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Conflitos sociais e interações comunicativas nas reformas sociais da América Latina

Social conflict and communicative interactions in Latin American social reforms

Resumos

O artigo analisa as dificuldades e os conflitos políticos que afetam o delineamento e os processos de implementação das reformas sociais na América Latina, focalizando em especial as áreas de educação e da saúde. Descreve problemas de execução e conseqüências institucionais das mudanças propostas, modos de gestão, formas de interação e tensões entre os diferentes grupos de interesse envolvidos. A análise baseia-se em resultados de estudos de caso realizados entre 1998 e 1999, no âmbito do Programa Reformas Sociais em Educação e Saúde na América Latina, patrocinado pelo BID e pelo CIID, do Canadá e coordenado pelo Cide e pelo llades, do Chile.

POLÍTICAS PÚBLICAS; LUTA SOCIAL; REFORMA SOCIAL; AMÉRICA LATINA


The article analyzes the difficulties and political conflicts that affect the processes of defining and implementing social reforms in Latin America, focussing especially on education and health. It describes problems in execution and the institutional consequences of the proposed changes, management styles, forms of interactions and tensions among the different interest groups involved. The analysis is based on the results of case studies from1998 and 1999 in the Program for Social Reforms in Education and Health in Latin America sponsored by the IDB, the ICRD of Canada and coordinated by the CIDE and llades of Chile.


Conflitos sociais e interações comunicativas nas reformas sociais da América Latina

Social conflict and communicative interactions in Latin American social reforms

Sergio Martinic

Diretor e pesquisador do Centro de Investigación y Desarollo de la Educación Professor do Departamento de Antropologia da Universidade do Chile; smartini@cide.cl

Tradução: Cilaine Alves Cunha

RESUMO

O artigo analisa as dificuldades e os conflitos políticos que afetam o delineamento e os processos de implementação das reformas sociais na América Latina, focalizando em especial as áreas de educação e da saúde. Descreve problemas de execução e conseqüências institucionais das mudanças propostas, modos de gestão, formas de interação e tensões entre os diferentes grupos de interesse envolvidos. A análise baseia-se em resultados de estudos de caso realizados entre 1998 e 1999, no âmbito do Programa Reformas Sociais em Educação e Saúde na América Latina, patrocinado pelo BID e pelo CIID, do Canadá e coordenado pelo Cide e pelo llades, do Chile.

POLÍTICAS PÚBLICAS – LUTA SOCIAL – REFORMA SOCIAL – AMÉRICA LATINA

ABSTRACT

The article analyzes the difficulties and political conflicts that affect the processes of defining and implementing social reforms in Latin America, focussing especially on education and health. It describes problems in execution and the institutional consequences of the proposed changes, management styles, forms of interactions and tensions among the different interest groups involved. The analysis is based on the results of case studies from1998 and 1999 in the Program for Social Reforms in Education and Health in Latin America sponsored by the IDB, the ICRD of Canada and coordinated by the CIDE and llades of Chile.

Na América Latina, se desenvolvem importantes reformas seja na educação, seja na saúde, com o objetivo de melhorar a eficiência, a qualidade e a eqüidade nos sistemas de fornecimento de serviços. Em quase todos os países da região, delinearam-se políticas que, entre outros resultados, estão produzindo mudanças no financiamento e nos sistemas de gestão, objetivando, com isso, melhorar sua eficácia. Entre esses resultados, cabe destacar o esforço para focalizar o gasto social, a descentralização da gestão pública, a recuperação dos custos, o envolvimento do setor privado tanto no financiamento como na provisão de serviços, além da criação de espaços de participação social e controle cidadão.

Com base em Oscar Oslak, podemos distinguir duas "gerações" nesse movimento reformista. A primeira delas voltou-se para a reorganização da gestão, do financiamento e do acesso aos sistemas. A segunda abordou os problemas que afetam a qualidade dos processos e os resultados. Em se tratando da educação, encontramo-nos hoje no início de uma "terceira geração" de reformas, que redefine as relações entre o Estado e a sociedade e entre as responsabilidades públicas e o direito à educação.

As reformas dos anos 80 concentraram-se na descentralização dos sistemas públicos, transferindo recursos e responsabilidades para as regiões e províncias. Trata-se de uma reforma dirigida "para fora", por meio da qual o Estado e o governo central transferem para o setor privado o que pode ser privatizado e, para as regiões, províncias e municípios, a gestão e a administração de grande parte dos serviços educacionais, tradicionalmente centralizados. Em quase todos os países, esse processo se fez acompanhar de uma redução do aparato público e de uma adequação orçamentária, favorecendo principalmente o acesso e a cobertura da educação básica ou primária.

Nos anos 90, constata-se nova ênfase nas políticas educacionais, dando origem às reformas da "segunda geração", as quais se voltam "para dentro". Por exemplo, no caso da educação, para os modos de gestão e avaliação do sistema, para os processos pedagógicos e conteúdos culturais transmitidos na escola, vale dizer, para a "caixa-preta" da educação. Essas reformas têm como preocupação central a escola e a qualidade dos aprendizados. Promovem-se políticas que concedem maior autonomia aos diretores e professores, mudanças curriculares e nas práticas pedagógicas, delineiam-se sistemas de incentivos aos professores de acordo com o desempenho e, especialmente nas escolas mais pobres da região, realizam-se maiores investimentos na infra-estrutura, em textos e em outros insumos. Esse novo ciclo de reformas está centrado na qualidade da educação e promove mudanças no projeto e na gestão educacional dos estabelecimentos, na pedagogia, nos currículos e nos sistemas de avaliação.

