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Trabalho e estratégias formativas: um exemplo empírico

Work and skill formation strategies: an empirical example

Resumos

Apoiado em pesquisas empíricas realizadas no Rio de Janeiro nos últimos anos, este relato focaliza profissionais considerados "potenciais ganhadores", "potenciais perdedores" e "ideológicos alternativos em processo de integração" no contexto das transformações ocorridas na estrutura produtiva e no mercado de trabalho dos últimos anos. Tem-se pesquisado segmento profissional e sua característica, no que diz respeito à microeletrônica e aos novos meios de comunicação (potenciais ganhadores), aos professores aposentados e profissionais que entraram em Planos de Demissão Voluntária (potenciais perdedores); e professores ativos, que complementam sua renda com atividades informais e pessoas ligadas a segmentos dedicados a diferentes práticas alternativas no processo de integração à nova era capitalista (terapeutas corporais, praticantes de "adivinhações" e de alimentação alternativa). O tratamento conjunto dos três grupos pretende oferecer uma visão ampla dos processos que os afetam e suas contradições, focalizando também as novas estratégias formadoras acionadas em meio à fragmentária qualificação nos anos mais recentes.

MERCADO DE TRABALHO; QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL; SOCIOLOGIA DO TRABALHO


Based on empirical research conducted in Rio de Janeiro during the past few years, this article focuses on professionals considered as "potential winners", "potential losers" and "followers of alternative/ideological jobs in the process of integration" within the context of changes occurred in the production structure and in the labour market during recent years. Research has focused on different professional segments and their characteristics connected to: microelectronics and the new means of communication (potential winners); retired teachers and professionals who opted for voluntary resignation programs (potential losers); and teachers who are working and supplement their income with informal activities and persons dedicated to different alternative practices in the process of integration into the new capitalism age (body therapists, "fortune-tellers" and alternative food suppliers). The treatment given to the three groups altogether aims to provide a wider outlook of the processes that affected as well as their contradictions. The article also focuses on the new skill formation strategies adopted the midst of the fragmentary qualification processes during the past few years.

LABOUR MARKET; EMPLOYMENT QUALIFICATIONS; SOCIOLOGY OF LABOUR


OUTROS TEMAS

Trabalho e estratégias formativas: um exemplo empírico

Work and skill formation strategies: an empirical example

Vanilda PaivaI; Vera CalheirosII; Giselia PotengyIII

IInstituto de Estudos da Cultura e da Educação Continuada – Rio de Janeiro vppaiva@terra.com.br IIInstituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro veracalheiros@openlink.com.br IIIDepartamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco giselia@idaco.org.br

RESUMO

Apoiado em pesquisas empíricas realizadas no Rio de Janeiro nos últimos anos, este relato focaliza profissionais considerados "potenciais ganhadores", "potenciais perdedores" e "ideológicos alternativos em processo de integração" no contexto das transformações ocorridas na estrutura produtiva e no mercado de trabalho dos últimos anos. Tem-se pesquisado segmento profissional e sua característica, no que diz respeito à microeletrônica e aos novos meios de comunicação (potenciais ganhadores), aos professores aposentados e profissionais que entraram em Planos de Demissão Voluntária (potenciais perdedores); e professores ativos, que complementam sua renda com atividades informais e pessoas ligadas a segmentos dedicados a diferentes práticas alternativas no processo de integração à nova era capitalista (terapeutas corporais, praticantes de "adivinhações" e de alimentação alternativa). O tratamento conjunto dos três grupos pretende oferecer uma visão ampla dos processos que os afetam e suas contradições, focalizando também as novas estratégias formadoras acionadas em meio à fragmentária qualificação nos anos mais recentes.

MERCADO DE TRABALHO – QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL – SOCIOLOGIA DO TRABALHO

ABSTRACT

Based on empirical research conducted in Rio de Janeiro during the past few years, this article focuses on professionals considered as "potential winners", "potential losers" and "followers of alternative/ideological jobs in the process of integration" within the context of changes occurred in the production structure and in the labour market during recent years. Research has focused on different professional segments and their characteristics connected to: microelectronics and the new means of communication (potential winners); retired teachers and professionals who opted for voluntary resignation programs (potential losers); and teachers who are working and supplement their income with informal activities and persons dedicated to different alternative practices in the process of integration into the new capitalism age (body therapists, "fortune-tellers" and alternative food suppliers). The treatment given to the three groups altogether aims to provide a wider outlook of the processes that affected as well as their contradictions. The article also focuses on the new skill formation strategies adopted the midst of the fragmentary qualification processes during the past few years.

