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Escola e fábrica: vozes de trabalhadores em uma indústria de ponta

School and factory in the voice of workers from a cutting-edge industry

Resumos

O objetivo deste artigo é o de apresentar parte dos resultados de ampla pesquisa, na qual se estudou a qualificação como construção social, privilegiando-se dois campos de análise: a escola e a fábrica. A pesquisa focalizou uma escola pública, duas unidades do Senai e uma indústria metal-mecânica, localizada no interior do Estado de São Paulo. Neste artigo, discutem-se alguns dados obtidos no âmbito da fábrica, com destaque para o olhar dos trabalhadores sobre as contribuições da escola e da empresa para seu processo de qualificação profissional. Os resultados indicam que há consenso entre os entrevistados sobre o valor da escolarização, não só para o exercício da profissão, mas para a vida social e familiar. Os procedimentos adotados pela indústria, visando à qualificação profissional e à adesão dos trabalhadores aos objetivos empresariais, são também muito bem aceitos. A análise dos dados permitiu, todavia, desvelar conflitos, contradições e idealizações que os discursos consensuais não conseguem de todo ocultar.

ESCOLA PÚBLICA; TRABALHO INDUSTRIAL; QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL


The aim of this article is to present part of the results of a broader study, in which qualification as a social construction was studied, giving special attention to two fields of analysis: school and factory. The investigation was concentrated on a public school, two Senai technical school units, and a metal-mechanic industry located in the interior of São Paulo State. Only some of the data obtained in the factory are discussed in this article, giving emphasis on how workers see the school and the company's contributions to their professional qualification process. Results point to a consensus among interviewees about the value of education for both their professional work and their social and family life. Procedures adopted by the company aiming at promoting both professional qualification and workers' adherence to corporate objectives are also very well accepted. Nonetheless, analysis of the data allowed for the unveiling of conflicts, contradictions, and idealizations that consensual discourse cannot completely hide.

PUBLIC SCHOOLS; INDUSTRIAL OCCUPATIONS; EMPLOYMENT QUALIFICATIONS


OUTROS TEMAS

Escola e fábrica: vozes de trabalhadores em uma indústria de ponta

School and factory in the voice of workers from a cutting-edge industry

Celso João FerrettiI; Dagmar M. I. ZibasII; Gisela Lobo B. P. TartuceIII; João dos Reis Silva JúniorIV

IFundação Carlos Chagas e PUC/SP, E-mail: cferretti@fcc.org.br IIFundação Carlos Chagas, E-mail: dzibas@fcc.org.br IIIFundação Carlos Chagas, E-mail: gtartuce@fcc.org.br IVUniversidade Federal de Sorocaba, E-mail: joresiju@uol.com.br

RESUMO

O objetivo deste artigo é o de apresentar parte dos resultados de ampla pesquisa, na qual se estudou a qualificação como construção social, privilegiando-se dois campos de análise: a escola e a fábrica. A pesquisa focalizou uma escola pública, duas unidades do Senai e uma indústria metal-mecânica, localizada no interior do Estado de São Paulo. Neste artigo, discutem-se alguns dados obtidos no âmbito da fábrica, com destaque para o olhar dos trabalhadores sobre as contribuições da escola e da empresa para seu processo de qualificação profissional. Os resultados indicam que há consenso entre os entrevistados sobre o valor da escolarização, não só para o exercício da profissão, mas para a vida social e familiar. Os procedimentos adotados pela indústria, visando à qualificação profissional e à adesão dos trabalhadores aos objetivos empresariais, são também muito bem aceitos. A análise dos dados permitiu, todavia, desvelar conflitos, contradições e idealizações que os discursos consensuais não conseguem de todo ocultar.

ESCOLA PÚBLICA – TRABALHO INDUSTRIAL – QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL

ABSTRACT

The aim of this article is to present part of the results of a broader study, in which qualification as a social construction was studied, giving special attention to two fields of analysis: school and factory. The investigation was concentrated on a public school, two Senai technical school units, and a metal-mechanic industry located in the interior of São Paulo State. Only some of the data obtained in the factory are discussed in this article, giving emphasis on how workers see the school and the company's contributions to their professional qualification process. Results point to a consensus among interviewees about the value of education for both their professional work and their social and family life. Procedures adopted by the company aiming at promoting both professional qualification and workers' adherence to corporate objectives are also very well accepted. Nonetheless, analysis of the data allowed for the unveiling of conflicts, contradictions, and idealizations that consensual discourse cannot completely hide.

PUBLIC SCHOOLS – INDUSTRIAL OCCUPATIONS – EMPLOYMENT QUALIFICATIONS

O interesse de educadores pela relação trabalho-educação tem, no Brasil, uma longa trajetória. Historicamente, a principal preocupação de grande parte desses especialistas foi discutir as relações trabalho/educação/qualificação de forma a não elevar a escolarização à categoria de panacéia universal, para os complexos problemas econômicos e sociais, tais como produtividade, desemprego e remuneração do trabalho. A mobilização de educadores nessa direção foi catalisada, nas décadas de 60 e 70, pela divulgação da Teoria do Capital Humano, segundo a qual, como se sabe, haveria, no plano macrossocial, uma estreita relação de causa e efeito entre nível de escolarização da população e desenvolvimento econômico do país, e, no plano micro, entre escolarização atingida pelo indivíduo e a produtividade/remuneração recebida. Nesse cenário, o esforço de muitos educadores foi o de tentar evitar um atrelamento estreito entre os objetivos da educação escolar e as necessidades da produção, atrelamento perfeitamente justificável pelos princípios da Teoria do Capital Humano.

O predomínio da produção fordista fortalecia, na época, os argumentos dos educadores, os quais, ao reivindicarem um distanciamento entre a educação escolar e as necessidades da produção, propunham para a escola uma função social abrangente, não apenas vinculada ao desempenho do indivíduo em um posto de trabalho, mas com ênfase na sua emancipação. Como se sabe, o modelo fordista, baseado "na fabricação em massa de bens padronizados através do uso de máquinas especializadas não flexíveis e com recurso a uma massa de trabalhadores semi-qualificados" (Hirata, 1994), requer do trabalhador simples conhecimentos técnicos, correspondentes a um determinado posto de trabalho, cabendo à gerência a tarefa de prescrever e controlar o modo concreto de execução de qualquer atividade. Nega, assim, outras potencialidades do trabalhador, tais como sua experiência e sua tradição1 1 Sabe-se, entretanto, que esta anulação pretendida pelo modelo fordista não corresponde de fato ao trabalho real, no qual efetivamente se faz presente a qualificação tácita (Daniellou, La Ville, Teiger, 1989; Wood, Jones, 1984) .

Nesse cenário, a prevalência do modelo taylorista-fordista favoreceu, em muitos casos, uma visão da qualificação profissional estreita e exclusivamente vinculada ao progresso técnico. Harry Braverman, a partir da década de 70, reintroduz, na discussão sociológica sobre o trabalho, a tese da progressiva desqualificação do trabalhador, decorrente do aprofundamento da divisão técnica e social do trabalho. Essa abordagem

...teve como uma de suas variantes consagradas, durante um período relativamente longo, a tese da polarização das qualificações. Segundo essa tese, a modernização tecnológica estaria criando, de um lado, uma massa de trabalhadores desqualificados e, de outro, um punhado de trabalhadores superqualificados. [...] As novas tecnologias reforçariam a divisão do trabalho e a desqualificação da mão-de-obra. (Hirata, 1994, p.131)

Evidentemente, nem a divisão social nem a divisão técnica do trabalho resultam apenas do progresso técnico, mas é principalmente por esse ângulo que são, muitas vezes, examinadas. Isto é ainda mais verdadeiro quando se trata das qualificações dos indivíduos que exercem profissões/ocupações ou tarefas no interior dessas divisões. É essa perspectiva que Campinos-Dubernet e Marry (1986) denominam "essencialista"/"substancialista", porque parte da qualidade, da complexidade, enfim, do conteúdo do trabalho para chegar aos atributos dos trabalhadores necessários para desempenhá-lo. O viés "essencialista" e, no seu interior, o determinismo tecnológico, fizeram escola, principalmente entre os pesquisadores que se debruçaram especificamente sobre a tecnologia, suas transformações e seus efeitos sobre o trabalho (por exemplo, Braverman, 1987).

A concepção "essencialista" é contraditada por aqueles que se recusam a olhar a qualificação da perspectiva estreita da adequação/readequação entre, de um lado, progresso técnico, mudanças no conteúdo e no processo de trabalho, qualificações do posto de trabalho e, de outro, a qualificação do trabalhador, especialmente quando os dois últimos termos são reduzidos, respectivamente, a um rol de tarefas e a uma lista de atributos pessoais. Os que criticam o ponto de vista "essencialista" adotam a concepção que Campinos-Dubernet e Marry (1986) denominam "relativista", que não concebe a qualificação apenas do prisma da técnica e do conteúdo do trabalho (ainda que os considere), mas antes como sendo um processo e um produto social, que decorre, por um lado, da relação e das negociações tensas entre capital e trabalho e, por outro, de fatores socioculturais que influenciam o julgamento e a classificação que a sociedade faz sobre os indivíduos e suas qualidades relativas ao trabalho. Em outras palavras, a dimensão social da qualificação profissional expressa-se duplamente: por um lado, a sociedade constrói representações e classificações das qualidades subjetivas (adscritas ou adquiridas), que associam a qualificação a determinados grupos, que delimitam, em última instância, o que é uma pessoa qualificada:

Os princípios classificatórios contidos nesses sistemas fixam barreiras de acesso e/ou mobilidade profissional que são responsáveis por incluir (ou excluir) indivíduos dos benefícios (materiais ou simbólicos) associados à aquisição de um posto de trabalho. (Castro, 1995, p.4)

Por outro lado, percebe-se que essa construção implica uma disputa, uma batalha em torno de diversos aspectos (salários, promoção, status e reconhecimento), que se dá tanto entre as classes como no interior delas. Percebe-se, assim, como diz Hirata, que essa abordagem "relativista" analisa a qualificação a partir de uma perspectiva mutidimensional:

Qualificação do emprego, definida pela empresa a partir das exigências do posto de trabalho [...]; qualificação do trabalhador, mais ampla do que a primeira, por incorporar as qualificações sociais ou tácitas que a noção de qualificação do emprego não considera – essa dimensão da noção de qualificação sendo, por sua vez, susceptível de decomposição em "qualificação real" (conjunto de competências e habilidades, técnicas profissionais, escolares e sociais) e "qualificação operatória" ("potencialidades empregadas por um operador para enfrentar uma situação de trabalho"); finalmente, a dimensão da qualificação como uma relação social, como o resultado, sempre cambiante, de uma correlação de forças capital-trabalho, noção que resulta a distinção mesma entre qualificação dos empregos e qualificação dos trabalhadores. (1994, p.132-133)

