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Efeitos da concorrência sobre a atividade dos estabelecimentos escolares

The effects of competition on the activity of schools

Resumos

O objetivo deste artigo é analisar as interdependências competitivas ou, em termos mais simples, os efeitos da concorrência entre estabelecimentos escolares sobre suas próprias atividades. A hipótese central é que se outros modos de regulação, provenientes do Estado ou da comunidade, operam simultaneamente, a regulação pelo mercado - ou melhor, pelo "quase-mercado", uma vez que o Estado intervém direta ou indiretamente em sua estruturação - tem um papel importante nas estratégias que as escolas desenvolvem, tanto do ponto de vista setorial quanto global. Para desenvolver esse argumento, apoiamo-nos num estudo comparativo e qualitativo, financiado pela União Européia, entre seis lugares de cinco países europeus: a cidade de Lille e cinco municipalidades limítrofes de Paris, na França; a cidade e as municipalidades que formam a aglomeração de Charleroi, na Bélgica; o borough de Hackney, em Londres, Inglaterra; o distrito de Kobanya, em Budapeste, capital da Hungria; e a municipalidade de Oeiras, perto de Lisboa, em Portugal.

EDUCAÇÃO; ESCOLAS; ADMINISTRAÇÃO ESCOLAR; POLÍTICAS EDUCACIONAIS


The purpose of this article is to analyse competitive interdependencies or, put more simply, competition between schools and their effects. The central hypothesis is that if other modes of state or community regulation are generally at work, market regulation - or rather quasi-market regulation, as the state interferes directly or indirectly with the way it is structured - plays an important role on the sector or global strategies developed by schools. To develop this argument, we based ourselves on an European Union funded, qualitative comparative study of six local contexts in five European countries: the city of Lille and five municipalities near Paris, in France; the city and surroundings of Charleroi, in Belgium; the borough of Hackney, in London, England; the district of Kobánya, in Budapest, capital of Hungary, and the municipality of Oeiras, near Lisbon, in Portugal.

EDUCATION; SCHOOLS; SCHOOL ADMINISTRATION; EDUCATIONAL POLICIES


TEMA EM DESTAQUE - MODOS DE REGULAÇÃO DA ESCOLA: DECORRÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS

Efeitos da concorrência sobre a atividade dos estabelecimentos escolares

The effects of competition on the activity of schools

Agnès Van Zanten

Observatoire Sociologique du Changement/Centre Nacional de la Recherche Scientifique/Institut d'Etudes Politiques de Paris, agnes.vanzanten@sciences-po.fr

RESUMO

O objetivo deste artigo é analisar as interdependências competitivas ou, em termos mais simples, os efeitos da concorrência entre estabelecimentos escolares sobre suas próprias atividades. A hipótese central é que se outros modos de regulação, provenientes do Estado ou da comunidade, operam simultaneamente, a regulação pelo mercado – ou melhor, pelo "quase-mercado", uma vez que o Estado intervém direta ou indiretamente em sua estruturação – tem um papel importante nas estratégias que as escolas desenvolvem, tanto do ponto de vista setorial quanto global. Para desenvolver esse argumento, apoiamo-nos num estudo comparativo e qualitativo, financiado pela União Européia, entre seis lugares de cinco países europeus: a cidade de Lille e cinco municipalidades limítrofes de Paris, na França; a cidade e as municipalidades que formam a aglomeração de Charleroi, na Bélgica; o borough de Hackney, em Londres, Inglaterra; o distrito de Kobanya, em Budapeste, capital da Hungria; e a municipalidade de Oeiras, perto de Lisboa, em Portugal.

EDUCAÇÃO – ESCOLAS – ADMINISTRAÇÃO ESCOLAR – POLÍTICAS EDUCACIONAIS

ABSTRACT

The purpose of this article is to analyse competitive interdependencies or, put more simply, competition between schools and their effects. The central hypothesis is that if other modes of state or community regulation are generally at work, market regulation – or rather quasi-market regulation, as the state interferes directly or indirectly with the way it is structured – plays an important role on the sector or global strategies developed by schools. To develop this argument, we based ourselves on an European Union funded, qualitative comparative study of six local contexts in five European countries: the city of Lille and five municipalities near Paris, in France; the city and surroundings of Charleroi, in Belgium; the borough of Hackney, in London, England; the district of Kobánya, in Budapest, capital of Hungary, and the municipality of Oeiras, near Lisbon, in Portugal.

EDUCATION – SCHOOLS – SCHOOL ADMINISTRATION – EDUCATIONAL POLICIES

O estudo dos estabelecimentos escolares desenvolveu-se de maneira importante desde os anos de 1970 nos Estados Unidos, na Inglaterra, em vários outros países europeus, e, mais tardiamente, na França, a partir dos anos de 1980 (King, 1983; Derouet, 1987; Talbert, MacLauglin, 1996). No entanto, a maioria desses estudos – tanto aqueles baseados em métodos quantitativos quanto em métodos qualitativos, e não importando qual seja o objeto de estudo, a organização escolar, as relações profissionais ou os resultados dos alunos – tende a analisar os estabelecimentos como objetos isolados e independentes uns dos outros. A perspectiva que desejamos adotar aqui é outra, uma vez que a hipótese central que ora nos interessa concerne aos efeitos da interdependência entre estabelecimentos escolares sobre suas atividades. Tal interdependência implica a existência de relações diretas ou indiretas entre estabelecimentos de uma mesma zona, relações que podem ser de três tipos, dependendo do fator predominante quanto à regulação: o Estado, o mercado ou a comunidade, como ocorre em outros setores da vida social (Maroy, Dupriez, 2000). No primeiro caso, predominam as relações burocráticas, ainda que atualmente ocorram novas formas de regulação estatal que remetem a um regime pós-burocrático (Duran, 1999; van Zanten, 2004b). No segundo caso, é o princípio de concorrência que tem um papel central, enquanto no terceiro predomina a colaboração.

Neste artigo, vamos enfatizar as interdependências da competitividade ou, em termos mais simples, a concorrência entre estabelecimentos. Isso não quer dizer que os outros modos de regulação não sejam operantes. Se na nossa argumentação neste trabalho, como na maior parte da literatura, a colaboração entre escolas parece pouco importante, salvo quando se trata de uma colaboração forçada pela administração ou de uma colaboração que tem como objetivo principal a formação de coalizões competitivas (por exemplo, entre escolas públicas contra escolas privadas), a regulação burocrática ou pós-burocrática é central em todos os sistemas. Já pudemos estudá-la em detalhe, em Recherches Sociologiques (2004). Além disso, a concorrência que estudamos aqui é uma concorrência regulada direta ou indiretamente pelas regras formais e pela atividade das administrações educacionais, razão pela qual não utilizamos a expressão "mercado educacional", mas sim "quase-mercado", expressão comumente utilizada na literatura, principalmente a de língua inglesa, sobre o tema (Bartlet, 1993; Walford, 1996; Whitty, Halpin, 1996). Para analisar a concorrência real é necessário analisar simultaneamente um conjunto de estabelecimentos cuja proximidade e cujo vínculo a uma autoridade educativa comum deixa supor uma relação de interdependência (Yair, 1996). Porém é também necessário estudar estabelecimentos ocupando posições diferentes tanto na hierarquia local (segundo as características acadêmicas e sociais do alunado) quanto no "quase-mercado" (segundo o grau de atração).

A partir dessas dimensões é que foram eleitos os espaços e os estabelecimentos que analisamos aqui. Trata-se de seis locais em cinco países europeus, como já foi explicitado. E, em todos os casos, de zonas urbanas caracterizadas por uma diversidade maior ou menor da população e dos estabelecimentos escolares ou, pelo menos, dos estabelecimentos de ensino médio, que foram o objeto principal do estudo.

