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Regime de colaboração intergovernamental: alternativa para a maioridade do ensino médio

The intergovernmental collaboration regime: an alternative to the maioridade of mid level teaching

Resumos

O ensino fundamental e médio no Brasil têm compartilhado, por longo tempo, prédios, equipamentos e professores, cujo dimensionamento este trabalho apresenta, com base nos dados censitários. O rápido crescimento da matrícula do ensino médio suscita importantes questões sobre as verdadeiras necessidades de construção escolar, bem como sobre a divisão de competências educacionais na esfera de governo e a identidade pedagógica das escolas. Os dados censitários revelam que será necessário construir numerosos prédios escolares, ante o aumento da procura, porém, ainda é significativa a utilização de espaço e tempo letivo. Portanto, governos estaduais e municipais precisarão colaborar entre si, continuando a compartilhar pessoal e recursos materiais. Para melhores resultados, é necessário operacionalizar o regime de colaboração, prescrito pela Carta Magna. Normas mais claras e estáveis precisam ser negociadas para evitar casuísmos.

ENSINO FUNDAMENTAL; ENSINO MÉDIO; DEMOCRATIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO


The first and second levels of education in Brazil (8+3 years) have shared buildings, equipment and even faculty for a long time. The fast enrolment increase of the second level arises important questions on the actual needs of school construction, as well as on enrolment decentralization and schools pedagogical identity. Census data reveal that it will be necessary to build numerous schools, however, there is still significant underutilization of space and time. Therefore, state and municipal governments will need to co-operate, keeping to share personnel and material resources. For better results it is necessary to operationalize the intergovernmental collaboration system, prescribed by Constitution. Clearer and steadier rules are to be negotiated, avoiding casuistical or arbitrary solutions.


TEMA EM DESTAQUE: ENSINO MÉDIO E EDUCAÇÃO PROFISSIONAL

Regime de colaboração intergovernamental: alternativa para a maioridade do ensino médio

The intergovernmental collaboration regime: an alternative to the maioridade of mid level teaching

Candido Alberto Gomes

Universidade Católica de Brasília

RESUMO

O ensino fundamental e médio no Brasil têm compartilhado, por longo tempo, prédios, equipamentos e professores, cujo dimensionamento este trabalho apresenta, com base nos dados censitários. O rápido crescimento da matrícula do ensino médio suscita importantes questões sobre as verdadeiras necessidades de construção escolar, bem como sobre a divisão de competências educacionais na esfera de governo e a identidade pedagógica das escolas. Os dados censitários revelam que será necessário construir numerosos prédios escolares, ante o aumento da procura, porém, ainda é significativa a utilização de espaço e tempo letivo. Portanto, governos estaduais e municipais precisarão colaborar entre si, continuando a compartilhar pessoal e recursos materiais. Para melhores resultados, é necessário operacionalizar o regime de colaboração, prescrito pela Carta Magna. Normas mais claras e estáveis precisam ser negociadas para evitar casuísmos.

ENSINO FUNDAMENTAL-ENSINO MÉDIO-DEMOCRATIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO

ABSTRACT

The first and second levels of education in Brazil (8+3 years) have shared buildings, equipment and even faculty for a long time. The fast enrolment increase of the second level arises important questions on the actual needs of school construction, as well as on enrolment decentralization and schools pedagogical identity. Census data reveal that it will be necessary to build numerous schools, however, there is still significant underutilization of space and time. Therefore, state and municipal governments will need to co-operate, keeping to share personnel and material resources. For better results it is necessary to operationalize the intergovernmental collaboration system, prescribed by Constitution. Clearer and steadier rules are to be negotiated, avoiding casuistical or arbitrary solutions.

O ensino médio, apesar da sua importância, cresceu como um apêndice do ensino fundamental. Dentre os fatores que para isso concorreram estão o pequeno contingente de alunos e a importante fonte de financiamento vinculada ao ensino fundamental, o salário-educação. Em 1971 a matrícula do ensino médio correspondia a apenas 6,1% do nível de ensino precedente e, em 1998, essa proporção era de 38,2%. Com um contingente relativamente pequeno de alunos, não era tão difícil acomodar o ensino médio em instalações comuns e com ele compartilhar os professores com licenciatura que já lecionavam nas séries finais do ensino fundamental.