O PROBLEMA

Trata-se de mudanças importantes para melhorar a cobertura e os insumos do processo. Não obstante, em que pese a importância das mudanças empreendidas e dos recursos investidos, os resultados, no que diz respeito à "qualidade", estão longe do desejado. Na educação, por exemplo, as pesquisas são consistentes em demonstrar que persistem os altos níveis de desigualdade, tanto no acesso como na qualidade da aprendizagem de crianças e jovens dos setores mais pobres.

Em contrapartida, a atenção tem-se voltado também para os processos de gestão e de execução das políticas de reforma. Com efeito, na maioria dos países, a execução dessas reformas deparou-se com grandes dificuldades sociais, políticas e culturais. As associações de professores, médicos e funcionários da saúde, por exemplo, costumam opor-se à orientação das mudanças propostas; as culturas institucionais, por sua vez, demonstram-se pouco permeáveis a uma organização flexível e centrada nos resultados. Além disso, os consensos políticos construídos em torno das reformas ainda não garantem agilidade legislativa, debate público e tampouco um maior controle social de seus resultados.

Diante dessa realidade, continua aberto um importante debate a respeito dos modelos teóricos e das opções estratégicas que devem sustentar as reformas sociais. Há todo um campo para a inovação, discussão e reformulação das políticas e reformas sociais promovidas por nossos Estados em transformação.

A formulação de políticas de reformas sociais e sua implementação constituem amplo processo social e comunicativo. Com efeito, as reformas educacionais têm por objetivo produzir mudanças culturais que afetam os conteúdos, as práticas e as interações dos atores que se relacionam com o sistema educacional. Esse processo de mudanças realiza-se por meio de um complexo sistema de relações em que os atores intervêm com seus próprios marcos de referência1 1 . O conceito de "referencial" ( référentiel) foi tomado de B. Jobert, que o define como o marco interpretativo ou cognitivo dos atores; por meio dele é possível pensar as políticas públicas como uma produção intelectual de imagens comuns da sociedade. Cf. Jobert et al., 1987. 2 . Para uma apresentação dos resultados deste programa, ver Martinic et al., 1999. 3 . O conceito de "populismo" remete, nesse caso, ao pacto histórico que une os setores médios, ligados ao Estado, ao sindicalismo da indústria do mercado interno e a uma parcela importante do empresariado que se sustenta sobre a base de um mercado interno, altamente protegido por taxas e tarifas. Nesse pacto, o ponto de união era o Estado cativo desses atores, o que gerava uma relação clientelista e transacional. , a partir dos quais pensam e definem seus interesses e as estratégias coletivas de ação. Nessas interações, produzem-se consensos, dissensos, espaços de incerteza, estabelecendo-se compromissos e modalidades de cooperação.

Nesse contexto, a investigação e a análise das experiências das reformas em curso adquirem importância. O estudo dos processos de execução e a avaliação de seus resultados são fontes relevantes de aprendizagem, contribuindo para novos delineamentos das políticas sociais do futuro. No âmbito dessa discussão, o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID – e o Centro Internacional de Pesquisas para o Desenvolvimento do Canadá – CIID – patrocinaram, entre os anos de 1996 e 1998, uma série de estudos sobre políticas sociais e reformas na educação, saúde, seguridade social e sistemas de avaliação e monitoramento na América Latina. Essa tarefa envolveu cinco universidades e seis centros privados e públicos de pesquisa da Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, El Salvador e Peru. O programa foi coordenado pelo Centro de Investigación y Desarollo de la Educación– Cide – e pelo Instituto Latinoamericano de Desenvolvimento Econômico e Social – llades – de Santiago do Chile.

Os estudos documentam interessantes propostas de mudanças no interior de um movimento mais amplo de reformas setoriais e de transformação do Estado2 1 . O conceito de "referencial" ( référentiel) foi tomado de B. Jobert, que o define como o marco interpretativo ou cognitivo dos atores; por meio dele é possível pensar as políticas públicas como uma produção intelectual de imagens comuns da sociedade. Cf. Jobert et al., 1987. 2 . Para uma apresentação dos resultados deste programa, ver Martinic et al., 1999. 3 . O conceito de "populismo" remete, nesse caso, ao pacto histórico que une os setores médios, ligados ao Estado, ao sindicalismo da indústria do mercado interno e a uma parcela importante do empresariado que se sustenta sobre a base de um mercado interno, altamente protegido por taxas e tarifas. Nesse pacto, o ponto de união era o Estado cativo desses atores, o que gerava uma relação clientelista e transacional. . Deter-nos-emos, aqui, apenas em alguns dos temas da discussão. Interessa-nos, em particular, destacar os aspectos relacionados com a mudança institucional das políticas, os modos de gestão das reformas e as interações dos diferentes grupos de interesse, tanto na formulação como na execução das mudanças propostas.

IMPORTÂNCIA DOS GRUPOS DE INTERESSE NO ÊXITO DAS REFORMAS

Na América Latina, as reformas apresentam discurso semelhante. No entanto, as definições e execuções diferem de acordo com os contextos sociais e as tradições históricas e, particularmente, tendo em vista conflitos, negociações e acordos que se constroem entre os distintos grupos sociais que interferem no processo. O conhecimento desses processos é importante, já que os seus resultados podem legitimar ou mudar o sentido das reformas empreendidas e o ritmo da sua execução.