O trabalho foi realizado no âmbito de um estudo mais amplo sobre as mudanças nos modos de regulação dos sistemas educativos na Europa e seu impacto sobre as desigualdades de educação (Maroy, 2004), financiado pela União Européia. Coordenado nos diversos contextos locais por seis equipes diferentes de pesquisadores, sob a direção de Bernard Delvaux e minha, compreendeu a coleta de dados estatísticos e de informações diversas sobre o contexto urbano, sobre as administrações da educação local e sobre os estabelecimentos, assim como entrevistas em cada estabelecimento, no mínimo, com o diretor e, na maioria dos casos, com diversos atores (professores, outras categorias de pessoal, pais e alunos). Isso produziu seis monografias locais que serviram para elaborar um estudo comparativo (Delvaux, van Zanten, 2004).

CONCORRÊNCIA ENTRE ESCOLAS: FENÔMENO UNIVERSAL OU CONDICIONADO?

A concorrência é um fenômeno comum a todos os contextos escolares? Sob determinado ponto de vista teórico, a concorrência é uma dimensão que diz potencialmente respeito a todas as organizações cuja atividade se inscreve necessariamente em um meio institucional (Meyer, Rowan, 1978). Ainda que esse fenômeno tenha sido menos analisado nas escolas do que em outras organizações, um estudo global da literatura mostra que, na maioria dos sistemas educacionais, a concorrência entre escolas se desenvolve em razão do impulso de políticas de autonomia dos estabelecimentos e da livre eleição da escola pelos pais, mas também em razão do desenvolvimento parcialmente autônomo de estratégias educacionais mais ambiciosas por parte dos pais (van Zanten, 2002a). No entanto, de um ponto de vista concreto, a existência de fenômenos de concorrência e de seus graus mais ou menos elevados depende de uma série de condições. Deve-se primeiro considerar os fatores que estimulam os estabelecimentos a competir, relacionados às características de seu entorno social e institucional, mas também é preciso levar em conta os fatores que permitem aos estabelecimentos participar da concorrência e que têm a ver com certas características do contexto político e de sua organização interna.

Por que competir? Fatores que estimulam a concorrência

A maioria dos trabalhos sobre a concorrência entre estabelecimentos escolares mostra que as escolas competem não tanto para melhorar a produtividade interna, mas principalmente para, por um lado, manter a atividade cotidiana da organização e as condições de trabalho dos profissionais e, se possível, melhorá-las; por outro lado, para manter a posição do estabelecimento no "quase-mercado" local (Gewirtz, Ball, Bowe, 1995; van Zanten, 2001). Dadas essas premissas, observa-se logicamente que a concorrência entre escolas se organiza principalmente em torno dos alunos. Em primeiro lugar, a diminuição do número de alunos – excluindo aqui entretanto os casos extremos que conduzem ao fechamento dos estabelecimentos – acarreta geralmente uma diminuição dos outros recursos materiais e humanos de que se dispõe e induz a toda uma série de perturbações que a maioria dos estabelecimentos trata de evitar. Em segundo lugar, como já mostraram vários sociólogos que se interessaram pelos professores, nesse tipo de profissão em que predominam as relações, as condições de trabalho e as satisfações profissionais estão estreitamente ligadas não só às características acadêmicas mas também àquelas sociais dos alunos, tanto que é até possível evocar uma "segmentação profissional" baseada no perfil do alunado no contexto de trabalho. As posições profissionais mais prestigiosas dependem da qualidade dos alunos, o que explica que se desenvolvam "carreiras horizontais" dos estabelecimentos mais desfavorecidos aos mais favorecidos (Becker, 1952; Bucher, Strauss, 1961).

Por último, é também a qualidade suposta do alunado, não necessariamente a real, que aparece como o fator dominante na reputação e capacidade de atração de um estabelecimento escolar do ponto de vista dos pais. Isso se deve ao caráter abstrato da atividade educativa. A educação é um bem intangível que afeta o indivíduo de muitas maneiras diferentes, cujo impacto não é fácil detectar a curto prazo, nem medir de maneira precisa (referência). Essa dimensão intrínseca da atividade é acentuada pela opacidade do processo educativo que tem lugar detrás das portas da classe, fora do alcance da mirada crítica dos colegas, do diretor e, evidentemente, dos pais. A informação filtrada para o exterior é bastante limitada mesmo nos sistemas educativos mais abertos. Por causa da ausência de elementos precisos de informação sobre a qualidade do trabalho professoral – e da desconfiança com relação aos instrumentos supostamente objetivos, apresentados pelas administrações educacionais ou por estabelecimentos como os "ranqueados" na Inglaterra – é o capital econômico, cultural e social dos alunos que mostra para o exterior a qualidade de uma escola (Ballion, 1990; Ball, Vincent, 1998).

A partir desses elementos é possível distinguir duas séries de condições que favorecem a concorrência, ou melhor, dois tipos de concorrência entre os estabelecimentos, que podemos chamar de primeira e de segunda ordem. A concorrência de primeira ordem é a que surge de uma diminuição da demanda de educação, devida seja a fatores demográficos ou ao desinteresse por um tipo de oferta educacional. Um fator essencial que condiciona o grau mais ou menos elevado desse tipo de concorrência é, portanto, o número de alunos potenciais em uma zona em relação à capacidade de recepção de cada estabelecimento. Capacidade que não constitui, entretanto, um fator puramente objetivo, pois alguns estabelecimentos autolimitam deliberadamente o número de alunos enquanto outros ultrapassam também deliberadamente os limites oficiais e às vezes materiais. Essa concorrência depende ademais das regras e normas que as autoridades educativas locais impõem, mas depende, sobretudo, da existência ou não de políticas de livre escolha da escola pelos pais. Nas zonas que estudamos, a concorrência de primeira ordem aparecia como muito importante no distrito de Kobanya, Budapeste, em razão da baixa demográfica e da grande autonomia das escolas e dos pais no que se refere às práticas de matrícula.

A concorrência de segunda ordem é aquela que surge entre estabelecimentos para atrair os alunos vistos como os melhores em relação a suas características acadêmicas e sociais. As condições que determinam o grau de concorrência desse tipo são, portanto, de duas classes. Em primeiro lugar, para que surja esse tipo de concorrência deve haver uma diversidade acadêmica e social relativa entre o alunado potencial. Essa diversidade existia em todas as zonas que analisamos no estudo comparativo, embora houvesse variações importantes entre elas, já que se trata de zonas urbanas caracterizadas por uma mescla de grupos sociais. Em segundo lugar, esse tipo de concorrência supõe que não exista um sistema que distribua autoritariamente os alunos entre as escolas, em razão de suas características. Esse sistema existia só do ponto de vista oficial em Hackney, distrito de Londres, onde as autoridades locais, para limitar os efeitos negativos da livre escolha que existia anteriormente, criaram um sistema chamado banding, que distribui os alunos segundo seu nível acadêmico entre as escolas. No caso francês, contudo, tanto na zona próxima a Paris como em Lille, a existência de setores escolares situados em zonas urbanas mais ou menos segregadas contribui para dar a cada escola pública um público social e, em grande parte, academicamente, diferente. Mesmo assim, os estabelecimentos conseguiam, entretanto, obter certa margem de liberdade para desenvolver uma concorrência limitada entre eles.

A intensidade maior ou menor da concorrência de primeira ou segunda ordem deve ser também relacionada com a maneira pela qual se distribuem os recursos materiais e humanos entre os estabelecimentos, segundo os contextos locais e os países. O estudo realizado mostra claramente que essa concorrência tende a ser muito mais elevada nos sistemas nos quais os recursos financeiros alocados pelas autoridades educativas dependem do número de alunos que cada escola possua, como na Bélgica e na Inglaterra, ou da presença de certas categorias de alunos, como na Hungria, onde as escolas que atendem um número importante de crianças e jovens da minoria cigana recebem recursos específicos. Ao contrário, na França e em grau maior em Portugal, onde os recursos não estão diretamente ligados ao número de alunos (por exemplo, os professores não são deslocados dos estabelecimentos nem demitidos se o número de alunos diminui), a concorrência, pelo menos a de primeira ordem, parece muito mais leve e, em Portugal, é quase inexistente.

