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O liberalismo de Anísio Teixeira

Anísio Teixeira's liberalism

Resumos

O objetivo deste artigo é discutir o significado do liberalismo para Anísio Teixeira, procurando mostrar que a sua teoria liberal não pode ser entendida sob um ponto de vista individualista, mas a partir do modo como combina indivíduo e sociedade, contrabalançando o respeito às diferenças individuais com as necessidades sociais que devem ser cumpridas. Nesse sentido, salientar-se-á a maneira criativa com que o educador equilibra liberdade e igualdade em educação, tornando possível entender esse liberalismo para além das fronteiras usuais de sua interpretação.

TEIXEIRA, ANÍSIO; DIFERENÇAS INDIVIDUAIS; EDUCAÇÃO


The purpose of this article is to discuss the meaning of Anísio Teixeira's liberalism. It entends to show how his liberal theory might not be understood under an individualistic point of view, but from the way he combines individual and society and yet how he counterbalances respect to personal differences with social necessities which must be kept. Therefore, it will be pointed out the criative form in which Anísio adjusts freedom and iquality in order to catch his liberalism further than the usual limits of its explanations.


TEMA EM DESTAQUE

O liberalismo de Anísio Teixeira

Anísio Teixeira's liberalism

Miriam Waidenfeld Chaves

Professora de Sociologia da Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir o significado do liberalismo para Anísio Teixeira, procurando mostrar que a sua teoria liberal não pode ser entendida sob um ponto de vista individualista, mas a partir do modo como combina indivíduo e sociedade, contrabalançando o respeito às diferenças individuais com as necessidades sociais que devem ser cumpridas. Nesse sentido, salientar-se-á a maneira criativa com que o educador equilibra liberdade e igualdade em educação, tornando possível entender esse liberalismo para além das fronteiras usuais de sua interpretação.

TEIXEIRA, ANÍSIO - DIFERENÇAS INDIVIDUAIS - EDUCAÇÃO

ABSTRACT

The purpose of this article is to discuss the meaning of Anísio Teixeira's liberalism. It entends to show how his liberal theory might not be understood under an individualistic point of view, but from the way he combines individual and society and yet how he counterbalances respect to personal differences with social necessities which must be kept. Therefore, it will be pointed out the criative form in which Anísio adjusts freedom and iquality in order to catch his liberalism further than the usual limits of its explanations.

Muitas são as leituras sobre Anísio Teixeira. Todas elas, no entanto, implícita ou explicitamente, indicam a tradição liberal como a fonte de inspiração de suas idéias acerca da escola.

Este artigo, parte integrante da minha pesquisa de doutorado, ao trilhar o mesmo caminho percorrido por uma nova geração de pesquisadores da educação dos anos 90, representada por autores como Lovisolo (1990), Nunes (1991), Mendonça (1993), Lôbo et al. (1994) e Rocha (1995), tem como objetivo discutir que liberalismo é esse que Anísio Teixeira professa com tanto vigor, procurando captá-lo de modo não maniqueísta, mas a partir de como o educador combina indivíduo e sociedade, contrabalançando o respeito às diferenças individuais com as necessidades sociais que devem ser atendidas. Isto é, interessa, aqui, como Anísio Teixeira concilia a expansão das aptidões individuais com as exigências da vida política e moral do grupo social. Ou, ainda, como ele equilibra liberdade e igualdade na educação.

Nesse sentido, primeiramente, discutir-se-á como Dewey (a maior influência exercida sobre Anísio Teixeira) percebeu a relação indivíduo/sociedade a partir de sua própria tensão. Em um segundo momento, será ressaltada a forma particular com que Anísio Teixeira, com base no filósofo americano, pensou essa mesma questão. Por último, será salientado o modo criativo com que, por meio de Bobbio (1996), é possível entender esse seu liberalismo.

DEWEY: A EDUCAÇÃO ENTRE O INDIVÍDUO E A SOCIEDADE

Se as necessidades sociais e os interesses individuais têm sido tratados pelos intelectuais, muitas vezes, como questões antagônicas, a democracia, princípio que atravessa toda essa discussão, tem mostrado historicamente que indivíduo e sociedade não podem ser tratatos como se fossem pólos opostos e excludentes. Nessa perspectiva, revisitar o pensamento de Dewey implica lançar luz sobre essa problemática, já que o filósofo acredita que nem as ações individuais isoladas devem ser vistas como o centro das explicações de qualquer fenômeno social, nem a sociedade pode ser mais definida como uma força supra-individual, tornando-se o princípio e o fim de todas as explicações sociológicas.