Tal concepção, a começar por Naville (1956), é defendida por vários autores franceses na atualidade (Alaluf, 1986; Dadoy, 1984, 1987; Stroobants, 1993 e 1993a; Tanguy, 1997 e 1997a), mas não apenas por eles. Ainda que não dialogando com Naville, a vertente anglo-saxã pós-Braverman refletiu sobre a qualificação de uma determinada maneira que talvez possa ser assemelhada a essa concepção relativista na categorização francesa. Refazendo a análise dos críticos de Braverman (Burawoy, Littler, Thompson), Castro mostra que essa corrente repensa a questão do controle e introduz na análise outras mediações, como a resistência, a negociação e o consentimento, dando margem assim a uma nova maneira de se pensar a questão da qualificação:

Seu fundamento deve ser buscado agora nas relações políticas entre saberes e poderes no interior da fábrica. Elas refletem as experiências e as qualidades que os sujeitos trazem consigo e com as quais atuam na barganha por sua inserção no sistema de classificação que organizam as relações no campo profissional. (Castro, 1993a, p.215; 1994, p.75; 1995, p.8)

De todo modo, parece haver diferenças de ênfase entre os "relativistas" quanto ao que se entende por relações sociais, havendo aqueles que priorizam as relações entre classes e aqueles que enfatizam as relações entre grupos. As críticas destes últimos aos primeiros é a de que, ao enfocarem as qualificações principalmente da perspectiva da classe, tomam a esta como homogênea, não dando, por isso, conta de interesses coletivos (grupais) ou individuais em seu interior. Os primeiros criticam os segundos por atribuírem demasiada importância aos interesses grupais e individuais, parecendo secundarizar a determinação de classe. Julgamos, no entanto, que os teóricos que enfatizam as relações grupais na construção da qualificação não deixam de considerar a relação estrutural conflituosa entre classes. O que ocorre, na verdade, é a consideração simultânea de ambas, em relação dialética. Ou seja, as qualificações profissionais de indivíduos, no interior de uma dada classe social, serão mais bem compreendidas se as enfocarmos não apenas em razão de sua pertinência a essa classe, mas também de sua condição de gênero, etnia, faixa etária etc., assim como das influências recíprocas das várias determinações.

O que é importante reter é que, nessas visões, não se trata de identificar a qualificação à complexidade do trabalho, como se ela fosse um atributo do qual se pudesse caracterizar a essência, nem, portanto, de enfatizar a "desapropriação" dos saberes do trabalhador pelo progresso técnico e/ou pelo capitalismo. São os termos da questão que deveriam pois ser modificados: não se trata de saber se o capitalismo ou a técnica aumenta ou não a qualificação, mas de entender que, no assalariado, a qualificação remete a uma relação social, "que resulta da distinção mesma entre a qualificação dos empregos e a qualificação dos trabalhadores" (Hirata, 1994) e que é construída nas relações políticas entre saberes e poderes no interior da fábrica e do mercado de trabalho em geral, relações políticas que ocorrem entre empresa e trabalhador e entre grupos de trabalhadores (Castro, 1993 e 1993a, 1994, 1995; Leite, Posthuma, 1995).

Se essa compreensão, que ultrapassa a associação estreita entre qualificação, conteúdo do trabalho e escolarização, é mais ampla e rica e já é um consenso na Sociologia do Trabalho, ela também é muito mais difícil de ser utilizada na prática. Se o tempo de formação foi, durante um longo período, o critério mais utilizado para se mensurar a qualificação, a referida ampliação do conceito acaba por questionar esse critério puramente quantitativo e exige que a qualificação também seja analisada e medida por meio de indicadores qualitativos. De qualquer forma, essa operacionalização do conceito – que se transforma em uma questão metodológica – continua sendo foco de grandes debates entre os pesquisadores da área.

Essa complexa compreensão da qualificação profissional toma ainda novos matizes diante do novo modelo produtivo, que vem, em certa medida, sobrepondo-se ao fordismo. É sabido que a atual reestruturação produtiva representa uma iniciativa do capital para a superação da crise da acumulação que se instalou a partir dos anos 70. A automação flexível – resposta tecnológica para a crise – trouxe para as grandes empresas a possibilidade de inovações cada vez mais rápidas. Ao lado de transformações tecnológicas de base física, houve introdução de profundas mudanças organizacionais e ambas passaram a influenciar o processo, as relações e os conteúdos do trabalho. A partir daí, as qualificações dos trabalhadores não deveriam responder tanto ao trabalho prescrito, mas sim à imprevisibilidade. Assim, o elemento novo no debate sobre as relações trabalho-educação apóia-se na valorização que a produção capitalista passa a emprestar à flexibilidade na produção. Contrariamente ao que se dava no taylorismo, o saber construído no cotidiano da fábrica, oriundo da experiência dos trabalhadores individuais e do coletivo do trabalho – a chamada qualificação tácita (Wood, Jones, 1984), que era negada pelo taylorismo – passa não apenas a ser reconhecido, como requisitado e premiado, porque se reconhece sua força para a resolução dos problemas diários com que a produção se defronta.

Além disso, as mudanças ocorridas no âmbito do trabalho fazem retornar ao palco uma temática que não é nova no campo da administração de empresas, mas que estava relativamente secundarizada: trata-se da necessidade de reconhecer nos trabalhadores não apenas produtores dotados de habilidades técnicas, mas também pessoas constituídas por afetos e emoções. A Escola de Relações Humanas e a Psicologia Organizacional já haviam se dado conta disso nos anos 50, mas a ênfase na tecnologia, se de um lado não ignorou esse aspecto nos cálculos de produtividade, de outro não lhe conferiu maior importância. As coisas se passam de maneira diversa na perspectiva da atual organização da produção, a qual se propõe participativa. Se, no fordismo, os conteúdos da qualificação privilegiavam o "saber-fazer" – expresso nos conhecimentos técnicos – em detrimento dos saberes gerais e da subjetividade, na produção flexível esses conteúdos devem privilegiar também os tais saberes gerais e retomar, de uma nova perspectiva e com mais intensidade, a dimensão da subjetividade do trabalhador, traduzida no termo "saber-ser" – subjetividade essa que se expressa, entre outras formas, na capacidade de mobilização desses conhecimentos para enfrentar os imprevistos da situação de trabalho. Desse modo, a ênfase recai não apenas nos chamados "componentes organizados e explícitos" da qualificação (o "saber-fazer") [e também nos saberes gerais, que na atual produção flexível ganham, no âmbito operacional, um status de que antes não desfrutavam], mas também nos chamados componentes "não organizados e implícitos", o "saber-ser" (Aoki, apud Hirata, 1994).

Para os objetivos deste trabalho, convém enfatizar que, a partir das mudanças na base física e organizacional da produção e também "a partir do momento em que o desemprego aparece como o problema social prioritário a ser resolvido, a noção (da qualificação) é questionada em seus fundamentos e em sua pertinência" (Tanguy, 1997a), aparecendo de uma outra maneira, no que se refere ao seu conceito e ao seu conteúdo, uma vez que "novos" perfis profissionais são exigidos como condição para o aumento da produtividade e da competitividade. Com relação aos conteúdos, entre estes "novos" requisitos estão não apenas conhecimentos técnicos, mas também (e, talvez, principalmente, como enfatiza boa parte da literatura) amplas habilidades cognitivas e certas características comportamentais e atitudinais, tais como: capacidade de abstração, de raciocínio, de domínio de símbolos e de linguagem matemática para a interpretação e implementação de modelos e antecipação de problemas, aleatórios e imprevistos; iniciativa, responsabilidade, compromisso, cooperação, interesse, criatividade, capacidade de decisão, disposição para o trabalho em equipe, capacidade de visualização das regras de organização, das relações de mercado etc. Desse modo, em anos mais recentes, a ênfase atribuída à educação, ainda que fortemente centrada nos aspectos cognitivos, parece, no entanto, visar menos às contribuições que esta pode oferecer para a capacitação técnica e mais àquelas contribuições que se referem à preparação dos trabalhadores para enfrentar o que Villavicencio (1992) denomina dimensão aleatória do trabalho, ou seja, aqueles elementos que escapam ao âmbito do trabalho prescrito, cada vez mais presentes quando a produção se rege pela flexibilidade.

A partir desses desenvolvimentos, retoma-se um discurso – já presente nos anos 60 – que postula uma requalificação dos trabalhadores, já que a flexibilidade do sistema produtivo,

...que deveria permitir a superação da crise de produção de massa fordista, teria como corolário a volta de um trabalho de tipo artesanal, qualificado e uma relação de cooperação entre management e operários multifuncionais. (Hirata, 1994, p.129)

Em outros termos, estaria havendo, segundo os discursos correntes, uma "elevação da qualificação profissional", ao se exigir um trabalhador com formação mais abrangente para poder lidar com várias tarefas cada vez mais abstratas e complexas, formação essa que incorporaria os diferentes saberes e atitudes anteriormente enunciados, e representaria a passagem do conceito de qualificação para o de competência, entendida esta como um conjunto de capacidades que o trabalhador utilizaria para enfrentar a complexidade e a imprevisibilidade do novo modo de produzir. No entanto, a noção de competência não avança em relação ao estreito conceito substancialista de qualificação antes apresentado, ao contrário, confirma-o, na medida em que apenas induz a substituição de atributos de caráter físico por outros, talvez mais nobres. A competência pode ser definida como a tradução dessas capacidades numa tomada de iniciativa e num assumir de responsabilidade por parte do trabalhador perante os eventos produtivos – situações surpreendentes e imprevisíveis que ocorrem na produção. No singular, a competência expressa uma mudança na organização e nas relações sociais; no plural, ela designa as transformações nos conteúdos profissionais (Zarifian, 1997, 1998).