Os estabelecimentos também competem para obter recursos outros além dos alunos, tais como opções mais ou menos prestigiosas ou professores mais qualificados, bem como um pessoal de apoio mais importante. Entretanto, na maioria dos casos observa-se que essa concorrência está estreitamente ligada à concorrência por alunos. Assim, na Bélgica e na França (tanto em Lille como na zona próxima de Paris), observamos por exemplo que a concorrência entre escolas para obter certas opções depende do tipo de público que desejam manter ou atrair, por exemplo alunos da classe média ou da classe alta, ou alunos pertencentes a camadas "tradicionais" ou "modernas" da classe média ou alta. Do mesmo modo, no distrito de Budapeste, na Hungria, a concorrência por um pessoal especializado de apoio existia somente entre estabelecimentos que acolhiam um público com dificuldades, proveniente principalmente da classe baixa e das minorias étnicas.

As características do meio social e institucional e os modos de regulação dos sistemas educativos locais não explicam contudo todas as orientações. Em uma área tão carregada de conteúdo ético como a educação, é necessário levar em conta também a influência dos valores. Esses valores dependem em parte do contexto nacional. Na Inglaterra, por exemplo, desde o início dos anos de 1980 está sendo difundida uma ética "empresarial" no sistema de educação e, de maneira mais acentuada ainda, visando aos diretores das escolas que favorecem e recompensam as condutas competitivas. Na Bélgica, o princípio de liberdade do ensino afirma-se com muito mais força que na França, onde ele compete mais ativamente com o valor da igualdade, o que explica porque a concorrência é mais aberta no primeiro caso e mais oculta no segundo. Mas os valores dependem também das características dos centros, por exemplo, pertencer ao setor público ou privado, o tipo de alunos que os freqüentam. A concorrência aparece como um valor apreciado mais pelas escolas privadas, que existem graças à liberdade de ensino, embora possa ser contido por outros valores religiosos concorrentes, como a fraternidade. É também mais defendida pelas escolas de "excelência" do que pelas escolas que recebem alunos provenientes dos setores mais desfavorecidos da sociedade (Ball, van Zanten, 1998).

Como competir? Fatores que facilitam a concorrência

Para poder competir, os estabelecimentos escolares devem, no entanto, dispor de uma certa margem de autonomia em relação às autoridades educativas locais e nacionais. Na maioria dos sistemas de ensino atuais, ou os estabelecimentos dispõem já legalmente de uma margem de ação mais ou menos importante ou a obtêm no marco de diversas políticas de descentralização. A esse respeito existem, não obstante, diferenças importantes entre os sistemas no plano legal, pois tanto o grau de descentralização (total ou parcial) quanto os setores afetados pela descentralização (o recrutamento de alunos, a contratação, a gestão e a avaliação dos professores, a determinação dos conteúdos e dos métodos de ensino...) apresentam significativa variação de um país para outro (Mons, 2004). Essas diferenças são ainda mais evidentes no plano da atividade cotidiana das escolas, já que outro fator de variação relevante entre os países e entre os contextos locais é o grau de controle efetivo que podem e desejam exercer as autoridades locais da educação sobre o funcionamento dos estabelecimentos.

Desse ponto de vista, observam-se variações significativas entre os contextos estudados. Num dos extremos encontra-se a zona de Oeiras, perto de Lisboa, em Portugal. Nesse caso, a autonomia dos estabelecimentos é bastante limitada. O discurso dominante é de autonomia relativa e de negociação permanente entre as autoridades educativas locais e as escolas, facilitada pelo fato de que a maioria dos responsáveis pela administração começam suas carreiras como professores. Não obstante, na realidade, o sistema é regulado essencialmente de maneira burocrática. No outro extremo, encontram-se Charleroi, na Bélgica, e Budapeste, na Hungria. O primeiro corresponde ao caso dos estabelecimentos que pertencem a diferentes "redes" (a "rede" privada, a "rede" estatal e a "rede" municipal), mas que se coordenam muito pouco entre si, dispondo historicamente – em relação ao princípio fundamental da liberdade de ensino – de uma grande autonomia legal quanto à matrícula de alunos, ao contrato de professores e à orientação pedagógica. Na Hungria, é sobretudo a incapacidade da municipalidade de regular a atividade dos estabelecimentos que explica a autonomia da qual dispõe de facto a maioria das escolas na área estudada.

Os outros três contextos analisados – o borough de Hackney na Inglaterra, Lille e a zona próxima a Paris – situam-se entre esses dois extremos. Em Hackney, os estabelecimentos parecem dispor, à primeira vista, de uma grande autonomia organizacional, sobretudo na área da oferta de opções educativas e de cursos. A realidade, no entanto, mostra que essa é uma autonomia forçada pela pressão das autoridades educativas locais e pela necessidade de obter financiamentos externos, o que leva as escolas a aderir, explícita ou implicitamente, a uma norma geral do que constitui um "bom" estabelecimento escolar (Ball, van Zanten, 1998).

Na França, nos contextos estudados, as mesmas regras uniformes – baseadas num controle central do currículo e da gestão do professorado e num controle local da matrícula dos alunos e da oferta de opções educativas – aplicam-se formalmente a todos os estabelecimentos públicos. No entanto, na prática, os aspectos que as autoridades locais controlam são objeto de diversas negociações, "acertos" com a regra e tolerância em relação a certas infrações, o que alguns sociólogos têm chamado de o "poder periférico" (Grémion, 1976) ou "regulação cruzada" (Crozier, Thoenig, 1976). Ademais, é importante assinalar que os estabelecimentos escolares privados, que participam ativamente da concorrência, não obedecem às mesmas regras, pois, se compartilham os mesmos conteúdos de ensino que os estabelecimentos públicos, têm, no entanto, autonomia muito maior em tudo o que concerne ao contrato e à gestão dos professores, à matrícula dos alunos e à oferta de opções educativas e atividades.

Além da autonomia, é importante assinalar que a capacidade dos estabelecimentos de elaborar e implementar estratégias competitivas ainda assim depende da existência de um certo consenso entre os pontos de vista dos diferentes grupos e do potencial de mobilização coletiva. Nesse sentido, existem diferenças importantes entre as escolas que analisamos, porém essas diferenças têm a ver tanto com as características dos contextos nacionais e locais quanto com as características internas das escolas (tipos de alunos, posição na hierarquia e nos "quase-mercados" locais, caráter público ou privado...). Podem assim existir estabelecimentos escolares situados em contextos que exercem uma forte pressão com vistas a uma concorrência de primeira ou de segunda ordem, que dispõem da autonomia necessária para desenvolver estratégias que lhes permitam conservar ou elevar sua posição, mas no interior dos quais existem divergências ou conflitos tão importantes que a mobilização coletiva se revela impossível.

Ao contrário, existem também estabelecimentos que não sofrem pressões tão importantes ou que dispõem de autonomia limitada, porém que se mobilizam fortemente em torno de um projeto comum graças à existência de convergências implícitas, socialmente determinadas, ou à construção explícita de um consenso coletivo. O papel dos valores que evocamos aparece aqui como essencial e explica a mobilização importante de estabelecimentos privados e de algumas escolas com altas porcentagens de alunos em situação de fracasso escolar que se sentem investidas de uma "missão". Em muitos casos, constata-se, no entanto, que para desenvolver estratégias não é indispensável que exista um grau elevado de consenso. Basta que exista uma repartição de responsabilidades. Os professores podem expressar verbalmente seu desacordo com as estratégias competitivas do estabelecimento, sobretudo aquelas dirigidas ao exterior, porém, na prática, muitos deles se satisfazem em delegar ao diretor uma atividade que lhes parece moralmente criticável, mas da qual podem retirar importantes benefícios profissionais.

