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O jogo das diferenças: o multi-culturalismo e seus contextos

RESENHAS

Ana Lúcia Eduardo Farah Valente

Doutora em Antropologia Social pela USP e professora do Curso de Mestrado em Educação e do Departamento de Ciências Humanas da UFMS.

O jogo das diferenças: o multi-culturalismo e seus contextos

Luiz Alberto Oliveira Gonçalves, Petronilha B. Gonçalves e Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. 118 p. (Coleção Trajetória)

A Coleção Trajetória, o mais novo projeto dedicado à educação, da Autêntica Editora, foi lançada no segundo semestre de 1998, com a promissora e bem–vinda proposta de tornar acessível, ao público em geral, temáticas que vêm sendo pesquisadas por estudiosos de vários campos do conhecimento. A expectativa criada por um projeto como este é de que o hiato existente no processo de produção do conhecimento seja superado, ao serem transpostos os muros da academia. Afinal, tal processo só pode realimentar–se, aprimorando–se, mediante a sua crescente socialização e exposição à crítica. O perfil multidisciplinar da coleção implicou a escolha não aleatória do tema de abertura, referindo–se ao direito à diferença. Encaixando–se como uma luva nas intenções da editora, sob formato de livro, foi publicado O jogo das diferenças: o multiculturalismo e seus contextos, de Luiz Alberto Oliveira Gonçalves e Petronilha B. Gonçalves e Silva. Os autores, com formação em sociologia e em pedagogia, respectivamente, também aceitaram o desafio de vencer distâncias geográficas e institucionais, ele da UFMG, ela da UFSCar, procurando construir e aprofundar os vínculos e o diálogo que vêm sendo estimulados no compromisso comum, intelectual e político, com a questão dos negros no Brasil e no mundo. Outra experiência que os une é a atuação em programas de pós–graduação em educação.

Trata–se, na verdade, de um ensaio composto por quatro capítulos, cada qual guardando certa autonomia. No último deles, bastante sucinto, discorre–se sobre o estado da arte dos estudos culturais e a pesquisa em educação no Brasil. Afirma–se que as dissertações e teses produzidas sobre temas multiculturais no campo da educação, entre 1981 e 1997, ainda são insuficientes e estão muito longe de fornecer sustentação adequada a projetos educacionais desenvolvidos pelos sistemas de ensino, na perspectiva de contemplar a diversidade cultural que nos caracteriza. Na avaliação dos autores, o surgimento dessa preocupação, em meados da década de oitenta, explica–se pelo contexto histórico de organização de movimentos sociais, respondendo ao clima de repressão extremada imposto pela ditadura militar. Para eles, não por acaso, os enfoques teóricos e metodológicos utilizados nessa pequena produção acadêmica vêm da Sociologia, da Antropologia e da Filosofia, pressupondo uma leitura mais complexa da realidade. No tocante à utilização de recursos teórico–metodológicos da Antropologia, historicamente estruturada em torno da discussão do conceito de cultura, valeria a pena lembrar que sua questão central é pensar a humanidade como una e indistinta, de um lado e, de outro, a diversidade que a caracteriza como condição de sua existência e sua marca necessária. No caso dos estudos sobre as diferenças culturais no campo educacional, a compreensão dessas dimensões universal e singular da cultura pode contribuir para o avanço das discussões e das propostas de intervenção. Em outra ocasião (Valente, 1996), chamei a atenção sobre os riscos potenciais e efetivos aos quais são ou podem ser expostas as abordagens educacionais que incorporam às suas práticas os procedimentos da Antropologia, sem a devida consideração de suas implicações teórico–metodológicas e sem que seja respeitado o conhecimento acumulado no seu campo de estudo. Quando se trata de abordar a questão das diferenças culturais, esses riscos podem ser maiores.

Tudo indica que baseados no diagnóstico da falta de familiaridade dos educadores com a temática e, como afirmam os autores, em razão das questões que lhes são feitas por docentes de ensino fundamental em diversos encontros, os três capítulos, "O multiculturalismo e seus significados", "Multicul–turalismo e educação nos Estados Unidos" e, "O Multiculturalismo na América Brasileira" foram escritos de maneira simples e inicial, para garantir o acesso às discussões propostas. Estas, diferentemente da forma, comportam conteúdos complexos e, como bem lembram os autores, neles a simplicidade é apenas aparente. Nesses capítulos são oferecidos ao leitor, além do pano de fundo sobre o qual se desenrolam as discussões sobre o multiculturalismo, mostrando que qualquer tentativa de "defini–lo com precisão, é tarefa bastante arriscada, fadada ao insucesso" (p.19), dados importantes sobre a história do movimento nos Estados Unidos. O relato da experiência americana objetiva contribuir na reflexão sobre os desafios que deverão ser enfrentados pelo sistema de ensino brasileiro ante a introdução do tema da pluralidade cultural proposto nos parâmetros curriculares nacionais. Sobre a experiência brasileira nesse terreno, os autores fazem uma breve retrospectiva do processo de constituição do movimento negro. Especial atenção é dedicada à criação do Teatro Experimental do Negro, no final dos anos quarenta, considerado pelos autores como "uma possibilidade de interferir no 'jogo de significações'" (p.87–90), ou no jogo das representações, por excelência o "campo de combate do multiculturalismo" (p.96).