Sob a perspectiva de uma parcela dos educadores, essas novas exigências da produção vieram embaralhar a polarização ideológica e política que estava bastante nítida em décadas anteriores, quando do domínio do taylorismo-fordismo. Ou seja, antes da reestruturação produtiva em curso, podiam ser facilmente apontadas as distâncias entre os objetivos da produção e o papel da educação escolar democrática. No entanto, a partir dos anos 80, as profundas mudanças tecnológicas e organizacionais, ao propor novo perfil para o trabalhador (agora supostamente autônomo, criativo, responsável, portador de alto poder de abstração e de resolução de problemas) pareceriam aproximar, finalmente, segundo muitos educadores, os interesses da produção daquelas condições necessárias ao pleno desenvolvimento humano. Em outras palavras, no novo contexto, deixariam de existir contradições entre a formação ampla e profunda dos trabalhadores, objetivo de um conjunto amplo de educadores, e a preparação específica para o trabalho, interesse maior dos empregadores.

O novo cenário produtivo tem incentivado, ao longo dos últimos anos, uma intensa produção acadêmica, principalmente na área da Sociologia do Trabalho, que procura esclarecer os novos vínculos entre as exigências da produção reestruturada e o processo de qualificação do trabalhador. Os educadores também têm se sentido desafiados pelas novas relações anunciadas entre trabalho e educação. A pesquisa referida neste texto insere-se nesse quadro e, desenvolvida entre 1999 e 2001, estudou a qualificação profissional como construção social, privilegiando dois campos de análise: a escola e a fábrica. Neste artigo, no entanto, serão focalizados somente alguns aspectos da relação trabalho-educação, tal como vivenciados, construídos e definidos por trabalhadores de uma indústria de ponta e como elaborados, divulgados e exigidos pela empresa.

Desse modo, ainda que o foco neste texto (trabalhadores em uma indústria) possa sugerir uma coincidência de interesses com os estudos da qualificação profissional, como focalizada pela Sociologia do Trabalho, na qualidade de educadores, pretendemos esclarecer, desde o início, as especificidades e os limites de nossa pesquisa. Ou seja, a preocupação com a educação ampla dos trabalhadores nos encaminhou para o estudo de sua qualificação profissional. No relatório final da pesquisa mencionada pretendemos ter deixado clara nossa compreensão da complexidade do processo de construção da qualificação, que não pode ser reduzido à mera escolarização formal, ou a processos de socialização dos indivíduos, ou, ainda, a relações no interior das empresas ou, menos ainda, a procedimentos explícitos de treinamento no trabalho – já que ela é uma relação social que combina diversos aspectos e que é determinada pelo mercado de trabalho (Tanguy, 1997a). No entanto, os processos de escolarização, objetos principais da pesquisa em educação, também contribuem para essa qualificação. A abordagem dos trabalhadores na fábrica teve como foco principal a visão desses sujeitos sobre a contribuição da escola e dos treinamentos internos em sua qualificação. Adicionalmente, entretanto, entrevistas com dirigentes e o registro de alguns aspectos da produção e da organização da indústria possibilitaram a identificação de certos padrões da relação empresa-trabalhador e trabalhador-trabalhador que podem indicar como também são forjados os perfis de trabalhadores no interior dessas dinâmicas sociais. Dessa forma, embora o estudo da contribuição das relações no interior da fábrica para a construção do "ser trabalhador" não tenha sido nosso objetivo principal, as características inerentes ao nosso trabalho abriram algumas perspectivas a esse respeito.

Com a base teórica e empírica, propomo-nos a discutir aqui as seguintes questões:

a. Na visão dos trabalhadores, qual a importância da escolarização formal e dos treinamentos em serviço para a sua qualificação?

b. Podem ser identificados alguns padrões da relação empresa-trabalhador e trabalhador-trabalhador que forjam perfis de qualificação em indústria de ponta?

ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA INDÚSTRIA FOCALIZADA

A seleção da empresa deu-se a partir dos critérios definidos pelo projeto: empresa de grande porte, considerada "de ponta" ou líder em seu setor e reconhecida por adotar processo de constante renovação tecnológica e organizacional, ou seja, que já tivesse experiência em novos processos de reestruturação produtiva e de organização do trabalho. Assim, selecionou-se uma empresa subsidiária de uma corporação transnacional, localizada no interior do Estado de São Paulo. Essa subsidiária atua no setor metal-mecânico, produzindo máquinas utilizadas na movimentação de terra. Também presta serviços, tais como: reposição de peças e suporte ao produto, desenvolvimento de acessórios e implementos que ampliam a versatilidade e a gama de aplicações de suas máquinas, logística e treinamento de usuários, fornecedores e revendedores.

ENTREVISTAS NA EMPRESA E AS OBSERVAÇÕES REALIZADAS

Realizamos, ao todo, 24 entrevistas (que foram pautadas por roteiros previamente preparados), referentes a: 6 dirigentes e 18 trabalhadores, perfazendo aproximadamente 36 horas de gravação. As observações não foram formalizadas por meio de roteiro, mas constituíram um corolário natural das inúmeras visitas à fábrica feitas pelos quatro pesquisadores, que cotejavam entre si, constantemente, suas observações informais.

Quanto ao grupo de trabalhadores entrevistado, é importante notar que ele foi reunido pela empresa, a partir de critérios estabelecidos pela equipe de pesquisadores. Solicitou-se à empresa que o grupo fosse composto por trabalhadores da área de produção, mas diversificados: que comportasse homens e mulheres, com diferentes níveis de escolaridade e variação quanto à idade, às funções, ao tempo de casa e às trajetórias profissionais. O grupo selecionado pela Divisão de "Treinamento" do Departamento de Recursos Humanos contemplou, de fato, todos esses aspectos, exceto no que se refere ao setor de origem: nem todos os trabalhadores selecionados faziam parte da produção, embora a maior parte estivesse alocada em tal setor.

Não houve a preocupação de constituir um grupo estatisticamente representativo da empresa, mas o fato de o grupo entrevistado ter sido escolhido pelos dirigentes merece uma consideração. Essa foi uma condição inevitável que se apresentou à equipe de pesquisa e se deve registrar que tal condição sempre foi levada em conta na análise desenvolvida, sendo referida explicitamente neste texto quando julgado necessário.

A EDUCAÇÃO ESCOLAR E A FORMAÇÃO PROFISSIONAL NA VOZ DOS TRABALHADORES

Independentemente da idade, do grau de escolaridade alcançado e do tipo de atividade desenvolvida, a educação formal é extremamente valorizada por todos os trabalhadores entrevistados: além de ser vista como a promotora de cultura e conhecimentos, ela é fortemente associada, talvez por isso mesmo, a uma visão do mundo mais ampla e mais aberta, à maior facilidade de aprender e apreender as coisas, à capacidade de resolver problemas, dentro e fora do ambiente do trabalho, e ao sentimento de maior segurança. Na opinião dos entrevistados,sem essas possibilidades propiciadas pela educação, pelo conhecimento e pela cultura, sofre-se com o preconceito, com a falta de comunicação com os filhos mais escolarizados, sofre-se com as mudanças pelas quais passa o mundo ao redor e, mais especificamente, sofre-se com as mudanças que atingem a empresa e o trabalho a ser desempenhado.

Por outro lado, as transformações que atingiram as esferas da educação e do trabalho nas últimas décadas expressam-se e são sentidas de forma diferenciada pelos trabalhadores mais recentemente admitidos (em geral, mais jovens) e pelos mais antigos da empresa (em geral, mais velhos): enquanto os últimos afirmam sentir maior dificuldade e insegurança para visualizar abstrações e lidar com problemas imprevistos no decorrer da produção, os primeiros – até porque possuem maior escolaridade – sentem-se mais seguros. Se aqueles com mais idade e com menor escolaridade tendem a valorizar seus longos anos de experiência profissional, os mais jovens não só afirmam a maior dificuldade dos mais velhos para aprender a lidar com o novo como, também, a sua resistência para tanto, já que esse novo implicaria uma mudança de atitude: um abandono das práticas às quais eles se apegaram há muito tempo e/ou a coragem para assumir que não sabem uma atividade para, depois, dispor-se a aprender.

Ah, se for uma pessoa que está parada... é mais fácil de você trabalhar com um que tem o colégio completo. Porque a cabeça de quem estuda é outra, porque ele procura entender o colega. Porque tem uns que está parado no tempo, sabe. Tem pessoas que, você fala pra ele "ó fulano, você tem que fazer essa peça assim". Aí, o que não está estudando fala "não, assim é mais fácil". E o que está estudando "não, assim que é fácil". Eu falo "não, assim é fácil". É duro de você convencer uma pessoa que não tem aquela clareza dentro da cabeça, sabe, pessoas que não têm estudo... ela age pela experiência dela que ela tem, certo? Pela experiência dela, que tem que ser do jeito que ela aprendeu, não do jeito do teórico que está mostrando ali. Então, a dureza, a diferença é essa daí. Porque a pessoa que ela tem experiência própria ali, ela aprendeu daquele jeito ali, nessa parte é mais difícil de lidar com um que não está estudando porque ele aprendeu daquele jeito, ele não faz do outro jeito. Agora, se é um que está caminhando pra frente, está lutando, está querendo aprender... Então ele aceita numa boa, "não, é assim, assim fica mais fácil". Está mostrando na folha de instrução que é assim, então vamos fazer assim. [...] Então, nessa parte eu concordo que o estudo vale muito a pena pelo avanço que nós estamos tendo... (soldador especializado, 28 anos, cursando 2o grau)2 2 Nesta pesquisa, valemo-nos da nomenclatura referente à estrutura do ensino brasileiro definida na Lei 5.692/71, por nos permitir estabelecer a distinção mais clara entre 1 o e 2 o grau que a Lei n. 9.394/96 dificulta, ao incorporar a ambos sob o conceito de ensino básico.

É preciso ter claro que o relato acima transcrito é um exemplo do discurso dos jovens. Mas, mesmo quando os mais velhos falam, por mais que expressem maior dificuldade para lidar com o novo, em nenhum momento deixam de valorizar a educação – seja como um bem em si, seja como necessária ao trabalho –, ainda que haja um certo desânimo para dar continuidade aos estudos.