Para concluir esta parte, é sem dúvida essencial ressaltar que a autonomia – legal ou conquistada na prática – e a capacidade de mobilização dos estabelecimentos que recebem alunos com dificuldades escolares e das classes baixas, são raramente suficientes para permitir-lhes competir com as escolas que recebem alunos de alto nível escolar e de classe média ou alta. Isso se deve em parte ao fato, já comentado, de que os pais e a opinião pública estabelecem uma relação direta entre as "qualidades" dos alunos e as "qualidades" de uma escola. Deve-se também à incapacidade da maioria dessas escolas, submersas em todos os tipos de problemas1 1 Aos problemas de aprendizagem, disciplina, reputação, somam-se freqüentemente grande rotatividade de professores, atraídos por esse tipo de escola, e participação pequena dos pais, pouco disponíveis e menos dotados de recursos econômicos, culturais e sociais. , de produzir melhoramentos e "acresentar valor" ao ensino, ao contrário do que delas esperam as autoridades da educação (Thrupp, 1999; van Zanten et al., 2002).

ESTRATÉGIAS SETORIAIS DAS ESCOLAS: VOLTADAS PARA O EXTERIOR E PARA O INTERIOR

Para examinar as estratégias dos estabelecimentos escolares de maneira mais detalhada do ponto de vista qualitativo é necessário interessar-se por seu conteúdo, distinguindo diferentes setores de ação. Embora a maioria das estratégias desenvolvidas pelas escolas estejam sustentadas por objetivos variados, é possível classificá-las de maneira esquemática em dois tipos: as voltadas predominantemente para o exterior ou voltadas predominantemente para o interior. No primeiro caso, as estratégias buscam principalmente modificar as condições do entorno local que influenciam o funcionamento dos estabelecimentos escolares, ou seja de maneira novamente esquemática e não exaustiva , modificar as características dos usuários, que são geralmente parte do entorno social, e sua relação com os outros estabelecimentos escolares que formam o entorno institucional. No segundo caso, as estratégias tentam principalmente modificar as condições internas que influenciam o funcionamento dos estabelecimentos, isto é, a organização das classes e dos grupos, da aprendizagem e da disciplina. Analisaremos aqui quatro tipos de estratégias, duas externas e duas internas que escolhemos em razão de sua importância em todos os contextos nacionais, mas também em razão da possibilidade de comparar os dados coletados.

ESTRATÉGIAS DE MELHORIA DA POSIÇÃO DOS ESTABELECIMENTOS EM RELAÇÃO AO CONTEXTO EXTERIOR: MATRÍCULA DOS ALUNOS E OFERTA EDUCACIONAL

Dada a importância do número e das características do alunado para o bom funcionamento interno e para a posição externa dos estabelecimentos, não é surpreendente constatar que muitas escolas se mobilizem para conservar ou atrair novos alunos, sobretudo aqueles que possuem as características acadêmicas ou sociais mais desejadas, mediante estratégias diversas de matrícula. Essas estratégias geralmente levam em conta fatores materiais e simbólicos internos, principalmente o número de vagas disponível segundo o tamanho das salas de aula e do estabelecimento e o grau de tolerância dos professores em relação a classes mais ou menos lotadas, bem como a certos tipos de aluno. Mas essas estratégias devem sobretudo situar-se com relação a fatores externos, como as regras de matrícula vigentes em cada contexto local ou nacional e as estratégias dos pais, principalmente dos mais predispostos a escolher as escolas, ou seja, os pais de classes médias e superiores.

Nossa pesquisa permitiu-nos distinguir diferentes estratégias de matrícula entre os estabelecimentos, dependendo dos contextos nacionais e também da posição na hierarquia e nos "quase-mercados" locais de cada escola. Analisemos primeiro o que se observa nos países em que os pais dispõem de uma liberdade importante para escolher a escola dos filhos. Na Hungria existe de fato um "quase-mercado" escolar muito aberto, o qual leva todos os estabelecimentos que estudamos em Budapeste a lutar para atrair novos alunos, mas mediante estratégias diferentes. Os estabelecimentos com mais capacidade de atração desenvolvem estratégias elitistas voltadas para alunos de melhor nível acadêmico e social, mas como o número de alunos que corresponde a esse perfil é reduzido no distrito de Kobanya, muitos outros preferem manter uma política de matrículas mais aberta para manter ou aumentar a clientela. Por razões éticas algumas escolas recusam todo tipo de seleção no momento da matrícula. Em Charleroi, na Bélgica, onde a livre escolha da escola é uma realidade histórica, observamos três tipos de estratégia: os estabelecimentos mais reputados mobilizam-se pouco quanto à matrícula, já que o nível elevado da demanda e os critérios de entrada produzem uma auto-seleção por parte dos pais. Outros estabelecimentos, menos populares, praticam uma seleção de tipo comportamental, ou seja, mais que os resultados escolares, levam em conta a motivação e a disciplina dos alunos, assim como a participação dos pais. Por último, as escolas mais frágeis, do ponto de vista da demanda, aceitam quase todos os alunos que pleiteiam matrícula.

Vejamos agora as estratégias de matrícula que os estabelecimentos desenvolvem nos contextos nacionais que limitam mais ou menos diretamente as possibilidades de escolha dos pais. Em Hackney, Londres, os estabelecimentos estão lotados em virtude do desenvolvimento do mercado imobiliário, por isso sua capacidade de seleção foi limitada pela autoridade local de educação, que deixa os pais expressarem suas opções de maneira hierarquizada, mas logo as canaliza para evitar que algumas escolas se apropriem dos melhores alunos. No entanto, os estabelecimentos mais populares lutam por reter os alunos cujos pais os indicaram como primeira alternativa, enquanto que os menos populares devem contentar-se como aqueles que os situam em segundo ou terceiro lugar. Em Lille e na zona próxima a Paris, o mais notável é a diferença entre o setor público e o privado. No público, os estabelecimentos devem respeitar regras estritas de matrícula, mas a existência de uma demanda por parte dos pais da classe média e alta incita as escolas mais populares a infringir essas regras de maneira legal ou ilegal; no setor privado, os estabelecimentos de melhor reputação exercem uma seleção com base nos resultados acadêmicos, e os outros, como na Bélgica, em função de características comportamentais. Quanto a Oeiras, a municipalidade próxima a Lisboa, a seleção dos alunos pelas escolas mostra-se muito limitada, embora nem todos os pais respeitem a "carta escolar" estabelecida pela administração.

As estratégias de matrícula combinam-se freqüentemente com estratégias em outra área, a da oferta de opções educativas, que participa também de lógicas de ação voltadas para o exterior. Tal como as estratégias de matrícula, mas de maneira ainda mais forte, essas estratégias de oferta estão condicionadas pelas regras institucionais que emanam das autoridades locais de educação, porém, como o objetivo é freqüentemente atrair novos alunos, também se orientam pelos desejos explícitos – ou supostos pelos diretores e professores – dos jovens e de seus pais. Intervém também na elaboração dessas estratégias, e de maneira decisiva na maioria dos casos, a análise mais ou menos detalhada que os estabelecimentos realizam das estratégias dos demais estabelecimentos que formam parte do entorno institucional, o que alguns pesquisadores chamaram de "scanning institucional" (Bagley, Woods, Glatter, 1996). Isso leva certas escolas a imitar os estabelecimentos que consideram como seus concorrentes, enquanto que outras desenvolvem projetos divergentes ou opostos dentro de uma lógica de diversificação e especialização, que pode dar lugar à constituição de nichos educacionais.

De novo observamos importantes variações entre os estabelecimentos e os países. O exame dos contextos em que as políticas de educação nacionais e locais favorecem a diversificação da oferta educativa mostra que é no distrito de Hackney, em Londres, que existe a mais importante especialização dessa oferta, já que se trata de uma orientação impulsionada pelas autoridades locais e nacionais e que permite aos estabelecimentos, não somente atrair alunos com um perfil específico, como também receber financiamentos provenientes de empresas ou fundações privadas. Mas a especialização é também importante em Kobanya, onde o controle municipal sobre a oferta de educação parece relativamente ineficaz. Para atrair alunos de bom nível escolar e social, certos estabelecimentos criaram classes bilíngües, classes com horários reforçados de Matemática ou classes que preparam para os liceus* * Liceus: cursos de nível médio que dão acesso à universidade (N. da E.). . Para obter financiamentos complementares das autoridades locais de educação ou de fundações privadas, outras escolas criam classes específicas para os alunos com dificuldades escolares. Muitas vezes, as escolas combinam essas duas estratégias, o que dá lugar a uma grande diversidade interna.