LABOUR MARKET – EMPLOYMENT QUALIFICATIONS – SOCIOLOGY OF LABOUR

As transformações das últimas décadas foram rapidamente notadas como processos sociais que gerariam ganhadores e perdedores. A importância adquirida pelos novos meios de comunicação em íntima relação com a microinformática (exemplo, internet) gerou novos negócios, um grande e novo campo de transações virtuais de diferentes tipos e, portanto, de potenciais ganhadores nos novos tempos. Em meio à retração do assalariamento e do emprego de longa duração e da proteção social houve um generalizado incentivo ao auto-empresariamento, que sobrevive com força neste começo de século. Os grupos que aqui denominamos como "potenciais ganhadores" foram especialmente atingidos por tais idéias e nem sempre ganharam, pois os negócios virtuais passam por forte crise mundial desde o estouro da bolha especulativa, refletindo uma crise econômica mais ampla; como grupo, porém, representam uma "ponta" para a qual estão abertas possibilidades futuras. Mas, a retração do emprego e da proteção também empurraram grandes segmentos de profissionais experientes para a aposentadoria (em muitos casos precoce), retirando do mercado força de trabalho de meia-idade. Este processo foi complementado pelo acionamento, pelos governos e mesmo por firmas privadas, de Planos de Demissão Voluntária – PDV – ou Incentivada – PDI– com vantagens financeiras oferecidas àqueles que deixassem os postos de trabalho que haviam ocupado por longos anos. Estas vantagens estavam, freqüentemente, associadas à aposentadoria e conectadas também à difusão da idéia do auto-empresariamento. Tratava-se de afastar trabalhadores cuja experiência era considerada nefasta à introdução das novas tecnologias e à retração da proteção social e seus integrantes são potenciais perdedores nesta nova era.

Paralelamente, tem sido possível identificar segmentos que não se enquadram na dicotomia ganhadores/perdedores. Podem ser representantes de categorias profissionais que têm perdido renda ao longo das últimas décadas por trabalharem nos serviços de bem-estar dos Estados (como médicos e professores) e têm acionado, paralelamente ao emprego formal, estratégias de complementação de renda com atividades informais. Podem também incluir grupos de pessoas com alto nível de formação que fizeram uma opção ideológica "alternativa" a qual os retirou da competição do mercado e que viram, especialmente nos anos 90, condições muito propícias para uma integração no mercado de serviços do novo capitalismo. Agregam ainda jovens que vêem atividades tradicionalmente consideradas alternativas como campos novos nos quais se podem lançar e se inserir mais facilmente.

Estes três grupos foram objeto de nossa pesquisa empírica e serão tratados neste texto.

METODOLOGIA

Os grupos indicados foram abordados por metodologia socioantropológica, cuja parte empírica foi realizada na cidade do Rio de Janeiro entre 1996 e 2000, combinando questionário e entrevista semi-estruturada com profissionais contatados por redes de relações pessoais dos pesquisadores.

Nos segmentos docentes pesquisados, os procedimentos permitiram perceber os cursos históricos reais nas trajetórias ocupacionais, nas estratégias alternativas, na complementaridade entre atividades formais e informais e nas formas de transição no mundo do trabalho. Informações sobre docentes aposentados de ensino superior foram coletadas em 22 questionários e entrevistas aprofundadas com 13 deles. Este grupo de "potenciais perdedores" foi complementado nos recortes posteriormente pesquisados com funcionários das Telecomunicações do Rio de Janeiro – Telerj – que aderiram aos Planos de Demissão Voluntária ou Incentivada nos anos 1990, entre os quais foram entrevistados 23 profissionais em 1999.

Docentes ativos do primeiro e segundo graus foram entrevistados como parte do grupo intermediário de profissionais que têm perdido renda ao longo das últimas décadas, exatamente por trabalharem nos serviços de bem-estar do Estado (como médicos e professores) e se somaram aos "alternativos" em processo de integração. Não são necessariamente ganhadores nem perdedores, porque acionam estratégias compatíveis com as exigências deste novo capitalismo. Foram realizadas 35 entrevistas com professores ativos que complementam renda e 15 entrevistas semi-estruturadas. Objetivou-se detectar a dinâmica das atividades informais acionadas pelos professores no espaço escola, as razões que deflagraram o seu início, os investimentos necessários, a organização ou reorganização do espaço/tempo dedicado à casa, à família, à escola e aquele necessário à produção/comercialização de mercadorias e/ou prestação de serviços, a formação da clientela, as formas de remuneração, as estratégias adotadas para a divulgação das mercadorias que produzem e dos serviços que prestam, a percepção da carreira do magistério e sua relação com a necessidade de engajamento em atividades remuneradas complementares e os planos para o futuro.

O grupo de professores ativos entrevistados que complementam renda foi constituído a partir de pesquisa socioetnográfica anterior, realizada em três escolas municipais do Rio de Janeiro. Muitas entrevistas foram feitas nas próprias escolas, nos intervalos de aulas e diziam respeito à venda de alimentos congelados, roupas, jóias, cosméticos e até o agendamento da elaboração de mapas astrais. Em alguns casos, porém, foi necessário realizá-las nas ruas da cidade ou em outros locais.

No que concerne aos "alternativo-ideológicos", os entrevistados foram divididos em subgrupos dedicados às mancias (três astrólogos e três tarólogos), à alimentação alternativa (uma macrobiótica, duas slow-foode quatro outras alternativas alimentares) e às terapias corporais (seis entrevistados dedicados ao shiatsu, oito a outras formas de terapia corporal), num total de 27 entrevistas. Essas escolhas prendem-se à visibilidade dos subgrupos que, tendo feito no passado opção ideológica por uma vida alternativa, começaram a passar por nova onda de absorção na nova era do capitalismo. O grupo, na medida em que se deixou absorver, tende a integrar o campo dos "ganhadores"; no entanto, sua posição social está ainda eivada de muita ambigüidade e de todos os problemas ligados à constituição e legitimação de novos campos profissionais.