Está difícil, eu acho que a gente, chega uma idade, sabe, 47 anos... Eu fico pensando "será que vale a pena ainda voltar a estudar?" As minhas próprias filhas me incentiva "Não pai, vamos estudar de novo". (tratador termoquímico, 47 anos, 1o grau completo)

Ao mesmo tempo, deve-se notar que não são apenas a distância e a descontinuidade do estudo dos mais velhos que podem estar marcando a diferença entre as gerações no enfrentamento do novo modelo produtivo. As diferentes dinâmicas sociais, culturais e familiares, que serviram de pano de fundo para socialização dos mais velhos e dos mais novos, devem também ser responsáveis pelas reações, aparentemente diversas, dos dois grupos diante das inovações. Educados em outro momento, em que a escolaridade mais avançada dos empregados não se incluía entre as preocupações do empresariado, e oriundos, na maior parte das vezes, de setores sociais empobrecidos, vários dos trabalhadores mais velhos ostentavam, até há pouco tempo, escolaridade correspondente apenas às quatro primeiras séries do ensino de 1º grau, ou menos. O investimento das empresas brasileiras, no geral, e da investigada, particularmente, em treinamento e na elevação do nível educacional dos empregados da produção, não era, nesse período, uma prioridade. Portanto, a construção do conhecimento, no sentido amplo e no profissional, especificamente, se fez na base do senso comum, da tradição oral e da prática, e é com ele que vários dos profissionais mais velhos se defrontam com as máquinas e com as relações no interior da fábrica.

A progressiva e relativa substituição do "trabalho de fabricação" pelo do "controle da máquina" e mesmo pelo controle de fatias mais amplas do processo de trabalho, fenômenos intimamente ligados à automação, exige desses trabalhadores conhecimentos e habilidades que não apenas sua escolarização, mas também suas condições de vida, não lhes permitiram desenvolver, limitações que procuram suprir com seus saberes da prática – que, aliás, acabaram se revelando necessários, ainda que insuficientes, para o enfrentamento dos "eventos" ocasionados exatamente pela automação e flexibilização da fábrica. Não causa espécie, portanto, que valorizem esses saberes em torno dos quais construíram sua identidade e orgulho profissional. Não obstante, pressionados pelas mudanças e estimulados pela empresa (que, inclusive, lhes paga cursos supletivos de nível fundamental e médio) tais trabalhadores estão voltando à escola, não porque não saibam se conduzir adequadamente diante de um novo equipamento, quando orientados, mas porque não sabem fazê-lo com a autonomia que as circunstâncias requerem e a empresa obriga.

As mudanças que afetaram o chão-de-fábrica nas últimas décadas, advindas principalmente dos sistemas informatizados e das mudanças organizacionais aí introduzidas, parecem não revelar um consenso no que se refere à maior facilidade ou dificuldade de se lidar com elas. Pelos depoimentos colhidos, acredita-se não ser possível generalizar os efeitos das novas tecnologias para o trabalho como um todo, sem especificá-lo. Em outros termos, não faz muito sentido dizer que os trabalhos tornam-se mais fáceis ou mais complexos com as inovações tecnológicas. As empresas comportam uma variedade tão grande de atividades, ainda que se considere apenas o setor de produção, que se torna impossível afirmar que todas elas exigem maior capacidade de abstração, mais raciocínio, mais criatividade etc. e, conseqüentemente, níveis mais altos de educação formal. Nesse sentido, vale observar os relatos referidos a funções diferentes.

Entrevistador: E você acha que pra fazer isso era importante ter o 2o grau, ou a 8a série chega? Estou imaginando que lidar com micro, entrar no programa tenha alguma dificuldade, ou não?

Operadora de empilhadeira, 36 anos, 2o grau completo: Não, o sistema é muito simples. Muito simples e muito prático. Muito bem... muito bem programado.

Entrevistador: Então, uma pessoa com menor escolaridade também opera isso?

Operadora de empilhadeira: Acessa facilmente.

Entrevistador: No setor de mecânica, se você não tivesse o 2o grau ou não tivesse o 1o grau, você conseguiria trabalhar? Fazer aquele trabalho que é feito lá?

Mecânico-montador, 33 anos, 2o grau incompleto: É, pode ser que a gente faria, mas é meio, muito, muito, muito difícil. [...] É difícil, é difícil mesmo. Tanto na parte de mecânica como agora que eu estou fazendo esse treinamento de analista, é muito difícil. Porque geralmente, eu acho, quem já estudou até o 1o grau já tem um pouco mais, a mente um pouco mais aberta, do que as pessoas que fizeram até o 3o , que fizeram só até o 3o ano da escola. Fica mais fácil pras pessoas pegar alguma explicação, alguma coisa. Acho que a mente fica mais aberta pra quem estuda.

É importante notar que essa heterogeneidade depende não só do tipo de trabalho desenvolvido, mas também da idade, do grau de escolaridade e da antigüidade no serviço daquele que o executa – que podem propiciar maior segurança para o início de uma nova atividade ou, muito ao contrário, maior resistência para com o novo. Essas outras características só corroboram o fato de que não há correspondência estreita e direta entre o nível de escolaridade e a percepção do grau de complexidade da tarefa: a introdução de uma mesma tecnologia pode ser sentida e manejada de forma muito diferente por duas pessoas que tenham, por exemplo, a mesma escolaridade. Assim, a aparente contradição entre a mesma exigência de alta escolarização para tarefas técnicas de diferentes níveis de complexidade pode ser explicada pelo fato de que, se há heterogeneidade na base científico-tecnológica da produção, há também uma exigência universal de certos comportamentos e atitudes dos trabalhadores, que devem agora exercer diversas funções e ser capazes de autocontrole e de autonomia.

De qualquer modo, mesmo quando uma certa inovação técnica é associada à maior facilidade de execução do trabalho e, portanto, com exigência de menor escolarização, a educação formal continua sendo extremamente valorizada pelos motivos acima mencionados – propiciadora do desenvolvimento de novas idéias, para a capacidade de resolver problemas etc. – e também pelo fato de ela estar associada à transmissão de comportamentos e atitudes necessários para a convivência social e, mais especificamente, para a participação em reuniões de trabalho – uma prática hoje recorrente na empresa. Ou, como disseram de forma sintética vários trabalhadores, porque "abre a cabeça, ou a mente", não apenas do ponto de vista cognitivo, mas também das relações com as pessoas, facilitando-as. Assim, o desejo de continuar os estudos é manifesto por todos, como uma condição para não "ficar parado no tempo", para tornar-se uma pessoa realizada ou para aprimorar-se profissionalmente.

Também é interessante notar que os trabalhadores mais velhos que expressam a vontade de continuar os estudos nem sempre o fazem com um objetivo específico relacionado ao trabalho – por exemplo, uma promoção. O desejo de estudar advém, muitas vezes, da necessidade de compreender e ser compreendido nos diálogos da vida familiar, ou seja, de poder manter, dentro de casa, uma conversa de igual para igual com a esposa e com os filhos e/ou filhas que já o ultrapassaram em termos de escolaridade.

No trabalho? Refletiu assim que você pode discutir mais? Você está sabendo, você participa de debate, essas coisas. Agora, na parte de casa, a gente conhece, porque às vezes, a mulher, as menina minha está fazendo colegial, a outra minha está na 5ª série. Então, a gente está sempre ajudando, com coisa que com o 4º ano eu não podia nem discutir com a menina de 5ª série. (soldador especializado, 40 anos, cursando 1o grau)

A valorização da educação pelos mais velhos também é percebida na insistência com que grande parte deles diz aos seus filhos para darem continuidade ao estudo e nunca abandoná-lo em nome do trabalho, ainda que isso implique sacrifícios econômicos à família. Essa situação é relativamente diversa daquela vivenciada – na infância e adolescência – por esses trabalhadores que, não raro, foram obrigados e/ou incentivados por seus pais a trocarem a educação pelo trabalho.

Por outro lado, se os estudos dos mais velhos parecem ter sido prejudicados pela situação financeira ou pelo fato de seus pais valorizarem o trabalho mais do que a educação – às vezes até em detrimento desta –, isso não significa que a situação oposta não esteja presente: há jovens que também tiveram que trabalhar para ajudar seus pais e há também trabalhadores mais velhos cujos pais prezavam a continuidade dos estudos.

[Os pais] contribuíram porque, apesar de eles não serem alfabetizados, a alfabetização bem eficiente... mas eles sempre insistia pra que a gente não fosse igual a eles. Eles deram muita força pra que a gente continuasse estudando pra ter um nível de formação melhor do que a deles. (soldador especializado/treinamento, 42 anos, terminando 1o grau)

Todavia, essa valorização da educação não é consensual. Para um dos trabalhadores entrevistados, se a educação é vista como propiciadora de acesso a conhecimentos úteis na produção flexibilizada, nem sempre o é do ponto de vista da socialização: "a escola ensina como se posicionar diante de um papel, mas de como eu me comportar dentro de um grupo... é a educação sua [que realmente conta]". Ou seja, o modo de ser como pessoa, nos planos ético-moral e social, é atribuído à forma pessoal pela qual cada um aprendeu a relacionar-se com os outros. É claro que há, nessa opinião, distorções ou percepções pouco claras, pois o conhecido papel socializador que a escola exerce fica obscurecido. Tradicionalmente, os segmentos mais conservadores da sociedade sempre priorizaram a família como principal formadora ética e moral das crianças e adolescentes. Essa parece ser uma representação social bastante arraigada. No entanto, sabe-se que não é possível reservar à escola apenas o desenvolvimento cognitivo da criança. Elementos afetivos, éticos e morais estão sempre envolvidos na aprendizagem dos conteúdos curriculares e na vivência dos alunos no ambiente escolar.

Com relação aos conteúdos específicos transmitidos pela escola formal, a maioria deles não é vista como estreitamente relacionada ao trabalho desenvolvido, mas como pré-requisito básico, como suporte para o desempenho de qualquer atividade. Português e Matemática aparecem como as únicas disciplinas que, de fato, interferem no trabalho ou como instrumentos fundamentais para o bom desempenho de diversos tipos de tarefas.

Já os cursos desenvolvidos no Serviço Social da Indústria – Senai – são aqueles que, de fato, mais influenciam diretamente o trabalho realizado – como, aliás, era de se esperar, já que esses cursos são conhecidos pelo seu caráter instrumental, mas não só do ponto de vista técnico, como também social. Na verdade, constata-se em diversos documentos da instituição que ela entende que suas responsabilidades educativas não se esgotam nos treinamentos, mas se situam também no plano da formação daquelas atitudes em relação ao trabalho privilegiadas pelos empregadores (responsabilidade, disciplina, respeito à ordem, concentração, versatilidade, capacidade de adaptação, disponibilidade para participar). Tal característica da educação "Senai" foi corroborada pelo funcionário da empresa responsável pelo treinamento que, reiteradamente, destacou a excelência da formação técnica e das atitudes em relação ao trabalho dos egressos daqueles cursos. A presença do Senai nos relatos dos trabalhadores é também muito marcante, apresentando-se como um meio privilegiado de entrada no mercado de trabalho, como o início mesmo da vida profissional.