Se mudamos o enfoque em direção aos países nos quais existe um controle moderado da oferta educacional, observamos que na zona de Charleroi, na Bélgica – na qual a repartição das opções é negociada nos conselhos de zona por estabelecimentos que, no entanto, conservam um grau elevado de autonomia nessa área –, coexistem quatro orientações: 1. certos estabelecimentos tratam de preservar uma oferta elitista, compreendendo a manutenção de opções como latim, grego ou matemática avançada para atrair as frações superiores e mais tradicionais da classe média e alta; 2. outros tratam de modernizar sua oferta para atrair novas frações de alunos de classe média e alta; 3. outras escolas, mais frágeis do ponto de vista de sua capacidade de atração, tratam de conquistar novos mercados graças à abertura de opções da moda, atraindo muitos alunos de diferentes níveis escolares e sociais; 4. por fim, certas escolas mantêm sempre a mesma oferta que, sem ser de excelência, permite-lhes reter certas categorias de alunos.

Na França e em Portugal, o controle burocrático sobre a oferta educacional é importante, porém as estratégias dos estabelecimentos são diferentes em virtude do grau de pressão, direta ou indireta, exercido pela administração, pelos pais e pelos professores, em favor de uma educação de tipo elitista, tradicional ou renovada. Assim, na França, como na Bélgica, observa-se que, na parte mais elevada da hierarquia escolar local, certas escolas de excelência mantêm uma oferta tradicional, enquanto outras, que desejam melhorar ainda mais sua posição, implantam novas opções: idiomas modernos, "raros", como russo, chinês ou japonês, classes bilíngües européias, classes com horários especiais para música, dança ou esporte. Na parte mais baixa da hierarquia local, as escolas desenvolvem sobretudo uma oferta baseada nos diferentes recursos que oferecem atualmente as políticas de discriminação positiva. Em troca, na zona estudada perto de Lisboa, a diversificação educacional, se bem que não totalmente limitada pela administração, mostra-se muito moderada em virtude da ausência de pressão por parte dos pais. Essa diversificação está ademais concentrada na parte baixa da hierarquia, já que são as escolas que acolhem os alunos das classes baixas que propõem "currículos alternativos" de orientação profissional para alunos com dificuldades escolares e que não pretendem continuar seus estudos gerais.

Estratégias de organização interna: constituição das classes e gestão da disciplina

Uma das estratégias internas mais importantes, que produz também certos efeitos no exterior em alguns contextos nacionais, é a constituição das classes. O agrupamento dos alunos segundo um princípio de heterogeneidade ou segundo certas características acadêmicas – associadas geralmente a outras características sociais – condiciona de maneira direta o trabalho dos professores. Estes tendem a preferir as classes de nível elevado que obtêm melhores resultados, embora alguns professores jovens declarem que as classes heterogêneas são mais interessantes do ponto de vista pedagógico (Rayou, van Zanten, 2004). Os agrupamentos também condicionam os resultados globais do estabelecimento e, em grande parte, o "clima" em matéria de disciplina, servindo ainda como "sinaleiros" para os pais, sobretudo nos sistemas em que a diversificação por meio de opções oficiais é limitada pelas autoridades locais e nas escolas cujos usuários possuem níveis acadêmicos diferentes e pertencem a meios sociais heterogêneos (van Zanten, 2002, 2003).

Essa estratégia tem muita importância em nosso estudo no distrito de Kobanya, na Hungria, e nas zonas de Lille e da região de Paris. Na Hungria, a hierarquia entre as escolas, embora exista, desloca-se cada vez mais para uma hierarquia interna de cada estabelecimento, onde coexistem, de maneira oficial, classes "de elite" para alunos de nível acadêmico alto ou médio e classes comuns ou com programas específicos para alunos com dificuldades. Este último tipo de classe desenvolveu-se visando beneficiar-se de subvenções financeiras no âmbito de ações de "discriminação positiva", mas também em virtude da especialização crescente do pessoal que trabalha nas escolas. Uma parte do professorado tem realmente uma formação especial, sendo que colaboram também na escola fisioterapeutas, ortodontistas, logopedistas, não somente de maneira pontual mas em classes classificadas, de certo modo, como "com problemas". Na França, os agrupamentos de acordo com o rendimento dos alunos estão formalmente proibidos, mas são praticados por um número crescente de estabelecimentos de ensino médio, sobretudo aqueles que, situados em zonas urbanas heterogêneas, temem perder os alunos da classe média com bons resultados escolares e criam para eles classes de "bom nível". Também se desenvolvem, como na Hungria, classes especializadas, às vezes oficiais, para alunos com problemas escolares, como as "classes de ajuda e apoio", as "classes de projetos", graças a financiamentos específicos do Estado ou dos conselhos departamentais ou municipais, principalmente em zonas decretadas como "zonas de educação prioritárias" ou "zonas sensíveis" com problemas de violência urbana e escolar (van Zanten, 2001).

Em contrapartida, nos contextos nacionais e locais onde as escolas não tiram proveito financeiro (como na Hungria) da presença de alunos com problemas, a constituição das classes não se reveste de muita importância nos contextos em que existe a possibilidade de uma diversificação oficial interna, nos quais os agrupamentos por opções são geralmente agrupamentos por níveis de rendimento. No entanto, na Inglaterra, à parte as opções oficiais artísticas, científicas ou técnicas, que propõe cada estabelecimento, desenvolvem-se também, sob a pressão das autoridades de educação locais e dos pais da classe média, novas classes especiais para alunos "com capacidades e talentos" em detrimento da atenção aos alunos com dificuldades. Um caso interessante é também o de Oeiras, em Portugal. Se o princípio de classes heterogêneas é geralmente respeitado pelas escolas – embora se observem algumas classes que agrupam alunos com bons resultados ou com dificuldades ou então filhos de professores – existe uma forma de segregação original que se observa também na América Latina, ligada à existência de dois turnos nas escolas. O turno da manhã é mais freqüentemente escolhido pelos pais da classe média, para que seus filhos possam participar de atividades extra-escolares organizadas geralmente à tarde, o que faz com que o segundo turno concentre muito mais alunos das classes baixas com dificuldades.

Outra série de estratégias importantes para a organização interna dos estabelecimentos, mas que também pode ser utilizada para melhorar a imagem externa, está ligada à gestão dos problemas de disciplina e à manutenção da ordem escolar. As estratégias nessa área variam em certa medida entre os países, mas ainda mais entre os estabelecimentos no interior de um mesmo país e de uma mesma zona. Nos colégios que acolhem majoritariamente alunos da classe média e alta, os problemas de disciplina não se mostram centrais, já que os alunos interiorizaram amplamente as normas de civilidade da escola média, graças à família e à socialização em escolas primárias do mesmo tipo. Os casos desviantes são tratados, em geral, com a aplicação de sanções formais inscritas no regulamento escolar e a comunicação estreita com os pais. Essa ausência de problemas de disciplina tem um impacto importante na imagem dos estabelecimentos e é um dos fatores decisivos que intervêm na escolha de escolas privadas, reputadas como mais estritas e mais eficazes nessa área em países como a França. Na Inglaterra é também esse fator que conduz um certo número de pais a preferir as escolas não mistas para as meninas.