Os estudos sobre as reformas enfatizam os discursos e as representações dos diferentes atores. Dessa perspectiva, são avaliados o delineamento, os processos de execução e os resultados das políticas postas em prática. Contudo, dedicou-se pouca atenção às interações e às negociações que ocorrem entre os atores, em diferentes espaços e campos sociais. Estes são terrenos de disputas e incertezas em que os atores defendem seus argumentos, suas opiniões, constroem versões compartilhadas ou integram a seus próprios referenciais as reformas propostas. O conhecimento desses processos de mediação é importante, já que seus resultados podem legitimar ou mudar o sentido das reformas empreendidas e o ritmo em que são postas em prática.

Não consideramos as mediações como mero filtro dos processos de mudança, mas como um espaço e uma oportunidade para a construção de discursos, de compromissos e de orientação de ações que tornam as mudanças viáveis e sustentáveis. Desse modo, faz-se necessário contar com espaços e oportunidades para que essas mudanças sejam produzidas. Os obstáculos e as próprias incertezas favorecem a construção conjunta de discursos e imagens comuns sobre a sociedade, necessárias para a realização das reformas.

Os estudos demonstram que as reformas econômicas e sociais produzem uma mudança drástica nos mecanismos de regulação e de construção de acordos sociais. Contudo, em que pese a força dessas políticas na América Latina, elas não conseguiram produzir mudanças cognitivas na lógica de ação de muitos atores estratégicos, que continuam agindo de acordo com códigos culturais da clássica sociedade populista em que se misturam partidos frágeis, clientelismo, corporativismo e líderes personalistas3 1 . O conceito de "referencial" ( référentiel) foi tomado de B. Jobert, que o define como o marco interpretativo ou cognitivo dos atores; por meio dele é possível pensar as políticas públicas como uma produção intelectual de imagens comuns da sociedade. Cf. Jobert et al., 1987. 2 . Para uma apresentação dos resultados deste programa, ver Martinic et al., 1999. 3 . O conceito de "populismo" remete, nesse caso, ao pacto histórico que une os setores médios, ligados ao Estado, ao sindicalismo da indústria do mercado interno e a uma parcela importante do empresariado que se sustenta sobre a base de um mercado interno, altamente protegido por taxas e tarifas. Nesse pacto, o ponto de união era o Estado cativo desses atores, o que gerava uma relação clientelista e transacional. .

TIPOS DE REFORMA E CONCEPÇÃO DE MUDANÇAS

Em geral, as reformas têm-se baseado em um modelo linear de mudanças. Os grandes acordos sociais traduzem-se em políticas públicas, na medida em que são assumidos pelas organizações governamentais. Dessa instância eles "baixam" até à sociedade, esperando-se que as instituições encarregadas de sua execução atuem de forma eficiente, para alcançar suas metas. Espera-se também que os usuários das reformas valorizem seus benefícios e se orientem em relação a elas com um máximo de racionalidade. Do ponto de vista da formulação e avaliação, esse modelo linear vê-se reforçado por outros modelos preocupados em estabelecer uma relação causal e unidirecional entre insumos, processos e resultados.

Na maioria dos casos estudados, as reformas nascem de leis nacionais e são promovidas "de cima", pelo Estado. É o sistema que inicia a transformação de si mesmo, o que ocorre, em geral, graças a "minorias ativas e consistentes", situadas nos aparelhos centrais do governo. No caso da política educacional no Brasil, por exemplo, é o governo federal que promove as mudanças. Nesse caso, os atores estratégicos da mudança são as autoridades políticas da educação, localizadas na mais alta hierarquia do sistema (Draibe, 1999). O grupo promotor da reforma, por sua vez, atua em um campo difuso, fragmentado pelos interesses dos diversos atores, utilizando-se de diferentes estratégias de negociação para angariar apoios e vencer resistências.

Em vários países, as reformas são realizadas ao mesmo tempo em que são realizadas políticas de ajuste econômico. Por essa razão, alguns atores associam essas reformas com privatizações, redução do orçamento, busca de maior eficiência e diminuição dos gastos. Em outros casos, as reformas educacionais incluem-se em um quadro de "pacotes" de leis mais abrangentes, em que se objetiva negociar amplos acordos no Poder Legislativo. O problema gerado por essa alternativa é que são relegadas a um segundo plano medidas importantes tanto para a educação como para a saúde.

Os estudos demonstram as dificuldades desse modelo ou tipo de racionalidade das reformas. Destacam seu caráter sistêmico e não linear, a variedade de causas dos problemas identificados, as mudanças necessárias nas percepções e nas atitudes da população, bem como enfatizam as diversas e complexas interações entre a burocracia, a intervenção política e as instâncias organizadas ou não organizadas da sociedade.

Para caracterizar as reformas, costuma-se classificá-las em categorias, tais como "de cima para baixo" e "de baixo para cima", ou reformas do tipo big-bang e "incremental". Não obstante, essas distinções não dão conta da complexidade dos processos de planejamento e execução das reformas. Com efeito, essas categorias são insuficientes para explicar processos sistêmicos, nos quais as interações e transações entre os atores adquirem grande relevância.

A reforma educacional da Província de Buenos Aires é um bom exemplo do processo que parte "de cima para baixo". Inicia com uma lei federal, assumida posteriormente pela província para organizar o seu processo de reforma. Um caso parecido é o da Colômbia. A Constituição de 1991 propôs o imperativo da modernização da educação, determinando que o governo apresentasse uma proposta ou lei de reforma educacional.