Além dessa relação do Senai com a inserção no mercado de trabalho, grande parte dos trabalhadores – ex-alunos dessa instituição – afirma que os cursos aí oferecidos dão uma boa base técnica, que facilita tanto o contato com os instrumentos quanto a maneira de desenvolver as tarefas específicas relacionadas ao ambiente e ao maquinário próprio de cada empresa; já os que não passaram pelo Senai demorariam mais tempo para se adaptar à empresa e exigiriam um maior acompanhamento por parte do pessoal de treinamento. Ao mesmo tempo, os ex-alunos afirmam que a experiência só será adquirida no próprio local de trabalho.

Adicionalmente, tende a ser encarada positivamente a exigência de elevação progressiva do nível de escolaridade. Em todos os casos, os trabalhadores parecem entender que a empresa se preocupa com eles como pessoas, ainda que visando aos seus interesses próprios. Aparentemente, essa visão resulta da conjugação de uma série de fatores: aceitação do discurso sobre a inexorabilidade das transformações atuais no campo do trabalho; satisfações derivadas do processo de capacitação técnica e atuação pedagógico-ideológica da empresa não percebida como tal.

Entretanto, a vontade e a necessidade de continuar os estudos não podem ser perseguidas por todos que as manifestam. Em quase todos os casos, a não-continuidade é atribuída a motivos financeiros, à falta de condições para conciliar a manutenção da casa – que vai desde a ajuda aos pais ao pagamento da escola dos filhos – com um curso pago e às dificuldades pelas quais se passou no passado.

Até onde eu pude chegar, deu pra mim ir. Adoro estudar, sempre gostei. Se a senhora pegar meus boletim escolar, tudo, não vou dizer as melhores notas, mas sempre de 8 pra cima. Sempre [...] um cara que gostei, me dediquei ao estudo. Toda a coisa que eu faço eu me dedico. Então, até onde eu pude chegar, o colegial técnico particular, eu cheguei. Daqui pra frente, eu sinto necessidade, sinto vontade de uma faculdade, mas não tenho condições... entendeu? Por que parou? Parou porque não gosta de estudar, detesta escola? Não, eu adoro estudar. Mas não tenho... (líder na chaparia, 25 anos, 2o grau completo)

No decorrer da discussão ficou patente que, no que tange às suas visões sobre a educação em geral, e sobre aquela a que tiveram acesso, os trabalhadores entrevistados, além de valorizarem a freqüência à escola, tenderam a emitir opiniões negativas sobre si mesmos, ou as de seus familiares sobre eles, ou deles sobre membros de suas famílias, quando se defrontaram com experiências de repetência, evasão ou abandono prematuro da escola, ainda que muitos tenham feito referências gerais a dificuldades de ordem econômica que os remeteram à inserção precoce na população economicamente ativa. No entanto, ainda que tenham sido mencionadas estas últimas referências, as quais apontam para determinações sociais e não individuais dos fracassos/limitações/exclusões escolares, elas não são aparentemente entendidas por eles como sócio-históricas, mas como fatalidades. Daí, talvez, o processo de autoculpabilização.

Por essa razão, não basta reportar as opiniões e sentimentos desses trabalhadores quanto a seu alijamento da escola. É necessário, para não referendar a autoculpabilização, destacar que são, provavelmente, mais vítimas do que responsáveis pelas circunstâncias que geraram as deficiências escolares que apresentam hoje, obrigando-os a retornar aos estudos para manter seus empregos. Nesse aspecto, não há muito o que acrescentar ao que é reiteradamente apontado nas análises sociológicas e educacionais, ou seja, às dificuldades com que se defrontam os setores empobrecidos da população de ingressar e manter-se na escola, por razões que têm sua origem na própria organização econômica e social do país, assim como por características da sua escola pública, a única a que muitos trabalhadores, como os entrevistados, têm acesso. Ressalte-se, todavia, que muitos desses trabalhadores deixaram de ir à escola porque, além das limitações apontadas, acrescem-se pelo menos duas mais, quando se considera a época em que os mais velhos dentre eles estavam em idade de freqüentá-la:

c. o tamanho relativamente pequeno das redes públicas de ensino, principalmente na zona rural e nos estados mais pobres do país, de onde alguns se originaram;

d. a inexistente ou relativamente acanhada exigência, por parte das empresas e, em muitos casos, da sociedade em geral, de que trabalhadores manuais, como os entrevistados, possuíssem alguma escolaridade ou a tivessem em grau mais elevado que o antigo primário, o que se reverteria em anos mais recentes.

Corroborando esta última hipótese, está o fato de que a empresa investigada estabeleceu o 1o grau completo como patamar mínimo para admissão, ao mesmo tempo que incentiva/pressiona os já admitidos a continuarem os estudos. De fato, qualquer possibilidade de promoção e mesmo de permanência na empresa, para jovens e velhos, está vinculada à continuidade dos estudos.

Por outro lado, as expectativas profissionais futuras têm um ponto em comum (independentemente do recorte geracional): todos esperam permanecer na empresa, não apenas porque a consideram um ótimo lugar para trabalhar mas, também, porque imaginam que não terão maiores oportunidades no mercado de trabalho em vista da acirrada concorrência em um contexto de desemprego cada vez mais acentuado. O medo de desemprego é recorrente.

Entretanto, se a educação é uma condição necessária para a permanência na empresa e para a mobilidade ascendente dentro e fora dela, já não é mais a condição suficiente para tal.

CONSTRUÇÃO DO "SER TRABALHADOR": RELAÇÕES NO TRABALHO E ESCOLARIZAÇÃO

A pesquisa registrou que hoje, seja para aqueles que estão no chão-de-fábrica, seja para os que desempenham funções no setor administrativo, o papel da empresa tende a ser determinante na construção do novo "ser trabalhador". Os treinamentos técnicos específicos realizados dentro da indústria desempenham importante papel nesse sentido.

Em 1987, época em que foi desencadeado o processo de reestruturação na fábrica focalizada, houve novo incentivo para a área de "Treinamento". A reestruturação da empresa concretizou-se mediante um processo recente de "certificação", tanto dos trabalhadores da produção, individualmente, quanto das equipes de trabalho, dos setores e dos produtos. Esse processo originou-se da decisão da empresa local de adotar procedimento idêntico àquele já utilizado em uma das fábricas da Corporação nos Estados Unidos, passando também a atender exigências das agências certificadoras internacionais (ISO 9000, por exemplo).

Do ponto de vista da Divisão de "Treinamento", interessa especificamente a certificação dos trabalhadores. Trata-se de um documento ("certificado") que o trabalhador recebe da empresa e que atesta ter ele passado por cursos teórico-práticos por ela3 3 A preparação técnica de trabalhadores para atuar com determinado equipamento pode ser feita, e em mais de um caso o é, por fornecedores desse equipamento. No entanto, a realização de cursos para tal fim não redunda na certificação do funcionário por parte da empresa pesquisada. oferecidos. Hoje, todos os empregados da produção admitidos devem ser "certificados" para sua função. Os cursos para tal iniciam-se, de preferência, imediatamente após a contratação e são executados por quatro instrutores e dez acompanhadores, que se revezam nas sessões teóricas e práticas.

O conteúdo desse treinamento teórico-prático é basicamente técnico e intrinsecamente ligado à função executada pelo trabalhador. O termo "teórico" é utilizado pelos trabalhadores para referir-se às aulas que recebem no setor de "Treinamento" ou às apostilas que lhes são passadas pelo mesmo setor. Não dispomos de informação para indicar quanto de "teoria" está contida em umas e outras. De qualquer forma, o treinamento não se esgota apenas nos conteúdos "teóricos"; implica também a realização de atividades práticas a ele relacionadas.

O certificado só é emitido quando o trabalhador passa pelas provas "teóricas" e práticas. Terminado esse processo, o operador é considerado "certificado" e começará a exercer suas funções sem supervisão do "padrinho"4 4 A empresa utiliza-se da figura do "padrinho" (um trabalhador mais experiente) que deve constantemente apoiar os trabalhadores que ainda não passaram pelos cursos de certificação. Ele é a garantia de que ninguém trabalhará autonomamente na produção sem estar certificado. .

Os saberes e as habilidades desenvolvidos no processo certificatório são considerados sempre provisórios em relação àqueles que os funcionários devem possuir, em virtude das exigências que continuamente se põem mediante a introdução de inovações tecnológicas e organizacionais. Por essa razão, a empresa estipula outra exigência em relação às certificações: a de que sejam renovadas anualmente, procedimento denominado "recertificação". Instaura-se, assim, um processo contínuo de prática-avaliação-treinamento-prática-avaliação que deverá acompanhar o restante da vida profissional de cada trabalhador, visando mantê-lo constantemente atualizado. Essa prática refere-se não apenas aos conteúdos técnicos próprios de suas funções (certificação/recertificação), mas também à possibilidade de ser certificado em outras funções que não a sua e nos cursos extra-certificação. Trabalhadores entrevistados indicaram a disposição de envolver-se em novas certificações não atinentes à sua função, seja para postular promoções, seja para aumentar sua "empregabilidade"5 5 Até poucos meses antes das entrevistas, era possível usar o tempo que sobrava da hora do almoço para esse tipo de treinamento voluntário. No entanto, para economia de custos, a empresa acordou com os trabalhadores (com o consentimento do sindicato) a concessão de apenas 36 minutos para o almoço, o que inviabiliza o esforço extra para treinamento nesse período. .

Com relação aos cursos extra-certificação, podem-se citar como exemplo os de inglês e informática. Os primeiros são estimulados em virtude da necessidade de leitura de manuais e para a utilização de programas de computador nessa língua6 6 Cursos de inglês são parcialmente financiados, diminuindo os subsídios à medida que o funcionário avança no aprendizado. . Os segundos o são tendo em vista o uso de terminais de computador nas oficinas para fazer requisição de peças aos setores competentes, para comunicar problemas que não podem ser resolvidos pelo próprio operador, ou simplesmente porque a própria função assim o exige.