Contudo, a simplicidade da forma que não compromete o conteúdo do livro e mesmo o tratamento por vezes superficial de algumas questões polêmicas, certamente motivado por razões de ordem editorial, vão despertar no leitor, mais ou menos familiarizado com a temática, reações diversas e níveis diferenciados de interpretação, análise e crítica. Para mim, a leitura do livro foi instigante para pensar as suas entrelinhas, uma ou outra idéia interessante não desenvolvida, aquilo que ainda não foi escrito e que, portanto, não posso cobrar dos autores. No máximo, posso também tentar provocá–los com questões que nem eu mesma resolvi, para futuras trocas e discussões teóricas.

Embora considere importante, como os autores, que o aprendizado das experiências de outros países no tratamento da diferença cultural possa contribuir para a reflexão sobre nossa singularidade, venho me perguntando se, no Brasil, devemos importar conceitos, definidos em contextos diferentes, mesmo revestidos de novos significados. Este não seria o caso do emprego da palavra "multiculturalismo"? Afinal, conforme foi mostrado no livro, na retrospectiva da experiência americana, a compreensão do "multiculturalismo e suas repercussões na educação implica destrinçar referências ideológicas, elucidar encaminhamentos teóricos, descobrir práticas sociais, significar práticas pedagógicas, posicionar–se politicamente e situar–se socialmente", numa intrincada rede de significados contextualizada num território, numa sociedade e nas relações que a mantém (p.71). Seria possível desconsiderar as diferenças históricas que nos separam dos Estados Unidos, mesmo que informadas pelo caráter universal do capitalismo em tempos de globalização?

De passagem, no primeiro capítulo, os autores interrogam–se quanto ao sentido do multiculturalismo em países europeus, mostrando como a produção de pesquisadores comprometidos com o estudo da questão é marcada por contradições. Diria, ainda, que é marcada pela falta de consenso, inclusive na utilização dos termos que vão designar a recente preocupação com a diversidade cultural. Entretanto, a intenção de superar a perspectiva do multiculturalismo vem ganhando espaço na Europa, que pretende implementar a "educação intercultural". Para os europeus, o conceito de "multicultural" se limita a constatar o estado das entidades sociais onde coabitam os grupos ou os indivíduos de culturas diferentes, ao passo que o "intercultural" permite a caracterização de uma dinâmica bilateral no interior da qual se engajam parceiros conscientes de sua interdependência. Contudo, como discuti em linhas gerais, essa intenção de superar o multiculturalismo esbarra em obstáculos de várias ordens, passíveis de serem contornados pela reflexão teórica radical, rigorosa e atenta. Ainda que, na Europa, a proposta de educação intercultural "seja pensada a partir do pressuposto de uma dinâmica de relações sociais, mas abstratas, ao desconsiderar os contornos da sociedade capitalista atual, incorre no mesmo equívoco que se imputa a outrem: limita–se a constatar o estado de parceiros culturalmente diferentes em conflito" (Valente, 1998b. p.16b). Nesse mesmo artigo, afirmo considerar falaciosa a proposta de uma educação intercultural como sinônima de uma educação harmônica de respeito às diferenças. Nesse caso, tratar–se–ia de propor uma conotação nova e positiva ao fenômeno das relações entre as culturas que sempre esteve marcada pelo signo da dominação. Porém, considerando o seu uso amplo e generalizado entre os europeus, admito utilizar o termo "intercultural", a ele associando uma perspectiva de compreensão mais crítica (Valente, 1998. p.15a). Mas convenhamos que a mera adjunção do adjetivo "crítico" não dá conta de resolver os dilemas da interculturalidade ou da educação intercultural, também proposta no texto da LDB e exposta a alguns perigos (Valente, 1998a). A questão a responder é: levando–se em conta o jogo de significações, por que empregar os conceitos "multiculturalismo" ou "educação intercultural", para designar a experiência brasileira que, por razões singulares, é diferente?