No caso de El Salvador, ao contrário, trata-se de uma reforma educacional que partiu de "baixo para cima". O programa Educo nasceu da experiência de povoados camponeses, localizados em zonas de guerra. Nessas comunidades, o sistema educacional assentava-se em um modelo autônomo que, sem a ingerência estatal, contratava os professores para que ensinassem a seus filhos. Esse modelo foi recuperado pelas políticas educacionais, estendendo-se depois para toda a zona rural e, finalmente, para as urbanas.

Os estudos demonstram que essas diferenças não são absolutas. A experiência de Buenos Aires ("de cima para baixo") baseia-se em discussões e consensos obtidos no Congresso Pedagógico ("de baixo para cima"). Esses acordos são recontextualizados pela lei federal. No caso da Colômbia, as possibilidades abertas pela lei geram um amplo movimento de discussão nacional sobre as realizações do governo. Do mesmo modo, em El Salvador, a experiência "de baixo para cima" foi implementada e disseminada graças à ação decisiva do Ministério Central que, por sua vez, contou com um ministro estável e de grande prestígio no país. Desse modo, os dois tipos de reforma são antes momentos do ciclo de formulação e execução de políticas do que um estado particular e estático dessas políticas.

Outra forma de classificação é a que distingue a reforma do tipo big-bang das "incrementais". A primeira delas é global e imediata, e a segunda, parcial e progressiva. A primeira aborda o sistema em sua totalidade e produz uma mudança significativa na organização e operação do sistema, como foi o caso de muitas reformas dos anos de 1960.

As reformas "incrementais", por sua vez, promovem descentralização das unidades dos sistemas para que ponham gradualmente em prática as diferentes inovações, de acordo com os próprios ritmos e realidades culturais. Promovem-se programas particulares, diversos e focalizados, em distintos níveis do sistema, por exemplo, no currículo, na formação de professores e nos projetos de renovação escolar. Não obstante, esse tipo de reforma deve, posteriormente, dar lugar a ações mais globais, estendendo as medidas ou ações empreendidas em algum dos níveis a todo o sistema.

No caso do Chile, as políticas educacionais realizadas no segundo governo da coalizão democrática estenderam-se a todo o sistema, em seus diferente níveis, constituindo-se, assim, uma reforma do tipo global (García Huidobro, 1999). No Peru, a reforma educacional iniciou-se com um processo centrado no melhoramento da gestão, em 1990, prosseguiu com a construção de estabelecimentos escolares, em 1995, e, finalmente, em 1997, com uma política integral de melhoramento da qualidade da educação primária (Vega, Andrade, Maguiña, 1998). No caso da reforma global no setor da saúde no Brasil, inicia-se, a partir de 1995, uma reforma incremental, marcada por pequenos ajustes na organização administrativa e nos serviços e no modelo assistencial. Essas mudanças foram realizadas por novos programas, tais como o Programa de Saúde Familiar – PSF – e o Programa de Agentes Comunitários da Saúde. Os dois, simultaneamente, provocaram mudanças importantes na destinação de recursos, nas formas de remuneração das ações da saúde e na organização dos serviços (D'Avila, Dal Poz, 1999).

As reformas sociais são verdadeiras reformas culturais que requerem, para seu êxito, um consenso e um envolvimento de todos. Por isso, as estratégias de mudanças dependem, em grande parte, das capacidades da base profissional e técnica dos sistemas e dos contextos institucionais em que essa base atua. Para que as mudanças e as propostas tenham êxito, exigem-se variados e complexos processos de construção do "capital humano e institucional".

Em regimes democráticos, não cabe o modelo "de cima para baixo". Devido a isso, os reformadores devem relacionar suas proposições com as idéias prévias, experiências e culturas dos diferentes grupos, cujos interesses convergem e competem nos campos da educação e da saúde. Os processos de reforma constituem, assim, um esforço de pacto social, o qual promove novas interpretações e práticas de ação sobre os caminhos e meios para melhorar a qualidade e a relevância da oferta de serviços. Os conflitos e obstáculos enfrentados pelas reformas constituem momentos inevitáveis de um processo no qual os atores, de um modo racional e pragmático, optam por caminhos viáveis e de maior importância para o êxito das mudanças propostas.

OS PROCESSOS DE CENTRALIZAÇÃO E DESCENTRALIZAÇÃO

Em que pesem os esforços para descentralizar a gestão das reformas e dos processos educacionais, constata-se que eles são mais formais que reais.

Os estudos demonstram a vigência de diversos modelos e processos de descentralização. Do centro para os estados nos países federativos (Argentina e Brasil), dos estados para os municípios (Brasil, Colômbia e Chile) e diretamente dos estados para as unidades escolares (Brasil, Colômbia e El Salvador). Na Argentina, iniciou-se, em 1992, uma transformação do sistema educacional que transferiu a oferta de serviços do governo nacional para as províncias. No Brasil, a política de descentralização da educação ocorreu simultaneamente nos três níveis. Recursos e poder foram transferidos para estados e municípios e, ao mesmo tempo, delegou-se autoridade e poder às unidades escolares e às famílias para gerenciarem os estabelecimentos.

Os estudos realizados por Echart et al. (1999) e Draibe (1999) demonstram que a eficiência e eficácia desses processos dependem, fundamentalmente, das culturas organizacionais das instituições receptoras e da capacidade de os reformadores construírem alianças no nível das províncias e municípios. A descentralização "em cascata" cria uma série de conflitos que retardam os processos de mudança. As burocracias centrais tendem a reter o poder expresso por meio de regulações e do controle de procedimentos. As instâncias provinciais e municipais vêem-se afetadas, em seu ritmo e estilo de mudanças, pela pressão e regulação exercida pelo centro. Os interesses dos municípios nem sempre coincidem com os da comunidade e as autoridades devem negociar com as lideranças municipais, com prefeitos e diretores e assumir uma série de conflitos institucionais. Por fim, as prefeituras tratam de evitar o aumento do gasto com a educação e, ao mesmo tempo, não vêem com boa vontade o poder e as atribuições transferidas para a comunidade.