Além disso, o salário-educação permitia construir prédios para o ensino fundamental, que abrigavam outros níveis e modalidades de ensino. A relação é tão estreita que, ao apurar a despesa média aluno/ano podemos chegar a um valor maior para o ensino fundamental que para o médio (Gomes, 1998). Hoje, portanto, ambos os níveis de ensino são xifópagos que tendem a separar-se em face do acelerado crescimento de um deles. Ao mesmo tempo, políticas de municipalização do ensino, obedecendo à Constituição e contando com os incentivos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério - FUNDEF-, levam os estados a permanecer com o ensino médio e a transferir para os municípios as séries iniciais do ensino fundamental e, em certos casos, também as séries finais. Procedem, assim, à dolorosa separação, mas precisam continuar convivendo entre si.

ALTERNATIVA: O REGIME DE COLABORAÇÃO

A Constituição Federal estatuiu que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios organizarão os seus sistemas de ensino em regime de colaboração (art. 211, caput). Conquanto ainda não regulamentado, o regime prevê que, apesar da clara divisão de competências entre os níveis de governo, deve haver entrosamento entre eles para atenderem aos sérios problemas do setor. Puxar os fios da meada é tarefa pioneira, uma vez que essa divisão é muito mais ordenada e sistematizada em convênios entre estados e municípios, portanto, com prazos limitados e sujeitos de alguma forma mais às intempéries políticas do que às leis federais e estaduais.

Agora que explode o ensino médio, o que fazer? Professores, prédios e equipamentos são em grande parte comuns ao ensino fundamental e médio e a governos estaduais e municipais, mas em que proporções? Como espaço e tempo são utilizados conjuntamente? Cabe executar uma ampla política de construção de estabelecimentos para emancipar o ensino médio? Existem indícios de capacidade ociosa utilizável ou esta se encontra esgotada? Os critérios de economicidade e de sucesso escolar, de continuidade entre níveis de ensino e dentro de cada um deles apontam para a estreita colaboração governamental, o que é fácil de dizer e difícil de executar.

A DANÇA DAS CADEIRAS: MATRÍCULAS POR DEPENDÊNCIA ADMINISTRATIVA

A dinâmica da matrícula do ensino médio por dependência administrativa reflete o movimento de descentralização impulsionado em especial pela Lei de Diretrizes e Bases. Essa, como é sabido, dispõe que incumbe aos estados "assegurar o ensino fundamental e oferecer com prioridade o ensino médio" (art. 10, V). O aumento acelerado da matrícula do ensino médio regular se revela melhor quando se compara a composição por dependência administrativa em anos recentes (Tabela 1). Em geral, a matrícula cresceu, em números absolutos, em todas as dependências administrativas, já que tem sido grande a procura. No entanto, fica clara a tendência de se cumprir, progressivamente, a divisão de atribuições fixada pela Constituição e pela Lei, com os estados assumindo cada vez mais esse nível de ensino. Com efeito, não só foi maior o crescimento porcentual entre os anos considerados, mas também, na distribuição dos alunos por dependência administrativa, a participação que coube às redes estaduais foi a única que aumentou. Apesar de as outras dependências administrativas também passarem a contar com maior número de discentes, todas elas tiveram a sua participação reduzida. Portanto, evidencia-se que os estados são os maiores responsáveis pelo acolhimento aos adolescentes e jovens que se integram em número cada vez maior ao ensino médio.

É possível compreender melhor a dinâmica das mudanças, comparando os Censos Educacionais de 1998 e 1994, correspondentes a um intervalo de apenas quatro anos, porém marcado pelo crescimento do ensino médio e pela implantação do FUNDEF. Nesse quadriênio fica visível a "dança das cadeiras":

• No ensino fundamental, apesar do incremento da matrícula nas séries finais, a participação da dependência estadual caiu de 56,5% para 48,2% e a dependência municipal subiu de 31,8% para 42,3%;

• No ensino médio, os estados aumentaram de 71,8% para 76,1% do total, os municípios recuaram de 5,3% para 4,6% e a rede particular, de 20,8% para 17,6% da matrícula total. Isto é, as competências constitucionais e legais antes citadas vão sendo assumidas pelas respectivas esferas de governo. Ao contrário de outros setores da ação governamental, deixados em aberto pela Constituição de 1988, a educação tem a divisão de competências não só estabelecida, como está-se encaminhando para o seu cumprimento.