Finalmente, os profissionais de informática constituem um universo muito diferenciado, uma vez que esta área se caracteriza por variadas formas de relações de trabalho e exigências de qualificação, não havendo registros da passagem da maioria dos profissionais que estão em atividade, em firmas, sindicatos ou qualquer outra organização que indicasse um possível universo representativo. Na primeira pesquisa, as 35 entrevistas realizadas levaram em consideração sexo, idade, formação/qualificação e formas de inserção. Uma das redes pesquisadas era composta de amigos com menos de 30 anos com hábito de trabalhar juntos e que indicavam uns aos outros para assumir funções dentro de projetos. Afirmavam que se formaram como autodidatas ou que eram ou foram colegas de cursos universitários e se consideravam como aqueles que mais se destacavam na sua idade. Situavam-se em diferentes posições no interior do grupo (gerentes de projeto, autônomos, estagiários) e integravam diversas redes de profissionais que militavam em associações de empresários e em sindicatos de trabalhadores. Cerca de 2/3 dos entrevistados estavam na faixa de 20 a 40 anos e 1/3, na faixa acima de 40 anos, sendo 10 mulheres e 25 homens.

Dos entrevistados, 23 tinham, pelo menos, o 3o grau completo e dois estavam cursando a graduação, havendo entre eles cinco mestres, dois doutores e quatro em cursos de pós-graduação. Quanto às áreas profissionais, sete haviam-se formado em engenharia (todos homens), cinco em informática (sendo duas mulheres) e três tinham o diploma de tecnólogo. Os demais eram oriundos dos mais diversos cursos de graduação, como pedagogia, letras, comunicação, economia etc. Apesar desses níveis de qualificação formal, era enorme a importância da qualificação informal, real, conseguida durante o processo de trabalho, em razão da extrema variedade das relações de trabalho e de tipos de qualificação dos trabalhadores. Assim, uma mesma pessoa realiza, muitas vezes, diversas atividades, envolvendo inserções qualitativamente diferenciadas.

Esse grupo de "potenciais ganhadores" se completa com a pesquisa realizada entre profissionais com alto nível de qualificação que utilizam os modernos meios de comunicação e, mais concretamente, fazem a internet funcionar, ou seja, trabalham em empresas, próprias ou não, que estão diretamente ligadas à internet. Foram realizadas 26 entrevistas, segmentadas por idade: 10 entrevistados entre 22 e 30 anos; 10 entrevistados de 31 a 45 anos e seis entrevistados entre 46 e 47 anos. Esta segmentação deixa perceber movimentos de reprofissionalização e vantagens/desvantagens obtidas simplesmente mediante o ano de nascimento e da inserção em diferentes idades tecnológicas, além de forte tendência dos mais jovens seguirem com cursos de pós-graduação.

POTENCIAIS PERDEDORES NA NOVA ERA CAPITALISTA

A retração mundial dos benefícios sociais, justificada com base na crise fiscal dos Estados derivada da retração do assalariamento como base arrecadadora e na inversão da pirâmide etária, numa suposta ineficiência dos serviços estatais e num real crescimento dos custos dos benefícios – especialmente na área da saúde – tem sido acompanhada de propostas e implementação de reformas dos Estados que implicam perdas de direitos, desvalorização e afastamento de profissionais com incentivo à aposentadoria precoce num quadro que dificulta a reinserção e impõe redução salarial e de aposentadorias.

A escolha dos professores aposentados e dos integrantes de PDVs e PDIs derivou da percepção do momento excepcional e fugaz na trajetória dos professores universitários da rede pública e dos funcionários de firmas estatais em processo de privatização no Brasil nos anos 90. A revisão constitucional de 1988 propiciou vantagens, além da possibilidade de acumulação de aposentadorias no serviço público. Esta ampliação de direitos, seguida da ameaça de sua perda, é única na história do país. O início dos debates em torno das reformas foi quase imediatamente acompanhado de aumento no número de aposentadorias de docentes nas universidades públicas de todo o país, antecipando a redefinição de projetos profissionais e/ou existenciais de docentes universitários. Apesar de tal estratégia, professores aposentados continuam a desenvolver atividades profissionais formais e informais, sendo raros os casos em que predomina uma opção pelo lazer ou pela dedicação exclusiva à vida doméstica. Quando aparece, trata-se de mulheres universitárias com problemas familiares e/ou diante da necessidade de reconversão profissional para poder voltar ao mercado de trabalho.

Vale ressaltar que a vivência da aposentadoria está ligada a crises de identidade e sofrimento psíquico. Representa uma ruptura com um meio determinado, tarefas, engajamentos, expectativas e a convivência com pessoas. E, mesmo quando se estabelece certo nível de continuidade com o período anterior, trata-se de uma passagem difícil porque não mais aponta para conquistas, obrigando a encarar um transcurso que está além da sua primeira metade. Impõe reler e dar sentido a percursos vividos por vezes de forma errática e a buscar energia para atribuir novos sentidos a atividades a serem retomadas ou a encontrar novos focos de interesse e empenho. Por força do simbolismo que a acompanha, este caráter de ruptura está presente mesmo quando necessidades objetivas conduzam ao início ou à manutenção de atividades informais ou à busca de reintegração nestas ou em outras atividades formais. No caso da aposentadoria precoce, os atingidos vêem-se obrigados a enfrentar não apenas situações objetivas criadas pela aposentadoria nos mais variados planos da vida (no trabalho/atividade, na família, no círculo de amigos etc.), mas uma nova situação subjetiva derivada da necessidade de confrontar-se mais cedo com expectativas e questões que dizem respeito à terceira idade.