No que diz respeito ao campo da saúde, estudos realizados por Sterman et al. (1999), sobre a descentralização ocorrida no Brasil, por Yepes e Sánches (1999), sobre o caso da Colômbia e, finalmente, por Oyarzo et al. (1999), sobre a experiência do Chile, constataram interessantes contrastes entre as políticas analisadas.

No Brasil, por exemplo, está em curso, desde 1993, uma reforma que entrega aos municípios o controle total da gestão da saúde, incluindo a definição das políticas, a execução, o acompanhamento, o controle e a avaliação dos serviços no interior de seus territórios. Essa política modificou a função das secretarias estaduais de saúde que de executoras passaram a coordenar, apoiar e regulamentar o sistema. Além disso, houve importantes mudanças na gestão dos serviços municipais ao serem organizadas unidades de avaliação, controle e ações de capacitação de pessoal.

No caso do Chile, o processo iniciou-se durante o governo militar em um quadro ambíguo que impediu que a descentralização territorial fosse também do tipo funcional. Na prática, o Ministério da Saúde concentrou funções – principalmente no que diz respeito à destinação e ao controle de recursos – que restringiram o campo de ação das entidades executoras descentralizadas. Esse é um problema que se pretendeu mudar nos governos democráticos posteriores, tendo havido avanços significativos no sistema de transferências. Entretanto, não se conseguiu acabar com as deficiências do sistema, tampouco instaurar um novo discurso saneador e ordenador das mudanças (Oyarzo et al., 1999). A norma legal e uma visão técnica com pouca capacidade de construir adesões políticas impediram transformações mais profundas no modelo e na qualidade dos serviços.

No campo da educação, o ocorrido em El Salvador mostra outro modo de ver o problema. Nessa experiência, a descentralização ultrapassa os limites do município para alcançar a própria comunidade. Ela é a principal interessada nos benefícios da educação, podendo exigir maior responsabilidade e qualidade dos resultados. É aí que reside um poder maior para controlar os resultados. Esse processo pode ser mais facilmente realizado em localidades rurais, onde há menos peso da instituição estatal (Lardé de Palomo, Argüello de Morera, 1999). Nessa mesma direção, é relevante a experiência dos Projetos Educacionais e Institucionais – PEI –, realizados na Colômbia, os quais promoveram a plena autonomia dos estabelecimentos educacionais, seja no que diz respeito aos recursos, seja em suas opções pedagógicas (Caballero, 1999).

No âmbito da saúde, é interessante a experiência dos Centros de Administração Compartilhada – CLAS –, no Peru. Em 1991, foi feita uma reforma nesse setor, determinando que, nos postos e centros de saúde, fossem realizados "contratos de gestão" entre a comunidade e o Estado. Com essa finalidade, criaram-se os Comitês Locais de Saúde, uma associação civil composta de representantes das comunidades e do Ministério da Saúde. A comunidade participa das decisões administrativas e da definição dos programas de atendimento, o que contribuiu para melhorar a qualidade dos serviços e a satisfação dos usuários (Cortez, Phumpiu, 1999).

Tanto no setor da educação como no da saúde, a descentralização beneficia o alcance e a eficiência dos programas. No Brasil, são importantes os avanços no acesso e na cobertura dos serviços desses dois setores, graças à descentralização. No Peru, a população percebe mudanças na qualidade do atendimento na saúde, envolve-se na definição de planos e na obtenção de recursos. É importante também a dinâmica que os processos de descentralização promovem no desenvolvimento da participação social, como ilustram os casos de El Salvador, do Brasil e Peru.

Entretanto, seus efeitos redistributivos não são claros. No estudo dos programas descentralizados na área de educação no Brasil, os diferentes indicadores de eficiência e eficácia confirmam uma pauta sistemática que tende a opor, no pólo positivo, as escolas estaduais grandes e médias, localizadas em regiões mais desenvolvidas, e, no pólo negativo, as escolas municipais, pequenas, situadas no Nordeste e no Norte (Draibe, 1999).

Os principais obstáculos encontrados nas escolas e municípios são principalmente de ordem institucional e dizem respeito à baixa capacidade administrativa, de gestão e de capacitação dos atores para assumirem as funções da descentralização (Draibe, 1999; Caballero, 1999), bem como são precários os sistemas de acompanhamento que devem estar a serviço das novas funções de regulação e coordenação das entidades centrais (Sterman et al., 1999). No caso de El Salvador, os principais problemas são observados em localidades vulneráveis que, por sua vez, são as que mobilizam menor capital social. Na Colômbia, os municípios menores não obtêm recursos suficientes por meio de transferências nem contam com recursos próprios para assumir plenamente a responsabilidade pela educação (Caballero, 1999).

Em síntese, os estudos analisam distintos modelos e estratégias de centralização, do centro aos estados ou províncias (Brasil e Argentina), dos estados aos municípios (Chile, Brasil e Colômbia) ou diretamente à escola e aos centros de saúde comunitários (Brasil, El Salvador e Peru). A descentralização incide de modo mais efetivo no acesso e na eficiência do provimento de serviços do que sobre a qualidade e a eqüidade de seus resultados. Para tanto, torna-se necessário realizar mudanças na organização cultural das instituições e nos modelos teóricos que sustentam os estilos de gestão. A flexibilidade nos limites e objetivos definidos pelos programas e nas relações comunicativas entre os atores envolvidos favorece mudanças na qualidade.