Entretanto, a comparação entre os números absolutos dos dois censos nos reserva novos fatos:

• No ensino fundamental, o cotejo entre eles mostra que a matrícula da dependência estadual diminuiu 2,2%, ao passo que a da rede municipal teve incremento (ou explosão) de 52,8%;

• No ensino médio, a dependência estadual foi a responsável pelo boom, com o aumento de 45,6%.

• Apesar disso, porém, para atender a supostas necessidades, a dependência municipal aumentou 18,4% em números absolutos (mesmo encolhendo na participação sobre o total).

• Quanto ao ensino particular - e neste caso se tem a dimensão do grande acréscimo de matrículas no nível médio -, a matrícula elevou em 16,2%.

Assim, a descentralização vai ocorrendo na prática, sobretudo com a municipalização das séries iniciais do ensino fundamental. No ensino médio a expansão é tão rápida que todas as dependências administrativas têm crescido expressivamente em termos absolutos, conquanto a estadual seja a grande responsável pelo incremento do número de discentes.

UMA INFRA-ESTRUTURA COMPARTILHADA

Já frisamos que a maior parte da matrícula do ensino médio se concentra nas redes estaduais. A tabela 2 confirma essa característica, ratificando o caráter complementar das redes municipais e particulares. Mais do que isso, reunindo 59,5% dos estabelecimentos e 77,4% da matrícula, a dependência estadual apresenta a maior média de alunos por escola. A dependência particular, com o seu caráter optativo, tem estabelecimentos menores, seguida pela municipal. Em termos de economia de escala, portanto, pode-se supor que as escolas privadas de nível médio se encontram em situação menos vantajosa. Ao contrário, investimentos em favor da melhoria da infra-estrutura das redes estaduais poderão apresentar bons frutos, alcançando número maior de alunos e possivelmente reduzindo os custos unitários.

No entanto, é preciso observar dados similares de outro censo, pois as variações em torno das médias tendem a ser amplas. Sem estratificar por dependência administrativa, o tamanho dos estabelecimentos, em 1997, variava desde uma fração (não desprezível) de estabelecimentos com até 50 alunos a estabelecimentos de mais de mil alunos. No primeiro caso, a média de alunos era de 31,7, inferior ao tamanho médio de uma turma, que era de 38 discentes. No segundo caso, os estabelecimentos grandes, de mais de mil alunos, reuniam mais de do total da matrícula, atingindo a média de 1615,2 alunos por escola. Desse modo, a concentração de investimentos nessas escolas poderá apresentar retorno satisfatório. Todavia, haverá múltiplas situações locais, em que será preciso julgar a viabilidade técnica e econômica de estabelecimentos menores ante as necessidades demográficas, sociais e econômicas. Uma das variáveis a ser considerada será o compartilhamento ou não dos prédios com outros níveis de ensino.

A tabela 3 acrescenta um pouco mais de luz, ao registrar as tendências temporais do porte dos estabelecimentos. Apesar de os limites de classes dos dois censos diferirem, fica patente que os estabelecimentos de porte mais reduzido tenderam a receber número pouco menor de alunos, acontecendo o contrário com os estabelecimentos de maior porte. Desse modo, apesar de prováveis improvisações aqui e ali, a expansão da matrícula tende a fazer-se com base nos estabelecimentos maiores, reunindo vantagens da economia de escala.

AS "PARCERIAS" DO ENSINO MÉDIO

Segundo a tabela 4, só 14,6% dos estabelecimentos ofereciam apenas o ensino médio, surgindo vários arranjos. Um deles era a sobrevivência do antigo colégio, anterior à reforma de ensino de 1971, resultante da associação do ginásio e dos cursos colegiais. Essa escola de pré-adolescentes, adolescentes e, mesmo, jovens correspondia a 27,6% dos estabelecimentos. Aqui se faz um corte na quinta série, que acentua a descontinuidade entre a escola de professor por turma e a escola de professor por componente curricular, cuja manifestação mais palpável é a alta taxa de reprovação no chamado ritual sem passagem (cf. Silva, 1997). De acordo com o Censo de 1997, a taxa de reprovação na quinta série foi de 17,7%, contra 19,6% na primeira série.