Nessa linha de raciocínio, considerando que: a) reivindicação do respeito à diferença cultural no Brasil, historicamente partiu de grupos sobre os quais se impôs o universalismo europeu, isso é, sobre índios e negros; b) a luta desses grupos étnicos ganha significado como relação opositora ante outras singularidades, ou seja, ante outros grupos étnicos que advogam a hegemonia sobre os demais, com base em interesses políticos e econômicos; c) a educação estrutura–se para legitimar uma organização sociocultural marcada pela contradição, por isso abrindo a possibilidade de sua negação e; d) a diferença cultural é condição e marca necessária da humanidade e sua interação com o meio, mas aparece na histórica marcada pela desigualdade; não seria pertinente pensar numa proposta educacional que contemple o contraditório processo de criação/significação da diversidade cultural para uma educação igualitária ou para a cidadania paritária? Sob a condição de que sejam desvelados os usos sociais dos conhecimentos transmitidos que, como criações humanas, são passíveis de serem transformados. Como decorrência do que foi exposto, não posso concordar com os autores de que "o multiculturalimo não interessa à sociedade como um todo, e sim a certos grupos sociais que, de uma forma ou de outra, são excluídos dos centros de decisão por questões econômicas e, sobretudo, por questões culturais" (p.33). Mesmo que se considere que os negros, no Brasil e nos Estados Unidos, foram precursores de movimentos reivindicativos da diferença cultural, não se pode negar que a identidade de negros e de brancos é resultado de um processo relacional envolvendo o dois segmentos raciais ou étnicos. Ao propor uma metodologia de combate ao racismo nas escolas afirmei que "não se pode pensar a questão racial apenas em sua especificidade negra, como querem alguns militantes e estudiosos, na medida em que, necessariamente, essa questão envolve brancos. Também não se pode pensar na especificidade infantil sem que ela esteja referida ao 'universo adulto' e à sua complexidade em termos raciais e de classe" (Valente, 1995. p.48 b).

Ainda não encontrei o termo ou termos mais apropriados para nomear esse processo, sem cair em redundâncias ou tautologias. Mas, a citação de trecho de um artigo escrito por Antonio Candido de Mello e Souza, há vinte anos, que abre o livro organizado por Fernando Haddad (1998), pode também aqui emprestar a força de seu pensamento. Para Antonio Candido, a cópia, a imitação de padrões trazidos pelos nossos colonizadores são fenômenos de cultura reflexa que caracterizaria a cultura brasileira, conformando uma tendência de ser muito "a favor". Indaga se já não teríamos maturidade para criar uma cultura "do contra", especialmente para fazer frente à era conservadora na qual entramos. Como lembra Haddad, não aderir "às novas manias recém–importadas pelas elites na sua eterna e volúvel trajetória de modernização conservadora no país" e "desorganizar o consenso em torno das idéias hoje hegemônicas é tarefa das mais árduas" (1998. p.12). Talvez valha a pena aceitar esse desafio, procurando refletir em que momentos a diferença aparece como um problema e a possibilidade dessa questão ser manipulada pelos grupos hegemônicos. O resgate da historicidade desses momentos parece–me uma condição fundamental para "ser do contra", elaborando estratégias mais consistentes que façam oposição efetiva, num quadro de correlação de forças políticas desiguais (Valente, no prelo).