Em âmbito local, constata-se a falta de capacidade institucional para a assunção de responsabilidades decorrentes da descentralização e também a falta de instrumentos e competências para interatuar com prefeituras, burocracias municipais, diretores de estabelecimentos, gerentes locais, associações de pais e representantes das comunidades. Surgem importantes demandas de capacitação de pessoal e de instrumentos de acompanhamento e avaliação, e os próprios processos de descentralização podem atuar na geração dessas capacidades.

Para o êxito da descentralização, torna-se necessário o apoio das instâncias centrais e um adequado equilíbrio. Nos programas analisados, o contexto de apoio do entorno municipal (Peru) ou estadual (Brasil) torna-se chave para o funcionamento das unidades autônomas. No Peru, por exemplo, os CLAS funcionam melhor quando estão respaldados nas autoridades locais e municipais. No mesmo sentido, cabe assinalar que o êxito da autonomia escolar em El Salvador foi possível graças à liderança e ao peso político do ministro que esteve oito anos no cargo, promovendo essa política. Em síntese, parece que as mudanças funcionam melhor quando o estado se envolve e favorece sua realização.

A PARTICIPAÇÃO DOS ATORES

Há amplo consenso de que as reformas atuais não se sustentam se a população não se envolver em seu planejamento e execução. Com efeito, o êxito das metas de qualidade dos serviços implica o envolvimento de todos os atores em novas interações, comunicações e responsabilidades, para que possam solucionar os problemas que afetam a população mais pobre.

No campo da educação, as reformas promovem mudanças substantivas nas práticas de ensino e nas modalidades de aprendizagem. Estas não ocorrem se as pessoas não se envolverem e não tecerem a mudança em conjunto. Aceita-se, assim, que a cooperação entre diferentes atores e as interações flexíveis e permanentes entre a escola e a comunidade garantirão práticas inovadoras, conhecimentos significativos e o compromisso de todo o ambiente que cerca a escola com os aprendizados favorecedores da integração profissional e social dos sujeitos.

No setor da saúde, demonstrou-se a importância da participação social tanto na prevenção como no tratamento dos principais problemas que afetam a população. Uma compreensão integral da saúde estimula a responsabilidade dos próprios atores no cuidado de seu bem-estar. A participação não descarta o saber especializado do médico, mas, ao contrário, promove flexibilização dessa especialização, dos modelos de atendimento e das formas de gestão dos serviços, ao considerar as demandas, as expectativas e as representações dos próprios usuários.

O Programa de Saúde da Família – PSF –, estudado por D'Avila e Dal Poz (1999), mostra importante mudança no modelo de atendimento e na gestão de recursos do setor da saúde no Brasil. Esse programa define a família como a unidade de ação, e não o indivíduo; não espera a demanda de atendimento para intervir, mas atua preventivamente e tem uma concepção ampla da saúde que não se apóia exclusivamente no modelo médico. O programa é um instrumento de reorganização da demanda e focaliza sua ação nos setores mais pobres. As mudanças têm sido importantes graças à construção de um novo tipo de aliança de caráter local, que envolve autoridades municipais, técnicos do sistema público de saúde e fora dele, organizações acadêmicas (a universidade, por exemplo) e internacionais (como o Fundo das Nações Unidas para a Infância – Unicef) e, ainda, associações privadas e comunitárias. Essa aliança permite neutralizar fortes resistências, tais como a das associações de médicos e enfermeiros, preocupados em garantir seu mercado de trabalho.

Um bom exemplo de mudanças similares no setor da educação é o estudo, realizado por Lardé de Palomo e Argüello de Morera (1999), do Educo, em El Salvador. Esse programa surgiu por iniciativa de comunidades rurais não atendidas pelo Ministério da Educação, o qual, ao avaliar o modelo, adotou-o como política para todas as áreas rurais e, depois, adaptou-o às áreas urbanas.

O programa estimula as Associações Comunais para a Educação – ACEs – a gerirem a educação, em âmbito local. O Ministério da Educação contrata as ACEs para conduzirem e operarem a gestão educacional nesse nível, transferindo mensalmente fundos para o seu funcionamento. Essas associações, por sua vez, contratam professores, compram materiais, garantem a matrícula e cuidam da infra-estrutura dos estabelecimentos. Os seis membros diretores das ACEs são eleitos pela comunidades, e três deles recebem capacitação do Ministério da Educação.

O estudo demonstra que, quando se abre a possibilidade de participação, a comunidade responde. Em mais de 80% dos estabelecimentos analisados, a eleição dos representantes da comunidade foi participativa, não tendo sido imposta pelo diretor ou outra autoridade. Contudo, tais associações funcionam principalmente com o aporte do presidente e seu tesoureiro. Os demais membros da direção e da comunidade não têm interesse maior ou tempo para participar delas. Os pais tendem a delegar à escola a responsabilidade pela educação. A falta de uma cultura de participação, o horário de trabalho, a baixa escolaridade dos pais e a percepção que eles têm da sua baixa renda afetam a possibilidade de participação, especialmente nas zonas rurais (Lardé de Palomo, Argüello de Morera, 1999).