Como possível fruto da integração entre os antigos cursos primário e ginasial e a implantação do ensino de 1º grau de oito séries anuais, determinadas pela Reforma de 1971, nada menos que 55,8% dos estabelecimentos ofertavam todas as séries do ensino fundamental e o ensino médio. Por fim, um arranjo incomum corresponde a escassa minoria: 2% dos estabelecimentos matriculavam alunos da primeira à quarta série do ensino fundamental e do nível médio.

Ainda explorando a tabela 4, a estratificação dos dados por dependência administrativa lança um pouco mais de luz sobre parcerias e rupturas no âmbito da educação básica, nova categoria criada pela LDB. Os estabelecimentos exclusivos de ensino médio alcançavam o maior número absoluto nas redes dos estados, porém essas tinham maioria de escolas de ensino fundamental e médio completos, seguidas dos antigos colégios. Já o perfil da dependência municipal é quase o mesmo da estadual, ensejando indagar se a primeira se espelhou na última, numa concorrência pouco produtiva de esforços. Evidência disso poderia ser o significativo porcentual de escolas que oferecem exclusivamente o ensino médio e que podem estar suprindo deficiências dos estados ou concorrendo com eles. Por sua vez, os estabelecimentos particulares tendem ou a especializar-se na oferta exclusiva do ensino médio ou, mais freqüentemente, a oferecer todo o ensino fundamental e médio. Com a tendência do declínio da matrícula privada, particularmente no ensino fundamental, poderá haver um impulso expansionista dos estabelecimentos exclusivos de ensino médio, possivelmente orientados para a continuidade dos estudos em nível superior, conforme expectativas de amplos setores da clientela.

No que tange aos estabelecimentos estaduais, uma questão suscitada pelos incentivos do FUNDEF à municipalização do ensino fundamental é o compartilhamento ou a separação de instalações e do magistério, visto que a LDB exige a licenciatura plena de todos, progressivamente. A tendência populacional a longo prazo é de que a matrícula das séries iniciais diminua e de que o número de discentes do ensino médio aumente. Segundo projeção elaborada pelo MEC/INEP/SEEC em 1998, a matrícula no ensino médio, em 2010, será 210,1% maior que a de 1994, enquanto a do ensino fundamental será apenas 0,7% maior e a da primeira à quarta série desse nível, 14% inferior à daquele ano (Gomes, s.d.). Essa nova distribuição etária da população é um dos resultados do declínio da taxa de natalidade, verificado há décadas. Assim, conforme diferentes situações, a política de infra-estrutura para o ensino médio poderá implicar utilização dos mesmos prédios; a separação dos alunos em várias faixas, podendo todo o ensino fundamental ou as séries iniciais permanecer com os municípios; a construção de novos prédios para o ensino médio etc. Mais uma vez, não cabe roupa de tamanho único em situações tão variadas.

Os dados censitários contribuem ainda para esclarecer essas questões, relativas aos equipamentos e ao magistério (outro tema, não focalizado ainda pelos censos, é o do pessoal não docente). A tabela 5 indica que não só grande parte dos prédios é compartilhada pelos dois níveis de ensino em foco, mas também os equipamentos. No caso de televisores, videocassetes, bibliotecas, aparelhos de som, quadras de esportes, antena parabólica e acesso à TV Escola, os estabelecimentos exclusivos do ensino médio apresentam desvantagem em face dos demais. Portanto, ser sócio do ensino fundamental tem sido proveitoso, conquanto essa situação constitua um limite ao crescimento independente do nível médio. A exceção corre por conta das escolas da primeira à quarta série do ensino fundamental, provavelmente improvisadas para a oferta do ensino médio. A TV Escola, com videocassetes e antenas parabólicas, foi um programa inicialmente voltado para o ensino fundamental, sendo por isso compreensível que tais escolas estejam mais bem dotadas dos respectivos equipamentos. No entanto, é preocupante a relativa desvantagem em itens como laboratórios de ciências e de informática e bibliotecas.