A luta contra os problemas de disciplina ocupa uma parte importante da atividade dos estabelecimentos mais heterogêneos. O objetivo dessas escolas na maioria dos países é duplo, já que se trata, por um lado, de encontrar novas maneiras de manter uma ordem escolar, que em geral é mais problemática nos estabelecimentos freqüentados principalmente pelas camadas superiores da sociedade, e, por outro lado, de tranqüilizar os pais, que enviam seus filhos para esse tipo de escola com certa inquietação. Mas é óbvio que os problemas de disciplina são sobretudo centrais nas escolas que concentram alunos das classes baixas com dificuldades escolares. Nem todas essas escolas são capazes de desenvolver estratégias nessa área. Muitas delas não conseguem desenvolver ações coerentes, já que a amplitude dos problemas, a rotatividade dos alunos e dos professores e a ausência de apoio ou o apoio distante dos pais impedem a escola de elaborar um sistema coerente de normas e regras e de aplicá-las de maneira sistemática. Nesse caso, o que se observa geralmente é a multiplicação de sanções pouco eficazes e diversas formas de exclusão, seja no interior do estabelecimento, seja no exterior, chegando a diferentes modalidades de gestão dos desvios, que muitas vezes culminam na expulsão definitiva do aluno.

Nos estabelecimentos que concentram alunos com problemas desse tipo mas que conseguem alguns resultados positivos, três estratégias principais foram observadas nos diferentes contextos locais e nacionais. Certas escolas, sobretudo em Lille e na zona próxima a Paris, desenvolvem estratégias de tipo "carismático", já que se baseiam sobretudo na expressão da autoridade e presença ativa tanto do diretor quanto do pessoal encarregado da disciplina, na entrada e saída do colégio, nos pátios, no recreio. Nesse caso, os professores parecem menos envolvidos. Outras escolas nesses dois contextos, mas também em Charleroi na Bélgica e em Hackney na Inglaterra utilizam sobretudo novos procedimentos baseados na comunicação e na negociação com os alunos, bem como a implementação de "contratos" morais. Esses procedimentos exigem um grau mais elevado de consenso entre as diferentes categorias de pessoal que trabalham nos estabelecimentos e se inscrevem às vezes no âmbito de políticas de educação impulsionadas pelas autoridades locais. Por último, em alguns estabelecimentos franceses e belgas e em muitos colégios húngaros estudados, observa-se um tratamento "terapêutico" dos problemas de disciplina, recorrendo-se a diferentes especialistas dentro e fora dos centros escolares. Esse procedimento deve ser visto no quadro de um discurso de inclusão porém também de exclusão suave dos alunos pertencentes às classes baixas e a minorias étnicas em muitos colégios que concentram alunos das classes baixas. Contudo, essa orientação terapêutica também se explica pela segmentação profissional da atividade educativa, cuja causa principal é a recusa, por parte dos professores, de uma extensão de suas funções tradicionais de transmissão de conhecimentos. Aparecem assim, nos estabelecimentos escolares na França, os conselheiros de educação e as assistentes sociais escolares e, na Hungria, novos especialistas da proteção à criança. A isso acrescente-se a multiplicação de especialistas em psicologia e em psiquiatria, que intevêm na escola ou fora dela para tratar individualmente ou coletivamente dos problemas dessas crianças.

ESTRATÉGIAS GLOBAIS: A INFLUÊNCIA DA POSIÇÃO NA HIERARQUIA E NO "QUASE-MERCADO" LOCAL DA EDUCAÇÃO

Na apresentação das estratégias setoriais das escolas nos seis contextos estudados, temos enfatizado a importância da posição dos estabelecimentos na hierarquia local segundo as características acadêmicas e sociais de seus alunos e segundo sua posição no "quase-mercado" local, ou seja, estabelecimentos atraentes ou, ao contrário, evitados ou que correm o risco de ser evitados pelos alunos da classe alta e média com bons resultados. Nesta seção, tratamos de sistematizar tais relações, propondo quatro tipos ideais, que resumimos a seguir:


É necessário enfatizar no entanto que, se nossa tese está centrada na importância dessas duas condições externas sobre as estratégias que desenvolvem os estabelecimentos escolares, não esqueçamos que a relação entre essas variáveis é geralmente mediada pela outra variável externa, ou seja, pela ação das autoridades de educação do local, e por uma variável interna, o grau de consenso entre os atores (diretor, professores e pais principalmente). Além disso, como indicado no quadro, a posição, tanto na hierarquia quanto no quase-mercado, não exerce uma influência automática, já que não se trata da posição objetiva, mas da posição percebida pelos atores, o que faz intervirem pelo menos dois outros fatores subjetivos e objetivos de mediação: as representações e os valores dos atores e o grau de informação sobre o entorno de que estes dispõem.

Tirar proveito de uma posição ou conquistar novas posições?

O fato de se encontrar em uma posição hierárquica elevada, graças às qualidades acadêmicas e sociais do alunado, exerce uma influência importante sobre as estratégias dos estabelecimentos. No entanto, essas estratégias dependem também de como a posição do estabelecimento no "quase-mercado" local é percebida pelos diferentes atores e principalmente pelos diretores e pais (Edwards, Whitty, 1997). As escolas que ocupam as posições mais elevadas na hierarquia e que consideram que sua capacidade de atração é estável ou se modifica pouco e lentamente tendem a adotar condutas de "poupadores", ou seja, a contentar-se em gerir seu capital com um esforço mínimo. Essas escolas, como mostramos na seção precedente, podem-se limitar, em matéria de matrículas, a manter exigências elevadas, contando com uma demanda superior ao número de vagas. Quanto à oferta de educacional, como ilustramos, sobretudo nos exemplos da Bélgica e França, esses estabelecimentos mantêm uma oferta clássica e seletiva, oferecendo opções de línguas antigas, que já faziam parte do currículo do ensino humanista secundário em seus inícios, e oferecendo também cursos de nível elevado nas matérias científicas, mais presentes no sistema secundário atual, principalmente em Matemática, disciplina que exerce uma função seletiva importante nesses dois países, em especial na França.

Internamente, esses estabelecimentos podem desenvolver estratégias de constituição de classes de bom nível para selecionar, ainda mais, uma elite escolar no interior de um alunado já de muito bom nível acadêmico e social. Isso é mais adotado nos estabelecimentos elitistas franceses que orientam sua atividade para a construção de trajetórias ambiciosas para seus melhores alunos. Essas trajetórias são aspiradas pelos professores e pais dos alunos, dentro de um sistema caracterizado por uma hierarquização importante do ensino médio e, ainda mais, do ensino superior. Na Bélgica, tal estratégia está menos presente, já que a seletividade desses dois níveis educacionais é menor do que na França.

Nos estabelecimentos "poupadores" a disciplina não é uma grande preocupação. Não obstante, como já assinalamos, nesses dois países de tradição católica, os estabelecimentos privados protegem geralmente a reputação que têm de estabelecimentos onde o aluno recebe uma boa educação, não somente do ponto de vista da aprendizagem de conteúdos como também dos valores e das condutas sociais distintivas das classes dominantes. Existe aí uma diferença entre o setor público e o setor privado quanto à importância que se atribui a essa dimensão, mais marcada na França do que na Bélgica.

No outro extremo dos estabelecimentos que ocupam uma posição elevada na hierarquia local, encontram-se aqueles cuja posição no "quase-mercado" local parece ameaçada por um abandono real ou previsto dos pais. Esse abandono pode ser engendrado por elementos diversos, ligados a mudanças na posição hierárquica do estabelecimento (queda no resultado dos exames, transformação da composição social da clientela relacionada a mudanças na população do entorno) e a transformações internas relacionadas ou não com mudanças externas (problemas de disciplina, por exemplo). Também pode ser o resultado de mudanças nas aspirações dos pais, provocadas por fatores como a internacionalização dos estudos superiores e do mercado de trabalho – que leva muitos pais da classe média e alta a dar bem mais importância ao domínio de línguas vivas estrangeiras, sobretudo o inglês – ou pela introdução de novas tecnologias da informação, que incitam os pais a buscar escolas que proporcionam uma formação adequada nessas áreas (van Zanten, 2003). Nesse grupo de estabelecimentos, que desenvolvem estratégias destinadas a conquistar novas posições, podemos também classificar as escolas que, apoiando-se ou não em algumas mudanças externas (modificação do alunado relacionada a fatores demográficos ou urbanos, por exemplo), tratam de melhorar uma posição inicialmente mais baixa.