Reforçando essa premissa, Anderson (1989) expõe como alguns pensadores, entre eles Dewey, procuram encontrar uma alternativa para esse dilema, combinando, algumas vezes, liberalismo e socialismo, o que parece, em princípio, impossível de ser realizado. Revela como o filósofo tentou, nos E.U.A. da primeira metade do século XX, conciliar os interesses individuais com as exigências sociais, escapulindo das limitações teóricas, assim como Bobbio, na Itália dos dias de hoje, atua na vida política de seu país em favor da democracia e dos direitos dos indivíduos.

Preocupado em ressaltar a contribuição do pensamento liberal para a democracia, Macpherson (1978) demonstra que se esse princípio nasceu sob a égide da sociedade dividida em classes sociais, essa divisão social perpassa os próprios pressupostos dessa teoria. No entanto, isso não quer dizer que falar do liberalismo signifique manter-se dentro desse limite, mas, inclusive, ultrapassá-lo, indicando que a perspectiva liberal de mercado, que pressupõe a liberdade do mais forte sobre o mais fraco, pode ser substituída por uma outra mais ética e participativa.

Nessa perspectiva, de acordo com Macpherson, Dewey ambicionava justamente atingir esse ideal. Acreditava que um dos pontos fracos passível de ser superado pelo liberalismo era o "fato de que o público democrático era `ainda amplamente rudimentar e desorganizado' e incapaz de saber contra que forças da organização econômica e tecnológica ele tinha de se levantar"( p.76 ). Desse modo, as chances de realização da democracia estariam na possibilidade de a ciência irradiar o seu ethos para as instituições sociais, tornando os indivíduos, capacitados pelo conhecimento científico, aptos para participarem da vida social.

Esse modelo, segundo Macpherson, emerge em meados do século XIX, suplantando o modelo anterior de James Stuart Mill, uma vez que dois acontecimentos exigiram que esse mesmo sistema de idéias fosse repensado: a classe trabalhadora começava a parecer perigosa à propriedade e as condições de trabalho tornavam-se cada vez mais desumanas. Conseqüentemente, para esse autor, os liberais do final do século XIX e início do século XX podem ser considerados humanistas. Julgavam que a democracia precisaria criar condições para o indivíduo se autodesenvolver, aperfeiçoando, desse modo, a si próprio e a sociedade. Isso significa que o filósofo americano, influenciado por John Stuart Mill, defendia a idéia de que o indivíduo, além de apenas progredir expandindo as suas capacidades na sociedade, somente as ampliaria adequadamente caso houvesse um incentivo para que participasse ativamente das discussões sociais.

De acordo com Dewey (1956), a educação é que possibilitará o desenvolvimento das capacidades do indivíduo, tornando-o cidadão ativo e participativo. Acredita, ainda, que a educação, principalmente a escolar, garantirá o equilíbrio entre os vários elementos do ambiente social e as aptidões individuais, fazendo com que a relação indivíduo/sociedade seja constituída por uma proporcionalidade tal que impossibilitará tanto ações egoístas por parte dos indivíduos quanto posições totalitárias por intermédio da sociedade. A educação escolar, nessa perspectiva, trabalharia, então, tentando mediar a pluralidade social e as particularidades dos indivíduos, tendo em vista dar-lhes oportunidades de entrarem em contato com o ambiente social mais amplo. Também, procuraria auxiliá-los, por meio da cooperação, a desenvolver as aptidões naturais, estimulando-os, desde cedo, a vivenciar dentro do ambiente escolar as mais variadas experiências. Isso implica, mais uma vez, salientar o quanto, para Dewey, a educação cumpre uma função mediadora, principalmente se chamarmos a atenção para o fato de que apesar de privilegiar a ação educativa do meio pelo trabalho cooperativo, adverte para a inutilidade de se tentar impor a esses mesmos indivíduos tarefas contrárias às suas tendências naturais. Nesse caso, o controle da educação feito pela escola não conduziria a nenhuma coação física ou mental, mas, apenas, contribuiria para que os indivíduos desenvolvessem as suas capacidades, tomando como premissa o próprio desenvolvimento como um fim em si mesmo. Ou seja, as tendências naturais dos indivíduos só se iriam expandir amplamente caso a atividade exercida por eles estivesse em sintonia com as suas aptidões, tornando possível, assim, o surgimento do interesse e da curiosidade, elementos que colocarão esses mesmos indivíduos em uma postura ativa perante o meio.