Dessa maneira, se a empresa se posiciona como uma Learning Organization, ou como uma organização que pauta sua produção na atualização constante de conhecimentos e tecnologia referentes à sua área de atuação, possibilitando o acesso dos trabalhadores a qualquer curso por ela oferecido – seja para certificação em outras funções, seja para cursos supletivos conveniados com escola particular etc. –, não há garantia de uma promoção correspondente ao novo nível de escolarização atingido e/ou a uma melhoria salarial. Como afirmam a própria empresa e seus funcionários: são cursos destinados a garantir a empregabilidade de cada um. Assim, qualquer trabalhador pode reivindicar ser certificado para uma função que não a sua, mas não necessariamente haverá recompensas em termos promocionais e salariais. A fala que se segue é significativa para mostrar esse processo, que poderíamos denominar "crédito de qualificação":

...é todo um processo. Tem várias fases de certificação individual, cursos que você realiza aqui dentro, montador, analista de qualidade... Inclusive, uma coisa interessante, quando eu estava como aprendiz Senai, eu já aproveitei [para] fazer o curso de analista de qualidade, embora, na época, não tinha assim perspectivas de poder usar ou não, eu já fiz esse curso. Agora, quando eu recebi a promoção, ao invés, toda a pessoa que é promovida a analista ela tem que passar por esse curso, como eu já tinha feito isso como aprendiz, eu não precisei passar por novo treinamento e não precisei usar crachá. Então, eu já me preparei antes pra quando eu for promovido, eu já tinha as qualificações exigidas, vamos dizer assim, pelo cargo. Novo cargo. (analista de qualidade, 20 anos, cursando 3o grau)

Esse "crédito de qualificação" expressa um dos aspectos mais recentes na relação entre o mundo do trabalho e o da educação: atualmente, a pressão por maior escolaridade está cada vez mais forte, sem que haja, entretanto, perspectivas de emprego, de estabilidade e crescimento profissional.

É necessário, também, chamar a atenção para um programa específico de treinamento em curso na empresa quando da realização da pesquisa7 7 Em contatos informais depois de um ano da coleta de dados, soube-se que este programa foi desativado em virtude da recuperação da produção no ano de 2000. . Trata-se do programa lay-off, que suspendeu o contrato de trabalho de funcionários por quatro meses e que se sustentava na oferta de treinamento para novas "certificações", visitas a outras indústrias para observação de diferentes processos de trabalho e palestras sobre temas que pudessem abrir novas perspectivas de sobrevivência aos potenciais desempregados (por exemplo, sobre gestão de pequenos negócios). Tal programa foi acordado entre a empresa e o sindicato e tentava representar um "amortecedor" para a decisão da indústria de dispensar um grande número de funcionários, em vista da retração econômica do biênio 1998-1999. O grupo incluído no lay-off, com salário diminuído, pago em parte pela empresa e em parte com recursos do FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador –, permanecia na indústria em período integral, por quatro meses, em atividades de treinamento.

O processo de lay-off é um exemplo muito elucidativo do espectro de demissão e da valorização da qualificação como importante componente da nova cultura organizacional. De fato, a aceitação do lay-off está muito calcada na oportunidade de maior qualificação através do treinamento disponível para os operadores incluídos naquele programa. Ou seja, a ameaça de desemprego, que ronda os trabalhadores indicados para o lay-off, e a diminuição considerável do salário durante os quatro meses de duração do programa aparecem mitigados no discurso, ou contrabalançados pelo elogio da oportunidade de qualificação extra.

Esses dados parecem confirmar a hipótese já discutida por Castro, segundo a qual a qualificação, na nova forma de organização do trabalho no chão-de-fábrica, constitui elemento fundamental "na barganha política pelo consentimento do trabalhador individual, ampliando seu comprometimento com os objetivos da empresa" (Castro, 1997).

Outros depoimentos, todavia, indicam que a equação "mais qualificação = maior adesão aos interesses empresariais" não é infalível. Pelo menos no caso do lay-off, o discurso da aceitação é perturbado por outras declarações que indicam rejeição e conflito, como no depoimento abaixo.

Você acaba vendo que o pessoal também... ninguém tem sangue de barata: "pô, estou ganhando nada, venho aqui, palestras, sentado numa sala, tal". O pessoal de fábrica não está acostumado. É a mesma coisa que prender um passarinho que está solto na natureza. Ele chega ali, não está acostumado ficar dentro de uma sala. Ele está acostumado a andar, fazer o serviço dele lá embaixo. Então, é um sacrifício grande e não está ganhando bem... (soldador especializado/treinamento, 42 anos, terminando 1o grau)

A fala acima sugere que os trabalhadores encaminhados ao lay-off podem experimentar uma sensação de deslocamento em relação a seu grupo de pertencimento, ou seja, os colegas de trabalho, na medida em que não estão empregados nem desempregados. O lay-off aparece, assim, como uma espécie de "purgatório" do qual se pode migrar tanto para o "céu" (retorno à fábrica) quanto para o "inferno" (demissão).

Adicionalmente, é interessante notar uma contradição que parece permear o cotidiano dos trabalhadores em sua forma de ser. O discurso oficial enfatiza que, em face da inexorabilidade da competição mundial, derivada da globalização, os "inimigos externos" precisam ser combatidos por um time coeso e cooperativo, uma vez que, se a empresa fracassar, todos perecerão: empresa e trabalhadores. A solidariedade entre trabalhadores é, pois, mediada pela produção, que passa a constituir um "cimento ideológico", estabelecido a partir das metas da empresa, fixadas por meio de processo do qual participam os trabalhadores. Trata-se, assim, de uma solidariedade despolitizada, que se torna peça funcional estratégica na gestão empresarial. Por outro lado, ao se apontar a inexorabilidade das terceirizações, realocações e demissões no mercado, em geral, a empresa cria uma percepção de instabilidade diante do externo, o que passa a favorecer a emergência de uma competição agressiva entre os trabalhadores. Se o espectro da demissão ronda a vida dos trabalhadores, a concorrência interna torna-se acirrada e cada um busca sair-se o melhor que puder, conforme as regras impostas pela nova estratégia. Assim, nesse quadro aparentemente contraditório – de competição inexorável entre pares e de incentivo a um trabalho coeso de equipe – as declarações de Machado (1998) são confirmadas:

...a lógica individualizante não se mostra contraditória com o fomento de outro tipo de solidariedade, aquela que apela em favor do aumento da qualidade e da produtividade e é somente dentro desses marcos que ela reestabelece o coletivo e revaloriza os processos grupais de trabalho e as trocas subjetivas (p.84).

Nesse cenário, fica claro que o processo de formação do trabalhador por parte da empresa não se esgota, de forma alguma, no seu aspecto técnico, mas abrange também a divulgação e a aprendizagem de valores e a construção de comportamentos. Por isso, sua discussão precisa ser um pouco mais detalhada, em razão das relações entre aprendizagem de conteúdos técnicos e desenvolvimento de atitudes e de concepções sobre o trabalho e a empresa, de um lado e, de outro, em razão de outros processos educativos que esta desenvolve como parte desse mesmo processo, ainda que de forma não tão sistemática como os treinamentos.

Com relação ao primeiro enfoque, deve-se considerar que a máquina, a ferramenta, o processo de trabalho, o modo de fabricação não são entidades, nem abstratas, nem naturais. Ao contrário, são criações humanas, resultantes de valores, decisões, estratégias, interesses. Da mesma forma que um produto qualquer, a máquina carrega consigo tempo de trabalho e, portanto, valor econômico, assim como valores morais e sociais os quais, como os primeiros, não são evidentes, pois não se expressam sob a forma de alavancas, painéis, parafusos e arruelas. Entretanto, estão presentes e se manifestam sob a forma de recomendações de como tratar e usar o equipamento, de como fazer dele o melhor uso, de como conservá-lo e preservá-lo, seja por suas potencialidades produtivas, seja pelo seu valor como mercadoria etc. A aprendizagem do uso da máquina não é, portanto, meramente técnica, pois, ao mesmo tempo, engloba os valores morais e sociais a ela relacionados, segundo a prescrição de uso que faz dessa mercadoria o modo de produção que a produziu, tendo em vista suprir suas próprias necessidades e conveniências.

O mesmo se pode dizer, com igual razão e provavelmente até mais, da aprendizagem de processos de trabalho, pois esta não se reduz ao conhecimento e domínio de procedimentos técnicos, mas à valorização e ao cultivo de determinados tipos de relações sociais e interpessoais, uso do tempo e do espaço, formas de encarar e administrar conflitos etc., ao mesmo tempo que a rejeição de outros.

Com relação ao segundo aspecto, a empresa desenvolve vários procedimentos por meio dos quais visa adequar os trabalhadores às suas necessidades produtivas e sociais, formando valores, sugerindo comportamentos sociais e profissionais. Há, por exemplo, um espaço de cinco minutos, no início de cada turno na fábrica, para que o supervisor converse com os trabalhadores de sua célula. Os temas são, em geral, orientados pelo setor de "Treinamento" e podem referir-se à segurança, à introdução de novos programas, à filosofia mais geral da corporação etc. Há, ainda, outros recursos de comunicação (painéis, cartazes e terminais de computadores) espalhados por corredores e outros ambientes, com informações diversas, inclusive com recortes de jornais do dia. Uma videoteca e uma biblioteca também estão à disposição dos trabalhadores.

Adicionalmente, há um videojornal, de edição bimensal, que trata de temas diversos e um encontro anual com o presidente, denominado Encontro de Comunicação e Orientação – ECO –, para o qual os trabalhadores podem se inscrever. Nessa reunião, o presidente, depois de breve palestra, se dispõe a responder perguntas dos funcionários. Durante o ano são realizados pequenos encontros, por departamentos específicos, com a mesma função.

Há também outros procedimentos desenvolvidos fora do horário do expediente e aos sábados, como palestras sobre motivação para a qualidade e outros temas. Dentre os temas tratados nas palestras, os depoimentos dos trabalhadores especificam dois, ambos muito ilustrativos do processo de inculcação de valores que faz com que esses se apresentem não como do interesse da empresa, mas dos próprios trabalhadores ou, pelo menos, como do interesse compartilhado de ambos.

O primeiro tema refere-se às relações entre as mudanças em curso no mundo e as mudanças na empresa. Um bom exemplo dessa tática foram as exposições sobre globalização, competitividade, inflação e salário. A articulação entre os temas orientava-se pela seguinte linha de reflexão: mostrar como a inflação diminui o poder de compra dos trabalhadores e como onera o orçamento empresarial; em seguida, descrever como a competitividade empresarial havia se acirrado diante da globalização, como o mercado de trabalho havia se reestruturado, restringindo as possibilidades de emprego. As palestras ainda insistiam em deixar claro que a mundialização, além de exacerbar a concorrência, torna-a qualitativamente distinta, porque se dá entre as maiores corporações do mundo, num contexto de fusões e aquisições. A competitividade efetivamente constitui, portanto, a característica central da dinâmica econômica global. O resultado esperado para essa equação consistia na necessidade de reestruturação produtiva, demissões, realocações, terceirização, contenção salarial, ênfase na qualidade do produto e na qualificação do trabalhador por meio do aumento da escolaridade e treinamento contínuo. Muito provavelmente, tanto a globalização quanto a reestruturação produtiva não foram postas em questão, antes apresentadas como inevitáveis, consignando-se tal inevitabilidade ao desenvolvimento do progresso técnico e à "necessidade" de introduzir inovações na gestão.