O principal problema detectado no funcionamento das ACEs remete à possibilidade de abordar problemas de caráter pedagógico. A maior parte dos diretores e professores considera que esses são problemas técnicos que devem ser resolvidos pelos professores, não pelos pais. Em contrapartida, a relação patronal dos docentes é estabelecida com a Junta Diretora. Portanto, os pais de família das ACEs estão autorizados a contratar professores e pessoal administrativo e, também, a despedi-los quando não cumprirem suas responsabilidades. Graças a esse poder, os pais conseguiram fazer com que os recursos fossem usados com maior transparência e eficiência, diminuíram a ausência dos professores e aumentaram o número efetivo de horas-aula. Além disso, os professores expressam seu mal-estar quando têm de prestar contas, sentindo-se pressionados pelos pais de família que, na ótica dos docentes, "não estão capacitados para avaliar seu trabalho em aula" (Lardé de Palomo, Argüello de Morera, 1999, p.43). A despeito dessa questão, as escolas Educo conseguiram transformar, de alguma forma, os incentivos e mecanismos de controle e de prestação de contas dos professores.

Os principais problemas de funcionamento dessas associações residem na falta de tempo de seus integrantes, na falta de informação sobre as funções e na má interpretação a respeito do uso e da administração dos fundos. Alcança-se bom desempenho quando o diretor se mostra flexível em sua autoridade e liderança. Não obstante, nas escolas pequenas, e mais nas rurais que nas urbanas, corre-se o risco de as associações e direções acabarem se tornando um "comitê consultivo" do diretor e do conselho de professores. Com efeito, dadas as características do poder local, é muito provável que os conselhos diretores acabem avaliando mais as decisões do diretor, em vez de discuti-las ou optar por algo diferente.

Até aqui, destacou-se a importância dos contextos sociais, institucionais e da própria percepção e expectativas da população para o êxito de uma reforma. Com efeito, para garantir sua sustentabilidade, a reforma deve encontrar apoio e sentido nas amplas camadas da população beneficiária. Contudo, o problema não se esgota nesse ator.

De fato, os estudiosos demonstram os conflitos de referencial produzidos entre o "grupo técnico", que pensa e traça as reformas, e o dos atores políticos que "decide" as alternativas que devem ser assumidas pelos sistemas de provimento de serviços. Os conflitos entre essas duas categorias de atores estão claramente demonstrados no estudo de Cousinet (1999), sobre o programa de medição da qualidade da educação em Mendoza. Depois de uma aplicação bem-sucedida, seu desaparecimento não se deveu à pressão ativa e pública de grupos de interesses (professores e pais), mas, principalmente, a uma decisão dos atores políticos que viram nesse sistema autônomo um potencial de crítica à sua própria gestão. Nesse caso, os responsáveis pela avaliação de sistema deram prioridade aos aspectos técnicos sobre os políticos, deixando, com isso, de gerar apoios decisivos entre esses atores para assegurar uma permanência maior do sistema.

As diferenças de linguagem e cultura entre técnicos e políticos têm sido um dos fatores que criam obstáculos para a reforma da saúde no Chile. Segundo Oyarzo et al. (1999), a reforma do setor público de saúde enfrenta dificuldades inerentes a toda introdução de novos paradigmas. O problema acentua-se quando as mudanças recomendadas têm sua origem em profissionais da economia que expõem suas propostas por meio de uma linguagem muito pouco conhecida entre os médicos que dominam profissionalmente o setor.

Em síntese, os estudos analisados demostram que, em que pese a importância que os discursos e as políticas concedem à participação social, ela é muito difícil de ser alcançada. Com efeito, as pessoas não sentem uma necessidade inata de participar, tampouco existem fórmulas e técnicas preestabelecidas e automaticamente transferíveis para gerar participação criativa. A trajetória histórica do Estado e as representações que a população tem de seu papel formam parte de uma cultura que mais favorece a "delegação" do que a "responsabilidade compartilhada" de problemas, tais como os da educação e da saúde. Além disso, a cultura da escola e dos centros de saúde, os modos de pensar de muitos professores e pessoal da saúde e a falta de métodos flexíveis para trabalhar a participação da família e da comunidade afetam o surgimento de espaços ativos de cooperação e de tomada de decisões.

Nos casos analisados, avalia-se que a participação promovida pelas reformas sociais não tem sentido político ou ideológico. Ao contrário, elas são compreendidas como sistemas de controle social dos resultados da prestação de serviços. A maneira pela qual a sociedade promove a responsabilidade (accountability) e a qualidade dos serviços é por meio de conexão direta e transparente com os usuários. Nos casos examinados no setor educacional e da saúde, observam-se resultados importantes na eficiência e eficácia dos sistemas de provimento desses serviços.

As mudanças promovidas afetam as concepções tradicionais tanto da aprendizagem como da saúde. Com efeito, os programas analisados favorecem relações flexíveis entre as categorias acadêmicas e de senso comum dos beneficiários e uma interação de profissional e população assistida do tipo dialógico. Para que persistam no tempo, essas mudanças nas categorias de pensamento necessitam de alianças e relações sociais novas. A construção de acordos entre os diferentes atores e o grau de apoio das autoridades municipais, políticas e regionais tornam-se chave para as experiências de inovação. Todas as experiências que se basearam unicamente na convicção técnica de seus promotores não alcançaram seus objetivos e fracassaram. As disposições legais e a existência de espaços legítimos e eficazes de participação favorecem a mudança.

CONCLUSÕES

Os estudos dos casos analisados descrevem o estado atual das principais reformas sociais efetuadas na América Latina. As reformas apresentam graus importantes de avanços e êxitos na cobertura e eficiência. Contudo, os avanços no que diz respeito à qualidade e, particularmente, à eqüidade são menores.