Que estratégias implementam esses "conquistadores",ou "empreendedores"? Geralmente, tendem a investir, num primeiro tempo pelo menos, na oferta de educação (Bélgica e França), mediante a criação de novas opções voltadas para a dimensão internacional (estabelecimentos ou seções internacionais, classes européias, opções de inglês reforçado) ou dirigidas a novas opções populares no mercado de trabalho. Na Inglaterra, os estabelecimentos desenvolvem também novas opções científicas e técnicas, pelas quais se interessam algumas frações da classe média com vistas à melhor inserção no trabalho em nível nacional ou internacional. Observa-se também, na França, a criação de opções que não têm um grande valor instrumental, mas que servem para selecionar os melhores alunos, como as classes especiais de música ou dança em horários alternativos. Se as matrículas aumentam, esses estabelecimentos irão também elevar suas exigências e se "elitizar" no interior do grupo potencial de alunos. Esses estabelecimentos tendem também a investir na atividade interna de maneira mais intensa do que os "poupadores". A criação de "classes de nível" em países como a França, onde o número de opções oficiais é limitado, mas também na Hungria, por razões demográficas, permite às escolas mais heterogêneas manter e ainda aumentar a porcentagem de alunos da classe média e alta. Estratégias como exclusões e expulsões são também utilizadas para obter resultados visíveis a curto prazo quanto à disciplina.

É importante lembrar que, se as estratégias dos "conquistadores" parecem naturalmente instáveis e transitórias, a situação dos estabelecimentos "empreendedores" não é tampouco definitiva, embora se observe, no geral, grande continuidade nas trajetórias das escolas que ocupam as posições mais invejadas. Além das possíveis mudanças externas e internas que acabamos de mostrar, a situação pode ser alterada pela modificação das regras que controlam a matrícula e a oferta de educação pelas autoridades locais e nacionais. Nos contextos locais da Inglaterra e da Hungria, existem poucas posições de "poupadores", principalmente por causa da modificação do financiamento das escolas, hoje – mais do que no passado – ligado ao número e tipo de aluno e mais dependente de fontes privadas. Para que essas escolas funcionem normalmente, devem desenvolver (sobretudo seus diretores) condutas empresariais, ou seja, examinar a demanda local dos pais, as práticas dos concorrentes, os objetivos das novas agências que aportam os fundos complementares e encontrar novas formas de adaptação. Na verdade, todos os estabelecimentos se vêem obrigados institucionalmente a adotar uma conduta de "empreendedores".

Mas é importante também lembrar o papel das percepções dos atores quanto ao estado do mercado local e ao sistema de relações interno de cada estabelecimento. Na França, por exemplo, observamos o caso de duas escolas situadas na zona próxima a Paris que persistiam em manter uma conduta de "poupadores", apesar do abalo de sua posição hierárquica e, sobretudo, de sua posição no "quase-mercado". Isso parece devido a três fatores. O primeiro, tem a ver com as representações, ou seja, o sentimento dos diretores, compartilhado por alguns docentes, de incapacidade para sustar a evasão dos pais. O segundo, tem a ver com os valores, pois alguns diretores e muitos professores, na maioria dos sistemas estudados, pensam que é indigno para o corpo docente adaptar-se a exigências do "quase-mercado", uma vez que a escola deve preocupar-se com finalidades nobres e não mercantis, tendência que é ainda mais marcante na França por causa da organização e do financiamento estatal da educação (Ball, van Zanten, 1998). O terceiro fator é a ausência de um consenso interno. Em uma das escolas, existem divergências fortes entre os professores, sinal de um individualismo típico dos contextos de ensino mais elitistas na França, que não favorecem sequer a mobilização coletiva parcial suposta nas estratégias de conquista. A outra escola se caracteriza por um clima de conflito em virtude da escassa legitimidade pedagógica do diretor, que foi antes um professor pouco apreciado na mesma escola, e da tensão muito forte, principalmente na ausência de um árbitro eficaz entre os professores e os pais. Essa tensão, também típica desses estabelecimentos onde os pais desejam intervir mais ativamente em matéria de pedagogia e avaliação, faz parte igualmente das dificuldades para desenvolver estratégias coletivas.

Este estudo comparativo permitiu também observar estabelecimentos "empreendedores" que se mobilizam muito mais do que requerem suas necessidades objetivas, tanto em Lille e na zona próxima a Paris quanto em Londres e em Budapeste. O que parece intervir mais diretamente nesse caso é a personalidade particularmente dinâmica de certos diretores, sua capacidade de mobilizar pessoas e redes exteriores ao estabelecimento e de criar alianças internas eficazes com certos grupos de professores ou de pais. Esse perfil tende a desenvolver-se porque muitos sistemas educacionais inclinam-se a recompensar o diretor de maneira oficial, como na Inglaterra, ou de maneira informal e às vezes dissimulada, como na França ou na Hungria, pelas suas condutas "empresariais". Essa oposição entre "poupadores" e "empreendedores" não parece ser muito operatória no contexto português, por várias razões: a hierarquia menos marcada entre escolas, pais da classe média e alta menos interessados na elevação do nível escolar de seus filhos, a administração que incita os estabelecimentos a obedecer mais a regras comuns do que a dar provas de dinamismo.

Adaptar-se à situação ou modificar a imagem ou a realidade?

Quanto mais se desce na hierarquia de posição e de capacidade de atração, mais os estabelecimentos se sentem dependentes daqueles de nível superior. Isso não quer dizer, no entanto, que todos ajam da mesma maneira. Examinemos primeiro as perspectivas das escolas situadas na posição mais baixa na escala local e que não podem modificar o "quase-mercado" local, em que sua situação se assemelha à de um micromercado, totalmente fechado, como no caso dos estabelecimentos situados no centro de um conjunto habitacional, ou num espaço para o qual os outros estabelecimentos relegam os alunos com problemas de aprendizagem, de trabalho ou de comportamento. Nesse caso, muitas escolas voltam as costas ao contexto exterior. Não procuram melhorar sua posição hierárquica mediante processos de seleção acadêmica ou social dos alunos, nem melhorar sua posição no "quase-mercado" mediante a transformação da oferta de educação. Toda a atividade da escola centra-se no funcionamento interno e o único laço importante voltado para o exterior é o que une os estabelecimentos com as autoridades educacionais do local que os financiam e, até certo ponto, controlam sua atividade.

Esse comportamento de adaptação à situação pode, no entanto, assemelhar-se a um comportamento fatalista de resignação ou, ao contrário, a uma manifestação de certo voluntarismo. No primeiro caso, encontram-se os estabelecimentos referidos como de "guetos", que vogam à deriva e funcionam de maneira anômica na ausência de qualquer iniciativa dos profissionais ou dos pais. Mas também se encontram estabelecimentos que se mobilizam, principalmente para obter recursos em matéria de infra-estrutura e de pessoal. Esses recursos lhes permitem "sobreviver", ou seja, amenizar condições de trabalho particularmente difíceis, porém não lhes possibilitam em geral transformar a situação dos alunos e, em alguns casos (observados sobretudo em Lille, na zona próxima a Paris e em Budapeste), contribuem para agravá-la, por causa do reforço à segregação interna. No segundo caso, encontram-se outros estabelecimentos que se mobilizam de maneira mais ativa em prol dos alunos, mas com objetivos mais ou menos ambiciosos. Em certas escolas, observadas na zona próxima de Paris ou em Charleroi, na Bélgica, os estabelecimentos se contentam em impor a "paz" no interior mediante procedimentos repressivos ou terapêuticos. Em outros poucos estabelecimentos, observados em Lille ou em Londres, é perceptível, ao contrário, um esforço real, por parte de professores solidários e envolvidos num projeto comum, para melhorar os resultados dos alunos, embora o impacto desse esforço seja geralmente limitado, dadas as condições objetivas.