Outro tema é o que se reporta à "empregabilidade". Depoimentos apresentam-na com conotações positivas, dado que a empresa não pode garantir o emprego de cada um de forma permanente, devido à flexibilização do mercado. Não foi possível verificar a forma pela qual a flexibilidade do mercado foi abordada na palestra mencionada ou que conteúdos foram priorizados. Mas, evidentemente, tal flexibilidade aparece aqui como algo inevitável, dado, naturalizado, sobre a qual, portanto, nem a empresa, nem os trabalhadores têm influência. A alternativa que resta a ambos é a de adaptar-se da forma mais conveniente à empresa, promovendo oportunidades para que o trabalhador aumente sua empregabilidade e este, esforçando-se por fazê-lo da melhor maneira possível. A conotação de que os termos flexibilidade e "empregabilidade" se revestem no discurso da empresa pode ser fruto da forma de abordagem, do conteúdo transmitido ou da interpretação do trabalhador. O recurso à literatura corrente no meio empresarial e ao "discurso competente", divulgado pela mídia, parece contudo não deixar muita dúvida quanto à origem desses significados, qual seja: a enorme produção de textos recomendada por consultores e consumida pelas empresas a respeito das virtudes da flexibilidade e das novas formas de organização da produção8 8 A ideologia da "empregabilidade", difundida na empresa por meio de sua cultura organizacional, é a mesma que informa a proposta nos documentos e diretrizes orientadores de reformas educacionais brasileiras recentes. .

Em ambos os casos, fica evidente a promoção de um processo de identificação entre o trabalhador e a empresa, em termos de objetivos a atingir e do que é igualmente desejável para ambos: o crescimento e a atuação compromissada tendo em vista esse fim.

Na mesma direção, algumas das palestras indicam os comportamentos desejáveis, quer no âmbito das relações sociais com colegas, quer no das relações familiares. O envolvimento da família nesse processo ocorre por diferentes canais: além de palestras sobre temas sensibilizadores dos pais (problemas da educação de adolescentes, saúde das crianças etc.), há possibilidade de freqüência ao clube da empresa, festas de confraternização e "o dia da família", quando os cônjuges e os filhos vêm à fábrica para observá-la em pleno funcionamento, dando materialidade à importância do trabalho do pai ou da mãe dentro do conjunto imponente, extremamente limpo e meticulosamente organizado da indústria.

Cabe destacar que, apesar da aparência difusa dos procedimentos acima analisados, quando comparados aos processos de treinamento técnico, eles, na verdade, são fruto de planejamento cuidadoso e de ações de disseminação constante e reiterada, visando ganhar e manter adesões à filosofia da empresa. Basta lembrar as menções à freqüência das palestras e às conversas diárias dos supervisores com os funcionários sob sua responsabilidade. Por outro lado, tais procedimentos, embora continuem em vigor, parecem ter sido mais intensos e necessários no início do processo de reestruturação, pelo que se depreende da menção de um dos trabalhadores quanto à necessidade da empresa de cobrar constantemente a adesão por várias maneiras, sugerindo que esta não ocorreria de forma tranqüila e espontânea.

O cara foi preparado de uma maneira, a cabeça do cara, que ele tem que aceitar a mudança, senão ele vai estar fora do mercado. Através de treinamento, palestra que eles sempre dão aqui, traz alguém de fora que só fazem palestra, dão palestra. Então é muito bom para o cara começar abrir a cabeça e começar a mudar também. (soldador especializado/treinamento, 42 anos, terminando o 1o grau)

Tanto os procedimentos que se referem às relações no âmbito do espaço físico e institucional da fábrica, quanto os que o ultrapassam, atingindo inclusive a esfera familiar, lembram as discussões de Gramsci (1978), nas quais este ressalta o esforço desenvolvido pelo capital para constituir não apenas um novo tipo de operário, mas de homem, adequado às necessidades produtivas.

Evidentemente, a estratégia psicologicamente envolvente vem também permeada de certas vantagens materiais disponíveis aos trabalhadores: assistência médica diferenciada, cesta básica, financiamento da educação etc. Mas não é só isso. Constatou-se também que as novas exigências apresentam aos trabalhadores reais oportunidades de aquisição de novos conhecimentos (no mínimo, oportunidade de lidar melhor com o simbólico: por exemplo, interpretar desenhos e manipular comandos eletrônicos, desde os mais simples até os mais sofisticados) e o desenvolvimento de alguns comportamentos e atitudes (iniciativa, comunicabilidade, responsabilidade etc) que podem significar uma objetiva elevação da qualificação profissional. Um elemento de autoconfiança profissional – que pode fazer diferença no nível de qualificação – advém do fato de que agora o saber tácito do trabalhador é valorizado (pelo menos no plano simbólico, quando o operador é incentivado a dar sua opinião ou a tomar rápida decisão diante de um problema técnico inesperado). Agregue-se a isso a situação macroeconômica deteriorada (baixos salários e altos índices de desemprego) e tem-se o cenário perfeito para a construção de sujetividades muito afinadas com o novo modo de produção.

Em resumo, o que se viu foi a grande influência da empresa na construção de um certo tipo de qualificação, voltada para o desenvolvimento da capacidade adaptativa: adaptação não só às constantes inovações tecnológicas e organizacionais, mas também à insegurança do vínculo do trabalhador com a empresa, onde períodos de sobrecarga de trabalho e de estagnação se alternam. Os sistemas de lay-off, como já discutido, e de "banco de horas"9 9 "Banco de horas" refere-se ao sistema acordado entre a empresa e o sindicato por meio do qual não são pagas horas extras aos trabalhadores quando há necessidade de produção extra. Desse modo, o trabalhador acumula horas que podem constituir dias de folga em época de baixa produção. garantem para a indústria a força de trabalho do tamanho exato de suas necessidades, sem o ônus financeiro de indenizações e pagamento de horas extras. Para o trabalhador, restam a permanente insegurança e o grande esforço de qualificar-se constantemente para tornar-se o menos "dispensável" possível.

Nesse contexto, ficou muito claro na pesquisa que a expressão de reivindicações coletivas e a filiação a associações de classe não são condições bem vistas. Há, em todo processo, uma lógica que individualiza o trabalhador, pois procura-se evidenciar que é o desenvolvimento de suas competências individuais o motor do progresso empresarial e pessoal, o que favorece a competição entre os indivíduos, bem como produz o enfraquecimento da solidariedade enformada pelos interesses coletivos. Adicionalmente, os dados indicam a existência de rivalidades entre grupos (os mais jovens e mais escolarizados versus os mais velhos e mais experientes), o que ilustra bem aquele aspecto da construção da qualificação profissional – o conflito intraclasse – o qual, como já analisado por Castro (1995), pode restringir a alguns grupos certos tipos de qualificação.

O conjunto dos dados indica que um certo nível de qualificação, eficientemente desenvolvida a partir da empresa e/ou por ela requerida, não tem como perspectiva a expansão das potencialidades humanas e a emancipação do coletivo, perspectiva essa proclamada pelos arautos da "transformação produtiva com eqüidade" (Cepal, 1990). Ao contrário, concordamos com Shiroma e Campos quando afirmam que, para alcançar aqueles objetivos, seria necessário haver espaço para agregar

...ao conjunto das competências profissionais, as competências políticas que permitiriam aos indivíduos refletir e atuar criticamente sobre a esfera da produção, assim como na esfera pública, nas instituições da sociedade civil, constituindo-se como atores sociais dotados de interesses próprios que se tornam interlocutores legítimos e reconhecidos. (1997, p.26)

Nossos dados mostram que os trabalhadores da empresa pesquisada podem ser tratados como interlocutores competentes no âmbito técnico-profissional. Existem, no entanto, restrições muito concretas à sua formação/atuação social e política, restrições constituídas, principalmente, de estratégias de ocultamento das relações de poder e de total identificação dos interesses dos trabalhadores com os interesses da empresa. Sob nosso ponto de vista, é nesse núcleo intocado das relações no trabalho que persiste – latente ou explícita – a contradição básica que a nova reestruturação produtiva tenta minimizar.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Sabe-se que a formação mais completa do trabalhador, conforme definição discutida, não será desenvolvida pela empresa, qualquer empresa, pois contém elementos contraditórios aos interesses patronais. Poderá, evidentemente, realizar-se na empresa, à sua revelia, caso as contradições de interesses se agucem e se expressem. Também não será concretizada de forma cabal pela escola, qualquer escola. No entanto, como educadores, nossa preocupação nodal é esclarecer qual o papel da instituição escolar na construção da qualificação profissional. Assim, neste trabalho, como subsídio para elucidar a questão, registrou-se e analisou-se a visão que os trabalhadores têm da educação escolar, e como a escolarização é tratada e avaliada pela empresa.

A exigência de elevação do nível de escolaridade dos trabalhadores, como uma política praticamente consensual das empresas, mesmo as de tamanho pequeno e médio, tem sido justificada pelo setor empresarial como uma necessidade quase imanente às novas formas de organização do trabalho e à introdução de novas tecnologias de base física. Isso na medida em que, supõe-se, tais inovações, assim como as novas formas de gestão dos trabalhadores, demandariam novos atributos, de natureza mais intelectual que manual (geralmente apresentados em longas listas, de forma vaga e genérica), cujo desenvolvimento seria de responsabilidade da escola formal.

Assumindo essa exigência, ou sendo instada a fazê-lo, a escola vê-se a braços com a necessidade de repensar sua atuação perante as novas solicitações que, em razão do discurso ideológico e do crescente desemprego, atribuído no geral mais à desqualificação do trabalhador do que às políticas macroeconômicas, deixaram em pouco tempo de ser apenas empresariais para se tornarem sociais, em sentido amplo, independentemente de sua pertinência. Mas a escola, principalmente a pública, encontra, por várias razões, muitas dificuldades para elevar o nível de escolarização desse contingente populacional. Talvez, por isso, se torne cada vez mais presente, no âmbito social, a reivindicação de que esta melhore sua qualidade, fazendo coro ao discurso do governo que, contraditoriamente, não cria, ele próprio, as condições para tal melhoria, remetendo-a, apesar disso, e por isso, aos profissionais da escola, aos pais de alunos e à sociedade em geral.