Finalizando essa resenha propositadamente escrita ao reverso, na medida em que, atualmente, me parece imprescindível pensar o avesso das discussões em torno na diferença cultural para evitar armadilhas e "tiros que saem pela culatra", merece destaque um breve comentário feito pelos autores na apresentação. Ali manifestam preocupação com o fato de que, hoje, o contexto de onde se fala sobre os sentidos e os significados do multiculturalismo no mundo contemporâneo "tenha se transformado em uma espécie de ideologia escolar, teoria do currículo" e objeto "de preocupação de educadores pós–modernos bem comportados". Não resistindo ao apelo dessa reticente mas incisiva crítica, permito–me tecer algumas considerações a respeito. Essa preocupação manifestada pelos autores é bastante pertinente quando se considera que as idéias de Peter Mclaren, canadense e professor nos Estados Unidos, considerado um expoente da chamada pedagogia crítica, vêm sendo festejadas por pesquisadores brasileiros que discutem questões do currículo. No livro Multiculturalismo Crítico (Maclaren, 1997), esse autor explicita sua adesão à perspectiva pós–moderna e a ela faz justiça: verborrágico, utiliza uma linguagem tortuosa e plena de senso comum, que pode enganar incautos. Eclético, é generoso na apresentação de suas interessantes fontes, freneticamente citadas numa confusa colagem. No entanto, essas mesmas fontes levam–no a cometer alguns sérios equívocos, como, por exemplo, a distorção do pensamento de Gramsci. Discorre sobre conhecidas questões da Antropologia, de maneira fragmentada, como se fossem novidades. Às suas mal costuradas observações seguem uma série de recomendações práticas para "as/os educadoras/es" em sala de aula, partilhando da linguagem politicamente correta nas questões de gênero, que inclusive merece nota explicativa da tradução, sem igual atenção para as questões étnico–raciais. Em outra oportunidade (Valente,1997), utilizando uma paráfrase, chamei o discurso pós–moderno de arrombador de portas abertas, que adere ao relativismo e valoriza a diversidade. Tal discurso se espalhou no embalo do que se convencionou chamar de "crise de para–digmas", com a proposta de buscar novas referências que propiciem respostas adequadas aos problemas colocados pela contempora–neidade, afirmando ser apenas possível estudar a especificidade e singularidade dos fenômenos, com isso justificando a sua descrição de forma fragmentada e isolada. Para os críticos pós–modernos, a realidade social da atualidade é tão nova e carregada de matizes que nenhum sistema teórico e, sobretudo o que consideram ser "o marxismo", com sua pretensão de totalidade, seria capaz de captar, não levando em consideração que as principais acusações dirigidas a essa matriz teórica sofreram acertos de contas internos. Conforme argumentei, a crítica pós–moderna não apresenta qualquer novidade, mesmo porque não é a primeira e nem será a última vez que se anuncia "o fim da história", mas, sem dúvida, a adesão de estudiosos de vários campos do conhecimento ao pós–modernismo é preocupante... Para aqueles que não embarcaram nesse modismo, continua valendo a máxima de que, "é possível esquecer a totalidade quando nos interessamos apenas pelas diferenças entre os homens, não quando nos preocupamos também com a desigualdade", valendo–me das palavras de Canclini (1997. p. 30), ao não admitir que a preocupação com a totalidade social careça de sentido.

Assim, retomando o que vinha sendo dito linhas atrás, mesmo reticente, nessa crítica à "ideologia do currículo" e à "adesão pós–moderna", parece ser definida a direção metodológica, que compartilho com os autores, de não perceber a temática da diferença cultural como "novidade". Recoloca–se, então, a importância da tarefa de recuperar a história e a luta dos povos oprimidos e, com ela, a própria história do multiculturalismo(?), sem deixar de inseri–la num contexto mais amplo de compreensão. Nesse livro, os autores referem–se, sobretudo, ao resgate da luta do negros, com especial atenção às especificidades que marcam o tratamento da questão no Brasil e nos Estados Unidos, sem menosprezar os momentos em que essas trajetórias se cruzam e que eventualmente podem trazer elementos para a nossa reflexão. Como se percebe, tantos pontos em comum, os quais compartilho com os autores, não mascaram nossas diferenças, que devem ser respeitadas. Elas podem ser mantidas intactas ou podem compor uma nova síntese, a depender dos resultados do fértil diálogo que pode ser estabelecido entre os estudiosos de uma temática ainda pouco conhecida no campo da educação, para o qual, sem dúvida, Luiz Alberto e Petronilha forneceram uma importante contribuição. D'O jogo das diferenças não se esperam vencedores.

  • CANCLINI, N.G. Culturas híbridas São Paulo: EDUSP, 1997 (Ensaios latinoamericanos,1)
  • HADDAD, F. (org.) Desorganizando o consenso: nove entrevistas com intelectuais à esquerda. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998.
  • MCLAREN, P. Multiculturalismo crítico São Paulo: Cortez, 1997.
  • VALENTE, A.L.E.F. Educação e diversidade cultural: algumas reflexões sobre a LDB. Intermeio, Campo Grande, n.4, p.217, 1998a.
  • ________. Educação e diversidade cultural: um desafio da atualidade. São Paulo: Moderna. (no prelo)
  • ________. Para além do multiculturalismo: a educação intercultural na Europa. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v.79, n.191, p.7–18, jan./abr. 1998b.
  • ________. Por uma Antropologia de alcance universal. Cadernos Cedes, Campinas, n.43, p.5874, dez.1997.
  • ________. Proposta metodológica de combate ao racismo nas escolas. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n.93, p. 4050, maio 1995.
  • ________. Usos e abusos da Antropologia na pesquisa educacional. Proposições, Campinas, n.20, p.5464, jul.1996.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Ago 2010
  • Data do Fascículo
    Jul 1999
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