No setor da educação, em que pesem os investimentos e as mudanças promovidas, permanecem as diferenças de aprendizagem entre escolas e entre setores sociais pobres, médios e altos. O problema é geral.

Mesmo nos países da região com quase a totalidade da população na escola e prolongada permanência dos alunos nela, o ascendente do ensino formal está cada vez mais condicionado por fatores externos, sobre os quais a escola não tem influência direta (Ratinoff, 1995, p.27, tradução nossa).

O capital cultural e econômico das famílias e a riqueza e complexidade das interações e tecnologias com as quais elas se relacionam influenciam sobremaneira a qualidade dos resultados que se obtém.

Este é um problema fundamental, pois questiona a relação paradigmática estabelecida entre eqüidade e educação. Com efeito, de acordo com o que assinala Tedesco (1998), a relação não é unidirecional nem estática. Para alcançar boa qualidade, torna-se necessário conquistar a "eqüidade social" de base, denominada pelo autor "condições de educabilidade". Tais condições dizem respeito às aprendizagens primárias das crianças sobre os códigos, hábitos e destrezas em seu ambiente familiar e social. Desse modo, as políticas educacionais e sociais devem atuar de forma integral, procurando produzir mudanças nessa realidade extra-escolar, favorecendo, assim, as condições requeridas por uma educação de qualidade.

Em geral, os governos da América Latina têm assumido o discurso da "qualidade" sobre o da "eqüidade". Esse discurso prevalece como forma de favorecer maior competitividade e excelência. Será ele, porém, o mais apropriado para a América Latina? A eqüidade foi posta em segundo plano. O problema é a competitividade, e experiências mais ou menos parecidas foram promovidas na região: descentralização, gestão, vouchers, medidas de testes padronizados etc.

Com efeito, é pela ação das agências internacionais e dos consensos políticos estabelecidos na região, que se promovem modelos de reformas educacionais. Como nos ajustes econômicos, busca-se o funcionamento de "universais" ou de relações já comprovadas e válidas para qualquer situação. Entre esses universais, destaca-se o papel atribuído à gestão. Tudo parece poder ser solucionado com um melhor management. Questões inerentes à realidade empresarial são transferidas para as escolas ou para os centros de saúde. Os estudos, entretanto, discutem esse pressuposto e indicam uma mudança para além de uma eficiência maior ou de modificações na gestão. Inseridos na transformação de culturas institucionais, destacam a importância da liderança, o melhoramento dos sistemas de interação, os desempenhos baseados em competências, a flexibilidade e o diálogo nas soluções e na comunicação entre os diversos atores sociais que participam dos processos de reforma nos próprios contextos de sua realização.

A economia política das reformas deve relativizar os universais que se instauram. O peso da cultura e das tradições históricas é fundamental. Os países com grande contingente de população indígena e rural são diferentes daqueles formados por uma população mais homogênea, principalmente urbana. Por isso, é recomendável que os bancos e as agências atuem com amplo leque de opções, mais do que com um número reduzido delas, aumentando a possibilidade de que os países elaborem suas próprias agendas, em diálogo e discussão com as agências.

Os conflitos nos processos de execução das reformas devem ser assumidos como algo positivo. Eles abrem possibilidades e opções. O conflito pode ser utilizado de forma legítima, como um momento para a redefinição de reformas sobre as quais não se fez consulta prévia. É no manejo dos conflitos que se comprovam os estilos de liderança. As equipes que promovem as reformas em diferentes níveis e espaços devem possuir competência para exercer a mediação e construir consensos em torno dos objetivos e ações propostas.

É importante aumentar a capacidade de pesquisa e de aprendizagem dos países. As limitações dos diagnósticos, das fontes de informação e de dados disponíveis impedem a elaboração de propostas bem fundamentadas e de qualidade. Não há massa crítica nos países devido à falta de apoio à pesquisa, ou ao fato de os pesquisadores das universidades e dos centros acadêmicos serem chamados a assumir funções políticas nos ministérios.

Nos diversos estudos apresentados, destaca-se a necessidade de criar uma "cultura de avaliação" e de investigação da aprendizagem nas instituições e na sociedade. Para causar impacto, as reformas devem contar com bom delineamento, com sistemas de acompanhamento e com indicadores e instrumentos válidos para aferir seus resultados. A colaboração horizontal entre os municípios e centros pode permitir a construção de uma perspectiva ou de um referencial compartilhado para interpretar os resultados das reformas. Torna-se necessário contar também com instrumentos e sistemas de processamento da informação de fácil aplicação por todas as equipes e pelo pessoal não especializado dos ministérios, assim como pelos executores das reformas.

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  • 1
    . O conceito de "referencial" (
    référentiel) foi tomado de B. Jobert, que o define como o marco interpretativo ou cognitivo dos atores; por meio dele é possível pensar as políticas públicas como uma produção intelectual de imagens comuns da sociedade. Cf. Jobert et al., 1987.
    2
    . Para uma apresentação dos resultados deste programa, ver Martinic et al., 1999.
    3
    . O conceito de "populismo" remete, nesse caso, ao pacto histórico que une os setores médios, ligados ao Estado, ao sindicalismo da indústria do mercado interno e a uma parcela importante do empresariado que se sustenta sobre a base de um mercado interno, altamente protegido por taxas e tarifas. Nesse pacto, o ponto de união era o Estado cativo desses atores, o que gerava uma relação clientelista e transacional.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Ago 2003
    • Data do Fascículo
      Nov 2001
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