Também no que se refere ao professorado, os dados sugerem ampla parceria entre esses dois níveis de ensino. Os censos não permitem verificar quantos professores exercem funções ao mesmo tempo no ensino fundamental e médio e nos mesmos estabelecimentos, nem qual a carga horária compartilhada. Todavia, 71,8% das funções docentes do ensino fundamental achavam-se em estabelecimentos que só ofereciam esse nível (Tabela 6), e apenas 18,2% das funções docentes do ensino médio encontravam-se em escolas só de nível médio. Mais de ¾ das funções docentes desse nível concentravam-se em estabelecimentos com oferta da primeira à oitava e da quinta à oitava série do ensino fundamental. Na dependência estadual do ensino fundamental, era maior a concentração das funções docentes em estabelecimentos compartilhados, sobretudo das oito séries do ensino fundamental e ensino médio, certamente porque é significativa e crescente a participação municipal na matrícula das séries iniciais do ensino fundamental. Já no ensino médio a maior parcela de funções docentes se localizava em estabelecimentos da quinta série em diante, isto é, que devem empregar professores habilitados em licenciatura plena. O porcentual de funções docentes em escolas exclusivas de ensino médio da rede estadual é pouco inferior ao do total dos estabelecimentos.

A relativa continuidade curricular e a formação comum dos professores em licenciatura plena trazem supostos ganhos de escala, que têm implicações também sobre a capacitação inicial e continuada. Com efeito, 75,8% das funções docentes da quinta à oitava série eram ocupadas por professores com nível superior completo. No ensino médio essa participação não era muito superior, isto é, 89,3%. No entanto, a probabilidade de o ensino médio compartilhar docentes com o ensino fundamental é muito maior que o contrário, o que aponta para a menoridade do primeiro também no que se refere ao magistério.

A estreita convivência entre o ensino médio e o fundamental pode levantar também justificadas questões acerca da utilização não só do espaço, como também do tempo. É claro que os grandes números não chegam às particularidades sobre utilização e ociosidade de instalações. No entanto, a tabela 7 oferece os resultados de algumas tabulações especiais que constituem um ponto de partida. Ratificando outros dados, verifica-se que a dependência estadual era de longe a maior responsável pela oferta de ensino fundamental e médio. As matrículas dessa dependência administrativa se concentravam no turno matutino, chegando quase à cifra de 10,5 milhões ou 46,4% do total. Esse era o pico do atendimento entre todas as redes. O turno vespertino, por motivos culturais ou econômicos (necessidade de o aluno trabalhar e, portanto, alto custo de oportunidade), é de todos o menos ocupado, com 30,1% das matrículas, considerando o ensino fundamental e médio sendo que este representa apenas 8,5% das matrículas nesse turno. Tomando em conta a capacidade máxima atingida pelo turno matutino, haveria, teoricamente (e só teoricamente), uma sobra de vagas igual ao número não preenchido à tarde e à noite. Quanto ao ensino médio, em princípio poderia repetir-se, nos demais turnos, a matrícula igual ao turno da manhã, isto é, 2,4 milhões. Como o número de alunos à tarde é muito menor (cerca de 0,5 milhão), haveria aproximadamente 1,9 milhão de vagas em aberto nas várias dependências administrativas. É claro que parte apreciável das instalações é improvisada e pouco compatível com a nova orientação do ensino médio.

Por fim, o segundo turno que reúne maior número de discentes é o noturno, sobretudo o ensino médio (53,9% do total, o maior porcentual da tabela em análise), cujos alunos mais freqüentemente trabalham. Não fossem os fatores citados, de natureza cultural, pedagógica, econômica e outras, as necessidades de construção de escolas, em particular de nível médio, permitiriam uma grandiosa economia. Ainda assim, ante a expansão acelerada das matrículas cabe levar em conta essas possibilidades e fatos como os seguintes. A aplicação de uma metodologia para verificar a capacidade ociosa de seis escolas técnicas estaduais de São Paulo constatou uma diferença de 59,9% entre a capacidade instalada (19.011 vagas) e a matrícula total (7.615 alunos). Por sua vez, nas escolas técnicas federais o porcentual de postos não utilizados era de 58,4% (Parente Filho, 1998).