Entre os professores universitários, passou a pairar em sua consciência a possibilidade de serem lançados para fora das classes médias, com ou sem aposentadoria. O componente subjetivo é, neste caso, essencial à compreensão da montagem de estratégias de permanência ou retorno ao mercado após a aposentadoria. Trata-se de um fenômeno que comporta situações as mais variadas – entre as quais uma rotatividade que resulta, no caso dos segmentos mais especializados, em elevação de seus ganhos. Assim, somente uma parcela dos que se aposentam – aquela composta por setores mais idosos e menos qualificados do professorado – cede lugar a novas gerações.

O conjunto dos indivíduos entrevistados que integram as amostras indicam que, mesmo que o peso relativo do trabalho em sua vida tenha mudado, ele continua sendo importante para eles. Há uma clara polarização entre quem está e quem não está no mercado formal de trabalho no que concerne a direitos e vantagens diversas. No que concerne à proteção social, todos os segmentos pesquisados vivem as angústias e vicissitudes de um momento em que se proclama o fim da era de valorização de quem trabalha e de construção de mecanismos de bem-estar.

Todos os recortes empíricos analisados estão na área dos serviços e os entrevistados experimentam as dificuldades e características deste setor. O segmento mais protegido entre os analisados foi o de professores universitários – segmento no qual a questão do status detém maior importância e está ligada à titulação e à docência na graduação e na pós-graduação. Mesmo aí, no entanto, sabe-se que – como resultado de uma supervalorização da capacidade de gestão em áreas, como por exemplo, a da pesquisa – têm ocorrido situações novas e complexas que subvertem valores tradicionais da academia e demandam outras competências.

A questão da mudança de status coloca-se, de fato, de forma clara entre professores universitários aposentados e entre outras categorias de profissionais altamente qualificados. Se por um lado não é possível negar que o avanço tecnológico dos últimos 30 anos gerou situações que, em muitas áreas, são radicalmente novas, exigindo atualização radical de profissionais considerados ultraqualificados (como ocorre na medicina e, especialmente, nas técnicas cirúrgicas), esta situação deu origem a uma ideologia que desvaloriza todo conhecimento que não detenha o "toque" da revolução científico-tecnológica, como se fosse possível trabalhar sem conhecimento das técnicas precedentes e sem memória científica. Esta ideologia foi ponto de partida para a desvalorização das gerações mais experientes em todas as áreas, mesmo naquelas em que – como nas ciências humanas – há uma dependência de acúmulo de conhecimento anterior e de erudição. Este fenômeno pode ter propiciado a entrada de quadros novos nas organizações, mas gerou também desperdício de qualificação e de experiência. Este último fenômeno aparece fortemente na aposentadoria precoce, mas é igualmente estimulado por programas de demissão voluntária e outros mecanismos.

Faz parte do consenso na área das ciências sociais que são os quadros mais qualificados e mais experientes que arriscam deixar posições estáveis (processo similar ao da migração territorial). Mas este mesmo processo – num momento de retração do mercado e de forte pressão de gerações jovens que supostamente detenham uma forma de qualificação mais moderna – pode significar simplesmente a retirada do mercado de um contingente de profissionais que detenham conhecimentos e informações privilegiadas e até exclusivas a respeito de serviços e setores. Isto se observa entre profissionais que entraram em Planos de Demissão Incentivada, especialmente entre engenheiros que passaram ao pijama, levando consigo informações preciosas sobre diferentes tipos de tubulações nas cidades (luz, gás, telefone, trens) que não se encontram escritas, mas que são resultado de atuação concreta ao longo de anos.

Tais tendências se acoplam à perda relativa do valor dos diplomas. De um lado, a sociedade ainda valoriza a posse do diploma, como é possível constatar entre os professores universitários. De outro, o mercado formal de trabalho o vê como um importante elemento de juízo a respeito das competências apropriadas pelo seu portador. A maior relevância do autodidatismo e de movimentos de reprofissionalização é, porém, perceptível, assim como a clara valorização de atividades complementares e alternativas que envolvem conhecimentos colocados em prática no plano doméstico, tanto no que concerne à produção de bens quanto a relações interpessoais. Lugar especial é atribuído a qualidades e virtudes consideradas femininas, como se pode constatar entre professores de primeiro e segundo graus. O novo quadro demanda maior resistência psicológica às frustrações, disposição e forças psíquicas para competir e enfrentar riscos diversos e situações novas e difíceis, capacidade de lidar com o sofrimento ligado a situações de passagem que incidem sobre o status social e profissional.

O modelo que hoje se impõe aos países periféricos, uma variante da transformação do Estado de bem-estar, é o da busca de alternativas pobres e desprotegidas para seus habitantes.

POTENCIAIS GANHADORES NA NOVA ERA CAPITALISTA

As trajetórias de trabalho entre os profissionais de informática também refletem o enxugamento do Estado, privatizações, cortes de gastos das empresas, deterioração dos serviços públicos, práticas de gestão da força de trabalho que se traduzem na precarização das condições de trabalho e na proliferação de formas alternativas ao assalariamento, que com ela coexistem ou se alternam, como subcontratação, trabalho por conta própria, consultoria, contrato de gestão etc. permitindo ao profissional muitas combinações de atuação, segundo o momento no ciclo de vida e/ou obedecendo a outras considerações que possam influenciar suas disposições. O desenvolvimento da internet no Brasil no fim dos anos 90 se deu em um ambiente de flexibilização das relações de trabalho, onde as empresas vêm sendo reordenadas a partir dos pressupostos ditados por uma nova racionalidade.