Apesar desse descompasso, a exigência de escolaridade ganha níveis cada vez mais altos, mesmo que, como se pôde verificar na pesquisa, conhecimentos cada vez mais aprofundados não sejam efetivamente demandados na prática das atividades do trabalho. Por que, então, tal exigência?

A literatura tem apontado uma razão de ordem pragmática, qual seja, a necessidade que as empresas têm, para disputar espaço no mercado internacional, de obter certificações que lhes atribuam credibilidade nesse mesmo mercado. Ora, uma das exigências para a concessão de tais certificados é a de que a força de trabalho empregada ostente níveis de escolaridade correspondentes à educação básica que, no caso brasileiro, de acordo com a LDB n. 9.394/96, engloba o ensino fundamental e médio, com base nos argumentos elencados.

Mas há outra razão, detectada pela pesquisa, que pode ser resumida na afirmação anterior de que a escola contribui para a qualificação do trabalhador "abrindo-lhe a cabeça". A expressão "abrir a cabeça" foi reiteradamente utilizada, tanto pelos trabalhadores entrevistados quanto pelo pessoal da administração, em particular pelo Setor de Recursos Humanos da empresa. Um equivalente desse termo – a capacidade de defrontar-se com mudanças e assimilá-las – tem aparecido na literatura, associado ao nível de escolaridade dos candidatos a emprego. Assim estabelecida a relação entre nível de escolaridade e "cabeça aberta", cabe perguntar o que a expressão denota.

Nas entrevistas, seja com os trabalhadores, seja com o Setor de Recursos Humanos, seu significado não foi suficientemente explicitado, apesar das tentativas de aprofundamento, talvez porque os próprios interlocutores não tivessem clareza a respeito. Indicações imprecisas sugerem que ela é empregada para denotar desde a capacidade de ouvir e expressar opiniões até a disposição para experimentar uma alternativa não cogitada antes para encaminhar uma situação ou problema. Passa também pela capacidade de rever crenças, concepções, procedimentos, métodos e mesmo relações de forma "civilizada" e cooperativa, tendo em vista os objetivos perseguidos por uma equipe de trabalho ou pela empresa como um todo. Nesse sentido, expressões como "cabeça aberta", "capacidade de reconhecer as mudanças e assimilá-las" parecem ser utilizadas com a mesma conotação do termo flexibilidade.

O pressuposto que parece operar, tanto na interpretação do pessoal da empresa investigada quanto na literatura, é o de que o nível de escolaridade mais elevado pode ser tomado como indicador de maior probabilidade de que seu portador seja (ou tenha mais condições de vir a ser) um trabalhador mais flexível do que outro com menor escolarização, quer em virtude da posse de conhecimentos mais aprofundados, quer em decorrência do processo de socialização desenvolvido pela escola. Sem que se estabeleçam relações mais precisas entre essas duas dimensões e o desenvolvimento da flexibilidade, torna-se difícil afirmar que seu desenvolvimento resulte necessariamente no esperado. Trata-se, nessas condições, de uma aposta não destituída de sentido, se se consideram as contribuições dos estudos sobre a educação que indicam que a aprendizagem escolar afeta positivamente o desenvolvimento intelectual e social dos alunos.

No âmbito dos dados analisados, observa-se que vários trabalhadores, ao afirmarem que a passagem pelo supletivo contribui para lhes "abrir a cabeça", acrescentaram que a volta à escola tem-lhes permitido manter relações mais ricas com os filhos cuja escolaridade é, hoje, superior à que eles próprios possuem ou à que detinham até pouco tempo. Faz também não se sentirem tão inferiores, em alguns casos, a seus subordinados.

De modo geral, confirma-se o conhecido e elevado grau de consenso – que engloba diferentes esferas, camadas e atores sociais – sobre a "positividade" da escola. Nesse contexto, tende a ocorrer uma forte idealização da educação formal, em geral, e da disponível aos jovens hoje, em particular. Como compreender essa idealização? Há, no nosso entender, duas hipóteses a serem consideradas, não mutuamente exclusivas e, sim, complementares. A primeira delas é a de que se instaurou, no plano social mais amplo, por efeito de ações governamentais, da atuação da mídia e das condições adversas aos trabalhadores no mercado de trabalho, uma promoção exagerada das contribuições que a educação teria a oferecer não apenas quanto ao desenvolvimento econômico-social, como também em termos da solução dos problemas individuais de emprego. A segunda hipótese é a de que as empresas, em geral, e a investigada, em particular, atuaram nesse processo, em benefício de seus interesses, como caixa de ressonância para o discurso redentor sobre a educação. Nesse sentido, o discurso e as ações no âmbito privado, assim como no público, reforçaram-se mutuamente.

A produção da idealização da educação no plano da empresa pesquisada se faz em dois níveis. No primeiro deles, é promovida por meio dos discursos proferidos pelo presidente da subsidiária, seja em reuniões anuais, seja por meio de boletins, panfletos, jornais internos etc. Mas esse tipo de ação multiplicadora não teria qualquer efeito maior se não fosse seguido daquelas que ocorrem no segundo nível, ou seja, no das práticas cotidianas. Estas se manifestaram por duas formas, ambas capitaneadas pela empresa, mas com derivações, entre os próprios trabalhadores, que resultam da internalização do discurso redentor sobre a educação.

A primeira forma é a que se expressa na exigência de um certo grau de escolaridade para que ocorra a admissão do candidato ao emprego. Tal exigência se situava no patamar mínimo do ensino fundamental completo, em 1998 e, em 2000, no nível do ensino básico completo. Uma variante dessa forma expressa-se na exigência da elevação contínua da escolaridade e/ou das competências. Nesse sentido, a empresa não apenas reitera a exigência pela ameaça, velada ou explícita, de demissão e/ou de estagnação num determinado nível de capacitação – o que, nas circunstâncias existentes, significa quase a mesma coisa –, mas também pela disponibilização de cursos de treinamento e outros, cujos custos são, total ou parcialmente, cobertos por ela.

A segunda forma, mais sutil, pois já implica a internalização do caráter redentor da educação, manifesta-se pela atribuição dos insucessos, falhas, estagnação, desemprego, à insuficiente escolaridade. Em mais de uma ocasião, fosse o entrevistado um coordenador, o "líder" de um setor ou o operador, dentre outros fatores aventados para "explicar" um situação mal resolvida ou um problema surgido, a insuficiência do nível educacional de um ou mais membros da equipe sempre acabava por ser mencionada. Criou-se, assim, no cotidiano, um ambiente de exaltação da educação, seja para explicar, pelo menos em parte, os sucessos de produtividade, seja para justificar as falhas ocorridas.

No entanto, em nível teórico, tal "positividade" está longe de ser considerada um ponto pacífico. Ao contrário, trata-se de uma questão candente, uma vez que por detrás dela colocam-se os valores e as escolhas sociais que orientam a estrutura e o fazer da escola. Vários estudos têm apontado que a escola, tal como está instituída, desempenha não apenas funções de reprodução, mas também de discriminação social. Sua "positividade", nesse caso, pode resultar do desejo social, geral ou de grupos sociais, de que exerça de fato tal função. Essa argumentação será imediatamente contestada por aqueles que entendem não ser esse o papel da escola, mas sim o de formar sujeitos autônomos, do ponto de vista intelectual e moral, capazes de exercer juízos críticos e fundamentados sobre a sociedade. Neste caso, os processos de reprodução seriam contra-arrestados por elementos de contestação social. De fato, é mais provável que a escola exerça, por ser uma instituição contraditória, ambas as funções, ainda que muitas vezes sem clareza de que o faz, ou mesmo em contradição com o que lhe é consciente ou racionalmente proposto.

Recebido em: dezembro 2002

Aprovado para publicação em: dezembro 2002

Este artigo é uma versão resumida e mais elaborada de trabalho publicado em Textos FCC, n.22, de dezembro de 2002, e refere-se a parte de resultados da pesquisa "A qualificação como construção social", financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa – Fapesp – e desenvolvida pelos autores.

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  • 1
    Sabe-se, entretanto, que esta anulação pretendida pelo modelo fordista não corresponde de fato ao trabalho real, no qual efetivamente se faz presente a qualificação tácita (Daniellou, La Ville, Teiger, 1989; Wood, Jones, 1984)
  • 2
    Nesta pesquisa, valemo-nos da nomenclatura referente à estrutura do ensino brasileiro definida na Lei 5.692/71, por nos permitir estabelecer a distinção mais clara entre 1
    o e 2
    o grau que a Lei n. 9.394/96 dificulta, ao incorporar a ambos sob o conceito de ensino básico.
  • 3
    A preparação técnica de trabalhadores para atuar com determinado equipamento pode ser feita, e em mais de um caso o é, por fornecedores desse equipamento. No entanto, a realização de cursos para tal fim não redunda na certificação do funcionário por parte da empresa pesquisada.
  • 4
    A empresa utiliza-se da figura do "padrinho" (um trabalhador mais experiente) que deve constantemente apoiar os trabalhadores que ainda não passaram pelos cursos de certificação. Ele é a garantia de que ninguém trabalhará autonomamente na produção sem estar certificado.
  • 5
    Até poucos meses antes das entrevistas, era possível usar o tempo que sobrava da hora do almoço para esse tipo de treinamento voluntário. No entanto, para economia de custos, a empresa acordou com os trabalhadores (com o consentimento do sindicato) a concessão de apenas 36 minutos para o almoço, o que inviabiliza o esforço extra para treinamento nesse período.
  • 6
    Cursos de inglês são parcialmente financiados, diminuindo os subsídios à medida que o funcionário avança no aprendizado.
  • 7
    Em contatos informais depois de um ano da coleta de dados, soube-se que este programa foi desativado em virtude da recuperação da produção no ano de 2000.
  • 8
    A ideologia da "empregabilidade", difundida na empresa por meio de sua cultura organizacional, é a mesma que informa a proposta nos documentos e diretrizes orientadores de reformas educacionais brasileiras recentes.
  • 9
    "Banco de horas" refere-se ao sistema acordado entre a empresa e o sindicato por meio do qual não são pagas horas extras aos trabalhadores quando há necessidade de produção extra. Desse modo, o trabalhador acumula horas que podem constituir dias de folga em época de baixa produção.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Set 2003
    • Data do Fascículo
      Mar 2003

    Histórico

    • Aceito
      Dez 2002
    • Recebido
      Dez 2002
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