabelecer diálogos com os agricultores, sistematizar o saber local e relacioná-lo com o conhecimento científico. Assim, a paisagem foi compreendida e concebida a partir das relações entre fatores do meio físico (vegetação, relevo, clima, entre outros) e das relações sociais que são estabelecidas ao longo do tempo na comunidade. É importante considerar como elas se entrecruzam com as relações do meio físico, ou seja, uma influenciando o processo evolutivo da outra. Esse critério assemelhou-se ao adotado por Descola (1986), ao descrever e analisar os registros técnicos e simbólicos de uma tribo (os Achuar) no alto Amazonas, entre o Equador e o Peru.

Considerando esse conjunto, foi possível construir a noção de paisagem sob uma perspectiva mais ampla, do ponto de vista não-estático, mas dinâmico, resultante de um processo cultural em que estão incluídas relações entre conceitos polarizados (mas não excludentes) de lugar-espaço, interior-exterior e imagem-representação (Hirsch, 1995).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Mapeamento de solos e ambientes

O mapeamento de solos da área da sub-bacia Água Boa 2 definiu 33 unidades de mapeamento, considerando como primeiros componentes: Latossolo Vermelho-Amarelo (LVA), Argissolo Vermelho (PV), Cambissolo Háplico (CXb), Cambissolo Flúvico (CYb) e Neossolo Flúvico (RYb) (Figura 1, Quadros 1 e 2). A unidade predominante foi Cambissolo Háplico (89,2 %), situada em áreas de baixo potencial de uso agrícola. Já os solos mais utilizados pelos agricultores (Cambissolo Flúvico e Neossolo Flúvico) somaram apenas 4,5 % da área (Quadro 3).





Posição na paisagem, textura, cor, pedregosidade e vegetação nativa predominante foram as variáveis mais citadas pelos moradores da comunidade Água Boa 2 para definir esses ambientes. Em síntese, foram definidos e identificados: "brejo", "baixa" (ou "baixio"), "alta", "tabuleiro", "pirambeira" (ou "morrote' ou "barriga de morro"), "charrielo", "carrasco" e "chapada". Outros ambientes também foram citados, como "capão", que se refere às matas próximas aos cursos d'água (matas de galeria), "varge", relativo às áreas de campo úmido, situadas nas áreas de "chapada", e "agreste", relativo à vegetação graminóide, também de ocorrência nas "chapadas". Essas definições não são muito diferentes das identificadas por outros autores, que realizaram estudos sobre comunidades na região Norte de Minas Gerais (Silva, 1999; Dayrell, 2000; Ribeiro, 2001; Maia, 2004). Entretanto, variações foram encontradas em função de especificidades locais.

Ao representar espacialmente os ambientes, na atividade de confecção dos mapas das propriedades, a quase-totalidade dos membros da comunidade iniciava o desenho hierarquizando o ambiente da propriedade em basicamente três categorias: "chapada", "tabuleiro" e "baixa". Algumas variações dessa tipologia foram identificadas nas descrições, mas as três categorias estiveram presentes em todos os desenhos. Dessa forma, o relevo foi o primeiro critério para estabelecer as diferenças entre ambientes dentro da propriedade. A partir dessa hierarquização, foram feitos os respectivos detalhamentos, sendo estes maiores nas porções em que o uso da terra era mais intenso. Assim, o ambiente de "baixa" mereceu descrição mais detalhada por parte dos agricultores do que o ambiente de "chapada".

Nomenclatura local de ambientes e solos

As definições apresentadas especialmente quando da atividade de construção de mapas pelos agricultores demonstraram grande diversidade de ambientes, característicos do Cerrado do Norte de Minas, todos com significado particular para seus moradores. Com base nas denominações utilizadas localmente para solos, percebe-se que os agricultores, tal como os pedólogos, também elaboram sua classificação própria, mesmo sem ter plena consciência de seu princípio. A figura 2 apresenta um exemplo dessa classificação, em que dois níveis hierárquicos são definidos a partir dos atributos de restrição ou não de drenagem e textura. Ela se baseia nos principais termos utilizados pelos agricultores para os diferentes tipos de solo da área onde vivem.