A gestão e organização do trabalho passaram a exigir novos saberes. Temas como liderança, personalidade, habilidades e comunicação passaram a ser priorizados no universo da área de recursos humanos das empresas e começaram a ser valorizados aspectos como vida pessoal, lazer, visões de mundo, identidades, ou seja, uma avaliação das qualidades mais subjetivas como simpatia, agressividade, capacidade de relacionamento em grupo etc. Além disso, apesar de existir uma imagem das empresas de tecnologia de informação – TI – como altamente organizadas, fundadas nas mais modernas e racionais formas de gestão e organização do trabalho, constata-se que muitos princípios que ordenam as relações de trabalho estão baseados em laços de lealdade e confiança.

Influenciados pelas novas condições do mundo do trabalho, os profissionais redimensionam suas idéias sobre a vida profissional. Na verdade, são forçados a realizar opções, mais ou menos já configuradas, valorizando não mais uma carreira em uma mesma empresa ou uma profissão, mas destacando a preferência pelo planejamento contínuo de sua própria trajetória, pelo "auto-empresariamento". Não há postos de trabalho mas tarefas que precisam ser cumpridas em um projeto. O contrato, formal ou informal, é feito para o tempo do projeto, no interior de uma equipe responsável por ele.

Nesse contexto, a internet tem constituído um forte atrativo para os jovens que a vêm como um mundo cheio de glamour capaz de propiciar sucesso e dinheiro com rapidez. Esta crença é favorecida pelo conjunto das descobertas que envolveram a informática e, particularmente, as tecnologias desenvolvidas na e para a internet, meio no qual aparecem de forma bem nítida as habilidades individuais e as iniciativas pioneiras de alguns jovens talentosos.

Os exemplos de Bill Gates e outros servem para demonstrar que com inteligência, dedicação e criatividade é possível ao indivíduo ultrapassar quaisquer barreiras, como um herói moderno, conquistando a nova fronteira da tecnologia. A ideologia que aparece sempre reiterada na mídia é a possibilidade de ficar rico e famoso rapidamente. Por outro lado, quando se desce ao universo das pessoas comuns que trabalham neste campo, encontramos um conjunto heterogêneo, com recorrências quanto a trajetórias, formações, relações de trabalho e posições na hierarquia profissional. As variáveis intervenientes parecem ser o gênero, a idade e o capital econômico e cultural.

Os dois casos que estudamos constituem campos pouco regulamentados, permitindo que a inserção profissional se faça mediante a qualificação real, no trabalho, amplamente reconhecida, muitas vezes, por meio de promoção pelas empresas do estágio não remunerado e não normatizado. Entretanto, a qualificação formalizada se mantém altamente valorizada, tanto como uma maneira de legitimação social da qualificação real como para atender às exigências crescentes do mercado. Configura-se uma forte tendência para as formas alternativas como terceirização e quarteirização (com formação de "empresas-filhotes", "empresas-irmãs" etc.), "contaprópria", consultoria, contrato de gestão etc. que podem coexistir, alternar-se e misturar-se com o assalariamento, permitindo muitas combinações de atuação, segundo o momento no ciclo de vida e/ou obedecendo a outras considerações que possam influenciar as disposições. Algumas trajetórias se caracterizam por compreenderem reconversões profissionais, em determinados momentos, uma vez que a enorme expansão destes campos e sua relação com quase todos os domínios da atividade humana significou a abertura de espaço no mercado para indivíduos provenientes de outras áreas de trabalho. Por associar vários saberes, a internet congrega profissionais de diferentes campos de estudo como designers, jornalistas, profissionais em marketinge de vendas, economistas, educadores, psicólogos, engenheiros de hardware e de software, médicos etc. É notável a grande diversificação de atividades e cargos que se sucedem à medidaque vão sendo criadas novas aplicações para a tecnologia da rede.

As demandas muito diversificadas, a contínua reciclagem e o rápido ciclo vital das empresas (a velocidade com que as empresas nascem e morrem) permitem caminhos erráticos no mundo do trabalho. A valorização das habilidades que se constituem no ambiente de trabalho, mais reais que formais, ou de qualidades extremamente subjetivas e psicológicas (capacidade de relacionamento, liderança etc.) em contraposição ao mérito objetivo, são tendências que se acoplam a novas formas de gestão nas empresas (flexibilizando os tipos de contratos, as formas de remuneração e o controle do trabalho), mas também contribuem para uma reconfiguração do sentido do trabalho.

Nessas trajetórias de trabalho e qualificação, é notável como os diferentes tipos de capital cultural, econômico e social constituem a principal variável interveniente no caminho seguido pelos entrevistados. Sua influência perpassa todas as entrevistas, condicionando fortemente a probabilidade da continuação de estudos depois do 2º grau, a efetivação de um empreendimento ou a possibilidade de desenvolver uma atividade na área. É importante dominar idiomas, possuir formação de qualidade e relacionamentos pessoais que façam a "diferença", além de ter tido, durante a infância e juventude, informações "tácitas" que transitam pelos ambientes familiar, escolar e de lazer. É claro que, em determinados momentos cruciais do ciclo de vida, outros fatores sociais podem ocupar o papel principal, e assim fazer com que o indivíduo se afaste de um "caminho" já traçado (como um casamento precoce tornando obrigatório o trabalho antes do final da formação regular, ou fatores psicológicos que podem impedir o desenvolvimento pleno de uma carreira). É também possível romper o bloqueio de uma formação deficiente, de um curso noturno malfeito, pelo esforço no trabalho. Mas é evidente que aqueles que, mais rapidamente e com menor esforço, conseguem chegar a um razoável nível profissional socialmente reconhecido, ou ao empresariado, são oriundos de famílias com a posse de mais forte capital econômico e social. Entretanto, mesmo para aqueles que têm sucesso por "conta própria", ou no projeto empresarial, estão sempre presentes a precariedade e a incerteza. Assim, as relações de trabalho descritas como marcadas pela autonomia escondem perda de direitos.