Pode-se supor que, num país tropical, o turno da tarde seja rejeitado por motivos climáticos. Embora a Amazônia tenha uma tradição secular de sesta, os seus estados situam-se entre os que têm maior porcentual de alunos à tarde, ao contrário da Região Sul. Portanto, a prudência será sempre aconselhável no exame de opções de expansão da rede escolar.

Quanto à conhecida questão sobre o motivo de os alunos do ensino médio se concentrarem à noite - que resulta efetivamente da necessidade de trabalhar ou se não há vagas suficientes durante o dia -, os dados só permitem dar meia resposta. Com efeito, o pico de atendimento é pela manhã, quando se somam o ensino fundamental e médio. Entretanto, o número de discentes matriculados à noite (3,5 milhões) é bem maior do que o do turno matutino (2,4 milhões). Assim, podem até faltar vagas pela manhã e o aluno ser compelido a estudar à noite, quando se reduz sensivelmente a procura pelo ensino fundamental regular e surge possível capacidade ociosa. Contudo, existe pelo menos espaço à disposição no período da tarde. É de se supor que as escolas particulares planejem a sua oferta de vagas com base na procura pelo turno matutino, resultando em capacidade ociosa à tarde e à noite. Por sua vez, se as redes públicas expandirem a sua oferta fundamentadas na matrícula à noite, provavelmente terão capacidade ociosa de dia. Desse modo, enquanto a demanda reprimida não for predominantemente satisfeita e a distorção série-idade no ensino médio não for reduzida ao mínimo, será muito difícil deixar de utilizar a capacidade ociosa do ensino fundamental.

Um fator agravante é a mencionada "bolha que caminha pelo ensino brasileiro", resultante da regularização do fluxo do ensino fundamental e tende a chegar ao ensino médio, só se dissipando em torno de 2003 (Castro, Cabrol, 1998). Ao mesmo tempo, a fecundidade continua a diminuir, com a tendência de decrescer o número de crianças que demandam o ensino fundamental. Esse último passará a ter capacidade ociosa nas primeiras séries, porém os prédios e equipamentos dificilmente são aproveitáveis - ou facilmente aproveitáveis - para uma escola de adolescentes e jovens. De qualquer forma, o futuro que se antevê é o de predominância cada vez maior do ensino médio regular, em termos de número de matrículas. Com isso, tenderá a reduzir-se a demanda pelo período noturno. Nesse caso, em princípio, com a cautela que situações complexas e diferenciadas exigem, a capacidade do turno da tarde poderia vir a ser mais bem aproveitada. É evidente que as avaliações de ociosidade devem levar em conta a nova escola média, prevista pelas Diretrizes Curriculares Nacionais. A Resolução n. 3/98 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (Brasil, 1998) estabeleceu ampla reorganização dos sistemas de ensino e das escolas, com base nos princípios pedagógicos de Identidade, Diversidade, Autonomia, Interdisciplinaridade e Contextualização, que alteram necessariamente as formas de convivência na escola, os mecanismos de formulação e implementação de políticas educacionais, os critérios de alocação de recursos e a reorganização das situações de aprendizagem e dos procedimentos de avaliação (cf. sobretudo art. 3º, caput). Coerentemente com a nova orientação, o Programa de Melhoria e Expansão do Ensino Médio (Brasil, s/d.), da Secretaria de Educação Média e Tecnológica do Ministério da Educação, prevê o financiamento de ações dos Programas Nacional e das Unidades Federadas, entre outras, para reordenamento da rede escolar e expansão do atendimento; constituição de redes alternativas; formação inicial e continuada dos profissionais da educação; fomento a inovações pedagógicas; concepção, produção, aquisição e avaliação de materiais e metodologias educativas e dotação das escolas de equipamentos, mobiliário e materiais pedagógicos compatíveis.

Portanto, a rápida expansão da matrícula, já aludida, e as novas diretrizes implicam mudanças de grande monta. A escola média é agora mais complexa, pressupondo, entre outros aspectos, laboratórios, biblioteca, sala para o corpo docente trabalhar em equipe e outras dependências. Dessa forma, o aproveitamento de prédios pressupõe adaptações, quando possíveis. Mas seria errôneo estimar a capacidade ociosa em termos do número de salas de aula, pois isso corresponderia ao modelo de escola média a ser superado, que se reduz, predominantemente, à verbalização do professor para as turmas, seguindo o chamado modelo frontal, com o mínimo de equipamentos.