No primeiro nível encontra-se a terminologia local, que representa, dentro de cada ambiente de drenagem, atributos relacionados à morfologia do solo, que é detalhada no segundo nível. Este, por sua vez, se encontra hierarquizado com base na textura, mas permite estabelecer relações com outras características do solo. Permite, por exemplo, verificar que a cor do solo também é um atributo importante para caracterizar ambientes do ponto de vista local. Solos escuros e pretos estão relacionados a ambientes com restrição de drenagem, enquanto outras cores se associam a ambientes sem problemas de drenagem.

A relação cor–fertilidade é estabelecida, porém de maneira relativa. Solos considerados "brancos" são interpretados como de baixa fertilidade quando comparados a solos vermelhos. Já o solo "preto", por sua vez, não é sinônimo de fertilidade, e sim de áreas mal drenadas. A terra chamada "roxa" se refere a solos de chapada, particularmente Latossolos Vermelho-Amarelos, com baixos índices de valor e croma na caderneta de cores de Munsell, tendendo a cores brunadas.

Convém acrescentar que essas denominações podem variar de local para local e também com a textura predominante do solo de uma determinada área. No caso da comunidade Água Boa 2, em que os solos são predominantemente de textura média, o uso do termo "barro", por exemplo, não se refere a argiloso, necessariamente; na maioria das vezes, representa um solo de textura média. Para uma região em que predominam solos argilosos, essa mesma expressão poderá ter significado diferente. É importante destacar essa observação para que a tradução do termo não seja generalizada. Cada ambiente é diferente. Daí a importância não só de conhecer as expressões utilizadas no local, mas também as características físicas e químicas do solo, a fim de se proceder a uma interpretação mais próxima da realidade.

Serão descritos os principais ambientes definidos pelos agricultores (Figura 3, Quadro 4) e estabelecidas relações com as classes de solo encontradas no mapeamento pedológico. Essas unidades ambientais não apresentam definições fechadas; algumas têm mais de um significado. Esse fato era de se esperar, especialmente quando se considera a paisagem não apenas do ponto de vista físico, mas também como resultado de interações sociais.



A "baixa" ou "baixio" é o ambiente onde os agricultores realizam plantios de culturas anuais e perenes. Representa as posições mais baixas da paisagem, incluindo o leito maior do curso d'água, podendo ser inundada durante parte do ano. É uma definição de certa forma comum no Norte de Minas Gerais, às vezes se confundindo com "vazantes" em áreas de Cerrado sob maior influência da Caatinga do que Rio Pardo de Minas, como é o caso de Riacho dos Machados, MG (Dayrell, 2000). A vegetação original é de Mata de Galeria, Campo Sujo Úmido e Campo Limpo Úmido (Ribeiro & Walter, 1998).

Nesse ambiente, a maioria dos entrevistados subdividiu a "baixa" em uma porção mais próxima do curso d'água, chamada de "brejo", local mais úmido, muito sujeito a inundação no período das chuvas e onde são cultivados arroz e feijão de terceira época (plantado em julho, quando essa área já está menos úmida). No quadro 4 é apresentada a correspondência entre os solos de "baixa", identificados com base na denominação local dos ambientes, e a sua classificação segundo o SiBCS (Embrapa, 1999).

A "alta" representa a posição na paisagem imediatamente superior à "baixa" (Figura 3, Quadro 4) e, de maneira geral, não sujeita a inundação. Alguns moradores consideram-na como uma posição individualizada das demais; outros, como a porção superior da "baixa"; há ainda aqueles agricultores que definem "alta" como parte da feição identificada como "tabuleiro". Nela normalmente se localizam a casa e o quintal, onde são plantadas diversas culturas anuais e perenes.

Depois da "baixa", o "tabuleiro" é o ambiente mais explorado pelos agricultores (Figura 3, Quadro 4). Ele ocupa posições na paisagem que variam de relevo plano a forte ondulado. De maneira geral, pode ser considerado um ambiente de transição entre a "baixa" e a "chapada". Contudo, há opiniões diferentes quanto à sua delimitação: alguns moradores consideram que "tabuleiro" compreende a área situada entre a "baixa" e a "chapada", incluindo a feição identificada como "pirambeira" (ou "morrote", ou "barriga de morro"), com e sem cascalho (tabuleiro 1 da Figura 4); nessa definição, a casa e o quintal estão situados no "tabuleiro"; outros definem "tabuleiro" como a área que pouco se presta à agricultura, com presença de cascalho – nesse sentido, é mais utilizada para criação de gado ("manga"), que se alimenta de pastagem nativa; nesse caso, o "tabuleiro" se situa logo acima do quintal e da estrada, que normalmente passa em frente à casa (tabuleiro 2 da Figura 4).