Nesse caso, a teoria educacional de Dewey, além de indicar que indivíduo e sociedade são indissociáveis, também revela que as aptidões pessoais e as exigências sociais se entrelaçam na atividade educativa que, por meio do interesse interno do indivíduo e do estímulo externo do meio, torna-se a síntese do processo integrativo entre indivíduo e sociedade.

ANÍSIO TEIXEIRA : UMA TEORIA LIBERAL COM FORTE APELO SOCIAL

Se para Anísio Teixeira a educação também atravessa a relação indivíduo/sociedade ligando cada uma dessas partes constitutivamente, sua teoria liberal só pode ser mais bem compreendida a partir de uma teoria social, ficando impossibilitada toda e qualquer análise que o enquadre dentro de um paradigma individualista. Além disso, é importante chamar atenção para o fato de que Teixeira (1996, p.29) é um crítico do próprio liberalismo, uma vez que acredita que a liberdade conquistada pelo indivíduo no século XVIII não lhe assegurou a participação no jogo social. Para ele, a plena participação do indivíduo na sociedade contemporânea pressupõe a configuração de um outro tipo de liberdade, que só poderá ser adquirida por uma genuína concepção democrática tanto de escola quanto de sociedade.

Para Anísio Teixeira, o liberalismo do século XVIII nasce defendendo a tese segundo a qual a natureza individual do homem é suficiente para garantir a sua participação social, dependendo essa participação, exclusivamente, de sua força de vontade. Todavia, apesar de essa concepção ter sido condizente com os princípios liberais da emergente sociedade democrática, não foi capaz, segundo o educador, de transformar os hábitos e costumes do indivíduo que teria, obrigatoriamente, que se engajar na sociedade que nascia a partir de suas novas exigências. A liberdade do indivíduo acabou por deixá-lo desamparado e impotente, já que não o integrou de forma apropriada a essa outra fase do desenvolvimento da sociedade democrática.

Os novos processos de trabalho e a complexidade tanto cultural quanto científica exigem que a mera liberdade se transforme em liberdade da inteligência e da investigação científica no campo político e social, eliminando, desse modo, a contradição entre o máximo de integração mecânica e o mínimo de integração social que essa própria sociedade desenvolveu. O resgate dessa equivalência estaria na crença de que a inteligência não é algo inato, mas precisa ser desenvolvida e cultivada por meio de uma educação intencional e sistemática. A escola seria, então, segundo essa visão, a instituição responsável por esse processo educacional, transformando velhos hábitos de pensar do homem que, preparado intelectualmente, adaptar-se-ia de maneira definitiva às novas demandas da sociedade contemporânea.

Teixeira (1996, p.61) acredita que é a Revolução Industrial que, ao inaugurar uma nova era, impõe mudanças à teoria liberal, fazendo com que tenha que se fundamentar em uma sólida teoria sobre o Estado. Isso significa que se o liberalismo do século XVIII e XIX pressupunha a escolarização como uma necessidade social e não individual e, por isso mesmo, apenas para alguns poucos capacitados, dando forma a um sistema dual de ensino, o Estado liberal Pós-Revolução Industrial, ao se ver forçado a se modernizar, teria de transformar a educação em um direito social de cada um dos indivíduos, tornando essa premissa uma condição indispensável para assim fazê-los membros da sociedade. A unificação do sistema escolar, garantindo o direito de todos à educação, seria o passaporte para a constituição dessa sociedade verdadeiramente democrática, que distribuiria os indivíduos socialmente não com base em sua origem social, mas de acordo com o desenvolvimento de suas potencialidades.