Passando à dependência municipal, apesar do seu crescimento recente no atendimento ao ensino fundamental, o seu caráter é complementar em face do ensino médio, ressalvados possíveis indícios de paralelismo de esforços. O maior contingente de matrículas do nível médio se encontra à noite (73,7%), mas o seu número absoluto é reduzido. É possível que tal atendimento resulte, em grande parte, da utilização da capacidade ociosa do ensino fundamental.

Cabendo por lei a responsabilidade pelo ensino médio aos estados, cumpre, em cada caso, analisar o ensino municipal sob os vários ângulos para chegar à melhor alternativa. Poderá haver situações em que será mais aconselhável transferi-lo para o estado; outras em que será melhor mantê-lo; outra em que o estado, numa ótica descentralizadora, poderá delegar ao município a execução, resguardado o perfil de distribuição de recursos e de competências, além de outras situações. O importante, mais uma vez, é a existência de um regime de colaboração intergovernamental, o que, por isso mesmo, não se confunde com superposição de esforços.

Finalmente, a dependência particular é responsável pelo atendimento a uma proporção bem maior de alunos, no período matutino, do que a municipal e pouco mais de ¼ da dependência estadual. A seletividade socioeconômica estabelecida pelo pagamento torna o ensino particular predominantemente diurno, porém com não mais de 5,9% de matrículas do ensino médio à tarde. O turno rejeitado deixa, portanto, amplas instalações ociosas, possivelmente em razão de preferências da clientela. Tais preferências, bem como as formas de ocupação do tempo do corpo discente (trabalho, cursos paralelos, preparatórios, lazer etc.), mereceriam ser mais bem conhecidas. Também é interessante indagar se as pesadas cargas horárias de currículos enciclopédicos e preparatórios para exames parcelados ou não de ingresso na educação superior levam a ocupar parcialmente as instalações à tarde.

Cabe, ainda, assinalar que, apesar do esforço das redes escolares públicas, ainda há significativa demanda pelo ensino médio noturno, que reúne 26,4% da matrícula da dependência particular nesse nível (pouco mais de 300 mil alunos em todo o País). Para enriquecer a análise, pode-se recorrer a outros dados, sobre a dimensão temporal, não constantes da tabela 7. Entre 1994 e 1997, a matrícula do ensino noturno declinou em todas as dependências aqui analisadas: de 33,4% para 26,4% na particular, de 75,8% para 73,7% na municipal e de 66,8% para 60,7% na estadual. Já o Censo de 1998 continuou registrando queda da participação da matrícula no curso noturno para as redes municipal e particular (73,3% e 22,6%, respectivamente), porém a porcentagem das redes estaduais subiu para 61,9%. É possível que a tendência de correção do fluxo de efetivos discentes, aliada ou não a outros fatores, esteja contribuindo para reduzir essa distribuição assimétrica dos alunos por turno. Mas é possível também que a volta à escola das pessoas elegíveis se dê em ondas de tamanhos variáveis.

Por fim, convém comparar esses dados com o tamanho médio das turmas (Tabela 8). Desagregando as estatísticas por turno, pode-se constatar que o noturno reúne o maior porcentual de turmas e uma proporção ainda maior de alunos. Como efeito dessa forte procura, a média nacional de alunos por turma à noite é a mais alta (39,3), o que não é aconselhável para alunos trabalhadores, que dedicam ao estudo o fim da sua jornada. Refletindo também a demanda, o turno da tarde tem a média menos elevada, de 35,7 alunos por turma.

Na perspectiva longitudinal, a tabela 9 revela que os cursos noturnos não só continuam com elevada média de alunos por turma, como também tais médias em geral continuam crescendo, exceto no ensino particular, que se caracteriza por ser pago e, assim, selecionar o seu alunado. Essa elevação das médias, verificada desde 1989, possivelmente reflete um descompasso entre a expansão da procura e dos recursos. Desse modo, uma das estratégias de administrar a escassez pode ser o aumento do número de alunos por turma, cujo impacto sobre a aprendizagem, sob certas condições, pode ser negativo. Para isso, certamente contribui, como veremos, a escassez de professores habilitados.