No seu conjunto, essas várias concepções de tabuleiro demonstram seu caráter transicional entre a baixa e a chapada. Dayrell (2000) identificou, nas comunidades de Córregos e Estivinha, em Riacho dos Machados, o "tabuleiro" também como unidade de transição. Segundo Ribeiro (2001), o termo "tabuleiro" muitas vezes é interpretado localmente como sinônimo de "chapada" e "campina", generalizados como "gerais". Segundo este autor, os termos "chapada" e "tabuleiro" foram usados como sinônimos por alguns naturalistas, como Saint-Hilaire, que identifica, pela sua passagem pelo alto Jequitinhonha, uma região de morros pouco elevados, separados por vales (Ribeiro, 2001). Essa variação de definições para "tabuleiro" na região Norte de Minas Gerais indica a importância do reconhecimento desse termo como componente da paisagem regional. A vegetação predominante é de Cerrado sentido restrito, com os subtipos Cerrado Típico, Cerrado Ralo e Cerrado Rupestre (Ribeiro & Walter, 1998).

A "pirambeira" é um ambiente claramente definido por todos os agricultores entrevistados e contactados (Figura 3). Representa as encostas dos morros, tendo como limite superior a "chapada". Sua importância está ligada à extração de madeira para cercas e lenha e extrativismo de plantas, especialmente medicinais. O relevo varia de ondulado a montanhoso. Predomina nesse ambiente o Cambissolo Háplico cascalhento e muito cascalhento de textura média a argilosa, bem como a vegetação de Cerrado Típico, Cerrado Ralo e Cerrado Rupestre, além de um estrato de vegetação chamado "charrielo," denominação local para estratos herbáceos de transição do Cerrado para o Carrasco.

A "chapada" também é um ambiente cuja definição é consenso entre os agricultores (Figura 3 e Quadro 4). Representa as posições mais altas da paisagem, com relevo variando de plano a predominantemente suave ondulado, localmente identificado como "assentado", mas contendo porções de relevo ondulado (denominadas "escorrido"). A vegetação predominante é de Cerrado sentido restrito, com os subtipos Cerrado Típico, Cerrado Ralo e Campo Sujo.

"Carrasco" é outro ambiente claramente definido pelos agricultores. Segundo BNDES/CNPM-Embrapa (2004), ele representa uma formação de transição, algumas vezes denominada "grameal" ou "catanduva", caracterizada por abundância de trepadeiras lenhosas, alta densidade de indivíduos lenhosos, com troncos finos, e quase ausência de cactáceas e bromeliáceas. É um tipo de formação de ocorrência em grande parte da depressão do vale do São Francisco e manchas espalhadas pela região montanhosa a leste dessa depressão. São encontradas em áreas tércio-quaternárias sobre Latossolos Vermelho-Amarelos e Neossolos Quartazênicos.

Para os moradores da área em estudo, "carrasco" representa uma vegetação transicional da Caatinga para o Cerrado. Segundo depoimentos, ele é formado por espécies tanto da Caatinga quanto de Cerrado. Está localizado na porção superior da paisagem, próximo à "chapada". Araújo (1998) também verificou esse caráter transicional do "carrasco" na Chapada do Araripe, no Ceará, onde apresenta diâmetros pequenos e semelhantes. Considerando a arquitetura, a fisionomia e o ambiente em que ocorre, o "carrasco" caracteriza-se como um tipo de vegetação diferente da Caatinga, do Cerradão e da Floresta (Araújo, 1998). Nesse ambiente, os solos predominantes na área da comunidade Água Boa 2 são Cambissolos Háplicos e Latossolos Vermelho-Amarelos, com textura arenosa ou média, semelhante ao observado por Araújo (1998) no norte do Planalto do Ibiapaba, no Estado do Ceará. Vale considerar a importância ecológica dada ao "carrasco", uma vez que, em vários depoimentos, os agricultores argumentaram que ele sempre ocorre próximo às nascentes (Figura 5), sendo por isso explorado com mais cuidado, para não comprometer as cabeceiras dos córregos. Caminhamentos realizados nessas áreas durante o mapeamento pedológico confirmaram essa observação.