A compreensão desse paradoxo, inerente à própria teoria liberal, faz com que Anísio Teixeira perceba que se num primeiro momento do liberalismo pensa-se em liberdade do indivíduo e a educação é uma necessidade social, num segundo momento, no entanto, o Estado precisa acompanhar as transformações sociais para consolidar o projeto liberal com uma face democrática, e a liberdade tem de ser social, porque ao ser convertida em dever do Estado, torna a educação um direito de cada indivíduo. Nesse sentido, um dos pontos nevrálgicos do liberalismo de Anísio Teixeira seria exatamente a necessidade da conversão da liberdade do indivíduo em direito de cada indivíduo participar de forma autônoma do jogo social, tendo como condição para essa participação o direito à educação.

Essa forma de captar o fenômeno social demonstra que Teixeira (1977, p. 214), além de não opor as classes sociais entre si, não opõe, também, indivíduo e sociedade, já que aquele só se realizaria por meio dessa, que é o próprio instrumento de sua liberdade. Essas idéias também apontam para a crença de que os conflitos são solucionáveis pela educação que, em última instância, é o elemento gerador da estabilidade social.

A LIBERDADE E A IGUALDADE EM ANÍSIO TEIXEIRA

De acordo com os princípios norteadores descritos, é possível, a partir de Bobbio (1996), perceber a maneira criativa com que Anísio Teixeira combina liberdade e igualdade, elaborando uma teoria bastante atual sobre o liberalismo.

Bobbio diferencia liberdade e igualdade afirmando que, apesar de a primeira ser um valor individual e a segunda um valor para o homem como um ser genérico, ambas se constituem mutuamente. Ou seja, definir qualquer um dos termos implica, necessariamente, a citação e a inclusão do outro.

Se a liberdade indica um estado em que o homem como pessoa deve ser considerado na sua singularidade, a igualdade pressupõe uma relação do homem na qualidade de um ser social que tem uma obrigação para com os demais indivíduos da sociedade. Nessa perspectiva, liberdade/igualdade são metas a serem atingidas por qualquer sociedade democrática.

Quando se fala em igualdade tem-se de perguntar entre quem e em quê, e a idéia de justiça imediatamente emerge dessa discussão. Sua origem encontra-se na esfera do social e para ela existir é necessário que "já tenham sido escolhidos os critérios para estabelecer quando duas coisas devem ser consideradas equivalentes e quando duas pessoas devem ser consideradas equivalentes" ( op. cit., p.20 ). Entretanto, a solução desse problema também exige o questionamento da clássica afirmação: "todos os homens são iguais".

Segundo Bobbio, se o liberalismo nega essa noção extensa de igualdade, admite, por outro lado, a igualdade de todos em algo.

Um algo constituído, habitualmente, pelos chamados direitos fundamentais, ou naturais, ou, como se diz, humanos. Esses direitos não são mais do que as várias formas de liberdade pessoal, civil e política, enumeradas progressivamente pelas várias constituições dos Estados nacionais desde o final do século XVIII até hoje, e reconfirmadas, depois da Segunda Guerra Mundial, em documentos internacionais, tais como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e a Convenção Européia dos Direitos do Homem (1950). O ideal do Estado liberal, tal como foi paradigmaticamente expresso por Kant, é o ideal de um Estado no qual todos os cidadãos gozam de uma igual liberdade, isto é, são igualmente livres,ou iguais nos direitos de liberdade. (1996, p. 41)

Essa definição liberal de igualdade, para Bobbio, revela em seu bojo a necessidade da existência de oportunidades iguais para todos, a fim de que assim todos os membros da sociedade estejam na condição de participar da competição pela vida ou pela conquista do que é vitalmente mais significativo, a partir de posições iguais.

Para Anísio Teixeira, a igualdade de oportunidades concretizar-se-ia por meio da existência de uma escola igual para todos que, ao se remodelar, estaria baseada na experiência do educando e nas atividades propostas, desenvolvendo, desde cedo, a sua participação para integrar-se ativamente no ambiente social. O educador baiano, entretanto, tem consciência de que a realização dessas oportunidades iguais implica a elaboração de determinadas leis pelo Estado, a fim de que essa igualdade seja assim garantida constitucionalmente.