Dessa forma é que se pode compreender as idéias de empresa-mãe e empresa-irmã que aparecem no discurso dos entrevistados. Oriundas do paradigma produtivo anterior, estas categorias tinham então uma correspondência na realidade: correlata à fidelidade à empresa por parte do empregado havia a possibilidade de realização de uma carreira estável, com ganhos previsíveis e segurança efetiva. As empresas da nova economia além de muito recentes tomaram como bandeira a instabilidade, fortalecendo a ideologia da autonomia no trabalho. Em contrapartida, encontramos inúmeras estratégias empresariais visando criar laços e manter a coesão (como a formação de "empresas-filhotes" no interior da "empresa-mãe" ou a prática do contato informal cotidiano no almoço ou jantar dos empregados com os diretores ou sócios da empresa).

Esta necessidade de criar laços e manter a coesão leva a estratégias bem radicais. Assim, em muitas das jovens microempresas voltadas para a internet, dado que as jornadas de trabalho são freqüentemente muito longas, procura-se proporcionar um ambiente extremamente "amigável", de "brincadeira", um verdadeiro "play-ground", em que o profissional se sente à vontade, como se estivesse em casa ou usufruindo do lazer. Além das fortes tonalidades do ambiente, os móveis são coloridos e maquilados (micros com capas de animais, por exemplo); pode-se parar o trabalho para jogos virtuais, andar de bicicleta ergométrica, pular na cama elástica ou tomar um banho de piscina. O ambiente torna-se tão amigável que encontramos um caso em que os jovens empresários alugaram uma casa ampla onde moram e têm uma empresa, onde trabalham com seus funcionários e estagiários. Muitos, depois do expediente, permanecem no ambiente de trabalho, para se divertir. Aliás, a própria noção de expediente, de tempo no trabalho ou de tempo de lazer é mal aplicada aqui, diluída pelas inúmeras possibilidades das tecnologias de comunicação.

O trabalho, realizado no ambiente doméstico ou no espaço da empresa, exige jornadas muito longas e crescente intensidade dos ritmos de trabalho. Diluem-se as fronteiras entre os espaços público e privado, entre os tempos de trabalho e de lazer, com conseqüente superposição entre os tempos e os espaços. A análise do discurso do profissional mostra como a extrema variedade das relações de trabalho e as possibilidades criadas pela tecnologia permitem que os tempos e os espaços de trabalho doméstico e de lazer se misturem, imbricando-se. A valorização da autonomia no trabalho implica ademais a necessidade de reconfiguração ideológica das relações dos indivíduos entre si, com outros grupos, com o tempo, o espaço e a família e a reorganização das formas de relacionamento familiar e das rotinas domésticas. E, sobretudo, esta valorização da autonomia significou a necessidade de reconfiguração do sentido do trabalho. Em contraposição, a aparência de falta de controle do trabalho, de autonomia, esconde uma realidade de controle total, estrito e implícito que, dependendo do caso, pode ser feito por meio de planilha eletrônica no próprio computador e/ou pelo cumprimento de metas em um determinado projeto. Pode ainda ser ditado pela própria relação de trabalho estabelecida quando o profissional é contratado para realizar uma tarefa em um prazo previamente determinado. As formas de controle podem variar, mas têm em comum o fato de envolver uma apreciação sobre o tempo despendido, a qualidade e a possibilidade de transparência para o contratante. Não se trata de confinamento dos corpos em nenhum ambiente, mas de uma ênfase aparente na liberdade de ação em relação ao tempo e espaço, aumentando o controle sobre os corpos. Nesse momento, o profissional relativiza a idéia do trabalho autônomo, criativo e livre de controles, ressaltando o controle do tempo e do espaço de trabalho, jornadas muito longas e crescente intensidade do ritmo de trabalho que, por vezes, leva à exaustão.

GRUPOS INTERMEDIÁRIOS E INFORMALIZAÇÃO E GRUPOS ALTERNATIVO-IDEOLÓGICOS E FORMALIZAÇÃO

A questão da perda de status coloca-se de forma diversa entre os professores de primeiro e segundo graus. O empobrecimento do setor já ocorreu há um número suficiente de anos para que não seja hoje vivido de forma dramática, além do mesmo processo ter provocado uma mudança na extração social dos docentes que torna essa questão menos perceptível. Tal empobrecimento engloba toda a vida escolar e inclui a nova clientela da escola pública, configurando um todo no qual a venda de produtos pelos professores não destoa do conjunto. Deve-se ainda mencionar o fato de que ainda é muito forte a associação da atividade docente com aquelas típicas das mães de família e donas de casa, predominando na produção e comercialização de bens e serviços, aqueles que de algum modo se conectam a atividades reprodutivas no âmbito doméstico e nos quais se manifestam conhecimentos e virtudes femininas. Nesse sentido, poder-se-ia considerar as atividades paralelas das professoras como formas de "trabalho ampliado" e de "auto-empresariamento", cujos limites de compatibilidade com o magistério só se colocam quando a produção e comercialização ultrapassam muito os muros das escolas.