Os estabelecimentos mais heterogêneos são freqüentemente mais ativos do que os precedentes, uma vez que têm mais confiança em sua capacidade de transformar a situação e mais recursos para agir em favor dessa transformação. Existe também nesses estabelecimentos um grau de consenso mais elevado sobre as finalidades da ação educativa entre os profissionais e entre estes e pelo menos uma parte dos pais. Esses estabelecimentos lutam contra a degradação de sua imagem, ou por sua melhoria, primeiramente a partir de uma modificação da oferta educacional. Essa oferta é geralmente menos prestigiosa que a das escolas "poupadoras" ou "empreendedoras", mas pode parecer atraente a certas categorias de pais da classe média e a alunos que, sem ser brilhantes, obtêm honrosos resultados. Essas opções são do tipo "aulas de esporte e estudo", na França, ou "ciências sociais", "artes expressivas" ou "infografia" na Bélgica, bem como certas opções técnicas na Inglaterra. Essas escolas tratam também de realizar uma certa seleção do alunado, pelo menos em matéria de comportamento, excluindo aqueles jovens que apresentam problemas de disciplina.

Em matéria de estratégias internas esses estabelecimentos dão muita importância à constituição de classes de nível, em especial classes de "bom" nível, nas quais agrupam alunos provenientes da classe média que obtêm bons resultados e não apresentam problemas de disciplina, incluindo também – embora esse caso seja conseqüência indireta dos três primeiros fatores – alunas do sexo feminino e alunos que não pertencem a minorias étnicas. Essa estratégia, combinada com as estratégias externas, é essencial para construir uma aliança com os pais da classe média do setor público, aqueles que, por razão econômica – ou seja, o custo de vida em grandes aglomerações como Londres, Paris ou Lille –, mas também por razões culturais e éticas – apego à escola pública, valorização da mescla social e étnica nas escolas – enviam seus filhos para tais escolas heterogêneas. Como essas categorias sociais estão interessadas não somente nas aprendizagens cognitivas, mas também no desenvolvimento pessoal e social de seus filhos, esses estabelecimentos se interessam de perto pela gestão dos problemas de disciplina mediante políticas repressivas negociadas com os alunos (van Zanten, 2003).

Para concluir esta seção é importante ressaltar que a força de vontade dessas escolas tem geralmente efeitos limitados e se revela instável a médio prazo. Por um lado, se os pais da classe média aceitam até certo ponto a coabitação com as classes baixas e a minoria étnica, trata-se na grande maioria dos casos de uma aceitação condicional. Se os resultados dos filhos não se mostram à altura, se surgem problemas de disciplina ou se mudam as regras administrativas ou condições de matrícula próprias de cada estabelecimento, esses pais podem rapidamente optar por tirar os filhos da escola. Por outro lado, é difícil manter a concorrência com estabelecimentos de nível superior de qualidade que parecem oferecer um porto mais seguro, mais agradável e mais eficaz, assim como opções mais atraentes. Por último, se às vezes as administrações apóiam essas escolas em alguns países como Inglaterra, são sobretudo as escolas melhores que são recompensadas pelas autoridades locais da educação.

CONCLUSÃO

Qual é o impacto real de todos esses processos sobre as desigualdades de educação e, de modo mais geral, sobre o funcionamento dos sistemas educacionais? Embora nossa investigação, de caráter qualitativo e processual (van Zanten, 2004, 2004a) não nos permita estabelecer relações diretas com os indicadores de desigualdade entre alunos em nível local e nacional, ela nos autoriza entretanto a tirar uma série de conclusões que merecem ser exploradas em estudos futuros, incluindo dimensões qualitativas e quantitativas. Os sistemas educacionais que favoreceram abertamente o desenvolvimento de políticas de concorrência entre estabelecimentos, como na Inglaterra, ou nos quais se desenvolvem novas formas de concorrência no âmbito de uma regulação historicamente comunitária da demanda de educação, como na Bélgica, defendem esse princípio em nome de uma diversidade educacional desejada pelos pais e necessária ao desenvolvimento econômico e social.

A análise do funcionamento concreto dos "quase-mercados" mostra no entanto que, se existem algumas formas de diversificação mais ou menos equivalentes entre os estabelecimentos situados na parte mais elevada da hierarquia escolar e do "quase-mercado" – por exemplo entre algumas escolas "poupadoras" e outras "empreendedoras" – a "diferenciação desigual" é um fenômeno muito mais freqüente. De fato, mediante a concorrência, alguns estabelecimentos monopolizam os recursos mais desejados em termos do alunado, principalmente, mas também de opções, de professores ou de financiamentos, enquanto outros se encontram mais desprovidos desses recursos. Como a capacidade dos estabelecimentos de competir de maneira eficaz depende desses mesmos recursos, é muito difícil observar processos de inversão das hierarquias existentes (Hardman, Levacic, 1997). Além disso a presença importante de dinâmicas de "quase-mercado" leva os estabelecimentos a trabalhar mais para parecer atraentes do que para ser realmente eficazes, o que necessariamente influi na qualidade da educação que todos os alunos recebem.

A análise de seis contextos locais e de cinco países mostra alguns elementos de variação importante, que dizem respeito aos modos e à capacidade de regulação da concorrência pelas autoridades locais de educação e ao nível de aspiração e mobilização dos pais. Em relação ao primeiro aspecto é possível distinguir os sistemas em que predomina uma regulação com tendência burocrática – Portugal e, em menor grau, França – e aqueles nos quais predomina uma regulação pós-burocrática, empenhada, como na Inglaterra, ou mais do tipo laissez-faire, como na Bélgica. Mas também é possível distinguir os sistemas, nos quais a capacidade de regulação do Estado é ainda importante, do sistema húngaro, cujo poder de imposição foi afetado pela importância e pela diversidade de reformas ligadas à falta de estabilidade política do período pós-comunista. Sobre o segundo aspecto, é possível distinguir países onde não só o nível de desenvolvimento da educação, como também de formação das classes sociais, propiciam uma exigência elevada por parte dos pais da classe média e alta. Isso é observado na França, Bélgica e Inglaterra, mas também na Hungria e em países, como Portugal, em que a demanda de educação é mais moderada. Levando em conta esses dois fatores, podemos assim distinguir países muito empenhados quanto ao desenvolvimento de novos modos de regulação, estatal e "mercantil" – em ordem decrescente, Inglaterra, Bélgica, França –, e países pouco preocupados com a questão.

Se essa comparação parece trazer conclusões importantes sobre a evolução dos sistemas educacionais na Europa, será possível transferi-las para outros contextos, como América Latina? As políticas destinadas a favorecer a concorrência entre escolas têm sido implementadas em muitos países latino-americanos e alguns estudos revelam a forte mobilização dos pais em alguns contextos metropolitanos, como Buenos Aires (Boron, 2003; Veleda, Del Cueto, 2005), o que evidencia haver certas condições externas favoráveis à emergência de "interdependências competitivas" do mesmo tipo que analisamos neste estudo. Seria no entanto necessário, para realizar comparações adequadas, incluir análises específicas das realidades urbanas e escolares nesse outro lado do Atlântico, assim como dos processos de hibridização das políticas e dos processos educacionais nos contextos locais (van Zanten, Ball, 2000; Krawczyk, Vieira, 2003).

Recebido em: dezembro 2004

Aprovado para publicação em: julho 2005

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  • 1
    Aos problemas de aprendizagem, disciplina, reputação, somam-se freqüentemente grande rotatividade de professores, atraídos por esse tipo de escola, e participação pequena dos pais, pouco disponíveis e menos dotados de recursos econômicos, culturais e sociais.
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    Liceus: cursos de nível médio que dão acesso à universidade (N. da E.).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 2005

    Histórico

    • Recebido
      Dez 2004
    • Aceito
      Jul 2005
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