No estudo em questão, verificou-se que tanto a pedologia quanto os agricultores podem se beneficiar dos conhecimentos um do outro. Para a pedologia, já que um de seus objetivos é tornar a informação sobre solos aplicável no planejamento do uso desse recurso natural, é fundamental que se considere o saber dos agricultores. A própria pesquisa demonstrou isso quando se verificou que não foi possível alcançar o nível de detalhe dos agricultores sobre as áreas do ambiente de "baixa". Por outro lado, nas áreas de encosta e na chapada, o mapeamento pedológico forneceu informações importantes, discriminando ambientes que, especialmente do ponto de vista ecológico, precisam ser separados, tendo em vista objetivos de planos de manejo que orientem o uso extrativista na região.

Com o saber local sendo considerado, foi possível levar em conta outros fatores, além dos biofísicos, na definição das paisagens, como as diferenciações no uso da terra (que normalmente são utilizadas pelos agricultores como critério de estratificação). Por exemplo, "tabuleiro" e "baixa" se diferenciam não só por atributos físicos, mas também pelo uso (criação de gado, local de construção da casa, alguns cultivos perenes no primeiro e predominância de cultivos anuais no segundo). Esse procedimento procurou corrigir dificuldades do SiBCS em hierarquizar a paisagem para atender às necessidades de planejamento de uso da terra em nível de comunidades.

Para que o mapeamento de solos seja mais aplicado à realidade local, seria necessário, portanto, além das fases de vegetação e relevo já existentes, considerar também fases relacionadas com a posição na paisagem ou a feição geomorfológica associada (por exemplo, Cambissolo Háplico relevo suave ondulado fase "tabuleiro"), uma vez que uma mesma classe de solo em posições distintas na paisagem possui significados também distintos para os agricultores.

Apesar de terem sido elaborados a partir de premissas diferentes, o que de certa forma dificulta o diálogo entre as partes, é possível estabelecer relações entre os dois modos de conhecimento. Na realidade, eles se complementam. Partindo desse ponto de vista, não há informação certa ou errada. Existem, sim, elaborações que atendem a objetivos distintos, mas que em determinadas situações podem se complementar.

CONCLUSÕES

1. A hierarquização da paisagem a partir da nomenclatura utilizada pelos agricultores permitiu estabelecer relações entre o sistema taxonômico pedológico e as denominações locais.

2. Para melhor adequação do mapeamento de solos à realidade local, deve-se incluir, como fases de unidades de mapeamento, a posição na paisagem ou feição geomorfológica associada.

3. O uso da definição local para ambientes permitiu diálogo mais próximo com membros da comunidade.

4. Os dois modos de construção do conhecimento sobre solos (do agricultor e do pedólogo) não são conflitantes.

AGRADECIMENTOS

Aos membros da comunidade Água Boa 2, de Rio Pardo de Minas, pela receptividade, compreensão e paciência. Ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Pardo de Minas e ao Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas, pelo apoio ao projeto. À Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais – Rio de Janeiro (CPRM-RJ), pelo apoio na confecção dos mapas digitais. À Embrapa Solos, pelo apoio nas análises de solos.