As instituições, geralmente constituem uma formidável rede de compra e venda capaz de contra-arrestar não apenas efeitos do empobrecimento, mas também da precariedade de tempo livre para compatibilizar a docência ou o trabalho informal com a "segunda jornada" ou para assegurar a "dupla presença" no lar e no trabalho. O comércio termina por permear os espaços possíveis, compondo um quadro em que ele é resultado e um dos motores da dessacralização do trabalho docente. Esta se dá de uma forma "solidária", no sentido de que os corpos docentes das escolas, incluindo-se aí as direções, terminam por antecipar o que tem sido pregado como uma "economia solidária" em tempos de pobreza.

As mulheres, transformadas em chefes de família, enfrentam a crescente identificação dos membros de sua família e delas mesmas com grupos que não são mais formados a partir do local de trabalho e da escola, mas de novos meios (como a televisão ou locais de encontro de jovens) mediante os quais, abstratamente, se estabelecem identidades e solidariedades com base em estilos de consumo com poder simbólico suficiente para cunhar o dia-a-dia. Especialmente importantes para os grupos pesquisados (qualificados) são as questões relativas ao computador, além de todas aquelas que giram em torno da moda e dos costumes ditados a partir dos shopping centers.

O trabalho se intensifica, além disso, pelo seu próprio caráter informal, porque a informalidade significa também o desaparecimento de um espaço institucional que naturalmente propicia alguma "gordura" e obriga a provar a excelência do trabalho a cada momento. Informalidade é, assim, também sinônimo de intranqüilidade, de trabalho precário e inseguro, de internalização da responsabilidade por um conjunto de tarefas reintegradas e seu resultado último na forma de ingresso e de condições de reprodução, o que significa que o trabalho termina permeando a totalidade da vida. Há quem hoje defenda a idéia de que, no futuro, todo trabalho será precário. Isto suporia uma redução das instituições e uma polarização extrema dos profissionais, uma vez que somente uma parcela muito pequena de dirigentes restaria institucionalmente ancorada. Suporia também que a retração das camadas médias seguiria seu curso, com maior polarização social e muitas interrogações políticas.

Estas questões estão cada vez mais presentes no debate sobre o significado do trabalho na estruturação da vida dos indivíduos. No entanto, também atividades consideradas alternativas ou complementares àquelas reconhecidas pelo establishmente aceitas como valiosas pelas pessoas comuns – como práticas divinatórias, terapias corporais e alimentares diversas – começaram a sofrer um processo de modificação crescente, sendo demandadas e oferecidas ao mercado de forma diversificada e personalizada. Neste momento de transição, profissões mais tradicionais sofrem forte processo de desvalorização social (como no já referido caso dos médicos e dos professores); profissões e conhecimentos profissionais se desmistificam, perdendo grande parte de seu mistério e glamour; novas profissões surgem em conexão, seja com as novas tecnologias, seja com a integração de tarefas que elas impõem, ao mesmo tempo em que outras profissões e ocupações desaparecem por força dos mesmos processos.

No espaço aberto pela contração do mercado formal de trabalho e pela ideologia do pequeno empreendimento, somado a necessidades sociais fortalecidas pela incerteza, insegurança e redução das fontes de ingresso e de proteção social, as práticas alternativas buscam firmar o seu lugar como profissões. O estilo de vida alternativo tornou-se uma das possibilidades de consumo dos segmentos que se mantêm integrados, mas que buscam sempre mais o produto não padronizado, artesanal, personalizado, de qualidade elevada. Na medida em que mesmo a grande indústria passou a buscar atender ao gosto individual, enxugando seus estoques e permitindo a escolha pessoal de acessórios como forma de elevar os lucros, os produtos naturalmente fora do padrão tornaram-se uma opção importante para todas as esferas em que a grande indústria não está presente. Pode-se dizer, neste caso, que eficiência também é griffe, nela se impondo a marca da criatividade ímpar do produtor alternativo por oposição ao produto industrial.

De forma paradoxal em relação a tendências atuais, os praticantes de atividades alternativas, ao se verem confrontados mais diretamente com o mercado, começam a buscar legitimação profissional por um processo que tem como primeira meta a obtenção de um diploma. É como se esta etapa tivesse que ser cumprida para que, mais tarde, se possa colocar em questão os mecanismos formais de legitimação. Os nossos dados empíricos mostram que, de fato, todos querem ao menos um certificado, pelo qual se possam vincular institucionalmente e gozar de reconhecimento profissional. Em busca da formalização, o informal/alternativo quer, na verdade, um diploma apoiado em currículos e programas legitimados por profissionais reconhecidos (por notório saber, formação em áreas afins e/ou especialização feita no exterior) emitido, seja por uma escola profissional (de segundo grau, por exemplo), seja por uma escola de ensino superior. Para isso estão dispostos a adequar-se ao establishment, o suficiente para aceitar requisitos hierarquizados e formação padronizada sem, contudo, alimentar a perspectiva de uma carreira no que esta tem de tradicional e hierárquico. Controle disciplinar e de recrutamento, aspectos importantes para os grupos profissionais clássicos parecem mais flexíveis nos segmentos alternativos.