Percebe-se, com base nessa premissa, que o Anísio Teixeira liberal, ao reconhecer tanto a importância do dever do Estado em assegurar a igualdade de oportunidades quanto o papel do ambiente na formação do indivíduo, elabora uma consistente teoria social, que o afasta dos exageros individualistas de alguns liberais, possibilitando a combinação de igualdade e liberdade. Esse ajuste ainda pode ser notado à medida que se continua o paralelo entre as suas idéias e as premissas de Bobbio.

Segundo o teórico italiano, se os liberais não desenvolvem uma concepção tão igualitária da igualdade é porque querem preservar a liberdade individual, considerada um valor em si, pois para o liberalismo o que vale é a garantia da autodeterminação dos indivíduos na sociedade.

O próprio Bobbio, entretanto, mostra como esse valor é complexo e como ele pode ir além da liberdade individual e se transformar em liberdade do cidadão, combinando, definitivamente, igualdade e liberdade. Nessa perspectiva, deve-se considerar duas formas de liberdade: a liberdade negativa expressa "na situação na qual um sujeito tem a possibilidade de agir sem ser impedido, ou de não agir sem ser obrigado" (op. cit., p. 48); e a liberdade positiva contida "na situação na qual um sujeito tem a possibilidade de orientar seu próprio querer no sentido de uma finalidade, de tomar decisões, sem ser determinado pelo querer dos outros" (op. cit., p. 51). Enquanto a primeira demonstra ser uma liberdade como ausência de impedimento para se fazer algo ou de constrangimento para não se fazer alguma coisa, a segunda exprime a autonomia que os indivíduos devem ter perante a sociedade.

A liberdade negativa ou a liberdade do burguês indica a ausência de algo - uma lei, por exemplo - e a liberdade positiva ou a liberdade do cidadão revela a presença de algo- um querer ou uma vontade, por exemplo. O sujeito histórico daquela é o indivíduo singular e o dessa última é habitualmente definido como sendo o ente coletivo.

Se a primeira interpretação de liberdade evoca a idéia de que é preciso dar livre curso à natureza, não a obstaculizando com medidas artificiais ou coercitivas, a segunda versão pressupõe uma vontade que deve ser posta em condições de se autodeterminar tendo como referência a sociedade. Por isso, a liberdade negativa qualificaria uma ação, ou melhor, a concretização da liberdade civil, e a liberdade positiva qualificaria a vontade de um grupo ou nação.

De acordo com Bobbio (1996, p.57-8), duas questões importantes, ainda, devem ser salientadas. A primeira delas é que enquanto a liberdade do burguês emprega a fórmula liberdade em face do Estado, chamando a atenção para a liberdade do indivíduo em relação ao Estado; a liberdade do cidadão utiliza a fórmula liberdade do Estado, em que o sujeito da liberdade é o ente coletivo do Estado. A segunda questão é que se a liberdade como ação individual é a liberdade dos tempos modernos (a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos), a liberdade como autodeterminação é a liberdade dos tempos antigos (a pólis grega).

Diante desse quadro, duas considerações podem ser feitas a fim de que se tenha uma compreensão do modo interativo como Anísio Teixeira trata a relação indivíduo/sociedade e liberdade/igualdade. Primeiramente, se se tomar a autonomia tanto administrativa quanto política proposta pelo educador ao longo de toda a sua obra, percebe-se que ele se apropria da fórmula da liberdade do burguês em seu discurso, uma vez que essa autonomia implica uma forma associativa de vida, na qual os indivíduos devem se encontrar livres para agir segundo a sua natureza, mas, por outro lado, se se ressaltar a sua veemente defesa da igualdade de oportunidades, conclui-se que ele, também, se apropria da liberdade do cidadão em seu discurso, procurando garantir o cumprimento da vontade da população em escolarizar-se. Posteriormente, se se prestar atenção, Anísio (1958, p.13-4), além de enfatizar a qualidade da liberdade conquistada pelo indivíduo no século XVIII, mostra que se o século XIX, com a Revolução Industrial, traz consigo a necessidade de transformar essa mesma liberdade em liberdade social do indivíduo, o século XX, entretanto, em muitas ocasiões, ao sucumbir em ideologias totalitárias, acaba por não realizar essa tarefa, fazendo-se necessário, ainda nos dias de hoje, implantar essa liberdade proclamada desde cedo pelos gregos, ou seja, a liberdade como expressão da vontade coletiva. Desse modo, Anísio Teixeira tenta entrelaçar a liberdade do gozo privado com a liberdade de participação na esfera política, mesclando o bem para o indivíduo com o bem para os membros da sociedade como um todo.