CONCLUINDO

Os dados aqui apresentados tratam sobretudo do uso do espaço e do tempo. Depende de novas tabulações, sobretudo do Censo do Professor, para se conhecer como e em que medida os docentes são compartilhados pelas diversas redes. À primeira vista, fica clara a clivagem entre professores da primeira à quarta série do ensino fundamental e da quinta à oitava série e do ensino médio, em termos da formação e do desenvolvimento curricular. Temos, portanto, vários impasses a resolver:

• A convivência nos mesmos prédios entre o ensino fundamental e médio garantiu, de certa forma, a existência do último, além do melhor aproveitamento dos recursos disponíveis. No entanto, sucessivas gerações de adolescentes, jovens e adultos têm contado com uma infra-estrutura inadequada e improvisada, com possíveis reflexos sobre o rendimento escolar, sobre a saúde física (no que tange ao mobiliário desajustado, por exemplo) e sobre as próprias possibilidades de relacionamento entre os alunos, entre os professores e entre a escola e a comunidade. Portanto, buscar escolas de ensino médio com identidade e infra-estrutura próprias é recomendável onde a demanda é suficiente, porém, por muito tempo será preciso contar com as parcerias, apesar de inconveniências. É importante arquivar no passado as tendências nacionais, tão conhecidas, de reduzir reformas educacionais, em grande parte, a programas de construção escolar, que são tangíveis e costumam trazer resultados eleitorais, mas deixam ao largo a eficiência, a qualidade e a democratização.

• Se a municipalização do ensino fundamental caminhar no sentido de transferir dos estados para os municípios apenas as séries iniciais, os estados tornar-se-ão provedores de ensino médio e das séries finais do ensino fundamental, com vantagens de compartilhar professores licenciados (como hoje acontece), prédios e equipamentos mais complexos. Nesse caso, projeta-se, mais intensamente, sobre a estrutura atual (8+3 anos) a sombra dos antigos primário e primeiro ciclo do ensino médio (5+4), reforçando a "passagem sem rito". Que escola queremos? Uma escola de crianças separada da de adolescentes? Nesse caso, como se vencerá o evidente hiato entre as suas séries iniciais e finais?

• Se os estados se tornarem provedores por excelência do ensino médio e deixarem aos municípios todo o ensino fundamental, deverão contar com cerca de 10% da receita líquida de impostos (mínimo de 25% subtraindo-se os 15% subvinculados ao FUNDEF). No entanto, a participação da dependência administrativa estadual na matrícula do ensino de graduação atinge porcentuais expressivos, em alguns casos superando os 40% do total, como no Tocantins, Maranhão, Ceará e Paraná (Gomes, 1998). A questão é: como atender à expansão desse nível se diversos estados têm amplos compromissos com a educação superior?

Há, portanto, essas e outras questões importantes, além da fragilidade da colaboração intergovernamental, à qual, com freqüência, faltam regras claras. Leis não resolvem problemas automaticamente, mas podem tornar límpidas águas turvas, se bem negociadas e tecnicamente competentes. Não são raros os casos relatados pelo País, onde o governo cedente de um prédio reclama do cessionário por não conservá-lo. Ou o cessionário reclama do cedente por abandonar o mesmo prédio. Um governo cede seu pessoal, cujos direitos devem ser preservados, coloca-o à disposição de outro governo, mas tem grande dificuldade de ser ressarcido. Escolas estadual e municipal no mesmo prédio não poucas vezes se ignoram, quando não se hostilizam, e trancafiam o seu material. Esses são apenas alguns aspectos de um complexo labirinto. Não haverá lei que contemple e preveja todos os casos, contudo, a solução pactuada pode estabelecer um conjunto de normas claras, com base na Constituição e na lei, pelas quais os fluxos de recursos entre governos sejam dimensionados e compensados, quando necessário, conforme a divisão de competências. As roupas de tamanho único têm óbvios inconvenientes, mas convém reduzi-las a uma galeria de tamanhos, só recorrendo à confecção sob medida em casos específicos. Aí está um desafio que apenas começou: o de pormenorizar o regime de colaboração da Carta Magna, para que não seja letra morta.

O autor agradece o imprescindível apoio da UNESCO e do MEC/INEP/SEEC para a realização deste trabalho.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2006
  • Data do Fascículo
    Mar 2000
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