LITERATURA CITADA

Recebido para publicação em

  • AGRAWAL, A. Indigenous and scientific knowledge: some critical comments. Indig. Knowledge Develop. Monitor, v.3, n.3, 1995.Disponível em:http://www.nuffic.nl/ciran/ikdm/3-3/articles/agrawal.html">. Acesso em 20 jun. 2004.
  • ALFONSO, J.M. La investigación em antropología social. Barcelona, Ariel, 1990. 237p.
  • ARAÚJO, F.S. Estudos fitogeográficos do carrasco no nordeste do Brasil. Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 1998. 119p. (Tese de Doutorado)
  • BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO - BNDES/CNPM-Embrapa. Monitoramento da expansão das áreas irrigadas na região oeste da Bahia: Caracterização da área. Disponível em: <http:// "http://www.bndes.cnpm.embrapa.br/textos/trans_cerr.htm" >. Acesso em 01 out.2004.
  • BARRERA-BASSOLS, N. & ZINCK, J. A. Ethnopedology: A worldwide view on the soil knowledge of local people. Geoderma, 111:171-195, 2003.
  • BECKER, H.S. Métodos de pesquisa em ciências sociais. 4.ed. São Paulo, Hucitec, 1999. 178p.
  • CHAMBERS, R. The origins and practice of participatory rural appraisal. World Develop., 22:953-969, 1992.
  • CICOUREL, A. Teoria e método em pesquisa de campo. In: GUIMARÃES, A.Z. Desvendando máscaras sociais. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1980. p.87-121.
  • DAYRELL, C.A. Os geraizeiros descem a serra ou a agricultura de quem não aparece nos relatórios dos agrobusiness. In: GUIMARÃES, P.W.; GONÇALVES, C.W.P.; RIBEIRO, R.F.; COSTA, J.B.A.; RODRIGUES, L.; DAYRELL, C.A. & SILVA, C.E.M. Cerrado e desenvolvimento: Tradição e atualidade. Montes Claros, Universidade Estadual de Montes Claros, 2000. p.191-274.
  • DESCOLA, P. La nature domestique: Symbolisme et praxis dans l'écologie des Achuar. Paris, Fondation Singer-Polignac, 1986. 450p.
  • EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA - EMBRAPA. Centro Nacional de Pesquisa de Solos. Manual de métodos de análise de solo. 2.ed. Rio de Janeiro, 1997. 212p. (Embrapa-CNPS. Documentos, 1)
  • EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA - EMBRAPA. Centro Nacional de Pesquisa de Solos. Procedimentos normativos de levantamentos pedológicos. Brasília, Embrapa/Produção de Informação, 1995. 101p.
  • EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECUÁRIA - EMBRAPA. Centro Nacional de Pesquisa de Solos. Sistema brasileiro de classificação de solos. Brasília, Embrapa/Produção de Informação, 1999. 412p.
  • HIRSCH, E. Landscape: Between place and space. In: HISCH, E. & O'HANLON, M., ed. The anthropology of landscape: Perspectives on place and space. Oxford, Clarendon Press, 1995. p.1-30.
  • LEMOS, R.C. & SANTOS, R.D. Manual de descrição e coleta de solo no campo. 3.ed. Campinas, Sociedade Brasileira de Ciência do Solo; Rio de Janeiro, Embrapa/SNLCS, 1996. 83p.
  • MAIA, C.J. Trabalho, família e gênero: Estratégias de reprodução social camponesa no Médio Jequitinhonha. Mulher e Trabalho, Porto Alegre, FEE, 2004. v.4. Disponível em http://www.fee.rs.gov.br/sitefee/download/mulher /2004/artigo6.pdf". Acesso em 15 mar. 2005.
  • RIBEIRO, J.F. & WALTER, B.M.T. Fitofisionomias do bioma Cerrado. In: SANO, S.M. & ALMEIDA, S.P. Cerrado: Ambiente e flora. Planaltina, Embrapa/CPAC, 1998. p.89-166.
  • RIBEIRO, R.F. "Certão-serrado": História ambiental e etnoecologia na relação entre populações tradicionais de Minas Gerais e o bioma do Brasil Central. Seropédica, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2001. 1189p. (Tese de Doutorado)
  • SANTOS, H.G.; COELHO, M.R.; ANJOS, L.H.C.; JACOMINE, P.K.T.; OLIVEIRA, V.A.; LUMBRERAS, J.F.; OLIVEIRA, J.B.; CARVALHO, A.P. & FASOLO, P.J. Centro Nacional de Pesquisa de Solos. Propostas de revisão e atualização do Sistema Brasileiro de Classificação de Solos. Rio de Janeiro, 2003. 56p. (Embrapa-CNPS. Documentos, 53). Disponível em "javascript:openWin1(%22http://www.cnps. embrapa.br.solos.br/pdfsdoc53_2003_revisao_ sbcs.pdf%22)" (Acessado em 10/10/2005)
  • SILVA, C.E.M. Cerrado e camponeses no norte de Minas: Um estudo sobre sustentabilidade dos ecossistemas e das populações sertanejas. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais, 1999. 202p. (Tese de Mestrado) R. Bras. Ci. Solo, 31:1045-1057, 2007
  • 1
    Parte da Tese de Doutorado do primeiro autor apresentada ao CPGA-CS, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ. Apoio da Embrapa Cerrados, Embrapa Solos e WWF - Programa Natureza e Sociedade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Dez 2007
    • Data do Fascículo
      Out 2007
    Sociedade Brasileira de Ciência do Solo Secretaria Executiva , Caixa Postal 231, 36570-000 Viçosa MG Brasil, Tel.: (55 31) 3899 2471 - Viçosa - MG - Brazil
    E-mail: sbcs@ufv.br