Para Anísio Teixeira, é chegada a hora do fim dos dualismos. Isso significa pensar indivíduo/sociedade, indivíduo/educação e indivíduo/natureza sob o ponto de vista constitutivo, o que supõe, entre outras coisas, que a natureza seja organizada pelo "mundo físico determinístico e sem plano próprio e o mundo vivo e humano igualmente determinístico, mas intencional e planejado" (1958, p.11). Conclui-se, dessa maneira, que a sociedade só pode ser considerada como tal, caso seja percebida como uma obra realizada pela vontade conjunta dos indivíduos.

Essa postura intelectual do educador indica que ele acredita que a liberdade do indivíduo e a da coletividade só serão realizadas quando os indivíduos forem capazes de especular livremente, sem imposições sobre as coisas do mundo, podendo, desse modo, ocorrer o progresso da humanidade.

Anísio Teixeira tem fé que as ideologias - um sistema de crenças irracionais - possam ser suplantadas pelas utopias - um conjunto de crenças racionais - que, com seu gosto pela capacidade criadora em imaginar ou antever novas perspectivas, vislumbrariam o futuro com os pés fincados na tradição clássica grega. Nesse sentido, se para ele "a transformação do sonho humano no pesadelo dos dias de hoje é um episódio grotesco e passageiro, resultante do fato de haver a ciência marchado com tão inesperada rapidez que suas armas caíram em mãos ainda inexpertas para seu uso" (Teixeira, 1958, p.16),sua confiança tática na natureza humana, conforme análise de Lovisolo (1990), e sua fé na ciência, entretanto, fazem com que acredite num futuro harmonioso para a humanidade.

As próprias palavras de Anísio Teixeira confirmam essa sua crença no futuro:

Restauremos o pensamento utópico, livre e razoável, fundado no conhecimento e nas potencialidades analisadas desse conhecimento - não se confunda, com efeito, utopia com escapismo- confiemos no homem e no poder de esclarecimento do saber de natureza científica, ampliemos a área desse saber ao campo da economia da política e da moral, criemos os métodos próprios desse novo saber e marchemos para a frente, sem medo nem cegueira, guiados pelo sonho humano de uma vida cada vez mais ampla, mais rica e mais harmoniosa até onde o pensamento nos puder levar, nas vastidões hoje antevistas dos astros e estrelas. (1958, p.116)

Estudo e pesquisa para a tese de doutorado a ser defendida em agosto de 2000 na PUC/RJ.

  • ANDERSON, P. As Afinidades de Norberto Bobbio. Novos Estudos CEBRAPSão Paulo, n.24, p. 14-41, jul. 1989.
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  • LÔBO, Y. L. et al. A Formação de um novo tipo de professor no modelo nacional-desenvolvimentista (1950-1962) Rio de Janeiro: UFRJ, 1994. (Relatório final de pesquisa p/CNPq)
  • LOVISOLO, H. A Tradição desafortunada: Anísio Teixeira, velhos textos e idéias atuais. In: ALMEIDA, S. B. et al. Chaves para ler Anísio Teixeira Bahia: Empresa Gráfica da Bahia, 1990. p. 14-49.
  • MACPHERSON, H. B. A Democracia liberal: origens e evolução. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
  • MENDONÇA, A. W. P. C. Universidade e formação de professores: uma perspectivaintegradora; a "universidade de Educação" de Anísio Teixeira. Rio de Janeiro, 1993. Tese (dout.) PUC.
  • NUNES, C. Anísio Teixeira: a poesia da ação. Rio de Janeiro, 1991. Tese (dout.) PUC.
  • ROCHA, M. B. Paradigmas do moderno em educação. Cadernos de Pesquisa São Paulo, n. 94, p. 37-42, ago. 1995.
  • TEIXEIRA, A. Educação e o mundo moderno São Paulo: Nacional, 1977. Democracia e educação.
  • ______. Educação é um direito. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.
  • ______. Variações sobre o tema da liberdade humana. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos,v. 29, n.69, p. 3-18, jan./mar. 1958.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jul 2006
  • Data do Fascículo
    Jul 2000
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