A QUALIFICAÇÃO NO SÉCULO XXI

Tendo como pano de fundo circunstâncias conjunturais únicas e as mudanças no mercado de trabalho que se comporta de modo cada vez mais seletivo no que diz respeito às qualificações requeridas, a pesquisa procurou apreender as estratégias econômicas acionadas por um contingente de trabalhadores que: a.apresenta níveis de escolaridade dos mais elevados em relação ao conjunto da população brasileira; b. atua em áreas consideradas estratégicas, como a educação em todos os níveis, além de desenvolver atividades de pesquisa; c. tem sido compelido, em muitos casos e de forma contraditória, pelas pressões apontadas, a aposentar-se precocemente, dispondo, portanto, de um longo tempo de vida produtiva ou a buscar, no quadro de desemprego crescente, formas autônomas e alternativas de inserção no mundo do trabalho. O estudo de setores qualificados escolhidos mostra a profunda imbricação de inserção formal e atividades informais, e indica claramente que os segmentos pesquisados da população não podem e, na maioria dos casos, não desejam e não escolhem a inatividade.

No que diz respeito à qualificação, estamos diante de um paradoxo. De um lado, as transformações contemporâneas exigem um nível mais elevado de conhecimentos para enfrentar não apenas o trabalho ou a atividade alternativa, mas a vida diária no plano doméstico e fora dele. De outro, estamos diante de dois fenômenos que incidem de forma especialmente forte nos países periféricos: a deterioração qualitativa do sistema de ensino em seus diversos níveis e um elevado desperdício de qualificação e de experiência.

Por sua vez, a qualificação real definitivamente se impôs sobre a qualificação formal, mas a perda do valor dos diplomas ainda é relativa. A sociedade ainda valoriza a posse do diploma e o mercado formal de trabalho o vê como um importante elemento de juízo a respeito das competências apropriadas pelo seu portador. Maior relevância do autodidatismo é, porém, perceptível. Atividades complementares e alternativas envolvem uma valorização de conhecimentos do plano doméstico tanto no que concerne à produção de bens quanto a relações interpessoais, com lugar especial para qualidades e virtudes femininas. Estamos, pois, diante de um quadro que demanda maior resistência psicológica às frustrações, disposição e forças psíquicas para competir e enfrentar riscos diversos e situações novas e difíceis, capacidade de lidar com o sofrimento.

Tais qualidades e competências compõem o quadro da qualificação real e sua importância cresce nos contextos mais duramente penetrados pela precarização e pela informalidade. Nesse sentido, a qualificação real termina por moldar a inserção alternativa, na medida em que determina o que pode ser trazido ao mercado como bens ou como serviços e a forma de serem comercializados. Tudo isto implica a apropriação de conhecimentos e características que antes pertenciam às empresas: capacidade de julgar a situação do mercado, visão prospectiva, flexibilidade etc.

No que concerne aos recortes pesquisados empiricamente, professores e pessoas versadas em novas tecnologias continuarão a ser formados pelo sistema, observando-se, porém, maior força da aprendizagem em serviço além de tendência e necessidade de reciclagem profissional e especialização periódica. Saberes tradicionais e familiares ganham espaço tanto no setor formal quanto no informal. Os "alternativos ideológicos" procuram fazer reconhecer suas práticas e legitimar-se profissionalmente. Buscam integrar em cursos superiores já existentes e reconhecidos, disciplinas isoladas ou conjuntos de disciplinas (muitas vezes capazes de caracterizar uma especialização): é o caso das terapias corporais (na fisioterapia, na educação física e mesmo na medicina e na psicologia), da alimentação natural (na nutrição, na medicina, por exemplo), da acupuntura e outras práticas derivadas da medicina chinesa tradicional (na medicina). Tratam de criar cursos superiores específicos – como no caso da astrologia; cursos específicos de segundo grau ou cursos livres de especialização pós-secundária (de terapias corporais, por exemplo) ou estabelecer caminhos de formação, que embora formais, são externos ao sistema regular de ensino, geralmenteligados a centros de atendimento que adotam as práticas em questão. Trata-se, pois, de um processo que vai do drop out à profissionalização, o caminho que leva diversos serviços originários de crenças, hobbies e estilos de vida, à busca da inserção mediante percursos acadêmicos tradicionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A cada recorte empírico corresponde um relatório de pesquisa. Grande parte de seu conteúdo foi publicada nos números 4, 6, 8, 9 e 10, da Revista Contemporaneidade e Educação, Rio de Janeiro, IEC. Ver, entre outros:

Recebido em: julho 2003

Aprovado para publicação em: julho 2003

Texto preparado para o Congresso Latino-Americano de Sociologia do Trabalho – Alast –, realizado em Havana, em setembro de 2003, com base em resultados de duas pesquisas amplas financiadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq –, entre 1995 e 2000, e coordenadas por Vanilda Paiva.

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  • _________. Qualificação e empregabilidade entre trabalhadores que aderiram a programas de demissão incentivada. (Convênio IEC/CCDT/CNPq. Relatório parcial de pesquisa mais ampla financiada pelo CNPq e coordenada por Vanilda Paiva)
  • INSERÇÃO: alternativa de setores altamente qualificados: metodologia e algumas conclusões. Contemporaneidade e Educação, Rio de Janeiro: IEC, n.6, p.133-149,1999.
  • INTRODUÇÃO: virando o milênio. Contemporaneidade e Educação, Rio de Janeiro: IEC, n.6, p.9-17, 1999.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2004
  • Data do Fascículo
    Nov 2003

Histórico

  • Aceito
    Jul 2003
  • Recebido
    Jul 2003
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